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mas as'verda: Para uma historia comparada efeitos. Seria . atl ntativas feitas das sociedades europeias rem das terras sma altura em, m toda a cvi- das contribui- e compra dos cabo de citar >, 05 aspectos s sistemas so- © exame atu divergentes! = nas cuja opo- lo XII a so- ma gradacio Talvez a per- ante — ainda pois através esperanca de Za. [Revue de synthése historique, t. XLVI, 1928, p. 15-50. Tradugao ingl. «En- treprise and Secular Changen, Readings on Economic History, Frederic Lane Jelle C. Riemersma, 1953, Richard D. Inwing, Inc., Homewood, Illinois. Mélan- ges historiques, tI, p. 16-40] > desta nota, de asio € Método I | Permitam-me que, logo as primeiras palavras, previna um equivoco ¢ me poupe ao ridiculo, Nao venho até vés como «descobridor de uma panaceia nova, | O método comparativo pode muito; considero a sua generalizagao e 0 seu aper- feigoamento uma das necessidades mais prementes que hoje se impdem aos es- tudos histéricos. Mas nao pode tudo: em ciéncia, nao ha talismas. E nao se in- 419 ®LOCH, M1 fara ume highoyio comparada, das couedackig ewooptias. In: as Historra 2 theloriadorts. Li door 2 Teoremo, , ANB . & MA AO. ta, Ja deu as suas provas em Varias citmeias de Gomem. A sua aplicagdo & historia das instituigdes politicas, econdmicas, jutiddicas foi muitas vezes reco- mendada2. £ visivel, porém, que a maior parte des historiadores, no fundo, nao se converteram; dizem educadamente que sim ¢ zetomam o servigo sem nada mu- darem nos seus habitos. Porqué? Talvez porque os deixaram’acreditar com de; masiada facilidade que a historia comparaca era um capitulo da filosofia da histéria ou da sociologia geral, disciplinas que. segundo esta disposigao de espi- rito, o trabalhador ora venera, ora acolhe com um sorriso céptico mas habitual- mente se escusa a praticar; o que ele quer de um método é que seja um instru- mento técnico de uso corrente, maledvel e susceptivel de resultados positivos. O método comparativo € isso mesmo, mas eu no tenho @ certeza de que até agora tal tenha sido suficientemente demonsirado. Pode, deve penetrar nas pesquisas de pormenor. O seu futuro, o Futuro, talvez, da cigncia tem este prego, Gostaria de precisar aqui perante vés, com a vossa ajuda, a propria natureza ¢ as possibi- lidades de aplicagao desta boa ferramenta, indicar, por meio de alguns exemplos, 9s principais servigos que temos 0 direito de esperar dele, enfim, sugerir alguns meios praticos de facilitar o seu emprego. Ao falar aqui perante um péblico de medievalistas irei buscar os meus exem- plos, de preferéneia, ao periodo a que, correcta ou incorrectamente, se costuma chamar Idade Média. Mas ¢ evidente que — mutatis mutandis — as observagoes que vao seguir-se poderiam também aplicar-se as sociedades europeias da época .0, nao conto coibir-me de aludir a estas dltimas. I A expresso «historia comparadan, que hoje & corrente, teve o destino de qua- se todas as expressdes habituais: os desvios de sentido. Deixemos de lado certos empregos abusivos. Rejeitados estes erros, subsiste ainda um equivoco: em cién- cias humanas, estamos sempre a reunir sob a expressdo método comparado dois, processos intelectuais diferentes. Apenas os linguistas parecem preocupados em 05 distinguir com cuidado?. Procuremos por nossa vez 0 rigor, do ponto de vista proprio aos historiadores. ‘Antes do mais, no nosso dominio, 0 que € comparar? Incontestavelmente, € 6 seguinte: escolher. em um ou varios meios sociais diferentes, dois ou varios 120 HISTORIA E HISTORIADORES fenomemes que parecem, 4 primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas da sua evolugao, encontrar as semelhangas e as diferencas e. na medida do posstvel, explicar umas € outras, Sdo portanto necessérias duas condigdes para que haja, historicamente falando, comparago: uma certa seme- Ihanga entre os factos observados — 0 que ¢ evidente — ¢ umia certa disseme- Ihanga entre os meios onde tiveram lugar. Por exemplo, se estudar o regime se- nhorial do Limousin, serei eternamente levado a por lado a lado informagdes tiradas deste ou daquele senhorio; no sentido vulgar da palavra, comparo-os. Nao terei porém a impressao de fazer o que, em linguagem técnica, se chama historia comparada pois irei buscar os diversos objectos do meu estudo a fracgdes de uma mesma sociedade que apresenta, no seu conjunto, uma grande unidade. Na pré- tica, criou-se 0 habito de reservar quase exclusivamente a expresso histéria comparada para 0 confronto de fenémenos que se desenrolaram dos dois lados da fronteira de um Estado ou nagio. Entre todos estes contrastes sociais, com efeito, as oposigdes politicas ou nacionais s4o as que mais de imediato impres- sionam 0 espirito. Mas, como veremos, trata-se ai de uma simplificag4o um pou- co grosseira. Atenhamo-nos 4 nog&io, ao mesmo tempo mais maledvel ¢ mais exacta, das diferencas de meio. O processo de comparagio assim entendido € comum a todos os aspectos do método, mas, conforme o campo de estudo considerado, é susceptivel de duas aplicagdes totalmente diferentes pelos seus principios e resultados. Primeiro caso: escolhemos sociedades separadas no tempo e no espago por distancias tais que as analogias observadas de um lado e do outro, entre este ou aquele fenémeno, nao possam, com toda a evidencia, explicar-se por influéncias mittuas ou por alguma comunidade de origens. Por exemplo (desde a época lon- ginqua em que o Pe. Lafitau, da Companhia de Jesus, convidava os seus leitores 2 comparar os «costumes dos selvagens americanos» com os «dos primeiros tem- pos»* & 0 tipo mais difundido deste género de comparagao), pomos em evidéncia as civilizagdes mediterrénicas, helénica ou romana, as sociedades ditas «primi- tivas» e os nossos contemporaneos. Nos primeiros tempos do Império Romano, a dois passos de Roma, nas margens encantadoras do lago de Nemi, um rito, pela sua cruel estranheza, destaca-se no meio dos costumes de um mundo relativa- mente organizado: quem quer ser sacerdote do pequeno templo de Diana pode sé-lo com uma condi¢ao, e sé uma — matar o prestante que se encontrar no lugar. 