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Néstor Perlongher ~ OQUEE AIDS Copyright © Néstor Osvaldo Perlongher Capa: Isabel Carballo Revisao: Jorge A. de Jesus Emilia Fernandez INDICE Introdugdo 7 A doenga... 13 A fabula das origens 38 A AIDS no Brasil ......... 50 Homossexualidade e poder médico . 67 A ordem da morte na desordem dos corpos 83 Indicagées para leitura ..............-06- 93 editora brasiliense s.a. tua da consolacao, 2697 01416 - sdo paulo - sp. | fone (011) 280-1222 brasiliense| telex: 11 33271 DBLMBR Agradeco especialmente a Edward MacRae Glauco Mattoso, por colocarem 2 minha disp sito seus arquivos pessoais, e a dra. Silvia Be lucci, do Centro de Controle e Investigacao Imi nologica “‘Dr. A. C. Corsini’, de Campinas, pi sua colaborac&o na parte médica. INTRODUCAO Um fantasma percorre os leitos, as paqueras, os flertes: o fantasma da AIDS. S6 a mengao da fatidica sigla (formada com as iniciais de Acqui- red Immunological Deficiency Syndrome, ou se- ja, Sindrome de Imunodeficiéncia Adquirida) basta para provocar uma mistura mérbida de euriosidade e medo. No infcio, a parandia parecia restrita aos cir- cuitos homossexuais norte-americanos. Na cos- ta oeste dos Estados Unidos, justamente na ci- dade de S&o Francisco — epicentro de uma po- tente ‘‘revolugdo sexual’’ que sacudiu as muco- sas do Ocidente e ameacou subverter os castos padrées de dois mil anos de cristianismo —, ve- rificou-se, entre 1980 e 1981, uma estranha sucessdo de mortes. Falou-se em “‘cancer gay’’, em “peste rosa’’, Mesmo a primeira denominag&o extra-oficiai- mente dada a doenca — GRID (Gay Related Im- mune Deficiency ou Deficiéncia Imunolégica Relacionada & Homossexualidade) — recolhia essa espécie de ligagao original entre homos- sexualismo @ doenga (até bem pouco tempo atras, a homossexualidade era considerada em si mesma uma doenga). No entanto, a aparigao de casos em outras faixas da populagdo mudou a orientagao das pesquisas médicas e outorgou @ doenga seu nome definitivo. 9 que 6 a AIDS? Embora o conhecimento cientifico tenha avangado bastante, o mal é ro- deado ainda de um véu de mistério. Sabe-se que é transmitido por contato sexual ou através do sangue. N&o se trata — como pretendem alguns moralistas — de uma ‘‘doenga homossexual’’, mas € Causada por um virus que pode, eventual- mente, ser transmitido a qualquer pessoa. Des- de que se manifeste, a doenca é praticamente fatal. Néo ha até 0 momento cura conhecida para a AIDS, A comogao provocada pela AIDS parece um tanto desmesurada em relagao a sua incidéncia estatistica real. Apesar de algumas projegdes apocalipticas, que chegam até a prever a extin- go da humanidade, hoje a AIDS mata menos. que outras doengas mais conhecidas — desnu- trigéo, moléstias circulatérias, cancer, infec- 96es intra-hospitalares, etc. HA maior probabili- dade de se morrer vitima de um atropelamento na rua do que de AIDS. Mas o horror dos corpos que adoecem e morrem parece se tornar mais pavoroso quando se adivinha, na origem das contorsées da agonia, os espasmos do gozo. Da mesma maneira que a AIDS transcendeu, no inicio, a dor particular de suas vitimas para se estender aos corredores dos ‘’guetos’’ como um poderoso mecanismo de moralizagao e con- trole, derivado das ondas de pAnico, 0 fantasma parece abandonar os difusos limites dos circui- tos minoritérios para apavorar também os hete- rossexuais. Assim, a AIDS, que comecgou sendo vista como uma “‘doenga homossexual’’, 6 ago- fa anunciada como uma ameaga as familias. Folheando os grandes semanarios de atuali- dades, pode-se rastrear facilmente a iconografia desse deslocamenio. A revista alema Der Spie- gel estampava, na capa de um numero de junho de 1983, a imagem de dois rapazes nus, sendo que um deles apresentava a genitalia ocupada por um circulo com uma ampliagéo de micros- edpicos germens (simbolicamente, a morte no alvo preciso do desejo); trés anos apés, em de- zembro de 1986, a mesma publicagdo substi- tula os jovens atletas por um casal heterosse- xual, contra o qual um cupido cadavérico ende- fegava suas peconhentas setas. O panico suscitado pelo virus nao é tao inédi- 10 Néstor Perlong to quanto se anuncia; pesadelos anélogos fo- ram, ao longo da Hist6ria, provocados por su- cessivas pestes. Tampouco a discriminagao 6 novidade. Nas pestes medievais, os judeus eram perseguidos, acusados de infestar propo- sitadamente as Aguas ou por se considerar sua mera existéncia um atentado a Divina Vontade que, uma vez ofendida, vingava-se coma epide- mia. De forma andloga, em 1985 surge a noti- cia de um cabeleireiro expulso da cidade de Ara- guari, em Minas Gerais, sob a acusacao de mer- gulhar malignamente na piscina do clube, nao estando sequer doente. Nem mesmo os argu- mentos celestiais parecem ter mudado. Uma doenga relacionada com o sexual toca num ponto particularmente sensivel para a so- ciedade contemporanea, tao Preocupada coma higiene e 0 cuidado do corpo. A esse pesado es- tigma, marca de miltiplas regulamentagées da ordem social, acrescenta-se, no caso Particular da AIDS, uma outra complicagéo derivada da possibilidade de a doenga ser transmitida pelo sangue. Neste ponto, uma questdo se coloca: apesar da pratica corriqueira de transfusées, 0 medo & mistura de sangues nao mantera, no imagindrio social, a forga do seu simbolismo atavico? Afinal nao faz muito tempo, o nazismo esgrimiu os princfpios do sangue para funda- mentar seu racismo ariano. Alguma sombria si- militude pode talvez esbogar-se entre o atual re- que é AIDS A AIDS em 1983: uma paranoia homosexual ganha as manchetes mais importantes do mundo li IAS Néstor Perlongl fluxo da revolugéo sexual — que coroa uma 6poca avida de experimentacées contestatérias — ¢ a atrevida maluquice das décadas de 20 e 30, os Anos Loucos, que preludiou os horrores do fascismo e a guerra. A emergéncia da AIDS coloca em movimento uma diversidade de articulagées que nado mere- cem ficar restritas ao estreito plano da informa- ¢&o médica. Torna-se necessério, sobretudo, atentar as repercussées sociais e sexuais desse constrangedor problema, que diz respeito as re- lagées dos corpos e seus afetos. Cabe salientar que, pelo fato de a AIDS ser uma doenga nova, toda uma massa de inform: ges, as vezes conflitantes, é colocada em ci culagao crescente dia a dia. Nessas condicées, Poucas verdades absolutas podem ser afirma- das; os enunciados — inclusive médicos — emi- tidos sobre a questo nado podem esconder, até © momento, seu carater provisério. Na medida em que este livro se ressente dessas circunstan- Cias, as hipdteses e interpretagdes aqui levanta- das levam a marca dessa provisoriedade. Longe de eludir a polémica, a idéia 6, pelo contrario, contribuir; s6 de uma discussdo a mais ampla possivel poderfo emanar perspectivas mais lu- cidas para entender e enfrentar a complexidade desse assunto. A DOENGA AIDS — Sindrome de Imunodeficiéncia Adqui- tida — esse nome envolve uma série de concei- (08 medicinais muitas vezes dificeis de com- preender. Para um maior entendimento, segue a decomposicao em conceitos dos termos envol- vidos. * Sindrome: conjunto de sintomas que ocor- fom mais ou menos simultaneamente, tendo uma ou varias causas comuns. A AIDS é defini- da como sindrome porque nao tem uma mani- festagdo unica; pelo contrario, caracteriza-se pola aparigaéo de varias doengas sucessivas é si- multaneas, que ‘‘ocultam’’ a verdadeira doenga. * Imunodeficiéncia: isto 6, deficiéncia do sis- toma imunolégico. A imunidade é a capacidade que tem o organismo para reconhecer e destruir "\nvasores’’ que o ‘‘atacam’’. Por que deficién- Néstor Perlongh que é AIDS na histéria da propria medicina. A teoria unifato- rial acabaria por se impor com a descoberta de que a AIDS — como sera exposto adiante — é causada por um virus. No entanto, é interessan- te destacar um dos argumentos da tese multifa- torial: a doenga nao seria conseqliéncia de um novo agente infeccioso, mas os pacientes adoe- ceram por estar expostos a um ‘‘ambiente biol6- gico'’ extremamente nocivo, caracterizado por quadros de doengas venéreas e outras infec- ges simultaneas. Os cientistas j4 cogitavam de que algumas formas de cancer poderiam ser causadas por um virus. Os virus so agentes muito pequenos (a dezmilésima parte de um milimetro) que nao po- dem sobreviver de maneira independente, preci- sando parasitar células vivas de um outro ser. © médico americano Robert Gallo ja havia eonseguido isolar o virus causador de uma for- ma de leucemia até entdo rara (que, no entanto, estaria também se expandindo agora no sul dos fetados Unidos). Gallo batizou esse virus de HTLV-1 (Human T Cell Leukemia Virus, ou seja, virus da leucemia humana que ataca as células 1; estas sdo encarregadas, entre outras, da de- faa imunoldégica), e acreditou estar, no caso da AIDS, na presenga de uma variante. O virus seria descoberto, mas do outro lado do Atlantico. Coube a equipe do Instituto Pas- teur, de Paris, chefiado pelo Dr. Montagnier, 0 cia? Porque 0 peculiar dessa doenga 6 que esse sistema deixa de funcionar e 0 organismo vé-se exposto a uma multiplicidade de agentes infec- ciosos, muitos dos quais habitualmente inofen- sivos, Mas que, nessas condigdes, conseguem atingir seu pleno desenvolvimento nocivo. A AIDS é justamente uma doenga do sistema imu- nolégico, que causa um desabamento geral das defesas organicas. ° Adquirida: ha formas de deficiéncia imuno- l6gica hereditdrias. No caso da AIDS, a imuno- deficiéncia se da por contagio, isto é, o agente infeccioso penetra no organismo através do sangue, do esperma ou de certas secregées de um outro organismo no qual se encontra pre- sente. A querela das nomenclaturas Uma vez reconhecida e descrita pelos médi- cos como uma moléstia do sistema imunolégi- co, tratava-se de descobrir qual era a causa da nova doenga. Num primeiro momento, discutiu- se nos Estados Unidos se o agente causador era _ Unico (a chamada teoria unifatoria!) ou uma confluéncia de fatores sanitarios e sociais (teo- ria multifatorial) — aliés, discussé0 muito forte oe 17 mérito do achado. Fazendo a biopsia de um gan- glio de um paciente homossexual — que acaba- tia nao desenvolvendo a doenga —, achou-se, em 1983, um virus completamente novo que foi batizado LAV (Lymphadenopathy Associa- ted Virus, ou seja, virus associado a afeccées. do sistema linfatico, do qual os ganglios fazem Parte). Entretanto, Os cientistas americanos prosse- guiram suas pesquisas, conseguindo, em 1984, isolar artificialmente o virus em laboratorio. A descoberta de Gallo é apresentada como ‘um milagre da medicina e da ciéncia americana’’. A equipe de Gallo outorgou seu préprio nome ao virus. HTLV — Ill (Human T Lymphotropic Vi- rus iil). Recentemente tentou-se resolver essa dissidéncia nominalista com a proposta de uma nova designacao para o virus: HIV (Human Im- munodeficiency Virus ou virus da imonodefi- ciéncia humana). Esse sistema tem pelo menos duas grandes fungées. A primeira se relaciona com o meio ex- terior, seus habitantes, suas agressées. A se- gunda esta voltada para 0 interior do individuo, para o préprio organismo, protegendo-o de uma diversidade de processos mérbidos que se de- senvolvem silenciosamente. Ambas formam duas grandes linhas de defesa. A exterior é constituida pela pele e pelas mu- @08as que forram, por exemplo, as vias respira- tOrias, incluindo af as secregées. Se essa barrei- a for ultrapassada e um corpo invasor ingressar fa Corrente sangiifnea, 6 acionado ent&o o se- de imunidade especializada. Embora essas duas grandes funcées paregam estar isoladas uma da outra, elas dependem, em tiltima andlise, de um componente central do sistema especializado de imunidade, um tipo de glébulo branco chamado /infécito T 4 “‘auxi- liar’, A fungao desse linfécito T ‘‘auxiliar’’ pode #eF Comparada a uma central de computador: ele alimenta todos os outros terminais, emitindo informagées para os componentes restantes do glstema imunolégico; estes permitem organizar 4 defesa do organismo atacado pelo corpo es- tyanho. Todo o processo ocorre no sangue. feses terminais-componentes séo muito va- tlados. Alguns, como os linfécitos B, produzem sitlcorpos-moléculas de proteina presentes na O sistema imunoldégico Para explicar o que 6 o virus da AIDS e como age, torna-se necessério falar um pouco do sis: tema imunolégico humano. undo sistema de defesa, 0 interior: as células _ 18 Néstor Perlonglue é AIDS 19 circulagéo sangtiinea, que ajudam a eliminar o: agentes estranhos do organismo, fixando-se ne- les e ‘’marcando-os’’. Assim, em relacao ao vi- tus da AIDS, ha a producao de anticorpos espe- cificos que assinalam e guardam na meméri sua