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MARIO E O BARROCO José Augusto Avancini(*) RESUMO Esnida-se um das eizos da teoria ‘artr de quarocronicas publeadas em 1920 Nelas Mito decindrade often tpeuluard ea pinnura, da crlagdo mineina. Desta, destaca firgdo socal nal. Concha mah ° sia do ie pel ‘Andrade associa barroco, nacionallanio ¢ edura alam, abrindo expago pare ‘avalorizagao do nosso, Unitermos: 5 Alei nacio- \ermos:Banoe; are plésica, Aladin; paimbnio hice O empenho de Mario de Andrade pela moderniza¢io da Inteli- géncia nacional, no Ambito dos estudos sobre os tragos de nosso caré- ter nacional (a busca do passado e das tradig6es), traduziu-se na pes- quisa € no intercambio com estudiosos sobre o legado cultural popular vinculado sobretudo ao folclore e na documentacio e andlise da mé- sica popular urbana. Seus estudos sobre o barroco, para ele fundamen- tal em nossa formagio cultural, fazem parte desse propdsito que re- sulta numa espécie de Teoria sobre o Brasil, Aos materiais reunidos sobre o folclore ¢ a arte barroca, deu tratamento teérico apoiado na antropologia, na etnografia, bem como numa teoria dos estilos. Para Mario, o folclore e o barroco conteriam os elementos popular e eru- dito que formariam as principais caracteristicas da psicologia do bra- sileiro. Nessa pesquisa do cardter nacional, Mério voltou-se para o pe- nodo colonial, em particular aos séculos XVII e XVIII, quando se * Professor do Depto. de Histéria da UFRGS, Porto Alegre. Texto extratdo da tese de dou- toramento 1 eo gf ation ¢ Conscitncia Nacional na Critica de Mério de Andrade ‘SSo Paulo, 1992, FFLCH, Universidade de Sfo Paulo, Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 a7 engendrou a nagio € se estabeleceram alguns elementos permanentes de nossa maneira de ser — confirmada por seus estudos sobre 0 folclo- Te e a mésica em particular. Estes constitufram seu primeito eixo de anglise sobre a cultura brasileira, ao qual dedicougrande quantidade de estudos ¢ ensaios, ocupando boa parte de seu tempo de pesquisador. Contudo o que nos interessa nesse momento é 0 segundo eixo da teoria marioandradina sobre o Brasil, constitufdo pelos seus estudos sobre 0 barroco brasileiro. Mais precisamente sua primeira formulacgéo do problema através do conjunto de crénicas publicadas em 1920, as quais atribuiu o titulo genérico de “A Arte Religiosa no Brasil. Sua curiosidade abrangente foi sem dévida alguma favorecida pelo clima de geral predisposi¢4o ¢ simpatia pelos temas nacionalistas. Desde o titimo quartel do século passado, os temas nacionais ocupa- yam a atencSo de intelectuais como um Sflvio Romero, por exemplo, com suas obras dedicadas ao folclore e as manifestaghes culturais do pafs. Um nacionalismo laico e republicano desenvolve-se a partir dos anos noventa do século passado, atingindo sua méxima repercussiio com a obra de Euclides da Cunha — Os sertdes — numa abordagem ao mesmo tempo cientifica e pessimista do Brasil, mas indicando cami- nhos a seguir. A outra vertente mais popular, por sua expressfio apai- xonada, € bastante simplista, das coisas nacionais se entroncava com @ tradiggo monérquico-liberal de um Eduardo-Prado, alcangando plena manifestagéo na obra de Afonso Celso, Por que me Ufano de meu Pats. Caudatério dessa dupla tradigfo e como continuador dela, juntando- Ihe as duas vertentes iniciais, surgiu a figura dum Olavo Bilac, com suas campanhas durante a Primeira Guerra Mundial. Por pensamento ¢ aco, Bilac sintetizou as correntes iniciais, galvanizando a nagdo numa campanha memordvel em pro! do servicgo militar obrigatério, entre outras. Mério cresceu e amadureceu nesse ambiente de continua agi- taco nacionalista que visava a afirmagdo da nacionalidade nascente assim como 0 resgate do passado até entdo desprezado pelas elites. A esse fervor nacionalista, Mario aliou o amor as coisas populares que aptendeu com Sflvio Romero, como também o aprego ao passado como fonte de informagio e inspiragéo. Com essa bagagem, Mario inicia sua peregrinagio e descoberta do Brasil com sua primeira ¢ grande viagem realizada em 1919 a Minas Gerais, com o duplo designio de visitar o poeta entéo de sua predileg4o, Alphonsus de Guimaries, ¢ as cidades histéricas (1). O resultado imediato dessa viagem de des- cobrimento foi a série de crOnicas de arte para a Revista do Brasil de 1920, a partir de conferéncias pronunciadas para a Congregacio da Imaculada Conceicao de Santa Ifigénia, em 1919, no segundo semestre provavelmente (2). Nessa série de conferéncias, depois transformadas em crénicas, Mario estabeleceu algumas idéias basicas sobre a evolu- ¢do da arte brasileira e em particular do perfodo colonial. Com o titulo de Arte Religiosa no Brasil, Mario abordou em quatro crénicas as fes- 1 GUIMARAES, Feo, Alphonsus de. Mérlo de Andrade e Manuel Bandeira. Sio Paulo, Duss ‘Cidades, 1974. p. 24-30. 