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eB Os Limites de uma Perturba¢ao Rudolf Arnheim, num texto publicado em 1981 por uma revista italiana consagrada A hist6ria e critica da fotografia, referia-se nos seguintes termos a “peculiaridade fundamental do medium fotogra- fico: os préprios objectos fisicos imprimem a sua imagem por meio da ac¢ao Optica e quimica da luz”! Tal afirmagao, da qual nao pre- tendemos contestar o cardcter extremamente Obvio, tende hoje a assumir foros de banalidade. Dizer que ela é banal, no entanto, est4 longe de corresponder a declaré-la falsa: visa-se aqui, de alguma maneira, outra coisa que nao a sua falsidade, a saber, que pelo facto mesmo de parecer tao dbvia ela se nos afigura insuficientemente cri- tica e, logo, como inutilizdvel para um pensamento do fotografico. E préprio deste século que se encaminha para deixar de ser nosso © comprazer-se em passar atestados de incompeténcia ou de ingenui- dade teérica aos que vieram antes de nds sem que se tenha, as mais das vezes, sequer a preocupaciio de reaver desses ditos 0 pensa- mento. Grande parte do que se tem dito do — e estigmatizado no — pensamento oitocentista sobre a fotografia falha em apreender as profundas perturbages conceptuais que essa imagem, entéo novis- sima, p6de suscitar: ou, para apresentar um outro aspecto do movi- mento de pensamentos incapazes de repararem nos seus tropegos, frequenta-se 0 passado, nas suas imagens e nas palavras que dele nos chegam, para ndio ver nas primeiras o que clas tiveram de mais fascinante e para nada mais escutar nas tltimas que os ecos de mur- mtirios que sio apenas nossos. Tais atestados — ou atentados — visam antes de tudo o mais aparecer como a condig&o implicita da 6 FIGURAS DO ESPANTO maturidade daquilo que apenas hoje parece possivel dizer. Assim é com grande ntimero de discursos que, debrugando-se sobre a foto- grafia para dizerem 0 que € que ela pode ou deve ser hoje, se vem obrigados, para sairem do mero bavardage, a reduzirem a conversa fiada tudo aquilo que para tras ficou dito: obrigados, para nao serem eles mesmos tidos como ingénuos, a reduzirem A ingenuidade o pen- sar dos outros. Conversa fiada tida como ingénua, onde uma erudi- gao de curto félego mergulha, de quando em quando, para recuperar algumas pérolas de cultura, Fechamento redutor do discurso sobre o fotografico que é parti- cularmente sensfvel nos escritos de um Philippe Dubois que, numa operacao que nao poderiamos classificar sendio como uma auténtica terraplanagem teorica, pretende fazer-nos aceitar 0 cardcter neces- sariamente primdrio dos discursos novecentistas sobre a fotografia, reduzidos por ele mesmo a ingenuidade de um discurso da mimésis fotogrdfica. Segundo ele a fotografia, entio entendida como espelho do real, veria “o seu efeito de realidade... primeiramente... atribuido a semelhanga entre a foto e o seu referente. A fotografia, no seu ini- cio, nao € percebida pelo olho ingénuo sendo como um analogon objectivo do real... trata-se aqui do discurso primeiro (e primério) sobre a fotografia’?, O que pode estar em jogo nestas palavras? Em primeiro lugar, sublinhar a nao ingenuidade daquele que as proferiu e, no mesmo movimento, colocar o seu saber um degrau acima de qualquer sus- peita... Mas, também e sobretudo, ocultar algo para deixar intacto 0 territério ao qual hoje, pensando, se pretende chamar seu. Conquistar, assim, no discurso e para 0 seu proprio discurso, uma especificidade que, emergente de uma ocultagao primeira, de um esquecimento inaugural, se quer inteiramente diferenga. Diferenca esta que nem o discurso da mimésis fotogréfica nem a subsequente desconstrugio desconfiada das suas manipulagées significantes teriam sabido assumir, reclamar para si: a de constituir a fotografia, no seu estatuto indicial, como a marca que atesta a com-paréncia & emulsao sensivel de um existente actual do qual ela decorre causal- mente enquanto emanagio fisica fixada por processos foto-quimicos. 62 OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO Facto este que Dubois apresenta como essencial, confirmado e cele- brado como facto primeiro ou, 0 que é 0 mesmo, facto que Be especificidade mesma do acto: afirmagao do primado da referéncia como ordem fundadora da fotografia, 4 revelia dos dleas dos reen- vios miméticos, a montante das tropelias dos/com os cédigos de tru- cagem. a ; Talvez se compreenda ainda melhor o que est4 aqui em jogo, nesta auténtica profissao de fé da mais recente critica fotografica, se se entender que a conjura referencialista que marcou os inicios dos anos oitenta tende, nas suas manifestagdes mais radicais, a colocar a recusa da mimésis como destino especifico das praticas fotograficas que se pretendem estéticas e, por ai, a reinserir-se no Sa habi- tado por todos aqueles que, sem compreenderem a problemética da referéncia, simplesmente a recusam por pensarem que ela significa antes de tudo o mais uma submissao da fotografia a um novo avatar do realismo. Se nos demarcamos energicamente de um ponto de vista segundo o qual haveria que entronizar fotograficamente a refe- réncia fazémo-lo, sobretudo, pelo pouco respeito que nos merece esse projecto estético radical: este, a ser seguido, rapidamente desembocaria num formalismo negativo ainda mais insustentavel do que uma pretensa “serviddo das semelhangas”. Tais “preceitos” criti- cos podem talvez — na sua negagdo da semelhanga nas SO — dar forma a um projecto ou a uma tendéncia historicamente assi- nalavel na estética fotografica. Duas coisas, no entanto, ndo devem deixar de ser ditas: uma, é que essa queda (no duplo sentido de uma tendéncia e de um abatimento) para a nao figurag’o, é ela mesma dominada por uma referéncia complexada a pintura a qual, precisa- mente, a fotografia contribuiu para empurrar para a abstracgao, a tal ponto que esse projecto — ou essa tendéncia — nao deixa de se constituir, no seu movimento, como um pictorialismo as avessas; outra, imediatamente decorrente do que acabou de dizer-se, é que essa delimitag4o ascética dos horizontes estéticos do fotografico estaria bem longe de dar conta de todo 0 espago no interior do qual é possivel, fazivel e concebivel, uma auténtica experiéncia dos limites da fotografia. 63 FIGURAS DO ESPANTO Nada nos desgostaria mais do que isto: que interpretassem o que acabou de dizer-se como a afirmagio de um ecologismo miserabi- lista da fotografia, como um apregoar do nosso apego ao fotdgrafo- -artesao, espécie subsistente do “faz-tudo da fotografia”. O século XIX interessa-nos, contudo, pelas ricas declaragdes que acompanha- ram as imagens fotogrdficas que ent&o se produziram: ricas, pela presen¢a nelas de um espanto ainda nao domado por uma cultura que lhe fosse especifica, naqueles tempos em que a profusio medfo- cre das fotografias, a capilaridade das aplicagGes do dispositivo foto- grafico e a qualidade de algumas produgées ainda nao tinha con- duzido a esta multiforme institucionalizagdo do fotogrdfico que conhecemos hoje. Na abordagem das produgées fotograficas de entao, bem como dos discursos que com elas se entreteciam, a én- fase dada & mimésis fotografica sera tanto mais falseada quanto mais se a reduzir, apenas, 4 manifestacdo de uma submissao cega as cate- gorias estéticas que entio regiam na arte os exercicios veristas da pintura e do desenho: & que, devido a precariedade dos meios instru- mentais, devido ao cardcter rudimentar do dispositivo fotografico, cada fotografia era ent&éo um combate travado a custo contra 0 tempo e contra 0 clima e, nos primeiros retratos, contra a propria humanidade do modelo. Tratava-se entao, em cada fotografia, de levar a bom termo uma batalha mecdnica, nada mais sendo os des- pojos que pela vit6ria cabiam ao vencedor que uma aparéncia arran- cada a algo ou a alguém, imagem que na insignificancia dos seus reflexos estava longe de deixar perceber as violéncias que tinham _- acompanhado a sua génese. Na realidade, independentemente desta conquista fotogrdafica dos aspectos as figuras oitocentistas do espanto estiveram bem longe de se cingirem a uma exagerada constatagao das capacidades miméticas do novo medium. Afirma-lo, € precisamente Ppassar ao lado de \ alguns dos mais belos depoimentos que as fotografias foram capazes de suscitar. E verdade que se falava entio em desenho, sublinhando enfaticamente a extremada exactidao com que o desenho fotografico podia proporcionar uma maravilhosa restituigao das formas: mas, acima de tudo, € preciso pensar que esse maravilhoso participava 64 OS LIMITES DE UMA PERTURBACAO inda nesses tempos do nunca visto. Porém, 0 que por agora nos interessa € que esse desenho era referido 4 magia a de uma representagdo que se fazia sozinha ou, comoyo ei em 1839 William Henry Fox Talbot, em termos nao muito distantes Ce que Rudolf Arnheim viria a utilizar cento e quarenta anos depois, ao “processo pelo qual os objectos podem ser levados a delinearem-se a si mesmos sem a ajuda do lapis do artista’. Do mesmo mods que aquilo que se aloja, como implicito, na mimésis Le no século XIX é de molde a exigir de nds 0 salto que (sesame tornar esse implicito pensdvel, também aquilo que hoje € para nés banal podia entao, de pleno direito, ser espantoso... A explicagao do nome desenho fotogénico como Drees pelo qual os objectos podem ser levados a delinearem-se a si mesmos sem a ajuda do lapis do artista” descreve, de um modo