presenga. a Como funciona normalmente a relagao entre linfécitos B e linfécitos T 4 “‘auxiliares’’? Quan do 0 organismo entra em contato com 0 virus d Sarampo, por exemplo, os linfécitos B, apés re: ceber a ordem dos linfécitos T4 ‘‘auxiliares”’ passam a produzir anticorpos contra aquele mi: croorganismo. Vencido o perigo e nao havend mais necessidade de manter a produgdo de anti corpos, sdo também as células T 4 ‘’auxiliares” que mandam informa¢ées para outro tipo de lin As células infectadas podem ser estimuladas fécitos T 8 (’’supressores’’), ordenando cessat por exemplo, com uma infeccdo ‘‘comum”’ © contra-ataque. , ® contribuir para a multiplicagao do virus. Assim, novas infecgdes padecidas pelos orga- fiismos j4 atacados pelo LAV/HTLV-III podem eontribuir para o agravamento da AIDS. Como ha milhares de linfécitos T4, precisa-se ile certo tempo para que o sistema imunolégico Hej perturbado; mas, uma vez desencadeado #88 processo, ele ser progressivamente colo- fade fora de combate. Num dado momento, ja iio festarfo mais células para combater as in- teog6es que o paciente possa contrair. AIDS tem, justamente, uma afinidade especial com os linfécitos T 4 ‘‘auxiliares’’. Uma vez que o virus tenha conseguido pene- trar no interior da célula, ele pode ficar inde’ damente adormecido. Por circunstancias ainda desconhecidas, ele pode comegar a se reprodu- zit massivamente, aproveitando a ativacdéo da maquinaria celular do linfécito T4 ‘‘auxiliar’’ para se multiplicar. Mas, enquanto a célula se divide s6 em duas, o virus se reproduz aos mi- thares, transformando a célula numa verdadeira usina do virus que a destréi. Assim produzido, ele se introduz em outras células, preferencial- Mente linfécitos T e secundariamente em cer- tas células cerebrais. E vai se disseminando. O virus O virus da AIDS ataca de uma forma partic larmente maligna, pois se dirige contra as pr prias células encarregadas da defesa imunolé: ca. Uma vez que 0 virus penetra no sangue, pr cura 0 tipo de células que o acolham (ja que nai pode se desenvolver sozinho, precisando pare sitar determinados tipos de célula). O virus 20 jue é AIDS 21 Os sintomas A evolugao dos sintomas De duas a seis semanas apés a introducdo do virus no organismo, podem ser observadas, em 20% dos casos, algumas manifestagées clini- cas. Entre elas, a sindrome mononucledsica: fe- bres, inflamagao ganglionar e algumas erupcdes vermelhas na pele. Esses sintomas desapare- em espontaneamente apés uns dez dias e sua ocorréncia nao diz respeito 4 eventual gravidade do caso. és Nos trés meses seguintes 4 penetragao do vi- fus, 0 organismo vai fabricar os anticorpos que assinalam o contato com o corpo estranho. Das pessoas contaminadas pelo virus, so- mente uma minoria vai entéo desenvolver as formas graves do mal. Algumas iréo apresentar manifestagdes menores, as vezes nao aparen- {08 @ Outras sob a forma de certos sintomas se- cundaérios, uma espécie de ‘‘quadros benignos' que, em geral, ndo evoluem de forma fatal. Es- #08 quadros podem ser agrupados em duas grandes configuragées: a sindrome de linfade- nopatia crénica, e outra forma mais importante ARC ou SAS (A/DS Related Complex, para os americanos; Sindrome Associada a SIDA, para 08 franceses). A ubiqitidade dos sintomas — podem ser tan- tas coisas! — torna-os incertos como forma de diagnéstico: ganglios inflamados, fadiga ser motivo, perda de peso involuntéria, febres inter- mitentes, diarréias e tosse persistente. Esses sinais clinicos ndo sio exclusivos da AIDS, mas alguns deles podem corresponder a outras doencas, como a tuberculose. Nao 6 pertinente suspeitar de AIDS se se tratar de sim- ples febres, diarréias e suor, comuns a um vasto leque de afeccées. A suspeita se torna consistente Perante a du- fagéo e extrema complexidade dos sintomas, tesistindo a outras explicagées. Entretanto, a maioria das manifestagées do virus da AIDS sao benignas. Mais da metade dos que entram em contato com 0 virus nao de- senvolvem nenhum sintoma nem doenga. Isso nao quer dizer, necessariamente, que eles nao o. tenham, Alguns podem ser os chamados porta- dores sadios (ou assintoméaticos) da doenca, que, sem contrai-la, portam o virus e podem eventualmente transmiti-lo — no entanto, nao h& como determinar em que momento a trans- missao deixa de ser uma eventualidade e passa para o campo da realidade. Néstor Perlont Sindrome de linfadenopatia crénica ou LGP (Linfadenopatia generalizada permanente) Por linfadenopatia se entendem as moléstia dos drgos linfaticos. A LGP caracteriza-se pel aumento de volume dos ganglios linfaticos, que tomam uma dimensao anormal, freqdentemen te superior a um centimentro de diamentro, e diferentes partes do corpo, sobretudo no pesco- Go e nas axilas. Esse aumento pode persistir du- rante meses ou anos: nem sua grandeza net sua duracao indicam hipotéticas evolucdes para formas letais da AIDS. A inflamacao dos gan- glios 6 comum a uma vasta massa de infeccdes; s6 quando se observa um franco aumento de volume néo atribuivel a outras causas 6 que se pode fazer a relagdo com a Presenca do virus da Sindrome associada a SIDA ou ARC Neste quadro, observam-se moléstias meno- tes, sobretudo infeccdes com fungos que atin- gem 0 rosto, as unhas ou a boca, vulgarmente ue é AIDS de se manifestar uma febre prolongada por va- tlas semanas e superior a 38°; ha perda invo- luntdria de peso, ultrapassando 10% da massa corporal; ocorrem suores noturnos abundantes, obrigando a troca dos lencéis. Podem se apresentar, ainda, les6es como a purpura — pequenas manchas hemorragicas Nas pernas —, que correspondem a um excesso. de defesa do organismo, que aumenta desarran- jadamente a produgao de anticorpos, os quais #6 voltam contra as plaquetas sangilineas. Mas flo se trata tampouco de AIDS: os sintomas fo evoluem necessariamente no sentido de um desabamento geral das defesas organicas. fsses dois quadros descritos sao provocados pelo virus da AIDS; porém, nao s&o estritamen- te AIDS. O que acontece é a que a maioria das Mmanifestagdes do virus sao, como ja foi dito, benignas. S6 quando aparecem as manifesta- ges malignas é que se pode falar em AIDS atricto sensu. A AIDS stricto sensu © que acontece com os que desenvolvem fealmente a doenca? Como ha uma queda muito forte das defesas organicas, germens habitual- Mente inofensivos aproveitam para invadir o 23 chamadas de sapinhos (muguet). Também po- Néstor Perlongyue é AIDS a6es; classicamente, aparecem nos membros inferiores. Foi detectada primeiramente nos quetos judeus da Europa central e atribuida a promiscuidade. Ali, o médico vienense Moritz Kaposi (na verdade, um pseud6nimo) reconhe- ou a doenga e legou-lhe seu nome. A doencga esté situada — na expressao do prof. Escande, do Instituto Pasteur — ‘‘nos limites do cancer’. Naramente letal, era considerada uma raridade. J& neste século, foi descoberta uma variante africana do sarcoma de Kaposi, um pouco mais explosiva, caracterizada pela eclosdo de verda- deiros tumores, lesdes ulceradas e gAnglios vo- lumosos. O legado minoritaério que essa doenga carre- gava, seria facilmente transmitido aos homos- sexuais. Assim, a AIDS foi inicialmente conside- ada o ‘’Kaposi dos gays" e, infelizmente, apeli- dada de ‘cancer gay’’, até pelos préprios jor- fais homossexuais da California. No entanto, o Kaposi associado & AIDS tem uma forma muito mais violenta: uma erupgaéo generalizada que se arrasta durante longos me- 468, atacando o rosto e os érg&os internos. A sobrevida média é de apenas dois anos. © desabamento do sistema imunolégico pro- plelado pela AIDS pode favorecer a proliferagaéo de outros canceres, como linfomas (tumores (ue #6 desenvolvem a partir dos ganglios linfé- ie08) que afetam prioritariamente o cérebro. Organismo. Aparecem entdo as infecgdes opor- tunistas, assim chamadas porque nao podem se desenvolver senaonessas condic6es favoraveis. Num primeiro momento, quando a agao do vi- rus ainda no é severa, as infeccées Oportunis- tas limitam-se as mucosas (cAndida bucal, her- pes genital) Ou se expressam na sucessao de in- fecgdes banais mas persistentes, tais como si- nusites, furtinculos, etc. _ Quando a AIDS avanga, as infecgdes oportu- nistas multiplicam-se. Elas podem afetar o pul- mao, © tubo digestivo, o sistema nervoso e, acessoriamente, a pele. No plano neurolégico, as cefaléias prolongadas podem constituir um sintoma sugestivo. Também 6 possivel a pre- senca de um quadro tratavel, se precocemente atendido, de toxoplasmose. Uma das afeccées mais comuns é uma forma grave de pneumonia, causada pelo parasita Pneumocystis carinii. Além desses, alguns canceres, como o sarcoma de Kaposi, comecam a aparecer. O sarcoma de Kaposi Uma das manifestagées mais conhecidas da AIDS, © sarcoma de Kaposi é uma doenga com historia. Trata-se de uma afecgao de aparéncia banal: placas violaceas de pequenas dimen- we é AIDS Definitivamente, a AIDS nao é um cancergeessario que as lagrimas ou a saliva penetras- #0M NO sangue, através de alguma ferida). A po- l@mica criada entre americanos e franceses a fespeito do beijo se reacende. Se para os cien- tistas do Instituto Pasteur o contagio por essa via 6 pouco provavel, seus rivais norte-america- fos, mais cautelosos, costumam desaconselhar 08 beijos prolongados. Versées néo comprovadas sugerem que a AIDS poderia também ser transmitida por um meaquito. Seria, no entanto, bastante dificil — fduzem os numerosos criticos dessa remota hi- pOtese — conceber um mosquito capaz de iden- iifiear as preferéncias sexuais das vitimas. HA uma espécie de hierarquia do risco. O coi- 16 anal seria particularmente perigoso, porque a trlegho do pénis nas paredes do reto produziria mierosedpicas feridinhas, através das quais 0 virus passaria para a corrente sangiifnea; partin- de desse raciocinio, supde-se que o individuo paasivo estaria, na penetragado anal, mais ex- posto que o ativo. Este, porém, nao se acharia a palvo, j4 que o virus poderia também penetrar através de microlesdes no pénis. A mucosa que recobre a cavidade vaginal se- {ia relativamente menos fragil que a do reto. En- tfetanto, a difuséo predominantemente heteros- sexual da AIDS na Africa restaura as duvidas. Nfio hé dados precisos que permitam avaliar 0 tiseo real de transmissao do virus da AIDS atra- das entre as pessoas; no esperma e no sangue virus aloja-se dentro das células, com alguma: condigées de sobrevida. A AIDS 6 uma doeng: relativamente pouco contagiosa; o agente que causa morre em contato como ar ou 0 alcool. maneira mais corrente de adquirir a doencga por contato sexual. Mas também pode set transmitida pela passagem, de um individuo a outro, de sangue contendo células infectadas, Isso explica os casos de contaminagao atravé: de transfusées sangiiineas ou do uso coletivi de seringas por toxicémanos. Existe ainda contagio de mae para filho durante a gravide; Ou a amamentacao, por mecanismos pouco cla: ros até 0 momento. Tém-se encontrado sinais do virus na saliva e nas lagrimas. Porém, as possibilidades de que ele Possa ser carregado por esses l{quidos orga- Nicos sao escassas (no pior dos casos, seria ne- 27 do contato. As fontes consultadas nado regis: tram a presenga do LAV/HTLV-III na urina ne nas matérias fecais. Os contatos buco-anai: costumam ser desaconselhados, embora su; potencialidade contagiante — descontada existéncia de feridas nesse orgéo — nao estej ainda claramente estabelecida. Ha incertas probabilidades de que o virus pos: sa ser transmitido através de tatuagens, trata mentos odontolégicos ou de acupuntura feito: com instrumentos nao convenientemente este. rilizados. Por precaugéo, recomenda-se qui utensilios de uso {ntimo, tais como escova d dentes, lamina de barbear, alicates, etc., usa. dos por doentes de AIDS, nao sejam reutilizados Por outras pessoas. O QUE TRANSMITE A AIDS Contégio comprovado Contagio provavel Coito anal Coito vaginal Contato com esperma Transfusdes de sangue Acupuntura ou tatuagens cor Seringas ndo-esterilizadas instrumentos néo-esteril Contégio intra-uterino (quando zados Relagéo buco-anal Relagao bucogenital Beijo prolongado Contégio comprovada Contégio provavel Lamina de barbear ouescova de dentes usadas por doentes Alicate, tesoura ou navalha néo-esterilizados Instrumentos odontolégicos ou cirdrgicos néo-esterilizados. Lambidas em ferimentos Contato com sangue menstrual Lagrimas (muito pouco pro- vavel) © foto contrai a doenga da mio) O QUE NAO TRANSMITE A AIDS Ar Agua de piscinas Vapor de saunas Hanhoiras Hancow do Onibus ‘Maganotas Privadas Aporto de mao Abragos Hialjon no rosto (evitando feridas) Alimentos Copos Talhoros Praton Houpas de cama Codulas de dinheiro Doar sangue (com