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ILHA DOS AMORES (Episédio da) 0 episédio Os Lasiadas habitualmente denominado piso da Tha dos Amores — ¢utiizada também, algumas vers, a designagao de Tha do Amor — tenn inkio na estncia 18 do Canto IX « prolonga-se até A eatancia 143 do Canta X, ocupando, por conseguinte, crea de vinte por conto da toaldade do poema. ets extensio «a au localizasio na ctruture textual, representando « apoteose © a conclusio da aventura maritima da epopeis, comprovann a6 por sa sua relevincia singular. A expresso «llha dos Amores» ni ocorre porn 10 poema: a itha & denomineda sinsuladivina» (X23), tlha namorada (1X52) olla (.] fresea e bela» (B¢52), «fermosa tha, alegre e deletosa> (X59) llha angéicepintada» (1X89), «tlhe de ‘Venus (15 05), atlha alegre e namorada (143). Deve cede quo os litores e comentarietn d'Os Lusiadas procuraram identifica Ilha dos Amores ‘com uma ha eal econcreta,geograficamente local ‘os tltimos anos da vida do poeta, no comentirio que laborou sobre Os Lasiadas © que acompanha a edigao do poems publicada por Domingos 3600, que ter consivido com Cams Fernandes em 1613 — comentirio que fo parcalmente alterado por Pedro de Mariz afrma que “laos tom pars ay quo esta ilba de que o Poet aq fall, ssa ade Sancta Helona>, opiniso de que Corre discorda, porque a ilha «fey hii Fingimento que © Posta aqui fez, como elaramente consta da letra». identiicagio da Ilha dos Amores com a Tha ce Santa Helena, jé apontada pelo comentarsta da chamada sedigi dos pcos» Os Lusiodas (1384), deriva certamente do facto de Ternio Alvares do Oriente, na Lusitéria Transformada (1607), ter deserto esta iha seguindo de perto descr camoniana da ha dos Amores, como Teéfilo Braga acertadamente props e como Antonio Crurgito minuciosamente demonstrou. Posteriormente, outras propostas de sdentfeasao wa da tha foram formuladas: Faria e Sousa identifioou-a com a ha de Angediva, Gomes Monteiro propia ilha de Zanaibar, Rranciaco Freire de Carvalho a ilha de Caio, Tele Braga, asoriano, ‘sdvogou a idetifiasio com a la Tercera, Che Gongalvesdefondeu a tose da ilha de Bombsitn, ‘schamada «Ilha da Boa Video, onde Gare de Orta, amigo de Canes, residia © poseule um peldeio com um magnifico jandim botinies, outros tergeram arma por uma dae ihas de Cabo Verde, pola Madeira, pelas Caniias, ete: Sem prejulzo de Camses ter uiliado memérias de ume tha concret, bles que, camo ua dos Amores ¢ una iha imagi al, pode ser identficada com um referente empiico. ‘Tom algum sontdo, pordm, saber se seta iba simbslen 6 igurada no oceano Indic ow no ocean Atlantico, matéria que, relacionada com a questi anteriorment dscatida, tem também suscitado controvérsias. A narrativa da estincia 16 sobretudo da estncia 51 do Canto IX — «Cortando va0.as nnaus a Targa via / do mar ingente pera a patria amada, desejando provers de gua fra / pera a srande viagem prolongada» — nao dea dvidas de que 0s nautas portugueses aistarann aia rnamorada poueo depois de inicida a viagem de egress, quando era necesario fazer guada para ‘longa navegagio que tinham de enfentar, , portanto,em Aguas do oceano Indico, A loslzagio em Aguas Indias, todavia, no impede que a floes da Tha dos Amores, como demonstrom 0 Conde de Fealho em Flora dDs Lusiadas (1880), seja de origem enatureza mediterrnias,figurando mela ‘quate todas as cepéces mencionadas na poesia greco-latina. ithe de Venuaé unailha que a deusa Aeslocou do Mediterraneo oriental para ax dguas Indices « & una ilhaeuja paiaagem &pintada com 1s recordagdee da flora portuguesa com at meine intertextuais da poesia greco-latina e da possi italiana rensscentist CObjeto igualmente de miiliplas propostas © sugesties tom sido a matériarolativa as fontes, aos ‘modelos os matrizosintrtextuais