quase pace tural, o episdio fundador da invengio da fotografia por William Henry Fox Talbot. Ocorrido nas (ainda hoje) belas margens do ED de Como em Italia, esse episddio teve qualquer coisa de Ce cio de frustragdo: “... estava eu a divertir-me nas uadlnsiits Sa do Lago de Como em Italia, tirando esbogos com a camara licida de - Wollaston, ou antes, deveria dizé-lo, tentando tird-los: mas com 0 E menor sucesso possivel... Apés varios ensaios infrutiferos, pus ce _ lado o instrumento e cheguei a conclusao de que o seu uso TS um conhecimento prévio do desenho que infelizmente eu nao a Pensei ent&o em tentar outra vez um método que tinha tentado ha H muitos anos atras. Este método era prover-me de uma camera obs- cura e fazer incidir a imagem dos objectos num pedago de papel - situado no seu foco — imagens feéricas, criagdes de um momento € destinadas a um desvanecimento veloz. Foi durante estes pena tos que a ideia me ocorreu — quao encantador seria se fosse possi- _ yel forcar estas imagens naturais a imprimirem-se a si mesmas dura- velmente e a manterem-se fixas no papel”. ; A camara lticida era um dos varios meios intrumentais pelos quais, quando a fotografia nao tinha ainda aparecido, se ;procurayg mecanizar e facilitar a pratica do desenho: objectivos muito imperfeita- mente conseguidos, j4 que neles a humanidade mesma do desenhador 65 FIGURAS DO ESPANTO. era precisamente aquilo que mais inapelavelmente comprometia a restituigéo, pelo desenho, dos aspectos que se pretendiam represen- tar. A perspectiva fora ja, desde 0 Quattrocento, pelo menos na sua ideia, uma método de desumanizacao parcial do desenho na pintura: com ela se enceta, e através dela se Prossegue, um processo de orde- nagao matemiatica do visivel subordinado, no seu desenvolvimento, a uma representagdo matemiatica da ordem’, E a partir de entio que 0 olho e a representaco so colocados sob a alcada de leis que se preo- cupam quase nada com quem vé e desprezam, igualmente, a natu- reza daquilo que € visto. Situando-se inteiramente no interior desta linhagem da represen- tagao mecanizada a camera lucida consegue, até certo ponto, através de uma mecanizagio do complexo olho-mio, retirar A produgao de imagens parte dos dleas que até entdo nela persistiam teimosamente, em virtude das imperfeigdes préprias da humanidade do agente da representacao. No entanto, e a prestarmos atengo as palavras de Talbot, duas coisas sdéo evidentes: primeira, que essa mecanizagao ainda nao era suficiente para dispensar o desenhador dos trabalhos de desenhar; a segunda, que certos “desenhadores” havia que, nem com 0 concurso da camera lucida, nem com o trabalho mais obsti- nado e com a paciéncia mais pertinaz, haveriam alguma vez de con- seguir desenhar satisfatoriamente 0 que quer que fosse. A ideia de Talbot que, sem jogar com as palavras, podemos classificar como “Juminosa”, situava-se no cruzamento de duas exigéncias, até entio por resolver: conseguir uma representacAo satisfatéria de um objectd ou cena com o minimo de esforgo, através de meios que exigissem do sujeito operador a menor competéncia possivel. Com algum exa- gero, a propdsito do processo de Daguerre, 0 entéo Ministro de Policia da Monarquia de Louis-Philippe, 0 Conde Duchatel, afirmou tao lapidar quanto entusiasticamente: “até um incapaz consegue, gracas a este procedimento, obter desenhos perfeitos como os de um artista provecto”s, Deixemos por agora em suspenso uma investiga- ¢ao em torno do que entao se podia conceber como uma representa- ¢ao satisfatoria, bem como dos choques que essas concepgées sofre- ram com 0 aparecimento dos processos e das técnicas de produgao 66 OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO de imagens fotograficas. Digamos antes que, face as exigéncias acima mencionadas, a ideia que fez correr Talbot e Herschell, Daguerre, Bayard e outros continha, entre outras Coe uma aposta arrojada: fazer com que a natureza se fizesse de si mesma a dese- nhadora. f Sabe-se que Talbot conseguiu levar a bom termo os seus Pro ees tos, e que as camerae obscurae, armadilhadas com solugdes quimi- cas, se tornaram rapidamente no vade mecum de eleigio (se bem que por vezes “boiteux”) de uma multiddo crescente de deserdarios do desenho e da pintura. Como no-lo deixou escrito 0 proprio Talbot, “existe, seguramente, uma via régia para o desenho, e um destes dias, quando mais conhecida e melhor explorada, ela seré provavel- mente muito frequentada. Jé varios ‘amateurs’ (em francés no texto) puseram de lado 0 lapis e se armaram de solugGes cpl a came rae obscurae. Aqueles amadores, especialmente, e cles nao sao um punhado, que acham as regras da perspectiva dificeis de aprender e de aplicar — e que para além disso tém o infortiinio de serem pre- guicosos — preferem utilizar um método que os toes co ode as macadas”?. Nao nos interessa, por agora, entrar no peas infinito que constituem as produgGes e os trajectos dessa multidao de forre- tas do visivel que cedo comecaram a empregar a camara e os subter- fdigios da quimica para poupar para o olhar as visibilidades evanes- centes dos seus mais variados momentos. Isso seria condenar-nos Cs abandonar o periodo no interior do qual, sendo 0 processo See fico uma descoberta em vias de se fazer, cada fotografia podia ainda ser ao mesmo tempo objecto de culto e de espanto. Porque espantoso era af 0 proprio processo, que forgava a natu- reza a dar de si mesma a imagem, esse dispositivo que, por meio de um cimulo de artificio, permitia a obtengio daquelas que foram ento tidas como as mais naturais de todas as imagens. A tal ponto que 0 espanto, em Talbot, face a essa magia natural das. imagens fotogénicas, nao tinha tanto que ver com uma incapacidade de reagir face a objectos de espanto, nem com uma espécie de. apetite devora- dor suscitado pela efigie representada: tinha que ver, sim, com a cong tatag’io da sua propria posicao no interior do processo de produgao 67 FIGURAS DO ESPANTO dessas imagens espantosas, uma posi¢ao periférica no interior de um dispositivo em que as imagens literalmente se faziam. Daf, sem dtivida, uma certa humildade que se manifesta em Talbot e que nos parece ser caracterfstica dos primeiros fotégrafos em relagao ao seu papel na produgao dos “efeitos fotogénicos”, humildade essa alids muito justamente assinalada por Gail Buckland no seu excelente livro sobre a invengio da fotografia por Fox Talbot: “Talbot apon- tava a camara ou pousava a folha no papel, mas achava as suas acgdes pequenas quando comparadas com os feitos das leis da natu- reza que criavam realmente a fotografia’. Mais do que um pretexto para fazer ouvir uma nova litania do sujeito, as primeiras experién- cias fotograficas foram antes, para os primeiros fotégrafos, a ocasiao em que uma nova técnica inventada pelo homem vinha permitir ao mundo que ele se celebrasse a si mesmo. Continuando a falar dessa — hoje tio — estranha humildade dos primeiros fotégrafos, e permanecendo no encalgo de William Henry Fox Talbot (talvez mais humilde porque mais resoluta- mente homem de ciéncia do que contaminado pelo virus da “cria- ao”), dar-nos-emos ao trabalho de dizer ainda uma vez mais que ela era determinada, precisamente, por aquilo que na invengaio fotografica constitufa propriamente novidade. Esta, com efeito, colocava o seu operador na postura excéntrica de um sujeito (quase) indiferente, que pouco mais podia fazer do que accionar 0 dispositivo mecfnico que comegava ent&o a permitir que as ima- gens se fizessem sozinhas. A fotografia, ao conceder A natureza os poderes que lhe permitiam assumir, ela mesma, o trabalho da sua propria representagao, parecia por isso mesmo aumentar as possi- bilidades do seu cumprimento como natureza. Talbot: “De todas as anteriores, a presente invencao difere totalmente neste aspecto... que, por meio deste artificio, nao é 0 artista que faz a imagem mas a imagem que se faz a si mesma. Tudo o que 0 artista faz é dispor 0 aparelho face ao objecto de cuja imagem necessita; ele deixa-o entao por algum tempo, maior ou menor, segundo as circunstan- cias. No fim desse tempo ele volta, retira a sua imagem, e encon- tra-a pronta’’®, 68 OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAQ Que espantoso podia entao ser este aparelho rudimentar no uso do qual, quem pretendesse obter da natureza as suas imagens mais “naturais, se veria confrontado com a necessidade de deixar o real ntregue a si mesmo, obrigado a procurar obter, no interior da subtil conjun¢ao de uma cena e de um aparelho a transmutacio — quase sagrada! — de uma folha em branco no duplo de um aspecto desco- ‘nhecido. Pois com as primeiras camaras, aquelas de que Talbot se ferviu como precursor que foi, fotografar uma coisa nao era dela fixar um aspecto j4 visto, conhecido; pelo contrario, a operagao “necesséria para conseguir uma imagem assemelhava-se af a um dis- paro, 4 queima-roupa, em plena obscuridade, objecto de um controlo deficiente e inseguro. Com as imagens obtidas nessas primeiras ‘maquinas fotograficas, é todo o estatuto tradicional da imagem que se poe a vacilar. | Esta afirmagao obriga-nos aqui a um pequeno desvio. A imagem ece-nos ter sido sempre — ou dominantemente — tida como a sdo imagens —, orientam-se segundo um critério semidtico que pos- tula a necessidade de um conhecimento, ou de uma experiéncia cola- facto com (furnish acquaintance with) ou reconhecimento desse | Objecto; pois é isso que se entende neste volume por Objecto de um Signo; nomeadamente, aquilo com que ele pressupde um contacto em ordem a transmitir mais alguma informacao a seu respeito”!