instrumentos esteriizados} Néstor Perlongue ¢ AIDS Como nfo se transmite a AIDS f#eja, moléculas capazes de ‘‘marcar’’ o virus. Esse teste parte do principio de que a infec- go pelo virus da AIDS resulta na introdu¢gado de agentes estranhos no organismo. Como respos- i@, Ocorre a produgao de anticorpos especificos destinados a combaté-los. Tais anticorpos per- sistem durante um tempo bastante prolongado # funcionam como sinalizadores da passagem do virus. © teste mais comumente utilizado chama-se TLIGA. A presenga do anticorpo que delata a fassagem do virus é indicada por uma reagado oolorida, Nesse caso, trata-se de uma reac&o. sefopositiva, que deve ser reconfirmada me- (lante novo teste. No entanto, um resultado seropositivo nao in- die necessariamente que a pessoa analisada #steja com AIDS, mas apenas que seu organis- mo teve algum contato com o virus e produziu poertanto anticorpos especificos. Tambén n&o é posalvel saber, se 0 individuo com resultado se- fopesitivo néo apresentar outros sintomas, se #le 60u no um portador sadio do virus. Quando o resultado seropositivo se combina om sintomas caracteristicos de infec¢ado pelo virus da AIDS, outros testes mais complexos sho aplicados — imunofluorescéncia, radioimu- feensaios, radioimunoprecipitagéo, Western lott —, permitindo detectar com mais seguran- 8 @ presenga do virus. Uma infinidade de mitologias procuram expli car as formas fabulosas de se precaver da doen ga. Elas vaéo desde a recusa do beijo ‘social’ ou do aperto de mos, até nao tocar em maga: netas e nao usar privadas onde tenham Passadi supostos contaminados. Igualmente mitica é crenga do provavel contagio numa piscina publi ca, ou através da roupa de cama de um motel. perigo de transmissao através de copos, talh res, pratos, etc., ainda que superficialmente hi- gienizados, é nulo. Tampouco as cédulas de di nheiro oferecem perigo. O teste Registrar a presenca do virus da AIDS no san gue 6 uma operacio dificil e cara. Os testes se- rolégicos ({sangtifneos) comumente praticado: permitem inferir indiretamente a Passagem de virus pelo sangue, detectando anticorpos, ou motivo sequer de preocupacao para os apli- O teste ELISA nao 6 absolutamente seguro, pois pode dar resultados falsos-positivos ou fal- sos-negativos. Se uma pessoa tem um resulta do positivo, isso nao quer dizer que ela tenhi AIDS, mas, apenas repetindo — que possui o: tespectivos anticorpos. Calcula-se que nao mai: do que 15% dos seropositivos possam contrai efetivamente a doenca. Apesar dos freqlentes pronunciamentos mé- dicos a favor de certa generalizagao do test anti-HTLV-III, algumas vezes, no proprio camp! da medicina, alertam contra os riscos dess aplicagao indiscriminada. Num trabalho intitula do HTLV-Iil: Should Testing Ever Be Routine?, Os autores (Miller, Jeffries, Green, Harris e Pin: ching) advertem que os argumentos a favor d: aplicagao sistemdatica de testes de deteccdo d anticorpos do virus da AIDS nao sao tao légico: quanto parecem. Enquanto nenhuma vacina po tente nem tratamento eficaz surgis, o teste in- discriminado traria riscos consideraveis para o: pacientes enquanto individuos, em vista da: conseqiéncias desse ‘‘seropositivo’’: dano: psiquicos, emocionais e existenciais, j4 padeci- dos por numerosos pacientes que, acreditando estar com AIDS, entraram em profundas crises. As possibilidades de reversao desse quadro p: colégico sao muito dificeis, em virtude do pani- co que toma conta deles. Tais processos nao adores de testes generalizados, propensos a pintar quadros apocalipticos. Sensibilizados por faclocinios similares, os integrantes do grupo homossexual carioca Triangulo Rosa recusaram #0 submeter ao teste graciosamente oferecido por uma equipe clinica, duvidando dos benefi- Glo® que sua realizacdo pudesse lhes trazer. Além de sua duvidosa utilidade, a generaliza- ho do teste a toda a populacéo — € oO conse- qUente internamento dos seropositivos, sejam Ou nlo doentes, até a descoberta de uma cura, (proposta feita em So Paulo por um doutor nor- te americano que vaticinava o fim do mundo em eonseqiéncia da expans&o da AIDS!) — signifi- aria um fabuloso empreendimento comercial. No 6 alucinagao perceber, por tras de muitos apostolos do alarmismo, desmesurados interes- #8 em explorar o vasto negécio da AIDS. A esperanga da cura N&io hd atualmente cura conhecida para a AIDS. O Indice de mortalidade das pessoas que ohegam ao estagio definitivo da doenga oscila entre 85 e 100%. A medicina limita-se a tratar, om desigual fortuna, as infecgdes oportunistas @ 68 cAnceres que vao aparecendo, procurando fetardar o mais possivel a morte que se supée. jue é AIDS inexoravel. Corre assim o risco comum a maio- ria das doengas ‘‘graves’’: complicar a morte e tornar ainda mais penosa a agonia. Algumas infecgdes oportunistas, como pneu- moi ({provocada por Pneumocystis carinii), meningite (causada por Cryptococcus neofor- mans) e encefalite (desenvolvida por Toxoplas- ma gondii), involuem parcialmente, mas recupe- ram terreno pouco depois da suspensao dos me- dicamentos. Para outras infecgdes, nao ha pra- ticamente tratamento, como no caso do citome- galovirus, virus Epstein Barre polioma (que pro- voca encefalopatia multifocal progressiva). O sarcoma de Kaposi 6 também dificilmente tratavel, mas em 40% dos casos existem, nos estagios iniciais da doenga, em pacientes que no apresentem infecgdes Oportunistas, algu- mas perspectivas de involugao, mediante apli- cacao de interferom ou quimioterapia (embora esta facilite 0 surgimento de infecgdes oportu- nistas). Tém-se experimentado algumas drogas dirigi- das diretamente contra o retrovirus: HPA 23, sumarin, ribavarin, interferon alfa e AZT (azido- timidina); mas a resultante teduc&o na produgado de virus é geralmente proviséria e nao efetiva nos estagios avangados do processo, podendo ocasionar efeitos colaterais complexos, Na ver- dade, a medicina nao tem progredido muito no escorregadio campo da luta contra os virus. {specula-se bastante a respeito das possibili- Jades de descobrir uma vacina contra a AIDS. ie vez em quando os agentes médicos e a ma- juina de sonorizacaéo das midias arriscam vaga- 0808 prazos: 1, 3, 15 anos. E certo que o em- jpenho dos cientistas é intenso. No entanto, de- alhar as reiteradas tentativas seria entrar num plano demasiadamente técnico. Caberé apenas ebogar as dificuldades que adiam indefinida- iente a concregao dessa ilusdo. 1m primeiro lugar, trata-se de um virus extre- Mamente mutante (o que muta é o invélucro //Otblco que o recobre). Um caminho possivel é 4 fabricagdo de anticorpos especificos; no en- tanto, o virus pode coexistir — como se vé nos lestes — com os anticorpos destinados a neu- tfalizd-lo. A isso se soma a dificuldade de achar Ji) Modelo animal onde as experimentagées pu- (/easem ser testadas. O mais aproximado seria 0 phimpanzé, que pode talvez ser contaminado jielo virus da AIDS, mas a infecg&o em seu orga- ilsmo costuma ser quase imperceptivel. Além (ila, sua manuteng&o é muito onerosa. 4 riscos e os conselhos Perante a auséncia de cura, os conselhos mé- tieos se limitam ao plano da prevencao, reco- jue é AIDS feses conselhos néo sao ‘‘inocentes’’, mas partem de certo modelo médico de pratica cor- poral que tem uma relagao conflitiva com os (4808 Concretos e histéricos do corpo. Mas antes de diseutir seus alicerces ideolégicos, 6 neces- #410 expor a polémica (nao menos ideolégica) quanto 4 origem da AIDS. mendando evitar praticas consideradas peri sas. Enumeram-se algumas das sugestées mi dicas e paramédicas: © reduzir o numero de parceiros: os mais pre miscuos estardéo mais expostos ao contagi | pela lei da probabilidade; ° evitar contato com o esperma: conselho rigido particularmente aos homossexuais ma: culinos, principal ‘‘grupo de risco’’, mas extel sivel a todo ser humano; ° usar camisa-de-vénus (camisinha): recur: — 0 latex impede sua passagem. Se estiver mi colocada, pode deixar vazar esperma ou ra gar-se. Recomenda-se 0 uso com lubrificant Deve ser colocada no pénis ja ereto. Alguns e: permicidas mostraram-se eficazes em experi mentos fn vitro, mas subsistem ainda algum: duvidas; ° utilizar seringas descartaveis individuai: recomendagao para os usuarios de drogas inj taveis; ° abster-se dos atos considerados de mai risco de contagio: (segundo o item ‘’Transmi: so’'): coito anal, vaginal, relagao bucogenital buco-anal e todos os que implicam troca de s cregées. CC A FABULA DAS ORIGENS As origens da AIDS sao nebulosas. A indeci- s&o clinica favorece a proliferagao de mitos cujos limites com o saber so, na sociedad. contemporénea, algo difusos. Os primeiros supostos casos da AIDS teria sido documentados, em setembro de 1979, n sul de Japao e, cinco meses ap6s, no Caribe, Quem tenham sido realmente casos de AIDS 6, & luz dos dados atuais, um pouco duvidoso; possivelmente foram casos de uma forma muite rara de leucemia, cujo virus foi inicialmente as. sociado ao da AIDS e de onde deriva a denomi: na¢gao americana. Entre outubro de 1980 e maio de 1981 d tectou-se no Centro de Controle de Doenga: dos Estados Unidos um aumento inexplicavel na ila provocada pelo protozodério Pneumocystis Swin/i em homossexuais masculinos adultos, até entho sadios, dos estados americanos de No- va lorque e California. Casos similares se obser- ivariam, pouco depois, em imigrantes haitianos. © que poderia haver em comum entre os so- ietioados guetos gays de classe média e os de Migrantes haitianos, que pululavam miseravel- Hente & sombra dos arranha-céus? Tendo em conta que a AIDS se transmite pelo sperma e pelo sangue, duas suspeitas se insi- Aram a respeito dessa conturbadora identida- i de preocupagées entre gays elitizados e imi- antes Negros famélicos. A primeira se apoiava if hipétese do contagio pelo esperma e a se- india remetia ao mercado internacional de ban- 8 de sangue. 0 AGesso espermatico desvelava os resulta- de reiteradas excursdes de gays em férias 1f@ 08 hipersensuais machos haitianos, de eM © escritor dominicano Manuel del Cabral mgistra, no romance &/ Escupido (1970), o ijulho de serem excepcionalmente bem dota- 8) Aquele que tenha o pénis do tamanho de 1) brago sera considerado um “‘falo sagrado’’, 0M direito a mordomias nao apenas libidinosas. Negundo a primeira suspeita, as excursGes de '# americanos para o Haiti teriam voltado aos Winds Unidos trazendo o virus na bagagem. ~ ee 41 Néstor Perlomyiie ¢ AIDS Se, em vez de se fantasiar sobre os circuit espermaticos da AIDS, se levar em considel Gao a transmissdo sangiiinea do virus, as hipi teses tornam-se menos festivas. Poderia exist talvez, alguma possibilidade de o virus ter ent do nos Estados Unidos desde o Haiti, pela das transfusées. O Haiti era entao um dos pri cipais provedores de sangue humano para mercado hospitalar norte-americano (maca HU GUI Gue VoLe ESTA COM MEDO DE DOAR SANIGUE... zu [que zee, ato CBE A DoT, MAS A AGUA QUE Lie deTe Med {wt eh A, rT t Se VotE ALDER HLAGIUAR GOMIAS PESSOKS Seek, Bene FiciAcas Hee li tsb voce Tate Beivaaih Se Doutnaecee Apesar das suspeitas de vias de contagio pai Os Estados Unidos, de onde realmente provél AIDS? Neste ponto, as suposi¢ées tornam- ainda mais errdticas. Especula-se a respeito uma espécie de ‘‘nicho ecolégico’’ da AIDS n adjacéncias do lago Vitéria. Haitianos resid tes no Zaire, nas décadas de 60 e 70, mas q retornaram ao Haiti, haveriam tido algum pa| na propagacéo transatlantica do fugidio vin Outras variantes — saindo do terreno da cién Pura e entrando no plano da guerra fria — met cionam os soldados cubanos estacionados et Angola como possiveis contrabandistas do rus; OS veteranos combatentes teriam conta nado graceis pdjaros (bichas) cubanos que, fuga massiva de 1980, Passariam a doenca pa seus irmaos americanos. Muitas dessas verso sao nitidamente miticas, sem dados técnicos é ape EM COUPER IAG Yeod LAS anny Re ae ie Ene iig e 9x y OO 0 Seu Céute SAese iro, Whe hi Une racer [BS Se See SLE, ran aa JA! Checxup gbe wtchias No‘Seu seaveve? ood TAUBE sages BUN te oes Zl THIEDIOCEMLE RR, TY Pua Frei Camaca, & - fone 2311200 42 @ AIDS cientificos que as fundamentem. Cientistas americ: c i ti lericanos e franceses insistey em assinalar a Afri seria uma doenca homossexual, mas ser- para criar outros. Um médico de Trinidad, por #iiplo, néo exclui a hipétese de que a raca ne- # #e)/a mais sensivel ao virus. Por sinal, 40% y8 pacientes de AIDS norte-americanos so \/A(O8 OU negros — embora as campanhas de ity Health (Satde Homossexual) sejam geral- ile @ncabecadas por brancos de classe mé- if (ue confessam dificuldades para atingir os gue, embora a ep Matos de cor. : Africa do que em mente tais insinuagées, que ee a ett seria anteri 8 10 HOS negros uma suposta “culpa’’ pela Parana econ eae explos D8, a reacdo é imediata: Racismo! O proprio ji ‘ x vero haitiano tem esgrimido esse argumen- ) Um estado africano proibiu toda informagéo #18 @ AIDS, atribuindo-a a uma conspiracéo Hlanialista. Em Bangui, capital da paupérrima ispuiblica Centro-Africana, cinegrafistas euro- 8 foram impedidos de filmar panoramicas do WApital, A enviada especial de Le Nouve/ Obser- Your (9.1.1987) interpreta: “E que a Republi- ) Gentro-Africana tem vergonha da doenga, wijue ela revela costumes que os ocidentais wprovam’’. usis seréo esses costumes supostamente /OVvAveis? Em primeiro lugar, a promiscuida- i» (mesmo a heterossexual). O desordenado ieseimento das urbes africanas apds a desco- de 1% das amostras). Mas, diferente acontece no Ocidente — onde os oe grupos de risco’’ sio homossexuais e adepto: do “‘pico’’ (drogas injetaveis) —, na Africa AIDS € uma doenga heterossexual, afetand Proporcées mais ou menos iguais de homens mulheres, com 10% de criangas. 