do ops. ih como espago de flicidado, de harmonia, de beleta da paisagem, de amenidade do cima e de fertilidade do sole ¢ um arqutipoFascinante do Imaginiriohumano, a que deram exprestio as «ilhas dos bem-aventurados» da tradigio helénica — vwj-se, eg., Hesiodo, Trabalhos e Dias, w. 170 ss. —, as «las afortunadas» (Fortunatarum Insulae) de Santo Isdoro de Sevilha (Etymologiae, LXIV, 6, 8), identifiadas com a has Canarias, asilhaslendéries, de origem céltice udeico-enst, da Navigatio Sonct Brand Se aha € assim umn espagoprivilegiado,o jardin, com a sua ora simboliea, as suas Noresodori= feras, 08 seus frutos eoloridos, as suas aguas puras, a6 suas aves harmoniosa, ete, € 0 focus nnoerus por exeeléncia desse espago,identifeando-se com 0 paraiso terreal de alguns mitos orienta ede erengas judaico-enstas Pode haver na pintura da «ilha namoradas dO Lusiodas coe ou augestes da famona descrigio dos jardine de Aleioo, na ilha doe Feaces, que figuen no Canto VI (ew. 112-192) da Ouiseia Como outros proviveis modelas da deserigi da ha enquanto deslumbeante locus amoerus deverio aer mencionador em particular textos de posta italianos Ihumanistas © ronagcentiates. A dsserigo do reino de Vénus, numa ilha do mer gen, que se encontra nos Tronfi de Petrara (Triumphus Cypidinis, IV, w. 100 $5) & uma dessas proviveis foxes, sendo possvel que Canndes tena conhecido a tradugio portugues, anGnima e manusrita, do poema petrarquiano, eo respetivo comentirio, publicadas em 1974 por Giacinto Manuppella, como persuasivamenteargumenta Vasco Graga Nowra. sobretude muito provivel, como Faria © Suse afrmot, que outs fonte da composigao da «llha namorada» tenha sido a descrigio do pelicio e do jardim de Venus que figura no poema de Angelo Poliiano intitulado Stanze per la ost d Gitano de’ Medic, cde que wna des fontes fio epitaldmio De muptis Honors et Marae de Claudiano, poeta da tarda latnidade (c. 370-«. 404), caja abra exerceu consderivelinflugncia nn poesia do Renasciment takiano terete a labuta dois primeitos versoe da estincia 32 do Canto IX ds Lusiadas, nos qu incetsante dos «tininos voudores» que aio os auxliares de Cupido, cont umn sintagina, plebe rruda — «Alguns exercitando a mio andavam / nos duror coragies da plebe rude» —, que indica o conbecimento que Camées teria das Stanze de Folizano, em euj estrofe io (ibro prime) se le “cLngo le rive frat di Cupido, / che solo uson Feira plebe ignots» Nao se pod exclu, todavia, que a font tna sido 6 prdprio epitalamio do Claudieno, no qual se 18 que oF pequones Cupidos plebem foriunt, emborao fect deo sintagma das Stanze sor constituido, como om Camées, por umm substantive por um adjetve,aponte para que o modelo tenha side Polisino. A descrigao do ard de Vere do poems de Polsiano haver’ que acrescentar as diversas descigdes de jardins que figuram no Orlondo Firioso de Aristo (VL-21 se ;X. 64463; XXXIV. 4858). © eecolissta Manuel Correia anata no teu jé citado comentirio a Os Lusiadae que, neste episéio, Canes foi influencind pelo Sonmian Scipions, breve texto com que termina 0 tatado cicero- iano De Republica — do quel rstam escassos fragmentos — e que foi conservadogracas a Famoso Comentarium que Ine dediou Macrdbio, autor mel conhecido que terkvivide ne sfeulo va. D. A faflugncin do Som Scspionster-se-ia manifesta na deserigo da sphero mundh, pars a qual CCamdes teria também colo elementos no Tratado da Bxfea de Pedro Nunes e no Tratado da xfer por Perguntas e Respostas de D. Joao de Cast. Coma fo assinalado por Manuel Severin ‘de Faria ¢ por Faria e Souta¢ foi corroborado por Costa Ramalho, a parte final do Canto VI da noida, que natra a descida de Ensias ao Inferno, &outrafonterelevante das vitdesproftica que constamn do episédio camoniane, O conhecimento das fntere