2 A primelra viagem de Mério de Andrade a Minas Gerais ocorreu em 1919, no primeiro ‘semestre onde foi em visita ao poeta Alphonsus de Guimardes, tomando contato com o 48 Rey, Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 tividades religiosas do Brasil colonial, com suas procissSes pomposas € seu cardter de grande festa social e popular. Usou do exemplo his- t6rico para mostrar a importancia social da igreja catdlica romana neste perfodo ¢ sua perda de influéncia no momento em que vive 0 autor, associando essa perda de prestigio A decadéncia da arte cristé na contemporaneidade. Dentro de sua concepgiio geral da arte e de sua funcdo individual € coletiva, Mario abordou 0 perfodo colonial brasileiro. Como pri- meiro evento religioso e artfstico, aponta as pomposas festas proces- sionais barrocas, como os triunfos eucarfsticos que mobilizam toda a comunidade sem distincfio de classes, idade ¢ ragas. Na descriggo que fez do Triunfo Eucarfstico de 1733, em Vila Rica, nos parece clara a admiragdo do critico pela manifestagao coletiva e pela unanimidade que esta expressava, envolvendo quase todas as formas artfsticas na Ppreparacdo e execugdo do espetdculo. Misica, canto, danga, vestudrio, pintura, escultura ¢ mesmo arquitetura estavam presentes nessa gran- de festa coletiva, Manifestagao coletiva onde estava a arte em simbiose perfeita com a religiéo ¢ a polftica, sem distingSes entre manifestagées eruditas ¢ populares, numa perfeita comunh&o de cada um com todos ede todos com a comunidade mais ampla da sociedade colonial e com © universo catélico. Essa foi a Gltima grande sfntese cultural do oci- dente e que nos serviu de elemento fundante da nacionalidade. A visio marioandradina da arte colonial brasileira foi calcada nos estudos de Ricardo Severo, arquiteto portugués que, desde 1912, fazia conferéncias defendendo a retomada da tradi¢do luso-brasileira nas artes; defesa da qual resultou o movimento neo-colonial, muito forte, principalmente na arquitetura, a partir dos anos vinte e prolon- gando-se até os anos cinqienta, com larga repercuss&o (3). Ao discutir a arte colonial, Mario discutia a arte religiosa crist4 no Brasil, sua ne- cessidade e suas possibilidades. Para ele, ela repousava "em paz no momento do passado. E um fossil, necessitando ainda de classificag5o, de que pouca gente ouviu falar e ninguém se incomoda. No entanto ela existe — ou melhor, existiu. A mim tomei a tarefa, e apenas essa, de mostrar-vos que se a nossa arte crista ndo tem a importancia decisiva nem marca a ecloséo dum estilo, a0 menos existiu vivida; com alguns tragos originais, e € um tesouro abandonado onde nossos artistas po- deriam ir colher motivos de inspiragdo. Bastaria para tanto darem-se ao trabalho de separar a ganga onde se recataram as pepitas...» (4). Desta passagem nos chamam a atengSo duas idéias que nortearam a bbarroco mineiro ¢ em particular com a obra do Aleijadinho, Dessa viagem resultaram at conferéncias ¢ posteriormente as crdnicas: em série de quatro, publicadas na Revista do Brasil na seguinte ordem: A Arce Retigiosa no Brasil, n. 49, jan. 1920, p. 5-12; A Arte Religiosa no Brasil, n. $0, fev. 1920. p. 95-103; A Arte Religioaa no Rio, n. 52. p. 289-93, $o5 22 A Arte Religosano Brae. 54.p 102-1, jun 1920. (Arq. Mario de Andrade, 3 Cf. MORAIS, Frederico. Panorama das Anes Plésticas. Século XIX ¢ XX. S8o Paulo, Ins- tituto Cultural Itad, 1989, Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 49 atitude de M4rio em relagdo ao passado barroco brasileiro: primeiro, a.necessidade de uma pesquisa hist6rica detalhada, verdadeiro traba- Iho arqueoldgico de remontagem de nossa hist6ria, ao qual se dedicou no fim de sua vida como assistente técnico do SPHAN para a regio de S80 Paulo e Mato Grosso e que culminou com a pesquisa sobre o Pe. Jesufno do Monte Carmelo; segundo, a possibilidade que via muito Teal do aproveitamento de motivos para a criagdo pl4stica contempo- ranea nacional, religando assim o passado colonial com um presente desnorteado pela presenga de varias correntes em disputa e de diferen- tes orientag6es, as quais, para 0 critico paulista, desvirtuariam o esta- belecimento de uma verdadeira expressfo nacional, facilitando a im- plantagdo de modelos culturais estrangeirizantes. Essas duas atitudes bdsicas orientaram Mério na abordagem do perfodo colonial, fazendo com que ele buscasse nos autores € pesqui- ‘sadores nacionais o apoio necessdrio para poder prosseguir seus estu- dos ¢ fundamentar seus jufzos. Além de Ricardo Severo, reporta-se a Manuel Querino, estudioso das artes baianas coloniais, para reforgar a opiniso de ent&o: "as primeiras manifestagSes art{isticas, verdadeira- mente nossas, aparecem passado bem mais de século do descobrimen- to", para ele, os primeiros exemplares de arquitetura nfo eram sufi- cientes para nos indicar 0 estabelecimento de um novo estilo ou mes- mo de uma variante provincial relativamente aut6noma. Ao se referir as capelas dos primeiros tempos de colonizacdo, observa que "seme- Ihavam habitages de particulares, sem caracterizagdo quase nenhuma. Encimava-as uma cruz: era a designago da piedade e do consolo; al; mas vezes num andaime, ao lado, ou num frontdo liso, cantava um sino: era o apelo as almas esquecidas de Deus no continuado alarme em que viviam pela bruteza dos aborfgenes e pelas investiduras da natureza hostil. Tais capelas podiam ser graciosas, eram meigas, cram puras, n&o continham porém a preocupagao com o Belo arquiteténico". Con- clui judicativo: "Nao basta haver construgao pata que haja arquitetura. Nem todos os construtores s4o arquitetos" (5). Opinifo que comega a alterar passados oito anos, quando da publicacio do ensaio sobre Aleijadinho e que estaré bem modificada no final de sua vida, quando se dedicou aos estudos do perfodo colonial na sua luta em prol da pre- servagdo do patrimdnio cultural brasileiro. Exemplos disso s4o os en- saios sobre a Capela de Santo Anténio e sobre 0 Pe. Jesufno; curioso observar que qualificativos como graciosas, meigas, puras sero atri- bufdos as obras de Aleijadinho anos depois. Apoiando-se em Manuel Querino, ratifica a opinifio de que os primeiros progressos significativos na pintura ¢ na escultura colonial foram dos princfpios do século XVIII ¢ que toda produgio anterior se caracterizaria pelo que Euclides da Cunha escreveu sobre Canudos: *santos mal acabados, imagens de linhas duras... em tragos incisivos de 4 ANDRADE, M. de. A Arte Religiosa no Brasil. Revista do Brasil, n. 50, fev. p. 96, 1920. 