44 Néstor Perl Mmenclaturas — HTLV-IV (pelos americanos) e LAV2 (pelos franceses). Se os chamados HTLV- Il @ LAV eram afinal o mesmo virus, isso nao eaté tho claro nas novas contribuigdes labora- toriais, Quase simultaneamente, em novembro de 1086, as equipes francesa e americana da AIDS anuneiavam o achado. Montagnier, do Instituto Vasteur, emite a noticia em Lisboa, onde partici- flava de um seminério, Contou com a colabora- @fo da pesquisadora portuguesa (formada na franga) Maria Odette Santos Ferreira, que teve a honra de fotografar pela primeira vez 0 novo virus, Horas depois, alertado por um suposto eapiio, o dr. Essex proclamava em Boston uma (escoberta semelhante. 0 LAV2 foi isolado a partir de dois pacientes Masculinos na Guiné-Bissau (ex-colénia portu- esa) e guardaria semelhangas genéticas com outro virus de origem animal que costuma aco- Meter 0 macaco-verde africano. A descoberta do HTLV-IV, no entanto, pro- velo de uma equipe de pesquisadores suecos (jue 0 isolaram em pacientes africanos em quem § presenga do virus néo provocava um desenla- @ fatal. Depois foi isolado em trés prostitutas tle Dacar (Senegal), nenhuma delas doente. Per- Hebeu-se também certa similitude com o virus presente no macaco-verde. A inferéncia tende a onsolidar a hipdtese de um virus transmitido ao lonizag&o teria incidido num relaxamento get dos costumes. Nesse contexto, onde miséria e licenciosid de se somam — excluindo porém os homos: xuais masculinos, severamente clandestinos 0 uso de preservativo é considerado um insult Também néo ha forma de convencer as mull res contaminadas a deixarem de parir. Entretanto, as convengées higiénicas das m trépoles desenvolvidas nao sao faceis de trai plantar para um quadro de extrema pobre; Uma das causas da propagagao da AIDS esta na utilizagéo de seringas nao esterilizadas falta de condigées sanitarias e que sao apli das em indmeros pacientes. As populacées a’ canas padecem de doengas muito mais ‘’cu veis'’ e morrem por falta de alimentacao e rec sos técnicos — os hospitais centro-african nao dispdem sequer de placas para raios X. Continua a guerra dos virus Esse interesse médico pela evolucao da All na Africa tem alcancgado resultados promis: res, embora polémicos. A hipétese africa consolida-se com a descoberta de novos vir denominados — por continuar a querela das ni AIDS “perimentos laboratoriais, mais ou menos liga- 108 4 guerra bacteriol6gica, acompanhou toda a ga da doenga como um estandarte legenda- lo, Essa idéia foi, em muitos lugares, a primeira engio dos gays. A esquerda homéfila califor- lana agitou o fantasma de um suposto complé yara eliminar os gays. fora desses circuitos, o rumor comecou a se upraiar de uma maneira um pouco legendaria. As Hcusagées vieram tanto da direita quanto da aquerda, no quadro congelado da guerra fria. i em 1984, num Seminario de Guerra Psicolé- loa, em Pretoria, denunciava-se que ‘‘homos- exuais partidarios de Fidel Castro lutam desse Wiedo na guerra médica desencadeada por Cuba le URSS”. A® suspeitas sobre os cientistas americanos #80 um pouco mais sérias. Como antecedentes, Mencionam-se: administragées experimentais ile LSD a pessoas nao informadas do que se tra- tava, na década de 50; e uma macabra expe- 1@neia realizada com (ou contra) 400 indigen- les negros doentes de sifilis, que foram tratados om placebo para se estudar os estagios de uma Patologia que os antibidticos ja extinguiram — alguns desses doentes sobreviveram até 30 #08, morrendo de sifilis. Em 1971 0 senador Kennedy denunciou irradiagdes atémicas, com ponsentimento duvidoso, num grupo de 111 Hancerosos. homem por um macaco, carecendo no entant de provas conclusivas. Por tr&s do esforgo internacional de especia: listas para acumular informagées sobre o virus,| suas combinacées, suas origens, etc., ha tam bém uma danga de milhées, de créditos, de ver. bas, de prestigio e de interesses. ‘‘A corrida dai cura da AIDS tem cifras milionarias‘’, adverte revista Veja (20.11.1985), sob o titulo di “Saudavel negécio"’. A discrepancia a respeit do nome do virus chegaria aos tribunais. Aind que o francés Montagnier tenha sido pioneiro ni anuncio da descoberta do método de clonar (fa zer cépias sintéticas em laboratério) o virus da AIDS, a patente correspondente foi concedida seu rival, o dr. Gallo; calcula-se que o lucro obti- do por Gallo gracas & patente oscilaré nos préxi- mos anos em torno de 200 milhées de délares. Naturalmente, essa massa monetéria se recicl em operac¢ées capitalistas das mais diversas na: turezas. Anunciando certo avanco no campo da AIDS, uma empresa californiana de biotecnolo- gia conseguiu que a cotacdo de suas agdes su- bissem imediatamente. Um virus criado em laboratério? A suspeita de que a AIDS tenha resultado de Néstor Perlongl ) que é AIDS A respeito da AIDS, os rumores falam de ex- periéncias de guerra biolégica realizadas entre 1971 e 1978, no laboratério secreto do Exérci: to americano em Fort Detrik, Maryland, destina: das a introduzir em Cuba a febre sufna, cujo pro cesso patolégico tem alguma similitude com a AIDS. Adiantados por revistas soviéticas e indianas os rumores ganham peso quando, em 1986) trés cientistas de certo renome langam simulta fabricado em laboratério, misturando o viru: Maed-Visna, encontrado nas ovelhas, ao agen causador da leucemia nos bovinos; por um aci dente de manipulac4o, 0 virus artificial, consi derado inicialmente inofensivo, haveria se dis seminado. Alias, esses cientistas — Seak (Ingla’ terra), Streeker (EUA) e Segal (Berlim Oriental — descartam a hipétese do macaco-verde, qu jA esté em contato com o homem ha milénios: A teoria laboratorial foi chamada de ridicula, suas acusacdes desmentidas com indignagao Mas a polémica est4 aberta. Seu desenla nao diz respeito apenas aos avangos da ciéne médica, mas tem conseqiiéncias diretamentt politicas. No entanto, a possibilidade de a AIDS ter si gido de um acidente de laboratério — 0 qi obrigaria a refletir sobre a legitimidade de cert} experimentag6es de alto risco feitas em nom do saber — n&o dissuadiu os pesquisadores. Assim, cientistas franceses, em colaboracéo com médicos do Zaire, comecaram, em dezem- bro de 1986, testes de vacinas e medicamentos experimentais contra a AIDS com cobaias hu- manas. Interrogado pela imprensa, o imunolo- gista Zagury, responsavel pelo projeto, negou- se a revelar detalhes, amparando-se no segredo. cientifico. Apesar do perigo que a inoculacéo pressup6e aos voluntérios, vale a pena talvez correr 0 risco: ao descobridor de uma vacina efi- caz contra a AIDS esta assegurado — calculaa revista Veja (24.12.1986) — um mercado po- tencial de 100 milhdes de délares. que é AIDS doengas, como tudo, entram na moda’’, admite o dr. Jean Claude Nahoum (entrevistado por Médico Moderno, jul. 1985), para quem essa moda ‘‘ndo é necessariamente o aumento da incidéncia epidemiolégica, e, sim, 0 aumento da incidéncia na cabega dos médicos’’. A AIDS nao seria, segundo ele, uma nova doenga, mas “uma nova sistematizagéo de elementos pree- xistentes; no caso da AIDS, esta construc4o foi estudada inicialmente em homossexuais, come- Gou a ser procurada insistentemente em homos- sexuais e, naturalmente, foi encontrada em homossexuais. A partir daf, estabeleceu-se uma relagao inequivoca entre AIDS e homosse- xualismo’’. Os homossexuais brasileiros néo podiam per- manecer insensiveis perante essa ‘‘relagao ine- quivoca’’. Em julho de 1983, o Grupo Outra Coisa de Agéo Homossexualista, em combina- gao com a Secretaria de Satide de Sao Paulo, comega a distribuir panfletos de adverténcia nas esquinas do gueto paulistano. O volante instava os gays a selecionarem, “como vocé Sempre faz’’, os parceiros sexuais, recomen- dando n&o entrar em panico. Em caso de suspei- ta, sugeria dirigir-se ao primeiro servigo de aten- dimento a pacientes de AIDS que a Diregao de Dermatologia Sanitaria, em parte por pressao dos ativistas gays, consentira habilitar. A irrupcao da AIDS surpreende os gays brasi- A AIDS NO BRASIL A doenga chegou ao Brasil nos bragos da mo- da. Se coube a dermatologista Valéria Petri o mérito de detectar, em fins de 1982, os dois primeiros casos brasileiros de AIDS (rapazes de 30 e 32 anos, com sarcoma de Kaposi, que ti- nham ido aos Estados Unidos), foi com a morte do costureiro Markito que comegou a espetacu- lar ressonancia da praga. Sua agonia, detalhada minuciosamente pelos meios de divulgagao, de sencadeia a primeira onda de pavor local. No inicio acreditou-se que a difusdo da doen- ga se restringia ao circuito dos gays mais abas» tados, que tinha condigées para passar frenéth cas temporadas nos States; era — ironizava-st — “uma doenga chique’’. A ligubre moda nao foi monopélio dos sal6es mundanos, mas gay nhou celeremente os consultérios médicos: ’’A\ leiros numa _situagdo paradoxal: a fraqueza or- ganica dos j4 quase desestruturados grupos) (apenas sobreviveria com fmpeto 0 Grupo Gay da Bahia) coexistia com uma expansdo publici- taria do espetaculo gay. O desbunde — versa tropical do out of the closet (literalmente, ‘‘fors do armario’’) dos gays americanos — nao tinhi apenas favorecido os portadores do novo mode lo de homossexual assumido (aquele que man: tém uma relag4o de igual para igual com outr homossexual, também assumido, sem precisat nenhum dos dois se efeminarem). Os travestis, que pouco tinham a ver com o programa di igualdade sexual, aproveitaram também a fresti aberta para invadir macigamente as avenidat das megalépoles. A sugestiva sagracao do tra: vesti Roberta Close como ‘modelo de mulher nacional’’ pode bem simbolizar certa degluti¢ai capciosa do homossexualismo que se insinuara, por volta de 1984, pela midia. Com a emergén: cia do mal, todo esse quadro mudaria: a sensual ambivaléncia de Roberta Close seria substituldi pelo brilho severo de Dona Risoleta. Ha, na crise da AIDS, todo um cheirinho d restauragdo. Chegou-se longe demais, paga-st agora a culpa pelos excessos libidinosos! Um ri torno ao casal, uma volta a familia, a morte de’ nitiva do sexo anénimo e impessoal. A morte do teatrélogo Roberto Galizia — ist lado atr4s’ dos vidros da enfermaria, passot seus Ultimos dias quase cego, ditando poemas a enfermeira —, no ver&o de 1985, marca 0 inicio da segunda onda de pAnico. Os rituais da agonia seriam, doravante, reciclados insistentemente pela midia. A televiséo desempenha um papel decisivo no procedimento, que chega a beirar 0 obsceno de espetacularizagio da morte: mostram-se, por exemplo, cenas de dois rapazes gays de méos dadas, e logo depois um paciente carco- mido pelo sarcoma de Kaposi; panoramicas do gueto gay, seguidas de martirios de hospital. A imagética prépria da medicina é terrorista. Nas reunides de informagao convocadas pelo re- cém-criado Grupo de Apoio e Prevengéo a AIDS, 0 ptblico assistente — basicamente ho- mossexual — era bombardeado com transpa- réncias de rapazes de nddegas corrofdas e ros- tos desfigurados. Ja em 1986, o pintor Darcy Penteado retira-se aos gritos de ‘‘Terrorismo médico!’’ de uma conferéncia do entao secreta- rio municipal de Satde de Sao Paulo, onde era exibido na tela um homem deformado pela doenga. A reacgao de Darcy nao é apenas emo- cional: segundo ele, ‘‘o problema da AIDS nao é a doenga em si, mas a parandéia que os meios de comunicagao estado criando’’, e denunciava que “os velculos estéo veladamente atrelados a po- derosos esquemas médico-farmacolégicos mul- tinacionais que certamente pretendem faturar que é AIDS Néstor Perlongl tal (e até residencial) implicita no modelo gay americano, derivadas de histérias dissimeis. Com efeito, apéds a dura repressfo do ma- carthysmo na década de 50, 0 surgimento ex- plosivo do Gay Liberation — a partir do confron- to entre gays e policiais no bar Stonnewall, de Nova lorque, em 1969 — daria lugar posterior- mente a certa ‘‘territorializagao’’ das popula- ces homossexuais norte-americanas, que sal- ram, com tanto frenesi, dos armarios do ‘‘enrus- timento’’. Houve verdadeiras migragées para os grandes guetos gays (bairros inteiros habitados s6 por homossexuais) de Nova lorque e Califér- nia. A cidade de Sao Francisco, epicentro de beatniks e hippies, se converteria na capital do mundo gay; mundo de circuitos fechados, onde gay sO transa com gay (o que pade explicar a testrita difuso da doenga), mas também verda- deiros /aboratérios de experimentagéo sexual, cujas repercussGes nos campos vizinhos produ- ziriam interessantes combinacées. Assim, por volta de 1978, nao era incomum que as fre- qientes trocas de casais entre jovens california- nos inclufssem, sem drama, algum parceiro ho- mossexual. O novo modelo sexual americano Subsumiu esses versateis amantes sob a cate- goria de “‘bissexuais’’. Esse paradigma de identidade sexual — que divide os individuos, segundo seu objeto amoro- 80, em ‘‘homossexuais’’, ‘‘heterossexuais’’ e altissimo as custas da AIDS; a medicina deso- nesta, aliada a grupos conservadores, radicais e ferozes, pretende restaurar horrores em cima desse horror todo” (/STOE, 22.1.1986). Nem todos os porta-vozes dos chamados “grupos de risco‘’ tinham, num primeiro mo- mento, as coisas tao claras. A reducao da pro- miscuidade e da penetracado nos encontros ho- moeréticos foi conclamada sem rodeios, ainda ao prego da abstinéncia: ‘Entre transar e viver, minha opg4o é viver’’, declarava, em maio de 1985, 0 porta-voz do GAPA. Enquanto isso, a AIDS ia abandonando o dou- rado reduto do jet-set; aclimatando-se e nacio- nalizando-se, iria adquirir caracteristicas pro- priamente brasileiras na sua difusao. Nao somen- te quebrou com rapidez as barreiras de classes (em fins de 1986, 95% dos pacientes de AIDS provinham das classes populares), mas também: as do gueto homossexual onde fora fechada re- velaram-se paulatinamente frageis. Embora os homossexuais contaminados constituam ainda a vasta maioria, a proporcao de homens ‘’bisse= xuais’’ contaminados sofre um progressivo au> mento. Essa redistribuigéo dos quocientes patolégi- cos se torna preocupante, quando se levam em consideragao as diferencas entre a heterogenel dade carnavalizante das homossexualidades brasileiras e certa uniformizacao comportamen Néstor Perlongl que é AIDS a “bissexuais’’ —, vigente nas alcovas america- nas, seria quase literalmente transplantado no Brasil, onde a realidade sexual é bem mais com- plexa, por ocasido da programagao da estraté- gia médica e paramédica de combate a AIDS. Tal modelo, que costuma estar implicito, sob formas as vezes diluidas na ‘‘afirmagao da iden- tidade homossexual’’ de alguns ativistas gays locais, tem o mérito de parecer simples e objeti- vo. Infelizmente, uma parte consideravel das praticas homossexuais mais ‘‘populares’’ que vigoram ‘’ao sul do Equador’ corre o risco de cair fora do esquema. A comegar pelo proprio termo ‘‘bissexual’’, inaudito nas barrocas no- menclaturas nativas (apenas no circuito de pe- rambulac&o homossexual do centro de Sao Pau+ lo, est&o em circulagdo mais de 50 maneiras de aludir aos géneros e estilos dos ‘‘entendidos’’, desde bicha-baby até miché-gilete). O ‘‘bisse= xual’’ seria traduzido para os cédigos vigente! no gueto: uma espécie de ‘‘enrustido’’, que fo: ge de sua familia heterossexual constituida, procura de uma aventura andrégina. A revisti feminina Nova, preocupada com o tema, de: creve, em margo de 1986, um “‘representant tlpico’’ dessa inquietante espécie: ‘’Everaldo, 39 anos, executivo de uma companhia de seg! ros, tem trés filhos e uma esposa com quem | va uma vida sexual agraddvel mas esporadic: nunca foi a um bar gay, nao conhece um h mem declaradamente gay, néo se considera gay. Uma vez por semana, vai a um cinema por- né perto de seu escritério. La faz sexo casual com outros homens, e nunca fica por mais de meia hora’’ (‘‘sexo rapido e furioso’’, condensa 0 mensério sentimental). A defasagem entre as prevencdes sexuais promovidas e as préticas homossexuais concre- tas ndo é retérica. Assim, em Campinas, a equi- pe médica da AIDS sentia, no préprio campo, essa inadequacao: ‘‘O que vocé recomenda nao tem nada a ver com 0 sexo que eu fago’’, quei- xavam-se os homossexuais populares no ambu- latério. _No caso do Brasil, os conselhos preventivos dirigidos aos homossexuais integraram-se numa estratégia progressista — que visaria salvaguar- dar, mesmo ao prego do autocontrole, alguns ténues direitos humanos conquistados pelas mi- norias eréticas. Enquanto o “‘progressismo’’ médico advoga certa reforma das praticas cor- porais, diminuindo assim as probabilidades ma- tematicas de transmissao do virus, outros seto- res, menos compreensivos, propugnam méto- dos mais rispidos (do tipo ‘‘acabar com o doen- te para acabar com a doenga’’). oO clamor por mais rigor percorre as vezes enunciados divinos. Os crentes da Assembiéia de Deus aspergiram 0 exorcismo nos guetos paulistanos, distribuindo fulminantes andétemas \) Néstor PerlonghO que é AIDS gays’’. Um colega paulista complementava: ‘A AIDS tem preferéncia pelo sexo masculino’’. Ja em 1984, um outro professor baiano, ante a grande quantidade de homossexuais entre as vie timas de AIDS, deduzia ‘‘uma predisposi¢ao que s6 os invertidos possuem ou adquirem de seus desvios’’. Sob a multiplicidade de enunciados disparata dos, imprecisos e contraditérios, se delineava alvo da campanha: os homossexuais e, mais es: pecificamente, a promiscuidade homossexual, o ‘’sexo andnimo”’. Esse tipo de pratica — ni qual dois ou mais sujeitos se olham, ou apena: se apalpam, e logo, as vezes sem trocar pala vras, se entrelagam no frenesi dos corpos — freqiiente nas redes homossexuais, deriva, e parte, das condigées histéricas de segrega¢ao clandestinidade tradicionalmente impostas a e sas unides: no corre-corre da perseguigao, nai ha tempo a perder em cortejos floridos. Mas es: sa exuberancia sensual dos modernos gays s¢ encaixa também na secreta tradicao da orgia que mina a histéria oficial, da qual constituiri sua trama subterranea. As alternancias desse desejo maldito sao leg! veis nos porées da histéria do Brasil. O véu di estigma velava, as vezes, paixdes que discreta mente se consumavam sob a sua sombra. Teria havido, no embalo da década de 70 aos compassos da ‘‘abertura’’, certo cresol mento desse instavel limiar de permissividade Para com os comportamentos abertamente ho- mossexuais. A ténue liberalizagao percorreu va- rias vias: a difus&o da influéncia dos grupos gays e seus porta-vozes; 0 préprio desbunde das populagées homessexuais, disputando e ocupando espago em certas dreas das grandes cidades; concomitantemente, a proliferagaéo de estabelecimentos comerciais, do tipo boates, bares, saunas, etc., que, consolidando um mi- cromercado de clientes e consumidores gays, ajudavam a ampliar as diferengas de classe que- a antiga penumbra esfumacava. Em S4o Paulo, a irrupgdo da AIDS radicaliza, no plano espacial, 0 progressivo esvaziamento do gueto gay do centro da cidade. Essa mudan- ga na densidade territorial interessaria a policia, que aproveita a queda da movimentacgdo para ocupar éreas histéricas. Num dado momento, o trottoir fervoroso de gays, bichas, michés, tra- vestis e todo tipo de entendidos parece cessar ({enquanto isso, locais mais secretos, como ba- nheiros de cinemas, se ativavam; como se, pe- rante a ameaca moralista, os afetados optas- sem pela volta a clandestinidade). As saunas sdo precisamente o ponto de dis- cussdo mais ardente da delicada questéo da AIDS. Elas tiveram, paradoxalmente, uma ori- gem higiénica — e algumas ainda funcionam se- gundo 0 modelo terapéutico. Nas mais moder- Néstor Perlongha) que é AIDS nas saunas gays, numa verdadeira perversdo da fungao higiénica, 0 sexual desloca qualquer ou- tro calor: trata-se de locais orgidsticos, com ca- maras obscurecidas especialmente para a con- fusdo dos corpos suarentos. Na medida em que os atletas sexuais tém af condi¢des para superar todos os recordes, supde-se que, do ponto de vista da probabilidade de propagacéo da AIDS, a sauna seja um local perigoso. A proliferagéo de saunas e bordéis masculi- nos em Sao Paulo, sobretudo por ocasido da ir- rupcdo da AIDS, parecia incontrolavel. Os locais se abriam com instalagées rudimentares, em bairros afastados. Os seus freqiientadores eram rapazes do bairro, que costumavam fazer uso tanto libidinal quanto higiénico das célidas bru- mas. Timidamente, equivalentes heterosse- xuais desses recantos vaporosos, até ent&o do- minados por empresas de prostituicao feminina, se libéralizavam; em certo bairro chique, era permitido o ingresso de damas e cavalheiros de- sacompanhados. A AIDS vem interferir nesse processo — ain- da incipiente — de relaxamento dos costumes. Se o alvo preferencial da campanha sao os ho- mossexuais masculinos, a ofensiva moralista aponta também contra certo género de mu/her liberada. Novamente a revista Nova nos oferec@ um perturbador retrato desse tipo de mulher} Sheila, 30 anos, ‘‘acostumada a ir para a cama com homens diferentes, quando the da vonta- de’’. Ela néo se mostra nem um pouco assusta- dacom a AIDS, o que deixa as cronistas preocu- padas; estas prorrompem em projegdes sobre ° sveuel desenvolvimento heterossexual do mal. O interesse que o show de subinformacao sa- tisfazia nas massas tinha algo de deleitagdo mérbida. Cruas descricdes das vicissitudes do coito anal, da profundeza da penetracao, da for- Ga da felacdo e da letalidade do beijo ganharam as salas familiares, complementadas com dados sobre os promiscuos e suas diabdlicas perfor- mances. Um verdadeiro coquetel de sexo e mor- te, quase beirando o porné, sem assumi-lo. Mas quando um filme abertamente pornd — Fu te- nho AIDS, de Davi Cardoso — tenta explorar o fildo, sofre ameagas de boicote, acabando lan- guidamente perante platéias abandonadas por seus freqiientadores, mais Avidos de filmes que servissem de fundo aos seus préprios gozos. Parece inerente 4 campanha da AIDS que a vi- véncia homossexual seja verdadeiramente visi- bilizada, ‘i A estridente campanha da AIDS teve, no Bra- sil, algumas consequéncias lamentaveis. Um dos episédios mais chocantes foi a expulsdo, em junho de 1985, de 24 garimpeiros homos- sexuais de Serra Pelada, acusados de desfilar travestidos pela rea. Os desterrados, despidos Nee (alguns tiveram cabelos, sobrancelhas e cilios arrancados), foram trancados em dois cami- nhées com a faixa ‘‘Transporte Gay’’ e abando- nados na transamazonica. O incidente aconte- ceu nove dias depois de uma conferéncia médi- ca sobre a AIDS. A Policia Federal comandou a operacdo. Talvez tanta insisténcia na prevengao, na au- ‘séncia de tratamento, incite alguns homens ar- mados a agdes mais enérgicas. A truculenta blitz contra os gays paulistanos pode dar uma idéia da perigosa mistura entre enunciados mé- dicos e interpretagées policiais. Também a su: cessdo de metralhamento contra travestis a longo de 1986, atribufdos pelos préprios poli- ciais a supostos doentes de AIDS querendo si vingar, mas destinados a expulsd-los dos seus pontos com métodos mais diretos que o simple: medo a doenga, se inscreve no recrudescimenti da violéncia contra os dissidentes erdticos sob amparo do fantasma da AIDS. Preocupados com o avango da doericga e na satisfeitos com a ampla colaboracao dos grupo! gays organizados, setores médicos chegam propor mudangas na legislagao. E provavel que essas ‘‘novas legislagées es peciais’’ guardem menos relagéo com um tem fundamentado de uma escalada heterossexui da doenca, e tenham mais a ver com certa te! déncia a transformar a preven¢ao em repressa quenowene MAIS PODE EVITAR. ao ub rami’ sete ge patna, asc Be Rhee oo eal ou Sz pas retiree a eer eee Biome cusammimmee Governo José Samay A AIDS em 1987: 0 Governo José Sarney assume a campanha da AIDS Néstor Perlonghe Talvez ndo se trate tanto de uma repressdo generalizada (inferéncia otimista que repousa em certa tradi¢do estratégica do poder policial no Brasil, dirigida antes a uma redistribuigdo e controle das zonas e suas cortes marginais que auma extirpagao radical dos perversos), mas de um controle mais estrito dos suspeitos e suas praticas. O patrulhamento da Policia Militar pe- los guetos de Brasilia, 8 caga de recrutas sensi- veis aos encantos homoer6ticos, indica como, sob a desculpa da AIDS, as liberdades cotidia- nas, Os direitos de ir e vir séo cerceados. Se as medidas de