121 MARC BLOCH «Se pudermos demonstrar que um costume barbaro, semelhante ao de Nemi, existiu noutro lugar; se pudermos discernir os motivos que o trouxeram para a instituigao, provar que 0s seus motivos exerceram largamente a sua acgio, talvez num mbito universal, no seio de sociedades humanas, produzindo em circuns- tancias vari um grande ndmero de instituigdes especificamente diferentes, mas genericamente semelhantes; se pudermos, enfim, seguir as marcas da sua acgéo até a antiguidade classica... entio poderemos com legitimidade induzir que esses mesmos motivos, numa era distante, deram origem ao sacerdécio de Nemi>.»Tal foi o ponto de partida do imenso trabalho de investigagio do Ramo de Ouro, exemplo entre todos ilustre e instrutivo de uma pesquisa inteiramente baseada em reunir testemunhos tirados dos quatro cantos do globo. O estudo comparativo assim entendido prestou ja servigos imensos € de toda a espécie. Primeiro, € mais educagaio humanista particularmente, no que toca & antiguidade mediterrénic: tinhg-nos habituado a imaginar Roma ea Grécia muito semelhantes a nés; a com- paragao. nas mios dos etndgrafos, restitui-nos, por uma espécie de choque men- tal, essa sensacao de diferenga, de exotismo que é a condicdo indispensdvel de um entendimento so do passado. Outros beneficios so de ordem mais geral: possibilidade de preencher, por meio de hipéteses baseadas na analogia, certas lacunas de documentago; abertura de novas direccdes para a investigacio, su- geridas pela comparagio; sobretudo, explicagiio de muitas sobrevivéncias, até ai incompreensiveis. Entendo por tal costumes que, tendo-se mantido ¢ cristalizado depois do desaparecimento do meio psicolégico original em que tinham nescido, pareceriam de uma irredutivel bizarria se o exame de casos semelhantes, no seio de outras civilizagdes, nao permitisse reconstituir precisamente 0 meio desapa- recido: por exemplo, 0 assassinio ritual de Nemi®, Para tudo dizer numa palavra, este método comparativo de longo alcance é essencialmente um processo de in- terpolagao das curvas. O seu postulado, ao mesmo tempo que a conclusio a que sempre volta, é uma unidade fundamental do espirito humano ou, se se preferir, a monotonia, a espantosa pobreza dos recursos intelectuais de que a humanidade dispds 20 longo da histéria, particularmente a humanidade primitiva no tempo em que, para falar ainda como Sir James Frazer, «elaborava, na sua grosseria pri- mordial, a sua filosofia da vida.» Mas ha uma outra aplicagao do proceso de comparagio: estudar paralela- mente sociedades a um tempo vizinhas e contemporneas, incessantemente in- 122 HISTORIA E HISTORIADORES fluenciadas umas pelas outras, cujo desenvolvimento esta submetido, precisa- mente por causa da sua proximidade € do seu sincronismo, 4 acgdo das mesmas grandes causas e que remontam, pelo menos ¢m parte, a uma origem comum. E, em historia propriamente dita, o equivalente da linguistica historica (por exem- plo, da linguistica indo-europeia). a0 passo que a historia comparada ein sentido Jato corresponderia mais ou menos & linguistica geral. Ora‘ quer se trate de his- téria ow de linguagem, bem me parece que, dos dois tipos do método compara- tivo, o mais limitado no seu horizonte € também 0 mais rico cientificamente. Mais capaz de classificar com rigor ¢ de criticar as comparagdes, pode aspirar a chegar a conclusies de facto muito menos hipotéticas ¢ muito mais precisas’. Pelo menos € isto que me esforgarei por salientar pois, como bem se entenderd, é a esta forma metodoldgica que pertence a comparagao, que Vos proponho ins- tituir, entre as diversas sociedades europeias — sobretudo da Europa ocidental e central —, sociedades sincronas, proximas umas das outras no espago ¢ saidas, quando nao de uma, pelo menos de varias fontes comuns. ml Antes da interpretagdo dos fenmenos vem a sua descoberta. E neste esforgo primordial que primeiro nos surge 2 utilidade do método comparado, Mas, dirdo talvez, sera preciso ter tanto trabalho para «descobrim» os factos histéricos? $6 sio nossos conhecidos ou cognosciveis através de documentos; para os ver em plena luz, diante dos nossos olhos, nao bastard ler textos ou monumentos? Claro, mas é preciso saber ler. Um documento é uma testemunha; como a maior parte das testemunhas, sé fala se interrogado®. O dificil é elaborar 0 questionario. E ai que a comparagio proporciona a esse perpétuo juiz de instrugdo que é o histo- riador um precioso auxilio. Com efeito. vejamos o que muitas vezes se passa. Numa dada sociedade, ma- nifestou-se um fenémeno com tanta amplitude e, sobretudo, teve tantas conse- quéncias e tao visiveis — nomeadamente no dominio politico, sendo os prolon- gamentos desta natureza habitualmente mais faceis de captar nas nossas fontes — que, a menos que sofra de cegueira, 0 historiador nao pode deixar de 0 captar em cheio no olhar. Tomemos agora a sociedade vizinha. Talvez se tenham dado ai factos andlogos e com uma forga e uma extensio quase paralelas; mas, seja 123 e. MARC BLOCH por causa do estado da nossa documentagao, seja devido a uma constituigdo so- cial e politica diferente, a sua ac¢do é ai menos imediatamente perceptivel. Nao, que tenha sido menos grave. Mas operou-se em profundidade: como essas obs- curas afecgSes do organismo que, nao se traduzindo instantaneamente por sinto- mas bem definidos, se mantém indetectadas durante anos quando os seus,efei-" tos por fim aparecem continuam quase impossiveis de reconhecer' porque o observador nao pode ligar os efeitos visiveis a uma causa original demasiado an- tiga. Hipétese teérica, tudo isso? Para demonstrar que nao 0 é sou forcado a ir buscar um exemplo as minhas préprias investigagdes. Lamento ter que entrar em cena; mas os trabalhadores, habitualmente, ndo se cansam a contar os seus tac- teios, a literatura ndo me fornece nenhum caso que possa substituir a minha ex- periéncia pessoal®. Se ha, na historia agréria da Europa, uma transformagao que surge com gran- de relevo, é essa de que foi palco a maior parte da Inglaterra, mais ou menos des- de 0 inicio do século XVI até aos primeiros anos do século XIX — esse vasto movimento das enclosures que, sob a sua dupla forma (delimitagao do terreno comunal, dclimitagao das lavras) pode definir-se, no essencial: desaparecimento das servidées colectivas, individualizagao da explorago agricola. Consideremos aqui apenas a delimitagao das