®, A um - faciocinio deste tipo nao nos parece escapar a desvalorizacao plato nica das cépias das cépias, ou simulacros, as criticas medievais aos|| “{rrealismos simbdlicos” de algumas decoragées mais arrojadas de Obras piedosas!!, bem como o reconhecimento por pregadores como’ Giovanni da Genova ou Fra Michele da Carcano das virtudes da ima- gem para a educagao religiosa dos leigos!2, para a preservagao na 69 FIGURAS DO ESPANTO mem6ria destes das cenas devotas e, ainda, para potenciar uma devo- ¢ao mais exitdvel por coisas vistas do que por coisas ouvidas (opi- niado também partilhada, por exemplo, por S. Joao da Cruz. A tal raciocinio nao nos parece escapar, também, a dentincia dcida que do teatro faz Rousseau na sua famosa carta a M. D’ Alembert'3. Poderia- mos, obviamente, multiplicar os exemplos até 4 desmesura. Parece-nos entéo que a imagem apareceu deste modo, e quase sempre, sustentada, do ponto de vista do seu construtor, e caucio- nada, do ponto de vista do que a recebe, pela mediagao necessaria ou pelo menos possivel de um recurso a uma visibilidade prévia, realmente levantada da vida ou recolhida da representagao. Visibilidade essa para a qual a imagem apontava e que, reconhe- cendo-a, 0 sujeito visava. E nesse sentido, por exemplo, que o dese- nho anatémico em Leonardo da Vinci exigia exemplarmente um olho educado para os trabalhos do ver, se aceitarmos entender aqui este verbo como o exercicio inteligente do olhar: exercicio que, por referéncia as regras técnicas do desenho em perspectiva, deveria permitir corrigir e ajustar o trabalho eficiente (efficiens) da mao do artista. Toda a linhagem que comega com as maquinarias 6pticas de Brunelleschi para terminar, nas vésperas da invencio da fotografia, em aparelhos amadores como a camera lucida nada mais fez que transformar, dentro de certos limites, um constrangimento correctivo ainda demasiado voluntario na imposigao ao olho de dispositivos prostéticos capazes de constrangerem os desempenhos da mao a adequarem-se ao exercicio de uma visao corrigida. Em todos estes casos, nos quais se manifesta uma concep¢ao ortopédica da repre- sentagao, parece-nos ter estado em jogo, sempre, algo como uma adequagdao do ver ao ja visto que era, também, uma submissao ao que o jd visto deixava jd prever: 0 que nao exclufa o sujeito, por outro lado, da visibilidade do que estava a ser feito. E em relacao a esse sentido tradicional da imagem, e da produ- ¢ao das imagens, que William Henry Fox Talbot se encontrava numa posi¢o radicalmente nova, numa situagao radicalmente dife- rente: 0 cardcter rudimentar das suas cAmaras extremou até ao quase- -impensavel a exclusao do agente humano na feitura da imagem. 70 OS LIMITES DE UMA PERTURBACAO Com efeito, nio contentes com obrigd-lo a delegar inteiramente nelas 0 oficio do ver, elas iam até ao ponto de impedirem, de um modo que nao poderia ser mais radical, a coincidéncia entre aquilo que Talbot podia ver e aquilo que elas poderiam capturar desse visto. Apontando a sua cdmara para um qualquer objecto ou cena, Talbot estava obrigado a guiar-se por uma visibilidade conjectural da qual podia prever os contornos mas cuja integral efectivagao pelo dispositivo nao podia garantir na integra. Dai que as “suas” imagens nao pudessem, precisamente, ser imagens no sentido tradicional do termo, como muito bem o sugere uma vez mais Gail Buckland, pois “ele nado controlava a perspectiva, composi¢ao, contetido, linhas de €nfase, nada mais do que a direcgao para a qual apontava a cAmara... © seu objectivo era esperar até que a imagem se fizesse e entao olhar muito, muito cuidadosamente para 0 resultado’, Nesses tem- pos dificeis para os fotégrafos, era o préprio corpo duro da camara, com toda a sua obscuridade, a opor-se de um modo sobe- tano a plenitude da intengdo do operador, essa mesma intencionali- dade que, regra geral, ainda hoje leva a que raramente se dispare a maquina sem primeiro ter visto. Destinadas a serem recebidas até, e sobretudo, por aqueles que punham em marcha 0 processo da sua construgao, essas imagens-experimento nao poderiam, decidida- mente, ser tidas como iguais a quaisquer outras que as tivessem precedido. Na verdade, nao eram apenas as suas invisibilidades que faziam das primeiras fotografias — aquelas em que ver, de certa maneira, nao era ainda rever — figuras do espanto. Mentir-se-ia, também, ao pretender que elas 0 eram apenas porque se faziam sozinhas, porque nelas a natureza, assumindo sem sobressaltos 0 trabalho da sua pr6- pria representagao, graciosamente se oferecia em imagem aos olhos dos homens do século fotografico. Nao. Um outro foco dos espantos da nova técnica tinha precisamente que ver com o facto de que, de entre todas as poténcias naturais, a fotografia assegurava um con- {rolo maravilhoso sobre a mais nobre, sobre aquela que desde sem- re fora reputada como divina: for¢a do sol ou, se o preferirmos, o po: der da luz. Esquivar-nos-emos de prosseguir aqui a tarefa vain n FIGURAS DO ESPANTO que seria uma exploragdo metaforoldgica do tesouro de imagens que péde acumular-se, durante eras inteiras e através de toda a histéria da humanidade, em torno da oposigao das trevas e da luz: essa tarefa, para ser levada a bom termo, necessitaria ser prosseguida ao longo de varias vidas centendrias!5. Como dizia Rudolf Arnheim em 1933, “o primitivo mas sempre eficaz simbolismo da luz contra a escuriddo, da pureza branca contra o mal negro, é inexaurivel”'s. Voltemo-nos, pois, para objectivos mais modestos! Os préprios termos de que Talbot se serviu para nomear a sua descoberta parecem, no entanto, situar-se inteiramente no interior desta oposigao téo vetusta e de tao nobres tradigdes que acabou por se ver, subitamente, materializada nas superficies lisas das provas fotograficas. Photogenic Drawing, desenho fotogénico, reenvia-nos | com efeito, através dos seus radicais gregos para a ideia de um dese- nho que procede geneticamente da propria luz ou, ainda, cuja génese | € precisamente 0 trabalho da luz. Tudo estaria muito bem se uma nota constante dos didrios de Talbot, datada de 1835, nao viesse revelar-nos que a proto-hist6ria da fotografia também conheceu as suas vacilacdes e — porque nao? — entre estas vacilagdes algumas variacdes sobre este vetusto tema. Com efeito, antes de se decidir pelos mistérios da luz Talbot teria experimentado as vertigens da obscuridade: pois af se refere com clareza a obscuridade fundamen- tal e constitutiva da fotografia, 0 que poderia ser chamado 0 seu ser caliginoso, ao se nomear 0 processo fotogénico como skiagrdfico'” (do grego skia, sombra, escuridio). O que nos legitima inteiramente no pensar a calotipia (termo cuja etimologia grega é interessantis- sima!8), essa escrita fotogénica, como uma grafia constituida por sombras. Momento exemplar de uma ambivaléncia que manifesta, na foto- grafia, o poder do que nao é estritamente da ordem do fotografico, de cujo desenlace nao estiveram ausentes, decerto, algumas conside- ragdes morais provavelmente lticida | ficou a devei-se na sua ambivaléncia ao facto de a fotografia asso- mas que, fundamentalmente, ciar real e geneticamente a luz a produ¢ao de sombras. Processo peri- ie portanto, em virtude desta associagdo aparentemente inusitada OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO que ameaga anular, pela fisica e pela quimica, aquela que parece ser uma oposi¢ado fundamental do imaginario. Tal como nos parece que nao poderia ter deixado de ser, privile- giou-se 0 lado luminoso da alternativa que se colocava em relagéo a escolha de uma designacdo apropriada para 0 processo. Fotogenia, fotografia, etc... Mas nada nos autoriza a pensar que apenas uma aversio cultural pelo obscuro permite uma explicagio satisfatoria do que esteve aqui em jogo: a dignidade desta nova técnica que permi- tia, a partir de entdo, completar a insuficiente perfeigao da natureza humana estava no modo pelo qual ela tomava do mundo natural, para o fazer, nao uma falha mas uma graga. Ou, para falar com mais propriedade, algo que, no interior de um prolongar da natureza, acede ao estatuto de uma dadiva natural capaz de resultados que par- ticipam do maravilhoso: a luz. Assim se pode compreender que, em Itdlia, Giovanni Minotto pudesse dizer, aquando da divulgagao do daguerrestipo em 1840, que hoje em dia também da luz se pretende que ela venha em socorro da industria humana e, como se fazer-nos yer os objectos préximos fosse insuficiente oficio para ela, se quer também que ela nos faca ver os longinquos e, feita pintora, deles registe muitas e durdveis imagens”!’