das relacSe intertextuais¢ importante para afer wenciclopédia» de ‘um autor, na sua dimensao postica,hstoiogrfica, filosofica, cientifia, etc, para avaliar © mode como a sua obra se insere na tradigioliterria @como manifest, ou no, a sua originalidade, e para langar Iie sobre alguns aspetos hermenéuticos, mas nio dove ser ergido, na senda da heranga _nstodologica positivist, om citrio andamnontl de acsesoe deevelamonto da estruturao do wigni- fiendo dos texts litririos, [Aste 18 do Canto IX narra a tia intervengao de Vénus na fabula do poema, Pela primeira ea, a deidade 4 af denomsinadn «Deus Ciprian, epteta devivado de Chip, iha na qual the era rndido culto (na estincia 43 do mesmo eante, oepitete ecorte nominalzado: «a Ciprian). Venus, {que recebera de Jipter («Padre Eterno»)aincumbéncia de favorecer os naveganteslusitanos, afm de premiar « glvia por eles aleangeda com tanto trabalhos « sfrimentos, desde hi muito que pensara em proporcionar aos seus protesidos, «no reino de cristal liquide © mano», delete © epouso que Tes permitssem , Baco,o «Deus naseido / nas Anfionins Tebas, ¢evocado pela penultima ver no poema a propésito ‘este prémio que Venus quer ofrecer aos navegantes, quando a deus ao solctaroauxio do iho, Cupido, ae refere «a insdiae do odiogo Baco» que tanto molertaram os portugueses (© encontro de Venus com Cupido, nos monte Elis da ihe de Chipre, un motivo fundamental pera o desenvolvimento da ago do episédioe para a sua interpretacio. O deus do Amor andava ocupado nos trabalhos de uma expedigao contra os desmandes, os eros e os viios do «mundo revels que nao obedecia lei do Amor universal e que por isso amava idolatricamente coisas que tinham sido conceidas aos homens apenes pars serem usadas, Esta concegio do Amor come prin- iio reguladoro regenorativ do ordenamente« da harmonia do mundo & de origem nsoplatSnica, tendo side expostao dfendida, por exemple, por Marslo Ficino no sou comentario ao Banquete de Platio ~ «amor nods perpetuis et copula mundi», sublinhou Ficino —; por Pietro Bemib, no livro segundo de Gli Asolane por Leio Hebrew em diversos passos dos seus Dialoghtc Amore. E verda- deiramente singular que, antes de refers verberar, nas estncias 27 a 29 do Canto IX, os desregrax rmentos, as desonestdades ¢ as orpezas dos responsives pea governagio do reno e pela agao das Institugdesreigiosas, Combes consagre a estancin 26, a primeira em que se mencionam os «erros srandes» do «nmundo revelde», a0 mito de Actéon. $6. interpretagio alegéricnproposta por Farin © Sousa, segundo a qual Aetéon se identifi com D, Sebasit,o rei adolescent que tio apaixonada- mente se entregava as lies venatérias que «[fugal da gente e bela forma humanao, pode explcar € Justifear que assim acontea: D, Sebasiao-Aetéon, coma sua misoginia, punha em rise a conte rndade da monarquia portuguesa, noutro plano, defluente do anterior, denegava o principio da ‘uiverelidade do amor. © poets uiizando um discuneoretoriamentehabil «prudante,dirige 10 jovem monarea uma admonigio, eto, uma censurs, un acongelhamento uma prevengio. Estes ter sido eseritos em Lisbon pouco tempo antes da publicagio d'Os Lustodas (1572), quando Camsee tomou conseitncia dae provcupagées, dos lamentos ¢ temares que o comporta- ‘met do re originava em largoe stores da populagio vento dever As estincias 26 029 constituem uma acusagio de grande coragem politica, civic «tia, formulada contra of podores politicos « rligiosor que, movidoe palo egoismo, pela eobiga e pela hiposiss, sbulhavam, enganavam o oprimiam 0 pore eno permitiam, com a sua rede de adulagies, que se rmondasse «0 novo trgo florescente» isto 6, impediam que 0 monarca adolesonte desenvovesse a sua governagio live de ervas daninhas, metifora que representa os dulcos« os