lavras. Como ponto de partida, temos um regime segundo 0 qual.a terra ardvel, assim.que despojada das suas colheitas, se tornava, pelo pasto,:objecto de exploragio. comum ¢, ainda semeada ou coberta de searas, obedecia j4, no ritmo do. seu cultivo, a regulamentos destinados a proteger os in- teresses da colectividade; como ponto de chegada, um estado de rigorosa apro- priagdo pessoal. Tudo, nesta grande metamorfose, atrai ¢ retém 0 nosso olhar: as polémicas que suscitou durante todo o decurso da histéria; oacesso relativamente facilA maior parte-dos documentos (actas do Parlamento, fiscalizagées oficiais) que sobre ela nos informam; as suas ligagdes com a histéria politica pois, favo- recida pelos progressos do Parlamento, onde mandavam os grandes proprietarios, contribuiu, por ricochete, para assentar mais solidamente o poder da gentry; as suas possiveis relagdes com os dois factos mais imediatamente salientes da his- t6ria econdmica inglesa, a saber, a expansao colonial e a revolugao industrial, que cla tera talvez facilitado (ha quem duvide, mas para nés basta que 0 assunto se discuta); enfim, o privilégio que Ihe coube de estender os seus efeitos, nao apenas aos fenémenos sociais, sempre tao delicados de detectar, mas também as carac- HISTORIA E HISTORIADORE. teristicas mais salientes da paisagem. campos ingleses, outrora 2 perder de vista, as barreiras ¢ as sebes. Portanio, no ha historia de Inglaterra, por mais elementar que seja, que nao meneione as en closures, Abramos agora uma his ca... Nao encontraremos 2i a minima alusio a movimentos desta ordem. E no en- tanto, houve-os. Hoje. sobretudo gragas aos trabalho de M. Henri Sée, comega- mos @ distingui-los; contudo, estamos ainda longe de ter tomado uma consciéncia suficientemente nitida das diferengas que neste ponto apresentam as evolugdes, go mesmo tempo semelhantes ¢ divergentes, das sociedades francesa e inglesa Mas deixemos por momentos esta diltima consideragao; a percepeio dos contras- tes, segundo bom método comparativo, vem apenas em segundo lugar; por ago- ra, andamos somente a descobrir. Ora, € notavel que, até aqui, 0 desaparecimento das serviddes colectivas, em Franga, s6 tenha sido observado nas épocas ¢ nos lugares onde, como em Inglaterra, o fenémeno encontrou a sua expressio nos textos oficiais e, por conseguinte, faceis de conhecer: os «editos de delimitagdo» do século XVIII € 0s inquéritos que os prepararam ou se thes seguiram. A mesma transformacao, porém, teve lugar numa outra regido francesa onde, que eu saiba, munca foi assinalada: a Provenga — e isso numa época relativamente recuada os séculos XV, XVI e XVII. Ai foi, segundo todas as probabilidades, muito mais profunda e muito mais eficaz do que na maior parte das zonas mais setentrionais onde os mesmos factos foram varias vezes estudados; mas como ieve a pouca sorte de se desenrolar num tempo em que a vida econdmica, sobretudo a vida rural, ndo preocupava os cronistas nem os administradores e em que, ainda por cima, nao acarretou nenhuma modificagao visivel da paisagem (o desapareci- mento das servid6es colectivas nao implicow a construgao de cercas), escapou aos olhares. Terdo sido as repercussses na Provenca as mesmas de Inglaterra? Para jé, i8- noro-o, Por outro lado, estou muito longe de pensar que todas as caracteristicas zendo erguer-se por toda a parte, nos ria de Franga, nem que seja uma historia econdmi- do movimento inglés se vao encontrar nos litorais mediterranicos; pelo contriio, estou impressionado com o aspecto muito particular conferido aos factos meri- dionais por uma constituigao dos territories agricolas muito diferente da do Norte (por conseguinte, no houve, como em Inglaterra, redistribuigio das parcelas, cceconstituigo»). praticas econdmicas especiais (nomeadamente, a «transuman- 125 MARC BLOCH cia») e, como consequéncia destas priticas, condigdes sociais sem par nos cam- pos ingleses (penso sobretudo no antagonismo entre os grandes criadores de gado, os «nourriguiers», as outras classes da populacao). Nem por isso deixa de ser interessante verificar a presenga, com caracteristicas préprias, numa zona mediterrinica, de um fenémeno que, até entio, parecia ter podido difundir-se so- bretudo em latitudes mais elevadas. Além disso, nao é dificil de observar na Pro- venga pois, olhando com atengo, textos assaz numerosos permitem seguir-lhe © rasto: estatuto condal, deliberacdes das comunidades, processos cuja duragio € peripécias dizem eloquentemente da gravidade dos interesses em jogo. Mas es- tes textos, ha que pensar em procuré-los ¢ em compard-los uns com os outros. Se eu pude fazé-lo, por certo nao foi por me serem familiares os documentos lo- cais; longe disso, conhego-os ¢ hei-de sempre conhecé-los menos bem do que os eruditos que fizeram da histéria provencal o campo preferido dos seus estudos. S6 esses investigadores poderao verdadeiramente explorar a veia que eu deveria limitar-mé" indicar. A Gnica-vantagem que tenho sobre eles é muito modesta e totalmente impessoal. Li-obras relativas as enclosures inglesas ou as revolugdes turais andlogas que se deram noutros paises europeus ¢ tentei inspirar-me nelas. Numa palavra, usei uma varinha magica, de todas a mais eficaz: 0 método com- parativo. ‘ hr ismaceg: neTV Passemos interpretacio. O mais evidente de todos’ os servicos a esperar de uma comparacao atenta instituida entre factos tirados'de sociedades diferentes e vizinhas é permitir-nos discernir as influéncias exercidas:por estes grupos uns sobre os outros. Indaga- ‘gdes prudentemente realizadas revelariam talvez correntes de transi¢ao de ele- mentos entre as sociedades medievais até agora imperfeitamente reveladas. Eis um exemplo, proposto apenas a titulo de hipétese de trabalho. A monarquia carolingia apresenta-se, relativamente 4 dos Merovingios que a precedeu imediatamente no tempo, com caracteristicas absolutamente origi- nais. Os Merovingios nunca tinham passado, aos olhos da Igreja, de simples lai- cos. Pepino ¢ os seus descendentes, pelo contrério, recebem desde a chegada ao trono, por un¢o com éleos bentos, a marca sagrada. Crentes como todos os ho- 126 HISTORIA E HISTORIADORES mens do seu tempo. os Merovingios foram, a pouco e pouco, dominando, enri- quecendo ¢ explorando a Igreja; nunca