prevengao da AIDS evolufs- sem da internagdo dos casos ja declarados ao isolamento dos suspeitos, a sombra de algum novo pogrom (similar as perseguigdes anti-se~ mitas na Europa Central) seria lugubremente vislumbranda. Perspectivas igualmente desa- lentadoras se inferem de uma eventual generali- zag&o do teste a populacéo: a composi¢ao san: gilinea de um sujeito podera, numa utopia pessi. mista, tornar-se um.critério inapelavel para de: terminar inclusdo ou exclusdéo de qualquer um dos circuitos sociais. HOMOSSEXUALIDADE E PODER MEDICO _As telagdes entre homossexualidade e medi- cina sao promiscuas. A homossexualidade guar da uma espécie de divida fundamental com 0 medicina, que teve o mérito de inventar e orgay nizar seus modos de nominagao e implantagho de definir seus territérios. O termo homosse- xualidade foi cunhado em 1869 por Benkert, um médico hungaro, em substituigéo ao mi 8 petico uranismo; estas denominagées co riam, por sua vez, i i Bape one 9 antigo dominio teolégico A troca de nomes faz parte de uma operagho que nao 6 s6 retérica. Seguindo a obra de Miv chel Foucault (paradoxalmente, vitima da AIDS) pode-se situar, j4 a partir do século XVII, um que é AIDS progressivo deslocamento da problematica da carne (que respondia a hierarquia teolégica dos pecados) a axiomatica da sexualidade que vai fazer proliferar uma vasta tipologia de espécies perversas onde antes reinava a ameacga, menos diferenciada, das chamas infernais. Algumas ‘‘espécies’’ foram mais afortunadas do que outras. Dos ‘‘presbiéfilos’’, e das ‘’dis~ pareunistas’’, poucos se lembram hoje. A ho: mossexualidade — ainda sob o eufemismo d “9 amor que nado pode dizer seu nome’’ — man: teve, no entanto, um sélido prestigio. Nao é qui ela nao fosse considerada, em principio, umi doenga; no entanto, sua apropriagéo tem sid muito disputada entre os distintos ramos do sa ber e do poder: deficiéncia bio-hormonal ot transtorno psicossexual? Doente ou caso de po: licia? As distingées entre os rétulos no sao e: cludentes: os dispositivos em que se instrumel tam podem agir simultaneamente sobre os coi pos em questo. A proliferagdo de saberes e poderes sobre sexo acarretaria o préprio crescimento das per versdes, nao precisamente como um deslize i desejado. Esse poder nao anula o prazer; pel contrério, gragas ao isolamento, a intensifici Go e a consolidagdo das sexualidades perifél cas — que antes nao conformavam sendéo umi vasta massa amorfa —, ‘’as relagdes do podi com 0 sexo e 0 prazer se ramificam, se multipl cam, medem o corpo e penetram nas condu- tas’’. Da interferéncia de poder, saber e prazer vai emergir, entéo, uma nova codificagao do se- XO: a scientia sexualis. Como o olho do poder penetra nas mucosas, nos esfincteres, nas ondas dos espasmos, nas irisagées do gozo? Em primeiro lugar, através de versées mais ou menos modernizadas da antiga confiss&o: trata-se de contar tudo sobre o sexo. Quando essa informagao privilegia o desejo, o sonho, a fantasia, é a vez do psicanalista. Mas 0 ritual da confisséo sexual nao abandona, por isso, a assepsia dos recintos hospitalares. Ela esta presente em boa parte das consultas nor- mais, cresce em intensidade quando moléstias venéreas entram na sala e se despem de todo pudor perante as suspeitas de AIDS. Além da confissdo, o arsenal médico dispée de recursos menos subjetivos, de tecnologias cada vez mais sofisticadas. A relacdo entre o médico e 0 paciente se despersonaliza, se torna anénima. Em compensayao, a relacdo entre a doenga e a instituigaéo médica, passando por ci- ma do desejo ou do entendimento daquele que sofre, se intensifica, amarrada por fios profun- dissimos e complexas aparelhagens. O olhar médico nao se limita a intervir no or- ganico, mas abrange o regime de vida do sujeito atendido. Um exemplo que n&o tem nada a ver com a AIDS: a implantagao de um programa ma- 710 Néstor Perlonghet) que 6 AIDS mn terno-infantil, em contrapartida a atendimentos e prestagées materiais gratuitas (leite, vacina, etc.), exige que o beneficiado se submeta a orientagao direta da instituigao no que diz res- peito as normas de higiene, disciplina, dietas, habitagado, enfim um verdadeiro papel discipli- nador, que exerce também uma ago classista, impondo aos socorridos as normas médicas da classe média — em detrimento de seus pr6prios habitos, tidos como insalubres. Nao resulta entéo surpreendente que, no ca- so da AIDS, na medida em que 0 virus se tran mite por via sexual, os conselhos médicos ve culem um disciplinamento das praticas sexuais, especialmente das homossexuais. Também nao seria de surpreender se a énfase profilatica pu- desse extrapolar o simples aconselhamento, mas recorresse a forga para torna-la, em nome do bem publico, obrigatéria. Se medidas coerci- tivas foram aplicadas a maes renitentes a parti- cipar de cursos de pré-parto, pode-se imaginar até onde podera chegar o af higiénico no caso dos homossexuais pacientes de AIDS. Além de aplicar um conjunto complexo de: mecanismos comuns a massa das doengas, 0 poder médico pode estar extraindo, do episédio da AIDS, uma espécie de mais-valia moral. E is- s0 remete, novamente, ao longo envolvimento entre medicina e homossexualidade. Se a primeira onda de liberalidade homos: sexual foi afogada em sangue e gases pelo na- zismo, a segunda impulsionou transformagées nas normas juridicas e forenses de alguns pai- ses do Primeiro Mundo. A retirada da homosse- xualidade da lista de doengas mentais, por parte da Associac&o de Psicdlogos Americanos, em 1974, pode ser considerada um episédio sim- bélico no processo de safda da clandestinidade das homossexualidades contemporaneas. O prego dessa safda das sombras foi alto. An- tes o homossexual fora transformado numa es- pécie, dotado de uma personalidade que girava completamente em torno da sua recém-desco- berta sexualidade. No entanto, seu antecessor eo} sodomita — nao passava de alguém que praticava 0 coito anal, sem que nenhuma cons- trugdo de ‘‘personalidade’’ se inferisse de seu “pecado nefando’’. A medida que ia sendo ‘’tolerada’’, a homos- sexualidade seria ‘‘modelada’’. Uma vez que ela, téo maldita, acedia ao vestibular dos gozos tolerados, € como se tivesse que se mostrar ca- paz de se integrar disciplinadamente nos com- partimentos da normalidade ampliada. \sso im- plica, por um lado, a ruptura com a massa das marginaélias com as quais, nos corredores tene- brosos dos bas-fonds, ela se misturara alegre- mente. Por outro lado, a cis&o vai se dar tam- bém a respeito de géneros mais ‘‘classicos’’ (bi- chas, travestis e todo o folclore ‘‘ativo/passi- Néstor Perlongl que é AIDS 73 vo’’), Ruptura com as “‘homossexualidades po- pulares’’; instalagéo em guetos dourados de gays plasticos e bem-comportados: esse 0 pre- co da luz. No entanto, nao se pode dizer que o resultado do gay liberation fosse precisamente casto. Pelo se caracterizou por uma promiscuidade desen- freada. Ela era tao explicita que os cientistas so- ciais a legitimaram; assim, numa pesquisa em Sao Francisco em 1970, os socidlogos Bell e Weinberg consideravam como protétipo fun- cional’’ de gay aquele que levava uma intensa pratica sexual com uma grande quantidade de: parceiros e, assumido, néo esbarrava em senti- mentos de culpa que atrapalhassem sua perfe mance. Porém, os pesquisadores situavam ni casal homossexual, mais prolongado e sedenté rio, 0 paradigma de harmonia e adaptagao inte gradora & ordem social. _ A homogeneizagao derivada do modelo ga} chegou bastante longe em algumas metropole do Primeiro Mundo. No entanto, a intensific cao da experiéncia sexual que a acompanhav continuava a provocar densas inquietagdes ni circulos sociais. Um socidlogo progressista, Castels, vé na desbordante perversidade d gays 0 principal obstaculo para uma alianga sél da com outros grupos minoritarios, 0 que Ih permitiria maior poder politico na cidade de Si contrario, o gueto residencial 4 moda americana — Francisco, onde constitufam uma forga conside- ravel. O homossexualismo era tomado como modo de vida e nao enquanto pratica sexual. De outro lado, cabe reconhecer que a trans- formagao contemporanea das praticas e discur- sos sexuais nao se limitou aos homossexualis- mos; pelo contrario, efa faz parte do vasto pro- cesso da revolugéo sexual. A moralizagao de- sencadeada em torno da doenca deve ser enten- dida como uma conseqiiéncia a posteriori da re- volugao sexual, integrada a seu refluxo. Sinto- mas do “‘retorno ao casal’’ sao, na verdade, an- teriores 4 emergéncia da AIDS. As feministas arrependidas, como Betty Frydan, vinham pos- tulando 0 “‘retorno ao lar’’, achando que a auto- nomizag¢éo das mulheres provocara, afinal de contas, miséria e solidao, E que a chamada ‘‘revolucdo sexual” acabaria impulsionando certa inflagdo do corpo — legivel nao somente no show das midias, mas também na expansdo de uma potente industria da ginds- tica e outras técnicas corporais. Assim, a des- peito dos idedlogos radicais da liberag&o sexual — propondo um questionamento global dos va- lores da sociedade —, a paulatina banalizagéo do sexo permissivo acabaria gerando um difuso tédio. O sexo perdia a emogio, o risco alucinan- te da transgresso e a paixdo. Nos Estados Uni- dos, havia grupos pregando a abstinéncia (a “nova castidade’’) como reagdo a essa licencio- S 74 Néstor Perlonghel que é AIDS 5 sidade programada; simultaneamente, ocorriam procuras sofisticadas de novas sensag6es, de usos singulares do sexo (recursos sadomaso- quistas, auto-erdticos, etc.). S6 a partir desse “‘refluxo’’ da revolucao se- xual € possivel um dispositive como a AIDS — nao a doenga em si, mas a moralizagdo desen- cadeada em torno dela. Para obter o disciplina- mento do corpo deve-se confessar certas intimi- dades escabrosas, como penetragées, ejacula- ¢des dentro ou fora do anus, etc. Se a moral pu- blica nao permitisse falar coisas assim, a AIDS seria — como foi a sifilis — uma ‘’doenga secre- ta’ — e fruiria talvez da auréola herdica da aventura clandestina. Entretanto, uma campa- nha como a da AIDS exige como pré-requisito que tudo 0 que diz respeito corporalidade pos- sa ser dito, mostrado, exibido, assumido; a par- tir disso é que se pode diagnosticar e regula- mentar. Antes os anormais estavam fora: fora da familia e fora do consultério. Agora j4 podem ~ entrar e receber conselhos. Uma vez que a medicina deixa de considerar a homossexualidade uma doenca, parece dedicar- | se entdo a cura-la, ou melhor, a regra-la. Tanto a — redugdo no numero de parceiros quanto o aban= dono de libidinosidades extraviadas estariam 4 impulsionar (pelo menos é 0 que parece) mais do que a repress&o dos encontros homoeréticos — em bloco, sua colocagao sob controle médico institucional, no sentido de uma “‘medicaliza- go” do sexo. Como nao ler certa sensualidade nessa fixa- ¢ao do olhar médico nos avatares do prazer? Diz Foucault: '’O poder que, assim, toma a seu car- go a sexualidade se impde o dever de rogar Os corpos; Os acaricia com o olhar, intensifica suas regi6es; eletriza superficies; dramatiza mo- mentos turbados. Abraga com forga 0 corpo se- xual’’. Com a AIDS, o abrago médico vai pousar nos esfincteres, seu ponto de apoio. A “‘analidade’’ entra em jogo. Os olhos da ciéncia voltados ao dnus! A maquina médica ex- plora as mucosas, os pontos de rogamento e de fruigéo, as feridinhas microscépicas que teste- munham uma poténcia descontrolada. A opera- ¢ao transcende o sigilo branco dos hospitais e torna-se espetaculo. Ponto limite do dispositi- vo: transformar o antes proscrito em espetacu- lo, um grande show. No entanto, nessa tradu- gao das intensidades do desejo para esquemas normativos do discurso médico, algumas coisas devem se perder. O que antes era gozo, na po- pulosa intimidade da orgia, é logo projetado nos slides como bandeira de perigo. Pode-se perguntar se as dividas ainda impe- rantes a respeito da eficacia real das camisinhas @ espermicidas nao tendem a preservar, como tributo & moral convencional, algum limiar de restricéo. Seja como for, a introdugdo de uma fi- 76 Néstor Perlongho que é AIDS 7 na pelicula de latex entre os lascivos 6rg&os po- } de talvez adquirir, para além do terapéutico, al- gum valor simbélico — & maneira de uma inscri- cao que marcasse, no turbilhdo dos fluxos, a presenga transparente da lei. O dispositivo da AIDS nao parece dirigir-se (pelo menos da otica progressista) tanto a extir pacdo dos atos homossexuais, mas a redistri- buicdo e controle dos corpos perversos, fazen- do do homossexual uma figura asséptica e esta tutdria, uma espécie de estatua perversa na re serva florestal. Seria interessante perguntar-sey por que justamente o homossexual