5 Idem. Ibidem. p. 97. 50 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 manipansos: Santo Antonios proteiformes, africanizados, de aspecto bronco de fetiches, Marias Santfssimas feitas como Megeras* (6). OpiniGes que recusaria certamente nos anos trinta e quarenta, quando fez o elogio desse tipo de manifestagio primitiva, vendo nela o teste- munho de uma vitalidade perdida pela arte erudita dos séculos XIX e XX. A opinitio que Mério forma em 1920 sobre nossa arte colonial reafirma a dos autores mais abalizados de ent&o e se aproveita de pe- riodizagdo que estes apresentam, colocando a arte brasileira como ex- press&o significativa de uma producdo cultural propria apenas no sé- culo XVIII e seguintes, acrescentando a essa avaliagéo um jufzo esté- tico muito conservador, ratificando a opinifio cientificista de Euclides da Cunha no julgamento da producdo plastica popular. Ainda, nosso critico sustenta um jufzo eivado do preconceito europeu pretensa- mente evolucionista e cientificista, muito em voga nestas bandas do Atlantico por essas épocas. Partindo de Ricardo Severo, M4rio aponta o barroco como o estilo fundante das artes nacionais no perfodo inicial de nossa histéria. Ainda nao se haviam difundido os estudos sobre o maneirismo, que na verdade s6 se iniciavam na Europa. Somente na metade do presente século € que houve divulgacao larga e conhecimento dos diversos tra- balhos historiograficos sobre as artes européias do século XVI, ense- jando nova abordagem da produgio plastica colonial na Ibero-Amé- Tica. Nos anos vinte, a viséo corrente considera a produgio plastica de boa parte do século XVI e de quase todo o século XVIII como perten- cente ao barroco. Para Mario de Andrade, "as construges coloniais tomaram uma fun¢fo fortemente acentuada, donde muito bem se po- deria originar um estilo nacional. O jesuttico, o plateresco, 0 rococé — que mais n&o sfio que um s6 estilo com minimas variantes, provenien- tes dos pafses onde assim se denominou 0 estilo barroco — af domina, porém mais simples, mais pobre, menos pedantesco“ (7). Mario des- creve-nos como os modelos portugueses nos foram transmitidos e através deles a influéncia espanhola, que procurava difundir os pa- drdes do renascimento. Indica a importancia paradigmatica para as construgées colo- niais brasileiras de edificios como a nova Sé de Coimbra ou a Igreja dos Carmelitas do Porto, de 1628. Nesse prédio fundem-se as ordens clas- sicas com a fantasia do manuelino, estilo profundamente identificado com o gosto predominante da época. Contudo, essa tradigdo portugue- sa, apenas tocada de leve pelos ventos renascentistas, sofreu alteragdes na nova terra de Santa Cruz, onde “os tipos portugueses traduzidos para nossa terra, ainda pobre € sem facilidades de operdrios ¢ de ma- terial, simplificaram-se". E € dessa adaptagdo ao ambiente e seus ma- teriais que surgiu, segundo Mério, uma variante artfstica da matriz portuguesa e européia que nos distingue e realga no conjunto da cul- tura ocidental. 6 Idem. biden. 7 Idem. Ibidem. p. 98-9. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 St Mério aborda a produgdo colonial a partir da divisio geogrdfico- estilistica j4 estabelecida ¢ praticamente consagrada desde entio. Toma Sfo Paulo como o centro de sua reflexio, a partir do qual faz todas as comparag6es, procurando estabelecer uma unidade na diver- sidade da produgo plastica colonial. Este elemento de unifio € 0 estilo barroco na peculiaridade que assumiu em Portugal e que foi para cé transplantada, assumindo em cada regiiio uma feigio diferenciada. Mario contrap6e a pobreza paulista ¢ sulista em geral com a riqueza artistica de outras regiées onde primeiro se desenvolveu a civilizagio colonial. Comenta a propésito do fato: "Ao passo que os outros cen- tros da nossa civilizagéo atingiam um prestigioso esplendor, Séo Paulo conservava-se mal vestido, pouco progredia em fausto, mas fazia o Brasil integrar-se, dando largos sert6es a faixa litoranea, preparando o seu fast{gio para um futuro mais remoto e quem sabe? mais duradouro. Dessas edificages primitivas um bem nos adveio: deram-nos um fanal, fixaram um estilo, propalaram-lhe a regra; foram simultaneamente exemplo ¢ tradi¢do, incentivo ¢ saudade" (8). Nosso critico aponta para Sdo Paulo um destino manifesto, j4 expresso pela expansio bandeirante que integrou mais territ6rios 4 nag4o emergente no passado e que no presente e no futuro se afirmaria nas 4reas da economia, da polftica e da cultura. A miss4o paulista ainda se cumpriria pelo movimento modernista do qual Mario foi Ifder des- tacado, no bojo do amplo projeto de modernizac&o do pats iniciado a partir dos anos vinte. O ideal missiondrio de extragao catélica também Nos revela um Mario bairrista, apegado a sua terra ¢ a uma visdo ro- méntica do destino coletivo da gente paulista (9). ‘Se Sdo Paulo é o barroco pobre e de pouca repercussdo no pats, as trés regides ricas — Nordeste (Bahia e Pernambuco), Rio de Janeiro e Minas Gerais — tiveram um desenvolvimento {mpar no cendrio ar- Ustico colonial americano, assumindo na moderna historiografia um destaque cada vez maior dentro do conjunto do barroco mundial. Mario de Andrade sistematiza e caracteriza a produgio plastica dessas regi6es, apresentando ao leitor um esquema interpretativo do seguinte molde: "Na Bahia, o barroco atinge uma expresso menos sincera, a construgéo é mais erudita; no Rio de Janeiro a preocupagio artistica exterior diminui, ao passo que a decoraco interna atinge ao delfrio, produzindo a obra-prima do entalhe que éa Igreja de Silo Francisco da Peniténcia; em Minas, vamos deparar a suprema glorificagdo da linha curva, o estilo mais caracterfstico, duma originalidade excelente. Trés escultores dominam nesses trés centros: Chagas, o Cabra, na Bahia; mestre Valentim, no Rio de Janeiro; Antonio Francisco Lisboa nas Minas Gerais" (10). 