se tinham preocupado muito em pér ao servigo dos seus preceitos a forga publica. Com os Carolingios, as coisas sao mui- 10 diferentes. Sem se privarem, no tempo'do seu poder, de reger 0 clero € de em- pregar os seus bens em beneficio da sua politica, considerany-se visivelmente en- carregados de fazer reinar na terra a lei de Deus. A sua legislagéo é essen- clalmente religiosa e moralizadora; ao ler, hé algum tempo, num jornal, um de- exeto emitido pelo emir uabita de Nedjed, senti-me impressionado pelas seme- Ihangas com a literatura pietista dos capitulares. As grandes cortes convocadas em toro do rei ou do imperador mal se distinguem de concilios. Enfim, com os Merovingios, as relagdes de protecco, que ocupavam jé téo grande lugar na so- ciedade, permaneciam margem das leis que, tradicionalmente, os ignoravam. Os Carolingios, pelo contrario, reconhecem estes vinculos, sancionam-nos, fi- xam e limitam os casos em que o recomendado pode abandonar o seu senhor; procuram empregar estas relagBes pessoais na consolidago da paz piblica, ob- jecto, entre todos caro ¢ entre todos fugitivo, da sua tenaz ambigdo: «Que cada chefe exerca uma accdo coerciva sobre os seus inferiores a fim de que estes, cada vez melhor, obedegam e consintam nos mandamentos e preceitos imperiais»'®, esta frase de um capitular de $10 resume, numa stimula expressiva, a politica so- cial do Império. Talvez que, procurando bem, possamos encontrar, na Galia me- rovingia, os germes de uma ou outra destas caracteristicas. Contudo, nao é menos verdade que, olhando s6 para a Galia, o Estado carolingio nos parece quase uma criagao ex nihilo. Mas vamos para além dos Pirinéus. Vemos na Europa barbara, a partir do século VIL, reis que recebem, como diz um deles, Erviges, a «sacros- santa ungao»!!: eram os reis visigodos — uma monarquia toda religiosa, preo- cupada em fazer triunfar, pela acgio do Estado, as ordens da Igreja: a monarquia visigética: concilies que se confundiam com as assembleias politicas: os de Es- panha; leis que ja desde hé muito tempo tinham dado lugar, para as regulamentar, as relagdes do senhor e do recomendado’” ¢ tendiam a basear nestes vinculos de homem para homem a organizagao militar'>: as leis dos soberanos visigodos. Na- turalmente, a par destas analogias nao é dificil descobrir as diferengas. A prin- cipal 6 que os primeiros Carolingios governavam a Igreja, em vez de serem, como os principes godos do século VII, governados por ela. As semelhangas con- tinuam a ser extremamente flagrantes. Deveremos ver nelas apenas 0 produto de 127 MARC BLOCH causas idénticas que actuam dos dois lados no mesmo sentido ¢ cuja natureza, esse caso, est por definir? Ou serd que — sendo os factos visigodos, entenda- -se, nitidamente anteriores aos factos francos — devemos pensar que uma certa concepgao da monarquia e do seu papel, certas ideias concernentes a constituigao da sociedade vassilica e a sua utilizagao pelo Estado, surgidas primeiramente em Espanha, ¢ que ai tiveram tradugao em textos legislativos, foram retomadas con: cientemente pelos consetheiros dos reis francos e pelos préprios monarcas? Para termos 0 direito de responder a esta pergunta convém, evidentemente, proceder a uma investigagao pormenorizada, que nao posso abordar aqui. O seu principal objectivo devera ser procurar por que canais a influéncia visigética penetrou na Gilia. Certos factos, universalmente conhecidos, parecem de natureza a tomar assaz provavel a hipdtese de uma influéncia. Houve incontestavelmente, no reino franco, durante o século que se seguiu a conquista arabe, uma diéspora espanhola, Os fugitivos de partibus Hispanic, estabelecidos para Carlos Magno e Luis, 0 Piedoso, na Septimania, eram, em grande parte, gente humilde; mas contavam-se também nas suas fileiras pessoas pertencentes as classes altas (majores et poten- tiores) € padres, isto é, pessoas ao corrente dos habitos politicos e religiosos do pais que acabavam de abandonar'*. Alguns espanhéis refugiados na Galia fize- ram carreiras brilhantes na Igreja: Cldudio de Turim, Agobardo de Lyon, apés- tolo, para a terra franca, da unidade de legislagdo que tinha podido realizar na sua patria de origem, sobretudo Teodulfo de Orledes, o primeiro a chegar e talvez o mais influente de todos. Enfim, colecgdes conciliares espanholas exerceram so- bre o direito canénico da época carolingia uma acgao cuja amplitude esté ainda por definir, mas que ¢ inegavel. Mais uma vez, nao pretendo decidir nada. Re- conhecerao, espero, que o problema merece ser colocado. E de modo algum é 0 ‘nico da sua espécie* Vv «As semelhangas em histérian, disse Renan a propésito de Jesus ¢ dos Essé- nios, «nao implicam sempre aproximagdes». Certo. Muitas semelhangas, ao exa- miné-las de perto. parecer-nos-Ao irredutiveis & imitagdo. Apraz-me afirmar que essas sao mais interessantes de observar, pois permitem-nos dar um passo em frente na busca apaixonante das causas. B aqui que 0 método comparativo parece 128 HISTORIA E. HISTORIADORES capaz de prestar aos historiadores os mais assinaléveis servigos, apontando-Ihes 0 caminho que pode conduzir as causas verdadeiras ¢ também, talvez sobretudo, para comecar por um beneficio mais modesto, mas necessario, desviando-os de certas pistas que no passam de becos seni saida Todos sabem 0 que sao, na Franga do século XIV ¢ do século XV, os cha- mados Estados gerais ou provinciais (emprego estes epitetos no seu sentido ha- bitual eproximado, que é comodo, sem ignorar, entenda-se, que a Estados gerais ¢ Estados provinciais se associava toda uma série de gradagdes, que Estados ver- dadeiramente «gerais» quase nunca reuniram, enfim, que 0 cenario provincial, durante muito tempo, nada teve de fixo.) Sobre os Estados provinciais, particu- larmente os dos grandes principados feudais, foram escritas, ao longo dos tiltimos anos, monografias assaz numerosas'”, Testemunham um esforgo de erudigdo tan- to mais meritério quanto a documentagao. pelo menos para os primeiros tempos, & quase em toda a parte, terrivelmente pobre ¢ ingrata; trouxeram, para muitos pontos importantes, precisdes de grande interesse. Mas quase todos os autores depararam, logo @ partida, com uma dificuldade que nao tinham meios de resol- ver ¢ cuja natureza, sequer, conseguiram