. Na realidade, é a luz que nos dé a ver o mundo, no sentido em que é dela que o ver se socorre e[ nela que o olho se move: contudo, ela nao pode tornar-se visivel sem que uma opacidade, como diria Peirce, obsistente, a detenha na sua) _ propagacio rectilinea. Ora, é precisamente a sua intercepgdo por uma placa que resiste 4 sua propagag&o que permite fazer dela o arti- fice mAgico (0 termo é de Talbot) dessas imagens que se fazem sozinhas. Intercepg&o que prolonga a luz como graga, para 0 ho- mem, € que a acrescenta nas suas forgas, actualizando como poder efectivo aquilo que até entao tinha permanecido uma poténcia vir- tual do mundo. Estas primeiras imagens, na recepgdo espantada que suscitaram dos seus contempordneos, sao de molde a suscitar em ndés, por sua yez, 0 pensamento de uma acheiropoiética da luz”, conceito que permite exprimir com rigor a diferenga especifica de uma imagem jue pela luz se faz a si mesma, livre da intervengao da mao do 3 FIGURAS DO ESPANTO homem, como sugere precisamente a descri¢o de Talbot segundo a qual sao os préprios objectos do mundo que se delineiam a si mes- mos. Mas isso nao é tudo: nessas imagens a presenca da luz era tao forte e tao fantdstica, manifestada no seu espantoso trabalho, que, nao raro, em vez de constituir a fotografia o pretexto configurado para um qualquer reconhecimento, ficava-se 0 olhar pela constata- gao inebriada — coisa aparentemente tio simples! — da existéncia , miraculosa da luz. Como 0 disse Massimo Tortelli, “a fotografia é essa arte maravilhosa que transforma um raio de luz num lapis magico e a constrange a figurar com signos indeléveis a fisionomia das pessoas caras, da amiga que esté longe; esta arte piedosa que nos conserva as reconfortantes imagens dos que j4 nao existem, revivifi- cados sob os nossos olhos naquelas aparéncias sinceramente retrata- das pela luz mesma que dos seus olhos amados se reflectia”2!. A todo um meio século, pelo menos, de espanto com os trabalhos da luz nao podemos nds, hoje, continuar a fechar os olhos... Os modos oitocentistas de relacionamento com as fotografias nao se ficavam, porém, por essa piedade quase passiva da retengao fotogrdfica, tal como nao se esgotavam na constatagiio alucinada de um ser da luz que queimava a imagem para nela se impor aos olha- res. Na realidade, a humildade fotografica de um Talbot e a piedade daqueles fotégrafos que entdo iniciaram uma incansdvel anexagao do visivel cedo foram continuadas por, e transmutadas em, um senti- mento de poder até entéo nunca experimentado. Tal poder nao se j teduzia, por sua vez, & capacidade de fazer da luz o Idpis da natu- reza. Tratava-se, antes, do poder de desafiar 0 tempo na sua corrida inexoravel, de desafiar pela amortalidade da imagem o trabalho ine- xordvel do envelhecimento que devasta os corpos até a morte... tra- tava-se, em suma, de desafiar esta ultima pela persisténcia da ima- gem apds a decomposigao do corpo desaparecido. O poder, em suma, de guardar para um hoje que ainda nao é a imagem de um hoje condenado a jd ent&o nao ser. Beaumont-Newhall, na sua hist6- ria da fotografia, refere 0 slogan ao mesmo tempo perverso e revela- dor que, aproveitando uma “sensibilidade 4 mortalidade tio proemi- nente no século XIX, quando a taxa de mortalidade, particularmente 4 OS LIMITES DE UMA PERTURBACAO entre as criangas, era alta”, se podia ler nos escaparates dos ofician- tes do retrato fotografico de famflia: “retenha a sombra antes de que a substancia se extinga/deixe que a Natureza imite aquilo que a Natureza fez”22. A ocorréncia da palavra Natureza, utilizada aqui para dar conta de duas ordens de fenémenos em principio tao distin- tas como a reprodugao humana e a reprodugao mecanica das aparén- cias por intermédio dos processos fotograficos apenas pode ser inter- pretada como mais um indicio de algo que nao deveriamos, aqui, deixar passar despercebido: a extrema fecundidade imagindria da posigfio da fotografia, mais do que como uma simples técnica sepa- rada da natureza, como o cumprimento natural de virtualidades ja contidas nesta ultima. A superficie do mundo, dificilmente podem os nossos olhos experimentar a temporalidade diferida da propagagao da luz, ficando-se eles antes pela cémoda ilusdo do instantneo. As nossas luzes teimam sempre em ser demasiado velozes e em fazer com que 0s momentos das suas partidas e das suas chegadas nos paregam ser sempre coincidentes. Para que a luz perca para nés essa sua exaspe- rante pontualidade, para que possamos ter o privilégio de receber uma luz envelhecida, torna-se necessdria a interposigao de distancias cuja imaginagao é para nds assaz penosa, se ndo impossivel. Assim € com a luz das estrelas, por exemplo, como no-lo mostra esta nota do pintor Delacroix, concernente aos daguerreétipos que da estrela Vega foram conseguidos — por alturas de 1850 — pelos astréno- mos de Cambridge: “Como a luz da estrela que foi daguerreotipada levou vinte anos a atravessar 0 espaco que a separa da terra, 0 raio que a placa fixou tinha, assim, deixado essa esfera celeste muito antes de que Daguerre tivesse descoberto 0 processo gragas ao qual acabdmos de conseguir controlar essa luz”. A monstruosidade da disténcia que aqui esté de permeio deveria dar-nos que pensar em relagio aos estranhissimos efeitos de distan- ciagio espdcio-temporal que a retengdo fotografica introduz no nosso relacionamento com as aparéncias do mundo. Recorte do visi- vel e talhe abrupto do tempo, o acto fotografico nao s6 necessita da distancia espacial do seu objecto, que ele torna condi¢ao necesséria FIGURAS DO ESPANTO. para a possibilidade da sua efectuagdo, como institui ainda uma radi- cal separagao — no tempo — entre esse objecto e o aspecto fotogra- fico que dele se extirpa. Separag&o que nao cessa de se aprofundar, como uma espécie de chaga do tempo que nenhuma coisa ou desejo, trabalho ou esforgo poderao, a partir de entao, jamais sarar. Separagao sensivel, logo no inicio, no momento cego em que uma imagem latente, depois de nos ter obrigado a esperar pela sua revela- ¢4o, lentamente se forma sob os nossos olhos fascinados: af, como tao bem o dizia Max Kozloff, “cada vez que uma fotografia € reve- Jada, volta para nés 0 vestigio de uma vista perdida, como se recupe- rada de algum abismo”**. Cabe aqui um paréntesis: como em breve veremos, a recuperacado fotografica dos aspectos corresponde a algo mais do que ao exumar das ruinas da percepgao, no sentido em que estas amostras de tempo apreendido ao seu fluir, na sua inteireza, na sua completude e perfeigao fotograficas, consignam em imagem uma vista excessiva que a cada momento se nega aos exercicios vagabundeantes do olho na percepgao natural. Essa fragmentagao fotografica da propagacdo da luz que asse- gura 0 transporte dos aspectos e 0 ritmo irregular, dit-se-ia mesmo a cintilagao alucinatéria, que dai decorre para algumas aparéncias deste mundo parece, na maior parte dos casos, a nao chegar a ser percebida como efeito de distancia. A fotografia instauraria antes um regime de proximidade dos longinquos através de um multiface- tado processo de substituigdo do objecto pela sua imagem, através de uma subtil confusao entre a pessoa e a sua efigie, confusdo essa a que nao é estranho 0 facto de que é a propria luz reflectida pelo foto- grafado que é retida e fixada nas imagens que, nao lhe pertencendo por vezes, sao no entanto sempre estranhamente suas. Como o dizia Elizabeth Barrett, j4 em 1843, “desejo possuir a recordagao de todos os seres do mundo que me sao queridos. Nao é s6 a semelhanga que é preciosa em tais casos — mas a associagiio e a sensagao de proxi- midade (...) 0 facto de a propria sombra da pessoa estar ali fixada para sempre. Penso que é a prépria santificagdo dos retratos — e nao me parece monstruoso dizer, apesar dos protestos veementes dos meus irmaos, que preferia ter uma recordac¢do assim de alguém que OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO muito amei, do que a obra de arte mais nobre jamais produzida’”5. Ressonancias humeanas implicitas nesta avaliagao do facto fotogrd- fico afirmam, aqui, para além da reprovagao das belas-almas artisti- camente educadas, esse estranho poder que tem a fotografia de for- nar mais vivas as nossas ideias pela mediagao da associagao, a uma impressao presente, da representagdo de uma contiguidade e de uma causalidade passadas. situa-se precisamente no ponto em que esta mesma sombra retida pela imagem, sendo representada pelo sujeito como causalmente decorrente da accao da luz reflectida pela pessoa, adquire 0 estatuto de uma reliquia. Para uma melhor compreensao deste processo, deverfamos referir-nos aqui directamente aos escritos de David Hume, mais precisamente, 4 passagem do seu Tratado da Natureza Humana onde se procuram elucidar as razdes que podem conduzir os devotos a atribuirem tanto valor as reliquias dos santos. Quer se tratasse entdo de objectos produzidos pelas maos dos virtuosos ou, simplesmente, de objectos pessoais que lhes tivessem, em vida, sido contfguos, as reliquias estariam “ligadas a eles por uma série de con- sequéncias mais curta do que qualquer das que nos fazem saber que eles existiram realmente”26, constituindo-se assim para 0 sujeito devoto como uma materialidade presente que aproxima, de certo modo, uma corporalidade ausente ou, como o colocava ha pouco §. Joao da Cruz, “invisivel”. E numa relagiio deste tipo que devem procurar-se as raizes do sentimento de proximidade evocada por Elizabeth Barrett, relacdo essa que se entrelaga aqui com a fabrica- gdo ou com a preservagao de uma crenga. Porque, como no-lo dizia ainda Hume, “uma impressio presente junta a uma relacdo de causa- lidade (que no seu sistema pressup6e sempre & ja a representagao associada de uma contiguidade) pode avivar qualquer ideia e pode... por conseguinte produzir a crenga ou 0 assentimento””?’