8 Idem. 9 Idem, 10 Idem. ii 52 Rev. Inst. Est, Bras., SP, 36:47-65, 1994 Ao caracterizar as trés sociedade coloniais, Mario tenta associar essa caracterizagio a produgéo plastica havida. Da Bahia diz: "Uma sociedade heterogénea, vivaz, ardente, religiosa no seu intimo, paga nos seus excessos, corridas, touradas ¢ das serenatas languescentes para 0 gozo dos sermdes gongéricos e a visio beata dos Te-Deum"; continua sua descricfo destacando que a “religiosidade, resultante da ignorancia da populagdo, a qual a persisténcia dos jesuftas e a garridice bamba dos serm6es nfo conseguia desbastar, nfo s6 alternava com a fé, mas quase sempre a sobrepujava. Para uma s6 praga de touros contava a capital nos fins do século XVI 62 igrejas, capelas e ermidas™. A este sentimento de religiosidade se contrapunha uma sensualidade desen- freada ea consequente quebra dos costumes e dos freios sociais, ao que observava Mario: "Mas na cidade baixa entre a maruja, os vendeiros, Os escravos, Os mesticos, mapeava um sensualismo infrene, animalizan- do a gente ignara num perpétuo despudor. Os ricos, os senhores de engenho, a flor da fidalguia encobertava com a hipocrisia das boas maneiras 0 seu no menor desejo de amor. A visio que se tem hoje dessa sociedade baiana colonial “era de uma kermesse de amores li- vres"."O proprio clero, enfraquecido na pompa exaustiva dos festivais, apresentava mAculas deploraveis, ainda que produzisse florées magni- ficos de ascetismo ¢ fé". Continua M4rio apontando para a produgéo artistica dessa sociedade dissoluta: "Nesse meio irregular, gastador e sinceramente religioso, a Igreja abrigou e fez florir uma planta de arte que tem para nds o vago odor duma saudade € 0 alto beneficio de ser nossa” (11). Essa arte patrocinada pela Igreja produziu obras de ex- celente qualidade destacando-se os imagindrios e entalhadores a partir do século XVIII com uma produgao bastante original. Mario destacou Chagas e Domingos Ferreira Baiio. Da arquitetura destaca alguns edificios como exemplares, como a Igreja e 0 Colégio dos Jesuftas, a Igreja do Convento de Sao Francisco e a Igreja da Conceicéo da Praia, também o Convento do Carmo ¢ a Carmo da Cachoeira. Em Pernam- buco, destaca a Igreja do Carmo e a da Penha, "com a original dispo- sig&o de suas torres traseiras", ambas no Recife, e a Igreja da Miseri- cérdia, “em Olinda, graciosfssima, com uma sé torre lateral e o har- monioso frontéo barroco". Quanto a escultura ¢ a pintura, reportando-se as obras de Manuel Querino (12), ressalta sque um largo perfodo final do século XVIII € princfpios da seguinte centéria constituem uma leg{tima época de arte em que ndo poucos artistas foram verdadeiros criadores de es- cola", dentre eles destaca a figura de Chagas, o Cabra, distinguindo-o “no s6 pelo valor das obras que produziu e a abund4ncia delas, mas principalmente porque Chagas constituiu 0 ponto de partida da emi- néncia da arte baiana”, uma vez que este “vé surgir pela vida adiante uma legiéo de émulos", alargando sua influéncia para bem além do RecOncavo. Entre suas obras, Mario destacou a famosa Virgem com o 11 Idem. Jbiden p. 100, 12 Idem. Mbidem, p. 101. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 53 Menino, causadora de tantos dissabores ao seu autor, que 0 levou a prisdo ea loucura, ¢ mais ainda um Senhor da Redengdoe um Jesus dos Passos. Criador de escola, Chagas exerceu larga influéncia, sendo tal- vez o primeiro artista brasileiro a espalhar essa influéncia pela forga de seu trabalho e a abund4ncia de sua produgdo. Mario destaca, ainda, dois artistas que considera grandes na escultura e na talha, Manoel Igndécio da Costa e Domingos Baifo. Do primeiro, destaca a célebre imagem de Sdo Pedro de AlcAntara, que associa 2 iconografia de Zur- barén, descrevendo-a com vivo interesse: "O santo esté de pé, abra- gando-se a uma cruz, Bm postura contemplativa, olha os céus, refletin- do nos olhos calmos 0 beatffico espetéculo da Eternidade. Os paneja- mentos Ihe caem pesada e ingenuamente tratados, mas 0 aspecto so- fredor das mos e dos pés, os ombros acusados com audécia sob o burel € a expresso ao mesmo tempo feliz e dolorida do rosto sfio obra de verdadeiro artista" (13). Do segundo, a quem chama de O Tiépolo da esculrura baiana (no sentido de ser grande e assinalar um decifnio), “é também autor de um grand{ssimo ndmero de imagens, com a circunst4ncia especial de es- tarem espalhadas pelos varios estados do Brasil". Contudo, nao indica nenhuma imagem em particular, por desconhecer reproduces dessas, eximindo-se de uma anflise formal mais pormenorizada da produgio de Baio, julgando a partir de seu referencial bésico que é Manoel Querino. Na pintura, indica os trés grandes da escola baiana que a histo- riografia posterior consagraria: José Joaquim da Rocha, José Tedfilo de Jesus e Joaquim Franco Velasco. Destes, destaca Franco Velasco, a quem atribuiu idade fogosa. Para 0 critico, "suas obras acusam um vigor excepcionai: ¢ a sua fatura larga e impetuosa, arrojadissima para o seu tempo, denuncia um génio virgem, nfo desenvolvido pela fecunda ligSo dos grandes mestres" ¢ arremata o comentério qualifi- cando: "Franco Velasco é o Delacroix da pintura nacional". Essas con- sideragSes tinham apoio de outiva ou por leituras, uma vez que 0 critico n&o tivera até ento ocasiao de visitar 0 Recéncavo, além da deficién- cia do material visual 4 época da redagdo do ensaio. Dos outros dois pintores, ajuiza para a pintura de José Joaquim da Rocha, que teria tido algum tipo de ensinamento em Portugal, que “sua pintura é mais bem ordenada, hé mais conhecimento de composi¢io, € mais cient{fica enfim; falta-the o entusiasmo de Velasco, falta-Ihe a ungo de Te6filo"; da pintura deste, que também estudou em Lisboa, destaca um trabalho livre da "frieza académica de seu antecessor. # um puro, é um inocente. Oseu desenho tem quase a ingenuidade dos primitivos e ele espalha na fisionomia de seus santos um qué de angelical d’uma serenidade sem par. Se Velasco € Delacroix, Te6filo de Jesus € Fra Angélico, — natu- ralmente descontadas as proporgdes. O primeiro € compardvel ao 13 Idem, Ibldem. p. 102. 