sempre aprender bem: 0 problema das «origens». Emprego de propésito esta expresso de que se servem, habitualmen- te, os historiadores; é corrente, mas é ambigua. Tende a confundir duas operagdes intelectuais de esséncias diferentes e Ambito desigual; por um lado, procuram-se as instituigdes mais antigas (cortes ducais ou condais, por exemplo) cujos Esta- dos muitas vezes surgem apenas como o desenvolvimento — ¢ esta pesquisa & perfeitamente legitima ¢ necesséria; mas resta depois — é a segunda tarefa — discernir as razdes capazes de explicar a extensio € 0 significado novos assumi- dos, a dado momento, por estes organismos tradicionais, a sua transformagao em Estados, isto &, em assembleias dotadas de um papel politico ¢ sobretudo finan- ceiro, conscientes de, face ao soberano e ao seu conselho, deterem um poder, su- bordinado, talvez, mas nitidamente distinto, enfim, representativo, conforme mo- dalidades infinitamente varidveis, das diversas forgas sociais do pais. Mostrar 0 germe nao é discemir as causas da germinacdo. Ora podemos nds ter a esperanga de descobrir estas causas se, por exemplo, morarmos no Artois (no caso dos Es- tados artesianos), na Bretanha (se se tratar de Estados bretdes) ou mesmo se nos contentarmos em passar os olhos pelo reino de Franga? Por certo que nao, Se as- sim procedermos, s6 conseguiremos perder-nos no dédalo de uma multidao de 129 MARC BLOCH pequenos factos locais, a que seremos levados a atribuir um valor que sem divida nunca tiveram; ¢ 0 essencial, inevitavelmente. passar-nos-d ao lado. Com efeito, um fenémeno geral s6 pode ter causas gerais: ¢ se ha fendémeno de amplitude europeia é bem aquele a que, conservando 0 nome francés, chamei formagiio dos Estados. Em varios momentos, mas afinal muito pouco afastados no tempo,ve- mos por toda a parte surgir em Franga os Erars, mas na Alemanha também, nos aterritérios», os Stdnde (as duas palavras tém sentidos curiosamente vizinhos), em Espanha as Cortes, em Italia 0s Parliamenti. Nao 0 Parlamento inglés, nas- cido num meio politico infinitamente diferente, cujo desenvolvimento nao obe- deceu a movimentos de ideias e a necessidades muitas vezes andlogos aos que presidiram a formagio do que os alemaes chamaram 0 Stdndestaat. Mas, por fa- vor, no me entendam mal, Reconhego plenamente a imensa utilidade das mo- nografias locais e nfo vou pedir aos seus autores que ultrapassem 0 quadro pro- prio dos seus estudos para se porem a procura, de vez em quando, da solugao pata o grande problema europeu que acabo de enunciar. Bem pelo contrério, su- plicamos-Ihes que tomem consciéncia de que nao podem, sozinhos, cada qual de seu lado, resolvé-lo. O principal servi¢o que podem prestar-nos € separar os di- ferentes fendmenos politicos e sociais que precederam ou acompanharam, na sua provincia, o aparecimento dos Estados ou dos Stdnde e parecem por isso ser de natureza a classificar-se provisoriamente entre as causas possiveis dessa emer- géncia. Nesta pesquisa, 0 exame dos resultados obtidos j4 noutras regides, um pouco de histéria comparada, numa palavra, seré com utilidade um guia da nossa atencao. A comparagdo de conjunto nfo poderd deixar de vir a seguir; sem as investigagdes locais preliminares, seria va; mas s6 cla poder, no seio das causas imaginaveis, reter as que tiveram uma acedo geral, as timicas reais Nao seria muito dificil, bem se vé, dar outros exemplos. Parece-me evidente, entre outras coisas, que os historiadores alemdes, quando estudam a formago dos «territérios» (os pequenos Estados que se constituiram nos séculos XII e XI no interior do Império e foram pouco a pouco apoiando, em proveito proprio, a maior parte do poder pablico), permitem-se com demasiada frequéncia conside- rar este fenémeno especificamente germanico; mas como separé-lo da consoli- dagao, em Franga, dos principados feudais? Outra ilustragao ainda da prudéncia que 0 método comparado deve inspirar aos historiadores demasiado propensos a procurar nas transformagdes sociais causas exclusivamente locais: a evolugdo do 130 HISTORIA E HISTORIADORES senhorio nos iiltimos séculos da [dade Média e inicio dos tempos modemos. Os senhores, com os seus rendimentos ameacados pela diminuigao, em valor real, das rendas monetarias, tomaram entao e pela primeira vez uma consciéncia per- feitamente clara do empobrecimento que. gota a gota, hé muito vinha pondo em risco a sua fortuna!”; preocuparam-se, em todos os paises, em obviar a este pe- rigo. Para tal deitaram mao, conforme os lugares, de meios muito diversos ¢ mais, ou menos eficazes: aumento de certos produtos casuais, cujo montante o costume nao tinha fixado com rigor (as fies inglesas): substituigao, sempre que juridica- mente possivel, da renda em dinheiro pelo aluguer em espécie, proporcional 4 colheita (donde. em Franga, a grande extenso das meagdes); despojamento bru- tal dos rendeiros, obtido, alids, aqui e além, por processos de natureza muito di- ferente (Inglaterra, Alemanha de Leste). O esforgo, no seu principio, foi geral; 0 seu ponto de aplicagiio e mais ainda o seu sucesso variaram em extremo. Aqui, portanto, a comparac&o convida-nos a verificar, de um meio nacional para outro, divergéncias fortemente marcadas — veremos em breve que é um dos seus prin- cipais interesses: mas obriga-nos, a0 mesmo tempo, a ver no impulso primeiro que deu origem a uma tal variedade de resultados um fendmeno europeu, a julgar apenas por causas europeias. Esforgarmo-nos por explicar a formacao da Gut- herrschaft mecklemburguesa ou pomerana, o agambarcamento das terras pelo squire inglés unicamente com a ajuda de factos constatados em Mecklemburgo, na Pomerania, em Inglaterra ¢ que no encontramos noutros sitios seria perder tempo num jogo intelectual assaz vazio!