. f E possivel que um dos problemas fundamentais que a fotografia desde sempre tem vindo a levantar seja, justamente, 0 das crengas fotogréficas (para nao falar nos seus credos). Face a fotografia, pode bem ser que a questao de saber como e porque é que se acredita nas A santificagio dos retratos, de que fala aqui Elizabeth Barrett, | A FIGURAS DO ESPANTO Jotografias seja a questao. Questo, no entanto, para a qual nao é facil encontrar uma resposta, j4 que a propria transparéncia apa- rente da maioria das imagens fotogrdficas constitui como que um écran impeditivo e enganador: transformada em opacidade, a evi- déncia transparente das fotografias constitui também, na proximi- dade excessiva da sua banalidade hodierna, um obstdculo epistemo- l6gico de monta para quem desejar colocar-se essa interrogacio. A l6gica da reliquia, e da proximidade de um longinquo tornada possivel pela causalidade pressuposta num saber da génese meca- nica da imagem (J.-M. Schaeffer falaria aqui de um saber da arché Jotogrdfica, de um saber da sua origem ou princfpio), poderia servir aqui como o embraiador para uma exploracgio imediata das modali- dades e mecanismos pelos quais as fotografias contribuem para ou impedem a fixagiio das nossas crengas. Essa investigacao, que com toda a propriedade relevaria de uma semidtica da fotografia, deixé- -la-emos aqui em suspenso: nao pretendemos alongar as referéncias a semiotica mais do que julgamos ser estritamente necessdrio para tornar inteligiveis certas subtilezas das atitudes oitocentistas face a fotografia, atitudes cuja especificidade constitui 0 objecto desta pequena pesquisa. Ao invés disso preferimos ficar-nos, por agora, pelos negativos dessa santificagao dos retratos a que se referia Elizabeth Barrett, procurando encontrar nos temores face 4 imagem fotografica a prova, ou peto menos 0 indicio, da existéncia de cren- gas fotograficas muito especiais. E verdade que o daguerrestipo e, muito em geral, os demais pro- cessos fotograficos, foram no inicio rodeados de segredo. Nao nos referimos aqui ao sigilo interessado e interesseiro pelo qual Daguerre e Fox Talbot preservaram do conhecimento dos seus con- tempordneos a descrigao instrumental e operativa dos respectivos processos. Referimo-nos antes ao facto — que, antes de tudo 0 mais deriva da prépria natureza indutiva das investigagOes no interior das quais a fotografia péde aparecer como processo performante — de que, no século XIX, a natureza ainda se mantinha muito ciosa dos seus segredos quanto aos “comos” da imagem fotografica. Mas, mesmo num século profundamente positivista, nao eram os cientistas OS LIMITES DE UMA PERTURBACAO inteiramente desprovidos do poder de imaginar expedientes para procederem ao desvendar desses modernos mistérios da luz: e, se nos primeiros tempos a exploragio das “ignotas propriedades da luz” colocava muitos problemas a quem pretendesse explicar o fun- cionamento da daguerreotipia, j4 por alturas dos anos 80 do século passado se tinha dominado 0 essencial da explicagiio dos processos fotograficos. Explicacaio essa que entretanto foi sendo posta a dispo- sigdo de quem quer que tivesse uma formagao cientifica primeiro mediana, logo até mesmo mediocre. Nao se pense, porém, que 0 conhecimento das propriedades da luz, e dos “comos” escondidos do processo fotogrdfico, eram de molde a impedir 0 exercicio ficcio- nal da imagina¢do positiva: orientada segundo o ideal de uma trans- crigéo imediata do facto, ela encontrava na fotografia um aliado de eleigao. ¢ Janos anos noventa, o psiquiatra Baraduc aplicava 0 seu olho de fotégrafo a tentar captar com o lépis da natureza as “emanagoes flui- dicas” da alma humana. Mistério de uma luz outra, invisivel a olho desarmado, mistério que traia a grosseira indeterminagao do que se podia entéo saber da nao coincidéncia, no espectro luminoso, das _ radiagdes quimicamente activas e das radiagdes opticamente visi- yeis. Baraduc que, sem mais suspeitas, acreditava — do alto da sua dignidade de médico especialista — na existéncia da aura humana e na possibilidade da sua captura grafica pela placa daguerreana. Via na “forga curva” assim desvendada algo de verdadeiramente extraor- dindrio: um “movimento da alma, porque a alma é 0 que permite 0 movimento sem percurso, portanto a distancia sem separagao, por- tanto o contacto a distancia”...”luz da alma, porque ela é intrinseca, obombrada e invisivel, mas grafdvel 8. Neste processo de figura- ¢%o daquilo cujas formas a natureza ndo nos permite discernir pode distinguir-se 0 trabalho produtivo de uma imaginagio cientista que, entregue a uma arrojada invengao figurativa apoiada na “mais exacta técnica”, tanto mais destinada a cumprir excelentemente o destino positivo da ciéncia como fiel transcrigaéo dos factos: como o colocou G. Didi-Huber- “mann, “tratava-se de registar movimentos e contactos cada vez mais se abre a ficcfio quanto mais inteiramente parece 79 FIGURAS DO ESPANTO subtis: e isto constituiu, portanto, nado o inverso do mito epistémico da total inscriptibilidade-descriptibilidade, mas propriamente a sua realizagao, a sua extrema realizagao”’. Face 4 poténcia espantosa de um sobrenatural em tudo fantastico, Baraduc podia espantar-se ainda mais face ao poder — n&o menos fantdstico, e inteiramente natural — dos novos processos de registo mecdnico das imagens, a fotogra- fia, que o seu século, benfazejamente, tinha colocado a sua disposi- cao: “a placa fotografica permite-nos hoje a todos entrever estas for- gas escondidas e submete assim 0 maravilhoso a um controlo irrecusdvel, fazendo-o assim entrar no dominio natural da fisica experimental”30, Essa tecnologia natural, capaz de se inserir tio perfeitamente na técnica da natureza, marcava aqui o ponto de abertura pelo qual o que parecia exceder esta tiltima podia, finalmente, ser violentamente sugado para o interior dos seus limites. A ficgdio de Baraduc man- tém-se aqui inteiramente justificada no quadro do imagindrio cienti- fico da sua época j4 que, como o dizia Peirce apenas um pouco mais tarde, muito “embora a ciéncia nao possa inferir nenhuma violagao particular do curso ordindrio da natureza, pode bem acontecer que ela venha a encontrar evidéncias de que tais violagdes sao tao fre- quentes e usuais que este facto é, ele mesmo, parte do curso ordina- tio da natureza. Por essa razdo, é perfeitamente apropriado por exemplo, que a ciéncia investigue as evidéncias do cumprimento das oragées, etc. Isso é algo que esta aberto a investigagao cientifica; e até que essa investigacao tenha sido institufda ninguém tem direito a ter qualquer opiniao, ou preconceito, a esse respeito”3!. O que esta empresa fotografica do Dr. Baraduc manifesta de modo particular é uma colusao fundamental que, nao raro, foi constitutiva das utiliza- ¢0es cientificas do dispositivo fotografico: a que associa, na consti- tuigéo de uma racionalidade cientffica registante, as injungdes mate- riais de um dominio instrumental e 0 poder de um imaginario cujo dominio sera tanto mais forte quanto mais desconhecido for 0 que estiver em jogo. Pois esta-se af, precisamente, numa posig40 em que é extremamente dificil envidar esforgos no sentido de “aproximar tanto quanto possivel cada hipétese, que na pratica nao € mais do 80 OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO "que uma questo, da justeza de uma aposta acertada”. A uma cog- - noscibilidade historicamente diferida, ou irreconhecivel como im- possivel o saber da ciéncia apenas pode responder fazendo uso de todo o poder da sua fantasia: e esta alimenta-se dos materiais que compéem 0 imaginario cientifico, mas também literdrio e artistico, que lhe é contemporineo. Justificagao a posteriori: se insistimos aqui em dedicar todo este espago aos embustes fotograficos de Baraduc, a todo esse pretenso desvendar “das verdades ocultas do invisfvel”, é porque insistimos também em pensar que € nas fourbe- ries cometidas em nome da razdo positiva que a racionalidade cien- tifica da sua época melhor se deixa apreender no seu projecto de universal ordenagao. Fora dos cfrculos mais eruditos, contudo, e em alguns territérios escondidos dessa multiddo a qual, por comodidade e confusao, cos- - tuma chamar-se povo, a questéo punha-se de modo diverso: af, tinham curso as ideias mais extravagantes, e os medos mais tradicio- nais encontravam no novo prodigio o pretexto e a ocasiao para se reeditarem. Jé em 1895, Alfred Stieglitz em viagem fotogrdfica pela _ Europa, de passagem pela pequena aldeia piscatéria de Katwick na Holanda, vira os seus trabalhos extremamente dificultados por “uma supersti¢&o que existe entre eles, de que deixar tirar os seus retratos € vender as almas ao Maligno. Um grupo de mulheres e criangas prometia algumas belas fotografias mas, ao primeiro estalido do obturador, levantaram-se de um salto e, pdlidas e assustadas, aban- donaram o lugar. De boa vontade, e na verdade isso parece agradar- -lhes, posam para os pintores que visitam Katwick; e foi sé depois de um artista amavel Ihes ter explicado que nés nao estavamos ali para tirar retratos mas para fazer quadros (muito embora nao usdsse- mos tela nem cores), que elas deixaram que as utilizdssemos no nosso trabalho”33. Receio da perda do duplo no retrato que esta intei- ramente contaminado, nessa pequena aldeia de pescadores ainda perdida em relagéo 4 modernidade do seu século, por todos os medos da feiticaria e dos encantamentos... desconfiemos de quem nos retira a nossa imagem e se apodera da nossa efigie, pois € prova- yel que com ela seja uma parte de nds mesmos