54 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 mestre francés pelo vigor; o tiltimo ao freire florentino pela pureza da intengdo (14). . Usando da matriz européia para fazer suas comparages, Mario de Andrade julga com muito entusiasmo a produgfo pldstica colonial baiana, ressaltando-Ihe qualidades positivas e uma inventividade com- pardvel 4 da matriz. Adjetivos como genialidade, vigor e pureza de in- tengdo estao presentes n&o s6 nesse ensaio como também em outros onde analisou a produgdo plastica nacional do passado e do presente. Ha sem ddvida um otimismo nas avaliag6es de nosso critico que con- corre para uma valorizagfo dessa heranca colonial para 0 acervo co- mum de bens culturais da nacionalidade, reforgando dessa maneira uma visdo da histéria patria em continuidade com o presente, no qual se manifestariam constantes formais e temticas passiveis de aprovel- tamento para o esfor¢o comum de constituicso de um imagindrio na- cional. Seguindo essa orientacSo, abordow a producdo fluminense e mineira, dando-nos, sem hesitagdo, um percurso crescente, desde o modelo mais préximo aos ideais e realizagbes metropolitanos — a arte baiana —, até o modelo mais distante destas e mais préximo de uma expressdo original da colénia — a arte mineira. aes A producio plastica do Rio de Janeiro colonial esté entre estes dois pélos paradigméticos, j4 trazendo inovagSes para o barroco bra- sileiro na preocupacdo com a decoraco interna dos templos na qual 0 fefinamento eo delfrio da imaginagaoornamental alcanga um épice. O tom mais baixo da arte fluminense encontra sua explicacdo no fato de que “a sociedade colonial no Rio de Janeiro jamais atingiu o brilho baiano, nem com a chegada dos vice-reis, nem mesmo com 0 repouso da pomba foragida que af tomou D, Jo4o V1. A riqueza era menor e a educagio menos desenvolvida. A cidade alongava-se fina, no litoral, banhada pelo mais radioso dos sdis, na mais tediosa apatia, Nem se- quer uma grande abastanga incitava a eclosdo calma duma arte" (15). Arelativa pobreza econémica da regiio e a maior distancia geografica da metrépole impediram, segundo Mario, a ecloséo de uma arte de luxo € ostentagdo como a baiana. A arquitetura era pobre, como ates- tam os trabalhos de Debret, isto j4 entrando no século XIX e com a presenga do rei portugués em solo fluminense. O iniciador da escola fluminense de pintura foi o beneditino alemdo, Frei Ricardo do Pilar, que ornamentou o mosteiro e a igreja de So Bento e a quem a historiografia recente atribuiu o titulo de patriarca da pintura brasileira pela exceléncia de seus trabalhos, com destaque para seu Cristo dos Martirios, notado por Mério de Andrade que discutiu se este pintor teria deixado seguidores. 14 Idem. Ibidem. p. 103, 15 ANDRADE, M. de. A Arte Religiosa no Rio. Revista do Brasil.n. 52, abr. p. 289, 1920. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 55 Na ocasido, as opiniGes divergiam, optando Mério por uma re- lativa continuidade entre Ricardo do Pilar e as geracdes que o suce- deram: "E porém certo que o seguiram de perto José de Oliveira, a quem se deve o Gtimo teto de Sfo Francisco da Peniténcia; Leandro Joaquim, Jofo de Souza, Manuel da Cunha, Brasiliense, Solano e ou- tros ainda". Como os artistas baianos, "todos esses artistas — alguns dos quais estiveram em Portugal, ¢ mesmo Oliveira Brasiliense em Roma — dedicaram-se a pintura religiosa". Mario avalia esta produ- ¢4o, destacando que “sua dnica fonte de lucro era a decoragio das igrejas e das capelas. Nfo s6 as mansées dos ricos, mas o proprio pa- lécio do rei-mdsico, apresentavam-se em completa nudez ornamental: as igrejas apenas forneciam um campo, aliés vast{ssimo, a atividade da arte imptibere". Além dessa condicionante econémica e cultural, M4- tio destaca o valor artfstico dessa pintura, aproximando-a dos primi- tivos italianos: "Os primitivos de Florenga e Siena nao valem apenas com serem 0 infcio de escolas nobilfssimas, mas porque se hes desco- bre entre o desenho incorreto ¢ 0 colorido ingénuo, algo de ideai, de inspitado, de puro — um vago perfume de arte enfim. Todos esses ar- tistas cariocas so para nés como outros tantos primitivos duma escola que, sejamos francos, ainda n4o atingiu uma real magnificéncia" (16). Contudo, foi com a escultura ¢ a talha que a arte colonial flu- minense atingiu melhor desenvolvimento ¢ melhor expressio com os trabalhos de Gaspar Ribeiro, Simo da Cunha e sobretudo da figura exemplar de Mestre Valentim. Como a quase totalidade dos artistas coloniais era mestigo, filno de portugués com crioula, veio de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, onde obteve fortuna e reconhecimento, chegando a amigo e conselheiro do vice-rei Luiz de Vasconcellos; en- tretanto morreu pobre ¢ esquecido em 1813. Dele comenta Mario: "De toda sua obra de escultura, quase que unicamente decorativa, a parte religiosa sobreleva de muito a profana. Se em Chagas a figura da ima- gem éa especialidade do seu talento, se no Aleijadinho une-se ao genio do escultor 0 génio do arquiteto, para o Mestre Valentim é a obra de talha que o enternece" (17). Para Mario, o melhor de mestre Valentim est4 na "Capela do Noviciado, na igreja de Sdo Francisco de Paula e todas as entalhaduras da Cruz dos Militares sio exemplos do mais admir4vel churrigueresco, Note-se, todavia, na concepgio art{stica do célebre mulato, uma certa propensfo para a ordem e uma orientagdo mais educada que o levam a produzir obras mais pensadas e mais nobres sem a exaltagdo dos obrei- Tos de SSo Francisco na Bahia, e de S40 Bento no Rio". Recorrendo a comparagdo com a matriz européia, no aff de valorizar o mestre mu- lato, Mario afirma que "o Rococé na Franga 40 produziu trabalho mais gracioso, nfo direi mais avultado, que a capela de Sdo Francisco de Paula. A obra do autor do chafariz das Marrecas tem grande impor- 16 Idem. idem. p. 290. 