®. VI Mas cuidemos de nao alimentar um mal-entendido de que 0 método compa- rado nao sofre. Muitas vezes pensa-se, ou afecta-se pensar que 0 método nao tem outro objective que a caga as semelhangas; gosta-se de o acusar de se contentar com analogias forgadas, até mesmo, por vezes. de as inventar postulando arbi- trariamente nao sei que paralelismo necessério entre as diversas evolugdes. Intitil ir ver se estes reparos terdo parecido por vezes justificados: € bem certo que 0 método, assim praticado, nao pussaria de uma maldosa caricatura. Pelo contratio, concebido com correcgao traz um interesse especialmente marcado & percepgao das diferengas, sejam elas originais ou resultem de caminhos divergentes, toma- MARC BLOCH dos de um mesmo ponto de partida. A cabeca de uma obra destinada a «marcar © que o desenvolvimento das linguas germanicas tem de particular entre todas as linguas indo-europeias», M. Meillet propés um dia a linguistica comparada, como uma das suas tarefas essenciais, um esforgo permanente para «pdr em evi- déncia a originalidade das diferentes '9 Também a histéria comparada tem o dever de distinguir a «originalidade» das diferentes sociedades. Sera su- pérfluo observar que nao ha trabalho mais delicado do que esse, nem que neces- site mais imperiosamente de uma comparacao met6dica? Determinar, nao apenas por alto, que dois objectos nao sao semelhantes, ¢, além disso — labor infinita- mente mais dificil, mas também muito mais interessante — quais as caracterfs- ticas exactas que os distinguem pressupde, evidentemente, como primeiro gesto, contemplé-los alternadamente. Antes do mais, ha que desembaragar o terreno das falsas semelhangas, que muitas vezes mais nao so que homonimias. E hé-as insidiosas. ~-Quantas vezes nio foram tratados como equivalentes 0 villainage inglés dos séculos XIII, XIV e XV ea servidao francesa! E certo que um olhar um pouco apressado de uma para a outra instituigao facilmente cré encontrar pontos de se- melhanga. Servo e viléo, ambos sao considerados, tanto pelos juristas como pela opiniao comum, privados de «liberdade», qualificados, por isso, em certos textos latinos, como servi (os autores ingleses. quando se exprimem em Francés, no hesitam empregar serf como sinénimo de villain), enfim, precisamente em vir- tude desta auséncia de «liberdade» e deste nome servil, as pessoas cultas gostam de os assimilar aos escravos romanos. Analogia superficial: 0 conceit de nao- -liberdade tem variado muito no seu conteiido, conforme os meios € os tempos. De facto, a instituigao do villainage é especificamente inglesa. Como Vinogra- doff demonstrou, numa obra hoje classica?®, vai buscar as suas caracteristicas originais ao desenvolvimento, muito especial. do meio politico onde nasceu. Na segunda metade do século XII, por conseguinte muito mais cedo do que os seus vizinhos de Franga, os reis ingleses fizeram reconhecer em todo o pais a autoridade dos seus tribunais, Mas esta precocidade teve o seu prego. O estado da sociedade tal como ela era entio constituida impés aos juizes reais o respeito por uma fronteira que nao iriam transpor antes do extremo fim da Idade Média: tiveram como regra nunca intervir entre os senhores e os homens que deles ti- nham terras em villainage, isto é, oneradas por contribuigdes sobretuto por cor- linguas 132 “HISTORIA © HISTORIADORES eemas € outras fixadas pelo costume do marioir (assim se chamava em In- serra seahorio). Os rendeiros eram de origem, de condigdes muito diferentes: — illain propriamente ditos —~ passavam por livres pois sb dependiam do senor por causa da sua terra, de pertencerem a villa; os outros — servi, nativi estawam ligados ao senhor por um vinculo pessoal € hereditario em que nesse tempo se via uma marca de serviddo. Mas todos, fosse qual fosse 0 seu estatuto tradicional. foram mantidos & parte pelas jurisdigdes reais; nas suas relagdes com os senbores (alias, apenas nestas relagdes), escaparam por completo A acgao dos trjbunats do Estado, 2 Common Law do reino. O resultado foi que, ao longo do século XIII, por causa desta incapacidade comum, a mais aparente ¢ mais pre- judicial que se possa imaginar, amalgamaram-se, a despeito das diferengas an- teriores, numa classe tnica. Nao foi sem dificuldade que os juristas conseguiram definir este grupo novo, constituide por elementos to diversos. Mas depressa se puseram de acordo e com eles a linguagem corrente, quanto a reservar 0 nome de livres apenas para aqueles stibditos do rei que os seus tribunais protegiam con- tra tudo e contra todos. Foi uma nova nogao de liberdade”!. O villain de outrora, isto é, 0 rendeiro puro, se assim posso dizer, deixou de estar alinhado entre os liberi homines ¢ foi confundido com o servus hereditério, 0 nativus, porque es- tava, como ele, privado de recursos perante a justiga real. As duas palavras, ser- yus ¢ villain, foram tratadas como sinénimos. & coisa praticamente consumada no ano 1300, Do mesmo passo, certos encargos de cardcter essencialmente servil _— nomeadamente, direitos sobre o casamento — que, em principio, deveriam pesar apenas sobre a posteridade dos antigos servi, foram-se estendendo pouco a pouco, pelo menos em muitos manoirs, a todos os villain, no sentido novo da palavra, Esta espécie de contagio, to frequente nas sociedades medievais, ope- rou-se aqui com particular facilidade: a assimilagao foi talvez abusiva; mas como poderiam as suas vitimas protestar eficazmente uma vez que, por defini¢ao, s6 se podia apresentar queixa perante a justica senhorial, isto é, perante o proprio peneficidrio do abuso? E bem depressa se admitiu que 0 villainage, tal como a antiga servidio, se transmitia pelo sangue. Este movimento no sentido da here- ditariedade era conforme as tendéncias gerais da época. Aqui foi ainda precipi- tado por uma circunstncia especial. De tempos a tempos, acontecia uma pessoa de situagio elevada adquirir uma terra em villainage. Claro que a terra, nestas novas maos, ficava submetida a todos os encargos ¢ todas as incapacidades que 133 MARC BLOCH anteriormente a oneravam ¢ que 0 aquisitor nio pudera ignorar, nomeadamente, privada de qualquer protec¢ao possesséria relativamente aos senhores, pelos tri- bunais régios. Mas 0 detentor — talvez um dos grandes deste mundo — esse, ninguém ia pensar em o remeter bruscamente para a companhia dos nao-livres! Foi necessério reintroduzir uma distingao entre a condigdo da terra ea do homem © convencionar que apenas os descendentes — mas todos os descendentes — dos terratenentes primitivos seriam villains, Estava criada uma casta nova, uma casta humilde. Definia-se essencialmente por uma caracteristica de direito piblico a que 0s te6ricos gostavam de se referir como: vilio, servo ou escravo (servus) re- lativamente ao senhor; entenda-se: entre o senor ¢ ele, ninguém se interpde, nem mesmo o rei. Em Franga, nada de semelhante. Os progressos da justiga real foram af muito mais tardios e operaram-se de maneira muito diferente. Nao houve grandes or- denagdes legislativas, como as de Henrique II de Inglaterra. Nao houve classifi cage rigorosa dos meios oferecidos aos litigantes pelos tribunais régios (0s writs ingléses). Foi por uma série de intrusdes, muitas vezes mal premeditadas, que as gentes do rei, aqui mais cedo, além muitos anos mais tarde, chamando a si ora um caso, ora outro, foram assegurando passo a passo 0 seu dominio no pais. Mas as suas conquistas, por causa da propria lentidao ¢ porque, pelo menos a princi- pio, nenhum plano tedrico as guiava, penetraram mais fundo. A jurisdigao senho- rial, amalgama de poderes de origens muito diversas, estendia-se, em Franga como em Inglaterra, por grupos de dependentes muitissimo diferentes: vassalos militares, burgueses, rendeiros livres, servos. Mas a monarquia francesa tratou-a como um todo. Os tribunais régios deixavam ou retiravam a este ou Aquele senhor © julgamento deste ou daquele tipo de processos; insistiam ou nao no reconhe- cimento do direito de apelagio; mas isso sem fazer qualquer distingao de prin- cipio entre os siibditos do senhorio. De modo que 0 juiz do rei foi a pouco e pouco tomando assento entre o senhor ¢ 0 seu rendeiro, Por conseguinte, nao se apre- sentou qualquer razo para assimilar servo ao rendeiro que também em Franca se chamava vilain. Estas duas categorias de homens subsistirao até ao fim, lado a lado. O servo francés do inicio do século XII, 0 servus, nativus ou theow inglés da mesma época, tinham pertencido a condicdes juridicas muito vizinhas que & inteiramente legitimo tratar como dois aspectos de uma mesma instituigdo. A In- glaterra chega cntio a formagao do villainage. Cessam todos 0s paralelismos. 0 134 HISTORIA E HISTORIADORE: servo francés do século XIV, 0 villain ou servo inglés da mesma época? Sao duas classes nitidamente dissemelhantes. Valer a pena compari-las? Certamente. mas, desta vez, marcar os seus contrastes. através dos quais se exprime uma opo- sicdo impressionante entre 0 desenvolvimento das duas nagdes” Levemos mais longe ainda os pormenores da comparagao. Nem sempre foi facil, nos manoirs ingleses dos séculos XIII e XIV, diagnosticar com seguranga, entre os direitos reais, cujas modalidades nfo tinham fim, os que se deviam agru- par sob a designacio de renure em villainage ¢ assim separar cuidadosamente da massa, igualmente variegada, aqueles a que cabia 0 epiteto livre. Contudo. houve que assentar em alguns critérios mais ou menos fixos, pois foi neces: poder determinar quais eram as terras e. por conseguinte, pelo menos a origem, 0s rendeiros que a justiga do rei, apagando-se perante a justiga senhorial, renun- ciava a proteger. Preocupados em distinguir as caracteristicas, os juristas julga- ram por veres encontré-las na natureza dos servicos que oneravam a terra. Cons- truiram uma nocdo de «servigos vildos»?’, Unanimemente considerou-se sintomatica a corveia agricola quando comportava a prestag’o de um grande nti- mero de dias de trabalho e. sobretudo. uma ceria indeterminacdo, quer no proprio niimero de dias fornecidos. quer. pelo menos, no seu emprego, ambas as coisas entregues 20 critério arbitrdrio do senhor: e foi admitido na generalidade que a obrigagaio de desempenhar as fungdes de chefe da aldeia (0 reeve, bastante se- melhante a0 staroste com que nos familiarizaram os romances russos) devia igualmente ser considerado uma limitacdo a liberdade daqueles que, em fungaio da sua terra, cram forgados a aceitar, quisessem ou no, este pesado encargo. Ao estabelecer estas normas, tedricos e juizes ingleses nfo estavam a inventar nada. Limitaram-se a ir beber a uma nascente de representacdes colectivas, mais ou menos confusamente elaboradas desde hé muito tempo pelas sociedades medie- vais, as do continente mas também a da ilha. A ideia de que o trabalho agricola tem em si algo de incompativel com a liberdade corresponde a velhos pendores da alma humana; exprimiam-se, na época barbara, pelas palavras opera servilia, frequentemente usadas para designar este tipo de trabalhos. A ideia de que 0 ser- vus difere do rendeiro livre pelo caracter indeterminado das corveias a que esté submetido, nascida do contraste original entre a escravatura ¢ 0 colonato, tinha muita forga na Galia ¢ na Italia carolingias. Nunca desapareceu por completo. Veja-se que, na Franga capetingia, ¢ frequente chamar-se «franchises» aos pri- 10, 435 MARC BLOCH vilégios que, sem suprimirem os encargos dos camponeses, os limitam ¢ sobre- tudo os fixam. Quanto a obrigagao de aceitar do senhor, independentemente do fardo geral das corveias, este ou aquele servico especializado que Ihe apraza de- signar (obrigagao restringida, em Inglaterra, a func&o de reeve), passava na Ale- manha, em muitos lugares, por imposta 4s pessoas de condigao nao livre; ett Franga, esta nogio, menos generalizada, deixou apesar disso, nomeadamente no século XII, alguns vestigios nos textos*4. Mas em Franga (para me limitar a este pais) estas ideias, no seu conjunto, nunca forneceram os elementos para uma construgo juridica rigorosa. Uma delas, isolada — a que acentuava o cardcter degradante ligado as ocupagées agricolas — foi. é certo, empregada a partir do século XIII para marcar, com uma linha mais definida do que no passado, uma separac&o das classes. Mas nao foi, como em Inglaterra, a fronteira entre os livres € 0s nao livres que ela serviu para fixar; utilizaram-na como uma das caracteris- ticas que permitiam distinguir do nobre (que esta proibido de «derrogam», sendo -ofrabalho manual considerado uma forma de derrogacio) a multidao dos nao no- bres que compreende sempre, e em mimero cada vez maior, pessoas a quem nin- guém pensaria recusar a «liberdade». Entdo em Franga nao houve também a ten- taco de caracterizar o no livre pelas particularidades dos servigos a que estava adstrito? E de crer que o sentimento popular nao tenha sido completamente alheio a representagées deste tipo. Em Gonesse, perto de Paris, pelo inicio do século XIII, vemos certos rendeiros tratados como servos pelos seus vizinhos por causa de corveias