validoshipocrta- mente lsonjeadores & provvel que Camestvesse particularmente em vista a fort influécia na corte do estas, em especial do padre Luls Goncalves da Camara, confessor do rei, edo sew irmo padre Bfartim Goncalves da Camara, esrwao da puridade (aos quas & haveria alusbesnaestancin £85 clo Canto VII e na estineia 55 do Canto VIID, A énfasecoloeala, porém, na defexa do pov & consonante com as ideias eos sentimentos do proprio D. Sebesti idas is cimaras e 20s poras nos meses de janeiro e de fevereiro de 1969 condenara os abusos cometidos polos ficiis da justica contra zo povo miido e gent pobre> que em cartas circlaresdiri- £ tio profundamente contraditéria, préim, a concegio do amor em Canes que, loge apés a exal- {gio do amor como principio ordenador da harioniae da regeneragio do univer, sho evocados os seus maleficios, desconcertos efeitos exerandos, vrificaveis tanto entre 0 povo hunilde como entre ehersis de alts estados» (IX.24). A abominagio incestuosa, obsdiante em Came, esta representada por Bibls, que se aparxonou pelo seu irmao Cauno, por Mirra (Cinireia) que eulposa- mente amou a seu pai Cinras, rei de Chipre, por urn mancebo da Assiia, que seria Ninias, que rmanteve rlagies ineestuesas com a sua me, a rainha Semsramis,cyjaluxiviao poeta condena acerbamente na estincin 53 do Cento VII (zamor nefando, bruta incontinéncias), © por um rancabo de Judea, que fei Amon, iho do ri David, volador da aua im Tamar, O ator descon- certado fax com que poderosoe senhores ve apaixonem por pastoras, que grandes eeuhoras se diem aprisionar «nas Vuletneas redes» por homens ebaisoe erudor, que enatoradosenlouque- cides esperem as horas cimplices da noite ou que subam a telhadosetrepem paredes. Algo parado- sxalmente, num episddi em que Vénus prope a ilo regenera o mundo gragas ao efogotmortal> o amor, ests desconcertos, abominagoese desvarios s2 atribuidos pelo Peta exatamente aquela deusa: «Mas eu creio que deste amor indino /& mais culpa ada mae que a do minino» (0 voto formulado por Venus no discurso dirigio 20 seu , Pea alm de proporcionar © _merveide repouso aos navegantescansados para além de Ihes condo prémio ea gléra dovidos aos cus trabalos efeitos, Venus quer que n rein do oeeano, em cujas gues nasceu ~ Aguas que simbolizam 0 poder genesiaco primordial —,sejagerada uma =progénie forte e bela, dotada do poder de regenerar o mundo corrompide © mau, gragas ao império lutral do amor. Com a Fharmonia da sua paisagern, com os primores da sua lors, desde as Avores As Nores © os rutos — ‘quantassugestese alusiessensuai esexusis nas suas Formas, nas suas cores nos seus perfumes =, com oeneanto venatorio da sua fauna, a «llha Namorada» configurase como fous amoenus ‘qe hi de er também o loc eroteus esto mupsal da unido amorosa entre ae ninfas © 08 nave- gantes da qual natcerd a geragio redentora do future. O prinipio neoplatuico do amor como sodus perpenaus et copula mdi» alia-e no episédio jubilosaseneualidade, om sentimento de pecado, e exaagio dos delete venéros, em consonicia com a doutrinsformulada noe Dilogos Hebreu, nas quaisoneoplatonismo de Barslio Fcino se conjugs, soba influéncia com afruigGo sensual. Asninfasacenics, conselhadas na arte da sedugio erica pela -amesira experta» que é Venus, sabem combinar a «flama feminina» ¢ a spudiccia honesta», vagueando «como incautas» pela floresta, tangendo doces insirumentos musica, fingindo perseguir animais de caga, banhando of els corpos mus na «agua pura». Os naveganteslusos, alguns dos quais tinham desembarcado com o pensamento post em ides venatérias, em sentido 2 sedutoramente fugitivas, empreenderam uma voluptuosa , musa tuelar dos poetas épicos. Esta invocatio esta impregnada de melancolia

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