17 Idem, Biden. 56 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 tancia artfstica...", foi reconhecida pelo patrono da critica de arte na- cional, Gonzaga Duque — segundo Mario, critico de um impressio- nismo delicado e de fino gosto — que escreveu sobre mestre Valentim que “para o elevar A conta de um grande artista, temos a sua obra de talha, todo esse suntuoso poema barroco que se eterniza na Capela do Noviciado, no teto ¢ parede da Cruz dos Militares e que seria duma ofuscante beleza se 0 Ouro o recamasse, como exigia 0 estilo em que foi concebido ¢ executado". Arremata a argumentagio a favor do génio de Valentim afirmando que *o entalhador das molduras, o cinzelador dos alampadérios eleva-se a uma culminancia notaével — e a Franca que celebra nos seus livros de arte o humflimo artesfo da grade de Nice, celebra-lo-fa também. Mas Valentim da Fonseca nasceu mulato e bra- sileiron (18). A tiltima frase do perfodo revela toda nossa situagéo colonial ¢ de dependeéncia, o que nos impossibilitou de obter um reconhecimento pela comunidade ocidentala altura de nosso real valor e contribuigso, problema t&o velho quanto atual, sendo a obra de Mério também uma estratégia para a superacdo desse nosso t4o conhecido sentimento de inferioridade. Quanto a arquitetura fluminense, Mario destaca alguns edificios que se fazem notar por “alguns tipos de beleza inconteste", embora “essa (arquitetura) néo se tenha mostrado téo exuberante como na Bahia, nem t4o original como a mineira*. Detaca como obra-prima a igreja de Santa Cruz dos Militares, aponta a igreja do Morro do Cas- telo de inspiracao classica e nomeia as que considera “interessantes ou notaveis: a igreja da Gloria, faceira ¢ donairosa, quase bi-secular; 0 convento de Santo Anté6nio, Séo Bento, S4o Francisco da Peniténcia, o Carmo, Nossa Senhora da Candelfria" (19). Destas, dé sua aprecia- go sobre Séo Bento e Séo Francisco que, segundo ele, "obedecem a uma quase que idéntica estesia"; passa a fazer um paralelo entre os dois templos indicando as caracterfsticas de cada um, numa demons- tracdo polarizada dos aspectos complementares do barroco: "Séo Ben- to é formidavel, germanico: o entalhe que recobre totalmente as suas paredes € de uma audacia germ4nica; os dois admiraveis anjos com tocheiros s4o de estrutura germanica; assim como os anjinhos de ma- deira das paredes so de uma feidra germ4nica. Tremendo no ar frio do templo, (...) vendo correr por aquelas arcarias douradas toda uma co- rea tenebrosa de figuras tortas de Cranach e de tétricos seres sobrena- turais de Darer, 56 a medo pude observar as interessantes pinturas da capela-mor, extasiar-me ante os dois grandes anjos do arco-cruzeiro, to cheios de m{stica exaltagdo, e a obra de talha geralmente represen- tando folhagens e flores estilizadas, duma grande beleza por aonde deslisavam querubins feiosos, verdadeiros entes de Sab4. Fugi. Fui res- pirar o ar carinhoso, brasileiro de Guanabara. O sol esplendia, doi- rando aqui e além o verde Ifquido das 4guas; todo um rumor de vida 19 Idem. biden. p. 291. 18 Idem. biden. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 57 acre subia da urbe; campanérios apontavam ao longe para um céu claro onde habitava o Deus de Bondade... Entdo, olhando do sorrateiro. as trés largas portadas por onde safra do negror do templo, estremeci. Menos parecia 0 casardo sinistro‘a cust6dia do Deus de Bondade que a caverna dos Nibelungos" (20). Ao p6lo germanico da arquitetura colonial fluminense contra- pe o pélo latino que seria representado pela igreja de SAo Francisco da Peniténcia que “apesar de totalmente dourada, é afetuosa, ¢ alegre, tem um ar familiar de quem diz: ‘sente-se. A casa é sua’. E encanta- dora ao mesmo tempo que € bela. Ligada ao convento de Santo Anté- nio, @ cujo flanco se apéia, é-Ihe infinitamente superior. (...) S. Fran- cisco tem um aspecto exterior bisonho e desajeitado. E positivamente feia. Sem torre que a eleve, com um frontdo exético, infelicitaram-na ainda mais, quando numa das dltimas reformas que sofreu, a heresia de pintamonos idiotas cobriu-lhe 0 marmore do portal e das janelas de espessa camada de dleo; mas quem penetrar-lhe o interior, descorti- nard uma das obras mais suntudrias que € possivel imaginar-se. Toda a igreja é recoberta de entalhes dourados e de pinturas". Mério passa a enumerar todos os artistas que teriam contribufdo para a consecugio da obra, a comegar por "Francisco Xavier... (que) foi o tarantico que imortalizou o seu nome, cinzelando com uma perfeig4o sublime aque- Jes planejamentos, flores, folhas, bézios, anjos; José de Oliveira ligou o seu as pinturas do teto, A obra de talha, toda revestida de folhas de ouro, mandadas vir de Lisboa, é uma das mais perfeitas que tenho visto. Nem as entalhaduras de Campinas, nem 0 altar-mor do Caeté, nem toda a capela-mor de Ouro Preto a