constitui 0 alvo dessa programatica? Se os homossexuais s&o, em algum sentid “'criaturas’’ médicas, ndo poderia o episédio d AIDS servir para reintegrar os discolos ao rebar nho? Aquém dessa especulagao, sugere-se qui o “modo de vida gay’’ poderia constituir um experimentacéo de vanguarda na criacaéo d modelos cada vez mais individualistas de subj@ tivagdo. Isto 6, certas caracteristicas da vivén cia gay — solidao, desarraigamento, desengaj mento das redes familiares, etc. — se transfol mariam em funcionais ou passariam a ser imiti das por setores da populagao nao necessari mente homossexuais. Seria ent&o preciso “di sinfectar’’ o homossexual para que encarnassi sem perigos nem fugas, esse ‘‘estilo de vida dissociado da pratica da promiscuidade social mente indesejavel. Uma ‘‘dessexualizagdo’’ da homossexualidade? Coragées solitarios A programatica da AIDS indica um desloca- mento no préprio plano das unides corporais. A mudang¢a de habitos sexuais recomendada im- plica uma mudanga de eixo no seio da relagéo homossexual masculina, que deixaria de estar centrada no esfincter (ou seja, na penetracdo anal) e passaria a se centrar na masturba¢do, no melhor dos casos, mutua. Essa transformacao 6 agora justificada por uma razao sanitaéria de peso. No entanto, na prépria imposi¢ao do modelo gay se advertiam sinais desse deslizamento no eixo da intensida- de do gozo. Ja nos finais da década de 70, pes- quisadores especializados observavam que, en- tre os homossexuais norte-americanos, atos co- mo bolinagées, felagdes e masturbagdes mu- tuas tendiam a predominar sobre a penetragao. No entanto, esta pratica mantinha, entre os ho- mossexuais porto-riquenhos e de classe mais baixa, todo seu profundo prestigio. E revelador que a programatica da AIDS se aproxime desse modelo ‘’anglo-saxdo’’ de ho- ~) 8 Néstor Perlongher! que € AIDS we ~ mossexualismo, postulando uma reeducagdo das formas mais ‘“‘latinas‘’ e supostamente “atrasadas’’. A convicgao com que se leva a ca- bo essa operacaéo explode, quando se atribui predominantemente a “desinformagao’’ a de- mora de uma parte consideravel das populagées afetadas em mudar suas maneiras tradicionais de transar. E mais do que provavel que haja uma dose real de desconhecimento; no entanto, es- sa reticéncia em adotar as praticas ‘’sadias’’ po- de manifestar também certo grau de ‘‘resistén- cia desejante’’, que tem a ver com a histéria dos gozos corporais. Voltando a masturbagdo, é curioso que ela seja agora recomendada como alternativa, quando algumas décadas atrés ela era conside- rada a fonte de uma diversidade de moléstias e desvios psicossomaticos. Nos Estados Unidos, a luz dessa promoc¢ao, desenvolveu-se inovado- ra pratica: 0 sexo telef6nico — o cliente telefona para uma agéncia especializada e escolhe uma voz (efeminada ou grossa, delicada ou chula) para graduar, segundo o tom, a manipulacéo dos espasmos. Assim, a medida que se refina, a perversao parece se tornar mais solitaria e distante. Talvez esse ‘’sexo auricular’ esteja indiciando uma culminagao provavel das politicas da identidade sexual: 0 sexo deixando de ser uma rela¢&o en- tre os corpos, para virar uma relagao de cada ~ — hh a eee i is Ee le um com o seu préprio corpo. Fechados nas mé- nadas individualistas, corresponderé apenas a cada um escolher, no mercado de artificios, a propria fantasia. Porém setores da Igreja nado conseguiram ain- da deglutir essa legitimagao auto-erética: por ocasiao do planejamento da ultima campanha da AIDS, resgataram da Biblia os versiculos que condenam o onanismo. A “‘medicalizacao”’ da vida Sem precisar rodear-se de acordes biblicos, a medicina 6 a grande protagonista da crise da AIDS. Com 0 episédio da AIDS estaria aconte- cendo uma expansdo sem precedentes da in- fluéncia e do poder médicos, gragas a caixa de ressonancia dos meios de comunicagao. Esse discurso sonorizado e repetido consegue com- prazer as massas, que se desesperam procuran- do delegar, na obsess&o pela satide, seus fan- tasmas cotidianos. Como parte de um programa global de “‘medicalizagéo”’ da vida — que, em ultima inst&ncia, seria ela mesma uma “‘doen- ga’ — a medicina confisca e se apropria da mor- te, fornecendo respostas tecnocraticas a medos ancestrais e vendendo sutilmente certa ilusdo de imortalidade. A instituigéo médica se coloca, ~ Ne IDS 81 /éstor Perlonghé que 80 assim, em situagao de legitimar sua jurisdicao moral, isto 6, a potestade que estabelece, em nome da satide, as regras da existéncia. Sentimos j4 no cotidiano as conseqtiéncias dessa paulatina ‘‘medicalizagao’’. Certos rituais decisivos da vida s4o transferidos do espaco do- méstico ao confinamento hospitalar. Nasce- mos, parimos, adoecemos e morremos todos nos modernos templos sanitarios, sob uma mi- tiade de olhos clinicos ciosos que vigiam nossos processos vitais. J& n&o ha mais uma relagdo pessoal com a morte. As antigas cerim6énias de moribundos despedindo-se no leito, rodeados por uma as- sembléia de parentes e amigos, se extinguiram. Morrer tornou-se um mero fenémeno técnico, marcado pela interrupcdo de assisténcia num momento determinado pela equipe hospitalar. Havera os ‘‘bons doentes’’, que seguem até 0 final a ordem das experimentagées clinicas, e os “‘maus doentes’’, que resistem. Entre as vitimas da AIDS, Rock Hudson seria, por exemplo, um “doente bem-comportado’’ (rodeado de uma multiddo de atendentes, respeitou fielmente to- dos os conselhos); enquanto o costureiro Marki- to seria um ‘‘doente malcomportado’’, por ter fugido do tratamento quando sentiu que nao da- va para fazer mais nada. O pior 6 que, chegada a hora, fica dificil con- ter a maquina médica que multiplica interven- mn , ff g6es e experimentos, tornando a morte mais pe- nosa e a agonia mais cruel. Esta fresco ainda o triste calvério do presidente Tancredo Neves, espetado e preso a uma paraferndlia de apare- lhos. O terrivel 6 que esse macabro final pode ser de todos nés. No entanto, essas intervengdes espetacula- res podem contribuir para o progresso do co- nhecimento, mas nao parecem salvar tantas vi- das quanto se propala. Boa parte da diminuigaéo ‘dos indices de mortalidade no Ocidente se deve- ria, mais do que aos avangos da ciéncia médica, as melhoras gerais de condigées sanitarias, ali- mentares, residenciais, etc. Nao basta que a va- cina contra determinada patologia seja desco- berta, se o ambiente vital continua sendo mérbi- do. Mais grave ainda 6 a mortalidade produzida pela poluicdo e pelo trabalho insalubre. Embora os médicos falem habitualmente em nome da vida, podem se converter, no atual sistema s6- cio-econémico, em administradores da morte capitalista. Nas politicas de combate a AIDS, o discurso médico parece considerar os érgaos e os corpos como coisas perfeitamente regulavéis. No en- tanto, enfrenta uma incontornavel resisténcia: 0 desejo. A medicina nao pode lidar com o desejo, pois escapa as prescrigdes segundo um impulso que nao é racional nem formalizavel. Entretan- to, as normas higiénicas nado partem do que 6 Re eae mee eae Rtn ee Meme ar Nore 82 Néstor Perlonghe GS LT 2 prazeroso e agradavel, mas da frieza da andlise técnica. Nao podendo regulamentar os avatares do desejo, a medicina o exclui — isto é, ele fica fora do campo do “‘real’’ —, supondo que Os percur- sos existenciais possam ser regidos segundo convengées profilaticas, em detrimento dos flu- xos das paix6es, dos tesées, das intensidades. A aversdo médica pelo desejo se estende as drogas: s6 sao ministradas ao paciente enquanto o médico nao suspeitar que aquele possa encon- trar nelas algum desfrute. Tem sido sugerida, por sinal, a distribuigdo gratuita de seringas entre os usuarios de drogas injetaveis, para atenuar a transmissao sangilinea da AIDS. Embora sensa- ta, essa medida significaria talvez abrir dema- siadamente as comportas de certas “‘viagens’’ estigmatizadas, ‘‘doentias’’, incontrolaveis. A ORDEM DA MORTE NA DESORDEM DOS CORPOS Além do seu valor terapéutico, as recomenda- gées distribuidas a respeito da AIDS, dividindo Os encontros sexuais em aconselhaveis ou de- saconselhaveis segundo o seu grau de risco, pa- recem dizer respeito a certo regime de corpos. Examinando mais de perto a natureza desses conselhos, percebe-se que eles pregam determi- nada organiza¢ao do organismo (fungées hierar- quicas dos orgaos): a boca para comer, 0 cu pa- ra cagar, 0 pénis para a vagina, etc. Os usos al- ternativos do corpo costumam ser considerados prescindiveis; sobretudo 0 coito anal (lembre-se da palavra de ordem dos gays paulistas no seu apogeu contestatorio: ‘’O coito anal derruba o capital’’) esta no alvo das operacdes médico- jornalisticas desencadeadas pela AIDS. Alguns 84 Néstor Perlongho que é AIDS comentaristas, reconhecendo que a desmesura do sensacionalismo esconde males muito mais sérios (como a epidemia de Alzheimer), conside- ram a AIDS uma doenga, ‘’em grande parte, evi- tavel’’. Presungéo que repousa numa crenga vastamente difundida: 0 coito anal — que nao produz nem reproduz nada — seria, distintamen- te do vaginal, desnecessério; desvio ou aberra- ¢40; ndo lhe caberiam as virtudes da ‘‘naturali- dade’’, mas apenas os inforttinios do vicio. A sodomia constituiu um grande foco de proi- bigdes a partir do judafsmo-cristianismo, e em particular na Idade Média. Certamente, os argu- mentos mudaram: se para a Inquisi¢&o tratava- se de evitar o derrame gratuito do esperma nao destinado a procriagéo, em beneficio direto de Deus e seus testas-de-ferro terrenos, a atual de- sestimulagado da sodomia recorre a receitas do saber médico para se manifestar, sob a forma de uma prescri¢do destinada a prolongar as pos- sibilidades de sobrevivéncia dos pacientes a seu cargo (praticamente toda a popula¢ao). Sade e a sodomia Ja na obra do marqués de Sade 0 uso sexual do anus vem carregado de conota¢ées subversi- vas: ritualizada no discurso que ritma as aberra- gées orgidsticas, a sodomia era honrada como. exaltagao da contra natura, desafiando — como os beijos no cu do Diabo — uma divindade sex6- foba cuja morte, junto com a do Rei, era procla- mada. Mas os encantos da sodomia n&o se es- gotam na simbologia deicida. Ja Dolmancé, o heréi de A fifosofia na alcova, privilegiava a lu- bricidade desses gozos: “0 cuzeiro, depois de se ter divertido por instan- tes na contemplacao do belo cu que Ihe é apresen- tado, depois de ter Ihe dado umas palmadas e uns toques, e depois de até muitas vezes 0 chicotear, beliscar e morder, umedece com a boca o buraco querido que vai perfurar, preparando com a ponta da lingua a introdugéo; molha também o seu ins- trumento com cuspe ou pomada e mete-o suave- mente no buraco que vai perfurar; guia-o com uma das maos e com a outra afasta as nalgas do seu prazer; logo que sinta o membro a penetrar, deve- r4 impeli-lo com ardor, tomando cautela néo va perder terreno; muitas vezes a mulher sofre com isso, se for nova e jovem; mas, no se importando com dores que em breve se transformarao em pra- zer, 0 fornicador deverd impelir vivamente o cara- Iho, segundo uma graduagio, até conseguir che- gar ao fim, quer dizer, até que os pélos do instru- mento rocem exatamente nas bordas do anus do objeto que estiver a enrabar. Prossiga agora o seu caminho com rapidez, pois os espinhos estéo completamente colhidos; s6 restam rosas. Para acabar de metamorfosear em prazer os rastos de ee ee ne ae Néstor Perlongher) que é AIDS 87 dor que 0 objecto ainda sinta, pegue no caralho e masturbe-o, se se tratar de um rapaz, faga céce- gas no clitoris, se se trata de uma mening; as titu- lagdes de prazer que fara nascer, fazendo enco- Iher prodigiosamente o anus do paciente, desdo- brardio os prazeres do agente que, cumulado de satisfacdo e volupia, breve atirara para o fundo do cu dos seus prazeres uma téo abundante quanto espessa esporra, determinada por tantos porme- nores Ibricos’’. O libertino sadeano da preferéncia aos rapa- zes e as volupias da passividade, que desenca- deariam certo ‘‘devir mulher’’, pois ‘’... 