que nos € roubada, 81 FIGURAS DO ESPANTO desviada para fins menos benignos. Medo da despossessao da ima- gem pr6pria que é aqui, de um modo que nao poderia ser mais directo, medo da sua possessdo por um outro, medo da possessao por outro: como dizia Lucien Lévy-Bruhl, “a minha imagem, a minha sombra, 0 meu reflexo, o meu eco, etc. 6, ao pé da letra, eu mesmo. Quem possui a minha imagem tem-me em seu poder. Dai a pratica universal do feitigo que em nada difere dos outros modos, tao varia- dos, de feitigaria por meio das pertencas”™. Lévy-Bruhl teria podido citar neste excerto, com toda a proprie- dade, entre todos estes sub-rogados mdgicos do corpo, entre todos esses substitutos de um eu que foge a duplicagao porque nela se aloja a ameaga do seu desvanecimento sob o controlo de um outrem incerto, a imagem fotogréfica. Porque todos os seus exemplos, ecos, reflexos, sombras, manifestam a existéncia de alguém que susbsti- tuem, € que nessa substituigdo se torna — pelo menos potencial- mente — vulnerdvel a sua captura e possess4o por um outro. Quase- -emanagGes que para se transformarem em marcas possufdas por esse Outrem perverso requerem 0 gesto ilfcito, dificilmente confessé- vel, de um quase-rapto. Como explicar de outro modo a captura da efigie, e 0 medo que lhe esta associado, senao por um rapto? Com efeito, a feitigaria dos reflexos parece nao deixar desmentir — antes pelo contrério — aquela impossibilidade que antes se fazia pesar sobre 0 artista no seu confronto com a divindade criadora, incapaci- dade de realizar uma creatio ex nihil, uma criagio a partir do nada... Aloja-se aqui uma suspeita que, se hoje a sabemos irracional, nao é menos légica por isso: como explicar Aqueles espiritos supersticio- sos € pouco sensiveis aos trabalhos da luz que nada mais acontecia ali, para além da captura de um feixe de luz por si mesmos reflec- tida? Como convencé-los de que em tudo aquilo nada de essencial viria a estar irremediavelmente perdido para eles? Como dizer-lhes que a fotografia nao era um roubo da alma? Neste ponto, é todo um circulo que se fecha. Pois é bvio que esta magia negra do fotografico é uma magia das contiguidades que relevaria daquilo que Frazer designava como magia por contdgio, a magia das pertengas e dos contactos. Eis-nos reenviados, e seguindo OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO um desvio aparentemente imprevisivel, para novos problemas que colocam em jogo a consideragao das categorias da contiguidade e da causalidade, que j4 tinhamos podido aflorar na nossa discussao da santificagdo dos retratos e do estatuto da reliquia: pois nao é esse espectro de que 0 fotégrafo supostamente se apodera concebido pela sua vitima, mesmo pela mais fantasiosa, como uma parte sua, de si mesma arrancada? Poderfamos ficar-nos pelo que dissemos das ficcgdes da ciéncia, e dos receios do povo. Mas nada nos impede — nem ninguém no-lo reprovard, assim 0 esperamos — de procurar num outro registo, ainda, essas marcas fantasticas das concepgées do fotografico de que temos vindo a ensaiar uma despistagem. Esse outro registo, no qual faremos mais um intrusio do que conduziremos uma exploragao, serd agora a literatura. Para dizer a verdade, nesse século quase magico que foi 0 décimo-nono da nossa era, nao era apenas 0 povo quem alimentava nas suas superstig6es e crendices o temor da des- possessio fotografica do duplo... Como no-lo diz Nadar, “Nada de inquietante af faltava: hidroscopia, encantamento, evocag6es, apari- g6es. A noite, cara aos taumaturgos, reinava sozinha nas profunde- ‘zas sombrias da cAmara escura, lugar de eleigao especialmente indi- cado para o Principe das Trevas. Pouco mais do que um nada faltaria, verdadeiramente, para fazer dos nossos filtros, magicos fil- » tros (II ne fallait qu’un rien vraiment pour de nos filtres faire des philtres)... Nada temos, portanto, de qué nos espantarmos, se no ptincfpio a prépria admiragio pareceu incerta; ela mantinha-se inquieta, como que assombrada. Levou tempo até que o Animal Universal tomasse partido e se aproximasse do Monstro... Frente ao daguerredtipo, foi ‘do pequeno ao grande’, como o diz o ditado popular, e o ignorante ou 0 iletrado nio tiveram sozinhos essa hesi- tagio desconfiada, como que supersticiosa. Mais do que um de entre os belos espiritos sofreu esse contégio de um primeiro recuo”. Mas, no que respeita a estes Ultimos, é de crer que a inteligéncia e a cultura se viram forgadas a colocarem-se ao servigo dos impulsos de uma imaginagio que, justamente, fazia desse primeiro recuo face ao daguerrestipo, o pretexto e o espago para se langar nos mais bizarros FIGURAS DO ESPANTO e desenfreados delirios: as aquisigdes da ciéncia que Thes era con- temporanea, por outro lado, nao deixaram de fornecer a tais imagi- nacges alguns dos seus materiais mais interessantes. Assim Balzac, por exemplo, a quem a nova invengao incomo- dava, embora nao o suficiente para que ele nao se tivesse sentido tentado — e cedido a tentag&o — de mandar fazer o seu retrato chez Nadar. Das suas inquietagdes deixou-nos este tiltimo o testemunho sem que, no entanto, lhes atribuisse um valor desmesurado: a escala do reconto é a daquilo a que os franceses se referem como uma anecdote. Disse Nadar: “Para citar apenas de entre os mais altos, Balzac sentiu-se pouco A vontade face ao novo prodigio: ele nao podia impedir-se de ter uma vaga apreensio em relagio a operagio daguerreana..."36, Ao deixar entender uma apreensio vaga do pro- cesso daguerreano desembocando numa vaga apreensao em relagao a ele, Nadar fotégrafo nao deixa, curiosamente, de sugerir, enquanto detentor de um saber de indole técnico-operativa sobre 0 dispositivo fotografico, que o literato se encontra face a este na posigao desfa- vorecida de alguém que esta entregue a um menos de saber: a expli- cagao fabricada por Balzac apenas pode aparecer como algo que se constréi a partir de um desconhecimento que, nao chegando a ser ignorancia, constitui ao mesmo tempo o pretexto e a razdo suficiente para que se imagine. Balzac nao ensaia uma teoria, ndo pretende uma explicagdo, nao desenvolve uma descrig&o nem pretende insti- tuir uma classificagdo. Parece-nos, no entanto, que o procedimento do seu pensar se inscreve inteiramente no interior do que Claude Lévi-Strauss designava como uma ciéncia do concreto: “objectar-se- -4 que uma tal ciéncia nao pode ser, de modo algum, eficaz no plano pratico. Mas, precisamente, 0 seu primeiro objectivo nao é de ordem pratica. Ela responde antes a exigéncias intelectuais antes, ou em vez, de satisfazer a tais necessidades... ora, essa exigéncia de ordem est4 na base do pensamento a que chamamos primitivo, mas apenas na medida em que ela est na base de todo o pensamento: pois é segundo o Angulo das propriedades comuns que mais facilmente acedemos a formas de pensamento que nos parecem muito estra- nhas”3?. E as praticas mais estranhas, também, é forcgoso dizé-lo. OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO ‘A imaginacio de Balzac, espécie de reprise, como veremos, dos resultados das investigacdes cientificas de um sabio da sua época, constitufa algo como a esteticizagao de um nao-saber: mas também aquilo que conferia uma ordem nao totalmente arbitraria, no quadro ~ de um desconhecimento sabido, a algo que se mantinha ainda, e ape- sar de tudo, inexplicado. Nadar: “Ele tinha encontrado uma explica- - gio sua... segundo Balzac, cada corpo da natureza € composto de _ séries de espectros, em camadas sobrepostas até ao infinito, folhea- das em peliculas infinitesimais, em todos os sentidos segundo os _ quais a Optica percebe este corpo... Ndo podendo o homem jamais criar, — quer dizer, de uma aparicao, do impalpavel, constituir uma _ coisa sélida, ou do nada fazer uma coisa, — cada operagao daguer- reana vinha entao surpreender, separando, retendo e procedendo a _ aplicagao de uma das camadas do corpo ‘objectado’”38. Para Balzac, _ portanto, seria também o préprio corpo, submetido ao olhar da _cAmara, que viria a tornar-se objecto ao ser retido na placa sensfvel. Desse corpo deveria desprender-se uma das suas peliculas espec- _trais, para sempre retida nesse carcere prateado, liso e brilhante, que -eram as placas daguerreanas de entao. Didi-Hubermann, no seu livro La Peinture Incarnée, construido como um longo comentario do Chef d’Oeuvre Inconnu de Balzac, comenta: “Objectado, diz bem Nadar: "pois no instante em que ele é ‘posto em obra’, objectivado, 0 corpo yé-se af refutado, desfolhado, reduzido ao nada. Seria como um efeito mortffero da aura: a devoragao diéfana, pela imagem, do folio dos corpos”. Na verdade, a compreensio do nao-saber fotografico de Balzac obriga-nos a tomar em consideragdo 0 modo pelo qual a imaginagaéo literaria agrupa e condensa, frequentemente segundo configuragées inusitadas, materiais pertencentes aos mais diversos campos do saber, aos mais diversos dominios disciplinares. Porque as concep- g6es balzaquianas do corpo fotografado, suscitadas pela novidade dos processos que entdo permitiam o aparecimento dos corpos foto- grdficos, constituem a deformagao imaginada das teorias espectrais de Josef von Fraunhofer. Construtor de sofisticados aparelhos de yptica e inventor, entre outras coisas, do processo da estereoscopia, 85 FIGURAS DO ESPANTO inventor (e é o que aqui nos interessa) da famosa teoria dos halos, von Fraunhofer foi 0 pioneiro da anélise