especiais a que estavam submetidos, nomeadamente a obrigacdo de escoltar os presos, que era tida por desonrosa. Mas facilmente fizeram reconhecer pelo rei que, juridicamente falando, a sua liberdade nao era contestavel2°, Nunca um homem da lei, nunca um tribunal francés recorreram, para definir um servo, a um critério tirado dos servigos. Bis-nos pois face a um dos aspectos mais su- gestivos que as divergéncias verificadas entre duas sociedades aparentadas po- dem apresentar: dos dois lados, tendéncias anélogas; mas de um, permanecem indistintas, amorfas e desprovidas de sangdes oficiais, perdem-se nesta massa confuusa de ideias ¢ de sentimentos que se chama opiniao pitblica; do outro, ex- pandem-se largamente ¢ tomam forma em instituigSes juridicas de contornos ri- gorosamente definidos. Convém que nos detenhamos ainda um instante na histéria das classes nas sociedades medievais. Nao ha estudo mais apropriado para distinguir, entre estas 136 HISTORIA E HISTORIADORES sociedades. discordancias profundas, tio profundas, a bem dizer, que so para nds quase inexplicdveis ¢ que temos que nos limitar a indicar, pelo menos por agors uuemo-nos, para comegar, na Europa ocidental ¢ central por altura dos sé- culos Xe XI. A ideia de que o nascimento traz incalculaveis diferengas entre os homens, comum a quase todas as épocas, nfo estava enti ausente das conscién- cias. Fm 987, para justificar a exclusio pronunciada contra Carlos da Lorena, can 20 trono de Franga e legitimo herdeiro dos Carolingios, 0 arcebispo Auberon — ou, se preferirmos, o historiador Richer, colocando 0 nome do pre- Jado @ subscrever um discurso talvez completamente inventado, mas por certo conforme as ideias da época — invocou o casamento que o pretendente contraira abaixo da sta qualidade, na classe dos vassalos”°, Qual 0 filho de cavaleiro que aceitaria ter por igual o filho de um servo ou mesmo de um vilio? Nao nos ilu- damos: a hereditariedade, como criadora de direito, tinha neste tempo muito pou- ca forga. A sociedade nao era constituida por um escalonamento de castas, com i je sangue. mas por um feixe, assaz entretecido, de grupos com base nas relacdes de dependéncia: estas relagdes de protecgdo e de obediéncia eram concebidas como as mais fortes que se podia imaginar. Neste mesmo caso de Carlos da Lorena, atentemos bem no pendor que o argumento de Auberon assu- me como que espontaneamente. Talvez 0 bispo comece por reprovar ao principe carolingio uma mé alianga propriamente dita: «desposou na ordem dos vassalos uma mulher que nao era sua iguab», Mas imediatamente, lembrando-se de que 0 pai desta pessoa tinha servido os duques de Franga, acrescenta: «Como poderia esse grande duque [Hugo Capeto] tolerar ter por rainha uma mulher vinda dos seus préprios vassalos?» Eis a questéo imediatamente transposta para o plano pessoal. Apenas a condigao servil era tida por estritamente hereditiria, mas nao era, na pratica, de todo incompativel com a cavalaria. Quanto ao direito dos ho- mens livres, sendo bem verdade que oferecia, na pratica infinitos matizes, estes relacionavam-se com as diferengas de lugar, com as variantes nas relagdes con- tratuais, com o nivel social do individuo enquanto tal, no com o nascimento. Chegam os séculos XII e XIII. Surge entao nas ideias e no direito uma surda, mas decisiva modificagao. Dilui-se a fora dos vinculos pessoais; a homenagem tende a transformar-se, ainda que muito lentamente, numa solenidade assaz va- zia; 0 servo, 0 chomem de hoste» francés passou a ser concebido muito mais 137 MARC BLOCH como 0 «homem» do seu senhor do que como membro de uma classe desprezada. Por toda a parte formam-se classes com base na hereditariedade, cada qual com as suas regras juridicas préprias. Mas que grandes so as diferengas na riqueza desta evoluco”’! Em Inglaterra, o villainage constitui-se solidamente, mas é quase a unica classe verdadeira. Entre os homens livres, nao ha diferengas,juri- dicas. Em Franga, na base da escada figura a servidao, cujos membros ja ndo po- dem aceder & cavalatia; no topo, a nobreza, que pouco a pouco se vai distinguindo do resto da populagao por uma série de particularidades (que sfo por vezes sim- ples sobrevivéncias de costumes antigos) relativas ao direito civil, direito crimi- nal, direito -Na Alemanha, enfim, a partir do século XIII a ideia hierarquica manifesta-se com incomparavel fecundidade. Os servos cavaleiros, que a propria consolidacao do sentimento de classe tinha feito desaparecer em Franga, tomam- -se aqui o proprio nucleo de uma ou mesmo, no Sul, de duas categorias sociais bem definidas. De um lado, a nobreza, a massa servil do outro fraccionam-se AiBina’ série de secgdes sobrepostas; nem todos os nobres so ebenbiirtig entre si, nem todos tém o connubium. E os juristas, inspirados pela pritica, constroem, para regulamentar a classificagao das partes superiores da sociedade, a célebre teoria do Heerschild: imaginam uma espécie de escada em que cada grupo tem © seu lugar fixado num dos degraus; quem pertencer a um destes grupos nao pode, sem descer, aceitar um feudo de um homem colocado abaixo. Sociedades limitrofes e contemporaneas: de ambos os lados, uma evolugao com o mesmo sentido que poe o acento na hierarquizacao e na hereditariedade; mas no percurso € nos resultados desta evolugao, diferengas de grau tais que equi- valem quase a diferentes naturezas e revelam, aliés, nos meios em causa, antite- ses caracteristicas: é 0 que acaba de demonstrar o exemplo que, muito brevemen- te, indiquei. Outras oposicdes, mais simples de entender, quando nio de explicar, resultaram de uma outra forma de divergéncia: numa dada sociedade, a perma- néncia, numa sociedade vizinha, o apagamento de instituiges que, originalmen- te, tinham sido comuns s duas. Na época carolingia, no futuro territério da Fran- a, tal como no que viria a ser a Alemanha, em cada senhorio, a maior parte da porgdo reservada aos rendeiros estava dividida em manses (assim se hes chama- va quase sempre na zona romanica) ou Hufén (era este 0 termo germanico cor- rentemente traduzido em Latim por mansus). Era muito frequente ver-se diversas familias de agricultores instaladas no mesmo manse. Este, aos olhos do senhor, 138

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