6 tao delicioso fingir de puta, entregarmo-nos a um homem que nos trata como se féssemos mulhe- res, chamar esse homem amante, confessarmo- nos suas amantes”’. Além dessas predilegées particulares, parece que a suposta evitabilidade da ‘‘analidade”’ s6 pode ser colocada do ponto de vista funcional puramente biolégico e normativo. A pratica per- versa n&o se ancoraria na caréncia da necessi- dade, mas nos excessos gozosos do desejo. Do ponto de vista intensivo, os prazeres da sodo- mia seriam, segundo Sade, quase irresistiveis. Sexo némade Outro problema é a questdo da promiscuida- ~ | de, da orgia, do sexo némade. Certo ponto de vista psicomédico supde que os corpos eréticos aspiram universalmente a relagées amorosas estaveis. No entanto, esse sexo ndmade nao se- ria uma manifestagao de caréncia ou de falta de amor fixo, mas haveria toda uma relagéo de vontade e afirmagao do desejo. O dispositivo desencadeado a partir da AIDS pretende ‘‘fixar’’ essas sexualidades némades, promovendo uma ‘’conjugalizagdo’’. Aqui nova- mente se vislumbra a “‘incompreensdéo"’ da 6tica médica: se ja é dificil aceitar que certos érgdos sejam erotizados em detrimento de outros que teriam essa ‘‘fungao’’ fisiolégica especifica, menos ainda entenderé certas praticas orgiasti- cas ou némades, onde se trata de fazer com uma grande quantidade de parceiros o que po- deria ser feito, do ponto de vista técnico, com apenas um. A moral médica entra em choque com as combinatérias dos corpos que desejam. As fugas intensivas Envolvidos numa rede de encontros sociais, os corpos produzem intensidades. Por sinal, os afetos e repulsées entre os corpos, suas sensa- codes, sdo eles préprios intensivos, isto 6, mo- dulam-se segundo limiares de intensidade, cuja 88 Néstor Perlonghen que é AIDS produgdo transtorna e atravessa os préprios corpos, extremando ou subvertendo até a orga- nizagdo fisiol6gica do organismo. Daf que pro- curas muito fortes de intensidade, de éxtase nas sensagées, possam tensionar 0 corpo até 0 limite de sua resisténcia, até as portas da morte e da desagrega¢ao. O desejo tenderia ao excesso, 4 desmesura, & fuga. Os caminhos sao variaveis. A busca extre- mada de intensidade pode percorrer as vias da orgia, da perversao radical e sistematica, até a extenuacaéo e a repeti¢ado apatica dos gestos. Linha de fuga sempre fronteiriga, ela pode beirar os abismos da destruigdo ou da autodestruigao, desencadeando uma paixdo de abolicao. Tanto o perverso que perambula pelas bocas do perigo, quanto o consumidor de drogas que se obstina na exacerbac4o até o impossivel de uma vertigem frenética estariam mergulhando (ou naufragando?) nas areias movedi¢as onde a intensificagéo do desejo roga a morte. No en- tanto, essa procura desenfreada nao 6 estrita- mente suicida, embora o suicidio possa apare- cer, 4a maneira de um acidente ou de uma tenta- co, na complexidade de seus meandros. Essa demanda de intensidade é essencialmente afir- mativa — afirma a vida tensionando-a e tensio- nando 0 corpo, viajando na experimenta¢ao dos seus limites. Experiéncia de um desafio radical que arrisca na sua exploragao intensiva ultra- ~ y. passar os limiares da criagao e da sensagao, ela aponta em Ultima instancia a mutagdo da exis- téncia, tomando o sujeito humano como um via- jante entre pontos de fuga e de ruptura. Essa es- pécie de viagem nao se encaixa nos quadros congelados de uma suposta ‘‘racionalidade’’, nao se integra aos esquemas preestabelecidos de uma _ existéncia acolchoada e rotineira. A perspectiva médica néo costuma levar em conta esses labirintos do desejo; baseia-se, pelo contrario, num esquema mais linear. A vida nao seria tomada, do ponto de vista da ‘‘medicaliza- gao’’, no seu sentido intensivo, mas apenas no seu sentido extensivo. Nao importaria tanto a ri- queza ou a qualidade da experiéncia de vida, mas sim a frieza estatistica da quantidade de anos atingida por uma pessoa. As normas serao elaboradas, entdo, visando esticar ao madximo o tempo abstrato de vida, com prescindéncia da intensidade singular com que cada vida é vivida. O medo da morte invade a vida e a confisca, cortando potencialidades expansivas, neutralizando intensidades. Desejo e morte A homossexualidade tem sido tradicionalmen- te ligada 4 morte. O termo faggot (literalmente, SS Néstor Pertonghe que é AIDS “lenha’’), aplicado pejorativamente contra os homossexuais norte-americanos, proviria do uso de madeiras para acender a fogueira onde se carbonizavam os sodomitas ¢ também os he- reges. Tal associagao transparece também nos romances de Jean Genet: em Querelle de Brest, homossexualidade e assassinio emaranham-se inextrincavelmente. Cenas desse estilo concre- tizam-se nos freqiientes roubos, extors6es, es- pancamentos e crimes de que os homossexuais Ao objeto (mais de 50 assassinados em dois anos, segundo o Grupo Gay da Bahia): cerim6- nia de terror que, as vezes, faz parte do jogo. A AIDS introduz uma forma diretamente clini- ca dessa relacdo tenebrosa. Por uma espécie de fabulosa confabulacéo, 0 moral se junta ao patolégico. Sem desconhecer 0 perigo real re- presentado pela doenga, a utilizagdo de sua le- talidade para mortificar e regrar os perversos deveria ser evitada. Se se acreditar que a AIDS éum mal ‘‘evitavel’’, fruto de excessos prescin- diveis, para melhor manipula-la, devera ser ne- gada a forca do desejo que leva alguém a prati- car relagdes socialmente ‘‘indesejaveis’’. Por tras da argumentagao de que a sodomia é ‘‘evi- tavel’’, nao estaria a velha iluséo conservadora de que a relagdo homossexual também 0 seja? Qu talvez todo esse dispositivo contenha em si uma tentativa de abrandar a luxtria provocati- va das bichas-loucas, submetendo a pratica e toda a experiéncia sexual ‘‘dissidente’’ aos pa- rametros de uma normalidade ampliada e mais ou menos conjugal, excluindo os marginais, os promiscuos, os travestis (e eventualmente as mulheres liberadas, os maridos libertinos, etc.). Assim, para se salvar das diatribes que os acu- sam de ‘‘agentes infecciosos”, alguns gays ten- tariam “‘limpar sua imagem’’ ao ponto de se constituirem em parédias de baluartes de uma pacata e mimética normalidade. Politica ‘‘refor- mista’’, de ‘‘dignidade”’ e “‘identidade homos- sexual’’, através da qual a homossexualidade, paradoxalmente, se dessexualiza e se abstém das delicias da sodomia elogiada por Sade. Nes- se sentido, boa parte do movimento gay ameri- cano tem dilufdo seu cardter contestatério para se rearticular como um agrupamento paramédi- co de satide publica. Seria preciso, talvez, conceber uma politica sexual diferente, que ndo desconhecesse a mul- tiplicidade dos desejos eréticos nem tentasse disciplinar pedagogicamente os perversos e seus prazeres. Trata-se de oferecer a melhor in- formagao possivel, mas afirmando simultanea- mente 0 direito de dispor do préprio corpo e da prépria vida, j4 demandado por Engels. A vida néo se mede apenas, como quer a ins- tituigao médica, em termos de prolongagéo da sobrevida (ou da agonia), mas também em in- tensidade de gozo. A dimensao do desejo nao 92 Néstor Perlonghe deveria ser negligenciada, se é que se trata de salvar a vida. Por Ultimo, o dispositivo da AIDS se encaixa numa virada a direita generalizada no Ocidente. A direita americana procuraria conter, em parte, a “‘dissolugdo moral’’ que comercializara e que tantas preocupacées causara no Papado. Essa articulagdo de forgas reacionarias faz pensar ao fildsofo libertario Félix Guattari que se a AIDS nao existisse, precisaria ser inventada: “’Existe em torno da doenga uma espécie de festa morti- fera, um carnaval de conservadorismo e rea¢ao que se apropria dela, desenvolvendo uma politi- ca obsessiva de represséo ao homossexual”. Sobre o panico da AIDS estaria também a amea- ¢a de morte que paira sobre a humanidade: fo- , me, poluigéo, guerra, etc., mais “‘evitéveis’’ do que a sodomia. Hé, para as populagdes ameacadas, um risco real — que nao deve ser, porém, superestima- do. Trata-se, talvez, de um instavel compromis- 0 entre 0 risco e 0 gozo, sujeito ao vaivém do desejo. Essa afirmacao do desejo nado deveria ser vivida (como quer a histeria higienista) com culpa e peso de consciéncia, mas com alegria. Seria paradoxal que o medo da morte nos fizes- se perder 0 gosto da vida. INDICAGOES PARA LEITURA Sobre a doenca Perspectiva médica: “Dossier AIDS”, do dr. Fernando Samuel Sion, da Universidade do Rio de Janeiro. Publicado na revista Ciéncia Hoje, vol. 5, n? 27, nov.-dez. 1986. Perspectiva social: “AIDS: um virus 86 no faz doenga”, revista Comunicagdes do ISER, ano 4, n° 17, Rio de Janeiro, dez. 1985. Com artigos de Claudia Moraes, Sergio Carrara, Herbert Daniel, Regine de Aratjo e Christina Vallinoto, sendo o de Luiz Mott ("‘AIDS: Reflexes sobre a sodomia”’) particularmente interessante. No global, uma anélise do discurso médico-jornalistico sobre a AIDS. “Les intellectuels, le SIDA et la realité’’, por Pierre Boncenne e Pierre Assouline, revista Lire, n° 122, Paris, nov. 1985. A partir da repercussdo da morte de Michel Foucault entre os intelectuais franceses, percorre os tratamentos literarios @ mi- tolégicos das doengas e sua influéncia nos costumes. Uma versao (muito resumida) foi publicada pela revista Leia, S40 Paulo, dez. 1985. Sobre a medicina Michel Foucault, O nascimento da clinica. Uma arqueologia do olhar médico, Rio de Janeiro, Forense Universitaria, 1977. Examina a mutagdo conceitual do saber médico, por ocasiao da institucionalizagdo da medicina nos séculos XVIII e XIX. Ivan Illich, A expropriagao da satide, Rio de Janeiro, Graal, 1976. Uma critica radical ¢ fundamentada da expansao do poder médico-institucional e suas mortiferas consequéncias. Néstor Perlongher SEA SDA Jean Crauvel, A ordem médica, Sao Paulo, Brasiliense, 1983. Analisando o discurso médico sob uma perspectiva psicanallti- ca, denuncia a “inexisténcia’’ da relagao médico-paciente & sua substituigdo pela relacao instituicao-doenga. Philippe Aniés, Hist6ria da Morte no Ocidente, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. Pesquisa a paulatina segregacao da morte no espaco doméstico e ‘pessoal’, seu confisco hospi: talar e sua interdigdo contemporanea. Susan Sontag, A doenga como metafora, Rio de Janeiro, Graal, 1984. Passa em revista as apropriagdes metaféricas @ miticas das doencas, como modo de estigmatizagao dos qué as pa: decem. Paula Montero, Da doenca a desordem, Rio de Janeiro, Graal, 1985. Partindo de uma pesquisa sobre a umbanda, a autora resgata mecanismos de resisténcia popular a imposigde autori- taria de certa concepcao abstrata do corpo e da satide, feita pela medicina oficial italo Tronca, ‘‘Histéria e doenga: a partitura oculta (A lepra em ‘S30 Paulo, 1904/1940)", in Renato Janine Ribeiro (org), Recordar Foucault, Sao Paulo, Brasiliense, 1985. Anélise das repercussdes da lepra no imaginario social, que incidem na re- clusao cientificamente inécua dos doentes. Sexo, desejo, homossexualidade Michel Foucault, Histéria da sexualidade. Tomo 1: A vontade de saber, Rio de Janeiro, Graal, 1976. Um texto-chave para entender a instauragao do “dispositive de sexualidade” na complexa articulagao de saberes, poderes e prazeres. Miche! Pollak, ““A homossexualidade masculina, ou: a felicidade no gueto?”, in Sexualidades Ocidentais, Sio Paulo, Brasilien: se, 1985. Rigorosa andlise da questdo homosexual apos 0 gay liberation. Peter Fry e Edward Mac Rae, 0 que é homossexualidade, So Paulo, Brasiliense, 1982. Uma visdo brasileira da "constru- go" hist6rica e Social do homosexual, rejeitando as teses biologistas. Joo Silvério Trevisan, Devassos no paraiso, S80 Paulo, Max Limonad, 1986. Uma informada hist6ria da vivencia homosse- xual no Brasil @ suas secretas tramas; inclui a visdo do autor ———— sobre a AIDS. <«D eD « SOBRE 0 AUTOR Nasceu em 1949 em Avellaneda, subirrbio industrial de Bue- nos Aires. Formou-se em sociologia na Universidade de Buenos Aires, em 1975. Trabalhou varios anos em pesquisa de mercado. Em 1982 radicou-se no Brasil. E mestre em Antropologia Social na UNICAMP, onde leciona atualmente. Sua dissertagdo de mestra- do, defendida em 1986, foi recentemente publicada pela Bra: liense, sob 0 titulo O negécio do miché. A prostituieao viril em Séo Paulo. E autor também de dois livros de poemas: Austria-Hungria (Ed, Tierra Baldia, 1980) e Alambres (Ed, Ultimo Reino, 1987), ambos publicados em Buenos Aires. Participou de diversos deba- tes sobre a AIDS, em Sao Paulo, Salvador, Jundial e Campinas. Caro leitor: As opinides expressas neste livro sGo as do autor, podem ndo ser as suas. Caso vocé ache que valea pena escrever um outro livro sobre o mesmo tema, nés estamos dispostos a-estudar sua publicagdo com o mesmo titulo como “segunda visdo”. No principio restrita aos circuitos homossexuais norte-americanos, a AIDS — uma doenga transmitida através do contato sexual e do sangue — expandiu-se rapidamente para outros “grupos de risco”, como hemofilicos e usuarios de drogas intravenosas, e hoje ameaca toda a populagao heterossexual. Faz o que nem a Igreja nem os mais moralistas conseguiram: reverter os efeitos da Revolucao Sexual, as conquistas da pilula e o amor livre. Conhecer a doenga, suas causas e efeitos, 6a melhor forma de controla-la e nao cair na histeria moralista ou apocaliptica.

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