espectral da luz emanante dos corpos celestes. Quanto ao que nos preocupa sublinhemos que, ja com o seu autor, esta teoria permitia relacionar — de modo assaz informativo — a forma de um espectro luminoso com a composigao material de um astro. Estabelecia-se, assim, por seu intermédio, a possibilidade de pensar uma relagio fisica entre um corpo e o resul- tado impresso de uma sua emanagao luminosa essa, entenda-se. As 576 faixas que constituem 0 espectro solar, faixas essas ainda hoje ditas de Fraunhofer, foram interpretadas como o signo da natureza inacessivel mas no entanto existente e grafavel, do Sol. A luz dos astros, aquilo que nos faz saber que eles existem e, no caso do sol, aquilo que permite a nossa prépria existéncia, revelava-se assim como emanagdo pelicular cuja decomposigao deixava aparecer uma forma a interpretar. Reencontramos assim o tema de um contacto a distancia, pela luz, que viramos j4 em jogo na boa mimésis do invi- sivel ensaiada por Baraduc; reencontramos também, pelo menos no seu principio e nas suas formas, essa espécie de hermenéutica do longinquo que estivera em jogo nas investigagoes fisicas a que se tentara submeter 0 sobrenatural. Ora, é no interior de uma verso muito especial deste tiltimo que se situam as figuras balzaquianas da espectralidade, num sobrenatural informado da e pela ciéncia, muito embora elas no obedecam ao mesmo recorte gnoseolégico, nem persigam as mesmas finalidades epistemoldgicas, que as empresas cientificas e pseudo-cientificas que tivemos oportunidade de mencio- nar como tentando levar a efeito o desvendar do que entao se designava significativamente como 0 oculto. Em primeiro lugar — e ao contra- tio do que se passava com a andlise espectral da luz solar — pouco ou nada se pode inferir, quanto & natureza dos corpos fotografados, pela andlise das formas emergentes das operagées daguerreanas. Em segundo lugar, a conduta apreensiva de Balzac era dominada por uma economia das esséncias que assumia a forma paradoxal de uma avareza nas manifestagdes: avareza angustiada pela perda daguerre- otipica das camadas foliculares do espectro, j4 que ser fotografado exigiria nao a exibigio da imagem das camadas que o compunham 86 (OS LIMITES DE UMA PERTURBACAO mas a cruel exacgdo de uma delas. Nadar: “a cada operagao reno- vada, perda evidente de um dos seus espectros, quer dizer, de uma parte da sua esséncia...”4. O percurso que temos vindo a seguir, procurando algumas das concepgoes oitocentistas desse prodigio espantoso que era ent&o a imagem fotogrdfica, poderia desde ja ter como desenlace a constata-, ¢&o de que o cardcter de emanagdo de impressao causalmente decorrente da presenga de um referente nao tinha passado desperce- bida aos nossos antepassados cujos olhos as fotografias entdo viola- yam com uma forga cuja violéncia, em grande medida, estd hoje irremediavelmente perdida para nés. Poder-se-ia entao talvez ques- tionar parcialmente — senao contestar totalmente —, tomando apoio na histéria das atitudes e das mentalidades fotogréficas, a espe- cificidade discursiva de uma critica que, hoje, entende reorganizar esse cardcter de emanacio segundo a figura semidtica de um esta- tuto indicial para dele fazer o cavalo de batalha que deveria poder suportar todos os devires estéticos da fotografia e, singularmente, mesmo os mais radicalmente autistas na sua procura da mudez da imagem. Nao é essa a nossa intengdo imediata, se bem que adivinhemos por detraés de uma pretensa libertagado das fotografias da “servidao das aparéncias”, ou do “jugo da semelhanga” um compromisso moralista com concepgdes pesadamente modernas do dever-ser do devir-arte da fotografia. Quando ouvimos ou lemos alguém preco- nizar para a fotografia, como seu destino esteticamente especi- fico, a recusa das semelhangas, identificada como o limiar auto-refe- rencial em que a fotografia poderia, enfim, tornar-se no objecto de si mesma, nao podemos deixar de nos sentir incomodados com a figura de pensadores que despendem o seu lazer a pensar em estética de um modo semelhante aquele que, na politica e sob a pressio de uma conjuntura em tudo febril, redigiu 0 seu “Que Fazer?”. Atente-se bem nisto: na fotografia, 0 estatuto muito peculiar e caracteristico das imagens faz com que os ditames da reprodugao fiel dos objectos exteriores ou os imperativos da recusa da representagao semelhante se equivalham como decretos moralistas, que cada um seja tao bom 87 FIGURAS DO ESPANTO ou tao mau como 0 outro e que, mesmo tomados no seu conjunto e abstraindo da alternativa, eles apenas cubram uma superficie exigua do imenso espago de possibilidades que a natureza profundamente polimorfa do dispositivo torna possfvel. Afirmar que as operacdes fotograficas devem atingir o seu top pela sua redugio a gestos que nada mais deixariam, atrés de si, como restos, imagens incapazes de se distinguirem do seu “rufdo de fundo” n&o é mais que =e aS a uma inaceitavel subserviéncia — em diferido — ao devir his- torico e formal da pintura moderna: é dar 0 passo demasiado arris- SD porque totalmente insensato de preconizar para o fazer foto- grafico o perseguir dos caminhos mais radicais que se desenharam ao longo da histéria da pintura e que nem mesmo esta seguiu sem- pre sem sobressaltos. Mas é também, e sobretudo, admitir e afirmar ° SOAS uma estética especffica do fotografico, onde o seu cardcter incipiente se torna gritantemente manifesto pela possibili- dade de ainda se exprimirem em relag’o a fotografia enunciados modalizados por um dever-ser. Libertemos a fotografia das EE pretensas libertacdes! Temos vindo a privilegiar aqui as primeiras intuigdes — senao com toda a propriedade os pensamentos — que tiveram aqueles a quem as fotografias primeiramente espantaram, das contiguidades envolvidas, e das causalidades em acto, na geragéo mesma de: ig imagens fascinantes. Fizemo-lo, em primeiro lugar, para levantar im pouco desse pesado véu de inocéncia, ou esse veredicto de ingenui- dade, que a maioria de “nous autres modernes” se deleita em colocar a fazer pesar sobre aqueles que, face as fotografias, néo tinham ainda uma cultura fotografica prépria que pudesse escorar com pro- Sa a sua entrega aos trabalhos do ver, a dissipagao do olhar. Mas fizemo-lo também por pensarmos que, melhor do que omar parte num debate ready-made sobre a natureza constitutiva do acto e dos processos fotogréficos mais valeria, sem dtivida, que tentdsse- mos dar um salto para tras, para procurar nos primeiros espantos face as fotografias ou, mais precisamente, rebuscando nas lingua- gens duc entao falaram esses espantos, os indicios longinquos da possibilidade mesma de um tal debate. 88 0S LIMITES DE UMA PERTURBAGAO Acreditamos ter posto em relevo a importancia capital assumida, e logo no século XIX assumida de modo explicito, por uma apreen- siio dos fenémenos fotograficos que privilegiava as categorias da contiguidade e da causalidade para poder pensar tanto a cristalizagao das condutas fotograficas quanto a fixagao (ou a diluig&o) das cren- cas nas e pelas fotografias. Nao podemos, no entanto, esquecer que esse século foi também o de uma auténtica demanda do verismo na representacao pictdrica, 0 de uma obsessdo pelo “verdadeiro repre- sentado”que viria a ser gravemente abalada na credibilidade dos seus resultados humanamente possfveis pelas primeiras e decisivas demonstragGes dessa afinidade com o verdadeiro que parecia ser ento um dos mais incontestaveis atributos da fotografia. Nao deve- mos esquecer também que esse século, positivista até ao desvario, era aquele mesmo que enaltecia como virtude uma concepgao mitica da objectividade do saber humano. “Mitologia péssima”, da qual Nietzsche tragou a caricatura nas suas Consideragoes Intempestivas, escritas numa época em que, obviamente, os processos fotograficos tinham j4 conhecido inimeras horas de gléria: “mesmo que se dé a palavra objectividade a sua significagao mais elevada, nao se estara ‘a ser vitima de uma ilusdo? Com esta palavra quer-se significar o estado de espfrito pelo qual o historiador encara um acontecimento com tanta pureza que 0 dito acontecimento nao tem sobre ele, sub- jectivamente, qualquer efeito... Mas € supersticao acreditar que a imagem das coisas, num homem nesta situagao, reproduza 0 ser empirico das coisas. Ou seré que em momentos desses as coisas tomam a decisio de virem desenhar-se, reflectir-se, fotografar-se sobre um ser passivo?”4!. Nietzsche conclui, portanto, por um veredicto de ilusao passado em nome da objectividade, pretensao mirffica de um tipo de historia- dores que desejam unificar numa imagem integrada um mundo tao fragmentado quanto impenetravel aos seus olhos, condenado a pres- supor a accao do acaso 14 onde na realidade se agitam milhares de causalidades infimas. Como se o historiador nado conseguisse — nem pudesse esperar conseguir — beneficiar de uma passividade suficiente que lhe garantisse a retengao, sem que nada se perdesse, 89 FIGURAS DO ESPANTO de toda essa mirfade de Pequenos nadas que obscuramente constitui © presente... A afirmagao dessa incapacidade, tanto afirmacaio de uma falta de passividade como de um excesso de espontaneidade, faz-se, no entanto, por sobre a metéfora da fotografia, fazendo desta 0 termo privilegiado de uma comparagiio que nega ao conhecimento humano os prestigios de uma objectividade que, porque demasiado Passiva, 86 pode ser inumana. Este