superam em delicadeza e aca- bado, Poderd ser menos abundante em pormenores, menos rica de ins- piragdo, menos audaciosa nos recortes: em nenhuma outra se depara tanto carinho no acabado, tanta graca e principalmente tanta perfeigio nos anjos. Sobremodo notével € a teoria dos anjinhos duma beleza ideal, celestial, purfssimos, quase que Gnica excego em todo o entalhe nacional. Os nossos artistas em madeira representaram sempre mal a figura humanizada dos anjos; sfo como drabes pacientes na invengio dum motivo de decoragéo, mas incapazes quase sempre de obter a be- leza, esculpindo uma carinha de serafim". Mario nao deixa de estabelecer uma série de comparagGes com alguns artistas europeus do Renascimento e do Barroco como forma de ressaltar a importancia da produgio colonial: "Sao Francisco adian- ta-se muito, nesse terreno, das suas irmfs; e 14 vi feig6es duma pureza to irreal, que sofreriam confronto com os anjinhos dos. mestres — Della Robbia ou Donatello, Rubens ou Rafael —. Nao exagero. Com- paro anjos com anjos: buscareis em v4o entre os querubins do Pre- sépio de Della Robbia ou entre as criangas da Ronda de Donatello beleza mais inocente que essa sublime carinha de madeira dourada que entesta o témulo de Bourbon, na capela primitiva da Ordem" (21). 20 Idem. Ibider. p.292. 21 Idem. Ibidem. p. 293. 58 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 Essa longa descri¢Sio de Sfo Francisco da Peniténcia se contra- p6e & de Sho Bento. A primeira € cheia de luz, graga, vida e sensuali- dade, jé a segunda é pesada, escura, atormentada pelas pinturas e or- namentac6es, nos acentuando a influéncia do pensamento de Worrin- ger com sua tipologia bipolar, tendo nos termos germ4nico ou gético e mediterraneo ou classico os tipos explicativos do fendmeno artistico ocidental. Mario utilizou-se muito do pensamento de Worringer, que alcancou larga repercussao a partir dos anos vinte. Usou essa tipologia para caracterizar parte de nossa arte colonial inserindo-a nas grandes correntes estéticas da arte. Conclui seu ensino sobre a arte colonial fluminense levantando a hipGtese de que a arte e os artistas coloniais ja estariam em condig6es de influenciar a metr6pole, citando o caso da igteja de Nossa Senhora da Candeldria, que teria servido de modelo a Basflica da Estrela de Lisboa: "... 0 templo d’além mar comecou a cons- truir-se quatro anos mais tarde» (22). Esse exemplo é fundamental para Mario como fndice de uma recém iniciada maturidade cultural brasileira. one A maturidade cultural do pafs, Mério foi encontr4-la de maneira mais acabada no chamado Barroco Mineiro. Foi em Minas Gerais que © estilo barroco estilizou-se, adquiriu feig&o propria, longe da presenga portuguesa do litoral € sob a proteco da Igreja pode desenvolver uma arte mais uniforme, mais original. Foi sob a égide do ciclo do ouro, num “meio oscilante de inconstancias que se desenvolveu a mais caracterfs- tica arte religiosa do Brasil. O barroco desenvolvido em Minas teve, segundo 0 diagnéstico de Mério, diferente feigio de sua matriz euro- péia. Como estilo, ele representaria "o mesmo defeito de estilos dos Tomanos: aO passo que por uma nobre unidade estética, no estilo grego ou no gético, o elemento decorativo reside na parte intrinseca da construgdo, o romano costumava elevar os seus monumentos para de- pois recobrir-Ihes por completo a estrutura como os brocatéis de abun- dante decoragio". Continuava sacando exemplos da histéria da arte para reforgar seu argumento em prol da especificidade do barroco mineiro no quadro geral do barroco ocidental: "Como 0 artista heleno falando ao aluno que esculpira uma Vénus arreiada de enfeites e de tinicas, pode-se dizer do estilo romano que ele fez construgées ricas por nfo poder fazé-las belas. O barroco também procede assim, com a circunstancia pejorativa de ser nele a pr6pria decorag4o que determina o estilo. Ora, na arquitetura religiosa de Minas, a orientagSo barroca — que é 0 amor da linha curva, dos elementos contorcidos e inespe- rados, — passa a decoracfo para o préprio plano do edificio. Af os elementos decorativos nfo residem s6 na decorag&o posterior, mas também no risco e na proje¢So das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves (23). Enfim, a ornamentagéo brotava da propria es- trutura dos edificios, justificando-se como uma complementagiio na- tural e necessdria a solugdo da boa forma. B ANDRADE, Mario de. A Arte Religiosa no Brasil. Revista do Brasil, n® 54, jun. p. 103, 22 Idem, Ibiden. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 59 O que havia de postigo e impostura noutras variantes do barroco desapareceu por completo na vers4o mineira. Estava nesse ponto no- dal a chave da contribuicio brasileira 4 renovagio e a justificativa do estilo barroco nos trépicos e também como expresso universal. A partir dessa constatagio, Mario vé no Barroco organicidade e funcio- nalidade que o iguaia aos grandes estilos do passado, afirmando con- clusivo: “Com esse caréter assume a propor¢ao dum verdadeiro estilo, equiparando-se, sob o ponto de vista hist6rico, ao egipcio, ao grego, ao gOtico. E é para nds motivo de orgutho bem fundado que isso se tenha dado no Brasil (24), A exemplificacdo apresentada por Mario recorre desde os pri- meiros momentos até a obra singular de Anténio Francisco Lisboa, mostrando uma evolug4o peculiar do Barroco nas Minas Gerais. No- meia as Capelas de Sfo Jodo e de Nossa Senhora do Parto na qual destaca a obra em talha. Aponta as matrizes de Ouro Preto, Mariana e Caeté, destacando que a primeir: tasistas, apresentando uma nave Side de muito arrojo e graga"; a segunda “conserva ainda sua primitiva fachada e traz o seu interior dividido em 3 naves, excetuando-se assim da disposigdo em nave sin- gela das igrejas mineiras"; e a terceira "rompeu a marcha gloriosa do impulso mais artfistico dado ao, barroco jesuftico em Minas; é monu- mento ciclépico, duma grandeza e duma imponéncia extraordindrias, , 0 que mais vale, de proporgées tao felizes que passa despercebida ao observador fugaz a sua massa formidavel. (...) E obra ingente, verda- deira maravilha de proporgao e de forga" (25). Até aqui, a descrigio dos templos mais significativos, segundo nosso crftico, para o surgi- mento de um estilo barroco mineiro. Espécie de perfodo arcaico, no qual se geraram os principais modelos arquitetOnicos da vertente mi- neira. "Entramos depois numa fase em que se constroem os mais for- mosos templos do Brasil. (...) Nessa fase que partindo do ultimo quar- tel do século dezoito, vai alcancar os confins dele, elevam-se as torres dos Carmos de S4o Jofo d’E! Rei, de Mariana e de Ouro Preto, do Rosério de Ouro Preto e, engendrada pelo génio dtico do Aleijadinho, ‘S4o Francisco de Assis. E nesse est4dio que, em vertiginosa subida, o barroco atinge a sua fei¢so mais acertada e mais nobre" (26). E nova- mente tomando de seu argumento principal, Mario mais uma vez ob- serva: “... j4 no espfrito destes mineiros ousados a compreensio do estilo € menos exterior ao passo que a decoracao se simplifica a fan- tasia curra reflete-se nos planos". A fusdo entre a estrutura ¢ forma expressiva decorativa assumiu para ele perfeito equilfbrio entre a necessidade construtiva e a “von- tade expressiva" dos artistas. Em tom de desafio e convencimento pro- voca 0 leitor ao perguntar: "...fachadas de maior harmonia apresentar4 a arquitetura nacional superando a igreja de Antonio Francisco Lis- 2A Idem. Ibidem, 25 Idem. Ibidem. p. 104-5. 26 Idem. Sbidern. p. 105. 60 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 boa? Quem com maior ousadia, em nossa terra, delineou um plano como a igreja de Chico Rei? Quem poliu colunas mais fantasiosas, e no entanto belas, que as que suportam o coro da Senhora do Carmo?" Arrematando suas razGes e encerrando sua argumentagéo sobre a arte religiosa colonial, aponta o grande flordo patricio: "Carece-me o tem- po para que vos descreva ao menos essa igreja de So Francisco de Assis onde eu pude sobretudo amar o génio do Aleijadinho e orgu- Thar-me dele", "O Aleijadinho é o Gnico artista brasileiro que eu con- sidero genial, em toda eficécia do termo", afirmava enfatico o exegeta do barroco colonial que via no mestigo um “mesquinho, que atravessou toda uma vida insulado na dor de ser feio e repelente, buscando dia a dia na sua bfblia a consoladora recompensa de se ver amado por um Deus, procurando na afei¢ao de seu escravo Maurfcio, como um Ca- mes da escultura, um eco das amizades que lhe recusara o mundo, sem. meios para uma viagem de estudos ao Rio ou 4 Bahia somente, na su- jeigéo constante das formas que vencia tirando da pedra ou da madeira Os Seus Santos ou Os seus anjos, esse mesquinho considero-o eu um mesquinho genial" (27). Mario apontava o trago paradoxal do Alei- jadinho de ser ao mesmo tempo “um génio", mas limitado nos seus recursos pela falta de formagio e de instrugSo. O qualificativo "mesquinho" traduziria essa limitagéo que, ndo obstante, ndo impediu a eclosfo do génio; limite mas nfo impossibi- lidade. M4rio enfatizava: "A alma criadora do génio vivia nele, faltava- Thea instrugdo", daf conclufa convicto: toda arte rudimentar deriva ou para a observag¢do fiel da natureza ou, na razfo das suas poucas forcas, para a idealizagao do que nfo pode reproduzir; todo génio inculto ten- de para o realismo ou para a estilizagéo. O artista das cavernas pré- hist6ricas foi assim. O Aleijadinho, em Gltima anélise, também assim foi: "apenas a sua poténcia criadora, se tantas vezes produziu obras dum realismo incorreto, pos uma alma dentro de cada pedra que des- bastou". O Aleijadinho, como o artista pré-histérico, foi para nosso crftico o primitivo de uma nova era e civilizagao. Primitivo com o sig- nificado de primeiro, de inaugural, fundador da nacionalidade, com todos os méritos e limites de quem inicia, O fato da obra do Aleijadi- nho expressar uma "alma" nos indica que ela j4 tem uma identidade PrGpria que ¢ ao mesmo tempo pessoal e social, portanto primeiro in- dicio de nossa maturidade cultural. Para Mario de Andrade, a figura do Aleijadinho desde 1919-20 é a figura do herdi fundador da nacionali- dade, tema que nunca abandonau e que burilou ao longo do tempo, em particular com o ensaio de 1928 e de posteriores referéncias 4 obra € A personalidade do génio mineiro. Desde entio nos parece claro que nosso critico vai consolidando uma primeira intuigéo, comprovada na andlise dos materiais, encaminhando-o para 2 construcio do paradig- ma “Aleijadinho. Para tanto utilizou-se muito do conceito de génio, nuangando-o de acordo com nossa realidade cultural periférica e de- pendente intrinsecamente da matriz européia. Definindo o termo, 27 Idem. idem. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:47-65, 1994 61 Mario pondera: "Se a fungSo do génio é criar instruindo, descobrindo feigdes novas a arte ou a ciéncia, norteando-as diferentemente dos pés- teros, Ant6énio Francisco nfo seria génio; mas essa funcSo altrufstica se éa melhor, socialmente falando, nfo é a dnica". Logo vem o reparo que adapta o conceito ao meio que gerou o artista: "O arquiteto de Sdo Francisco ficou s6, num meio inculto nao criou prosélitos, nem deu uma faceta diferente a sua arte; mas sua forga foi tamanha, mas 0 abalo que causou foi tao grande que até hoje em Minas vibra a mem

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