facto nao é inocente, porquanto ai se recorre aos prestfgios acumulados de Processos pelos quais os objectos parecem tomar a decisio de virem desenhar-se a si mesmos na superficie passiva de uma placa: fotografia. E entao de acreditar que Nietzsche nao negasse a fotografia, pelo menos inteiramente, a Possibilidade de ser “imagem das coisas que reproduzisse o ser empirico das coisas”: para que esta Posigdo possa*ser pensdvel em Nietzsche, a fotografia seria aqui considerada a partir de um ponto de vista puramente fisico, isto é, pondo necessariamente de lado qualquer construgao de verdade que se viesse a querer edificar a partir dela, Mas fujamos, por agora, aporias e aos impasses da construgao fotografica das verdades! Sigamos uma outra via, mas fazendo-o com cautela: abstenhamo-nos de tomar a objectividade fotografica como algo sempre ji dado a saida da camera obscura © que, hoje sim — apés século e meio de imposturas fotogrdficas — seria dar provas de um positivismo risfvel, de tao ingénuo! Mas nao fechemos 0s olhos as caracteristicas extraordinarias que tornam as fotografias particularmente aptas para se tornarem elementos privilegiados de diversos jogos de verdade: de entre essas caracteristicas, ndo sera decerto a menor essa espantosa exactidio de que elas, desde os seus Primeirissimos tempos, puderam dar proyas e mostras na representa- ¢4o de objectos, estados de coisas ou acontecimentos. Para isso, teremos que distinguir, desde ja, entre exactidao representativa e verdade da representacdo: e sublinhemos que enquanto a primeira nao garante, por si s6, a segunda, esta, por sua vez, apenas é pensa- vel e tecnicamente exequivel pela mediagao daquela. Vejamos entao como foi pensada e vivida, e o que se disse dessa exactidao fotogra- fica quando estas imagens eram ainda sem esforgo figuras do espanto, sigamos esta vertigem da duplicagao fotografica do mundo 90 0S LIMITES DE UMA PERTURBACAO. - 4 onde ela mais fortemente se manifesta! E se a objectividade ne grafica se revela aos nossos olhos humanos, ee hoje demasia i humanos, como pouco mais podendo ser que ilusdo, Sl pelo menos retroceder até Aqueles tempos em que estava ainda em jogo 0 ilusdo. : ee maa pode contribuir para que as imagens fotograficas (Bah sam ser consideradas como pregas do tempo? Talvez o seu caracter excessivo. Falar de excesso a propésito coe peg parecer oe dente, porquanto muitos insistem em Se las COMO Os a a diminuidos de um real infinitamente mais rico do que elas jamai: poderiam ser: quer dizer, como representagoes enOLVIAGES — para além de qualquer remissao possivel — em relag&o ao seu represen- tado. Com efeito, a partir do momento em que se faz peers: a “a sideragio do estatuto representativo da fotografia Ce um ee escrutinio por comparagao, pelo qual se procura avaliar 0 Le ig ‘ . sendo aparente na fotografia, € ao mesmo ad coma e a a ao objecto tal como ele se apresenta, forgoso sera concluir pelo a perismo da representagio fotografica. ‘Busey sob Sse 2 radicalizante, a fotografia nao sé tera muito pouco que ca com 0 seu objecto mas, ainda, aos prestigios do real Burnes poderao on ponder nela as misérias da Tepresentacao: no inte, ela fice a sequer uma imagem, se se teimar em continuar Eee oe he palavra velha a voz latina de imitari. Tal conclusdo, de wiles ‘ac dade desconcertante, nao é, contudo, a que nos parece mais CO niente pois equivaleria simplesmente a ee do Cee fico (ou do seu irrealismo) uma concepgd4o meramente Be Le e subtractiva, fazendo resvalar a avaliagao do estatuto one fotografia para uma sobrevalorizagao dquo a ee lo ; chamou, no seu Mimésis e Negacdo, 0 “polo objectivo” da repre: A043. f Sr des tracos mais fascinantes das imagens fotogrificas é sem dtivida 0 de elas conseguirem conciliar uma pobreza oe em relag&o ao que podemos saber da realidade dos seus poses om uma extraordindria riqueza, nao menos aparente, a relagao as po sibilidades ao mesmo tempo perceptivas e mneménicas dos sujeitos 9 FIGURAS DO ESPANTO que com elas se defrontam. Pode evidentemente contestar-se vee- mentemente que a cdmara possa ver melhor do que o olho humano: este € um “aparelho” aperfeigoadissimo e, em muitas coisas, a melhor das cAmaras 6 ainda um objecto rudimentar em relagao a ele. Mas © que nao pode contestar-se, por seu turno, é que existem certos oficios especializados do ver em que a camara se revela tao exce- lente quanto o olho incapaz. Ou, para falar com maior propriedade, € se quisermos continuar a afirmar que a camara vé, teremos pelo menos que dizer que ela recebe 0 visivel de um modo absoluta- mente distinto daquele pelo qual 0 olho o capta: e que, mesmo ape- sar da discrepancia que podemos assinalar entre a distribuigao espectral das radiagdes quimicamente activas e das radiagGes visf- veis, mesmo se 0 que a cmara regista ndo é, em primeira mao, a ima- gem de uma visibilidade pré-existente, ainda assim é espantoso 0 que o olho humano pode ver através dela. A receptividade fotogra- fica parece ser, por varias razées, mais exaustiva do que a que poe em jogo a visdo natural humana. Max Kozloff: “os contempora- neos de Hill e de Fox-Talbot, Le Secq e Du Camp, também sabiam que lhes tinha sido conferido um poder extraordinério. Olhando para uma cena registada por qualquer destes fotdgrafos, eles deti- nham uma vantagem visual sobre qualquer pessoa muito sensivel a todos os tipos de brisas, texturas, movimentos e calor que tivesse apenas estado presente quando o obturador se abriu. Uma maior plenitude tinha sido atribuida aos seus olhos ausentes, que aumen- tava a reteng&o visual com uma torrente de detalhes...”“4, O que equivale a dizer: se bem que nao restituindo integralmente (mas o que poderia ser isso?) 0 aspecto visivel dos objectos ou cenas que representa, 0 que a imagem fotogrdfica devolve €, sob certos aspectos, muito mais do que tudo 0 que o sujeito deles tinha origi- nariamente podido ver. Mais, sobretudo, do que o que o fotdgrafo tinha podido yer, ele que nao consegue impedir, a cada vez, que a sua camara registe muito mais do que aquilo que o tinha decidido ao acto fotografico. A extraordindria receptividade da pelicula, a sua voracidade cega em relaciio ao visivel, fazem com que em cada foto- grafia se jogue a irrisdo da intencionalidade: em cada acto fotografico OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO uma captagao indecidida mas nao indecisa excede sempre em muito os limites da decisdo de captar. Se seguirmos a letra a argumenta¢do que desenvolvemos em torno da observacao de Nietzsche sobre o problema da objectividade seremos levados a dizer que, se bem que a fotografia possa ser dita “materializar um olhar do mundo” ela nao manifesta imediatamente, © 86 por isso, a “pré-existéncia ao visto de um dar a ver"™45. Uma des- cricao possivel do modo de ser dessa materializacao pode ser Pe rada no Matiére et Mémoire de Henri Bergson, 14 onde ele ensaia uma outra teoria da percepeao, que ele designa, de modo assaz ine- quivoco, como pura: trata-se nesse ponto da sua aUnUe Deeg] de, para escapar as oposigGes aporéticas do realismo e do idealismo na fundamentaciio tedrica do conhecimento possfvel na ci€ncia, CO sentar o mundo como universo de imagens em perpétua interacgao em todos os seus pontos e em todas as suas faces, imagens essas contendo ja em si mesmas, numa espécie de imanéncia difusa, todas as suas percepgdes possiveis. Para Bergson, nao existird entre essas imagens uma diferenga de natureza entre elas € as perce Dyes que a apreendem mas, sim, uma diferenga de grau: Cee imagens Se objectivas, “a representacdo esta 14, mas sempre virtual, ae zada, no momento em que ela passaria ao acto, pela obrigagao de se continuar e de se perder em outra coisa‘. Essa imagem-coisa seria ent3o uma virtualidade indefinida e infinita, contendo j4 em si uma infinidade de percepgdes possiveis, em relagdo a muitas abs quais nos faltam os meios de saber se elas poderao alguma vez vir a passar ‘ao acto. Mas, de um modo geral, “para transformar a sua existéncia pura e simples em representagao seria suficiente suprimir de um s6 golpe o que se lhe segue, 0 que a precede, € também o ug a Se che, para dela nado conservar mais do que a crosta exterior, a peli- cula superficial*7, Ora, se para transformar essas imagens em repre- sentagdes é necess4rio isolar delas 0 envelope, nada dessas operacdes requer, para o que quer que seja, a visibilidade ae que instaura habitualmente um mais de luz: pelo contrario, “para obter essa conversdo (nao é preciso) iluminar o objecto, mas pelo contrario obscurecer dele alguns aspectos, diminui-lo de uma parte 93 FIGURAS DO ESPANTO. de si mesmo de modo a que 0 residuo, em vez de se manter encai- xado no que o rodeia como uma coisa, dele se destaque como um quadro”*8, Esse quadro corresponderé a uma percepcao, segundo Bergson (embora nao segundo Nietzsche, no que diria Tespeito ao dispositivo fotografico), que se constitui assim como residuo objec- tivado — e organizado — da operagdo subtractiva pela qual uma opacidade retém luz e assim discrimina — parcializa — imagens: ey porque Bergson fazia jogar este modelo Sotografico da percep- ¢Go com a posigao um ideal da percepgdo pura (a percep¢ao, infini- tamente mais rica, de uma imagem-coisa‘®, a ocorréncia dessa sub- ee perceptiva nos intervalos entre as acgdes e reacgdes dos seres vivos, ou centros de indeterminagdo da acgdo deveria coinci- on a com uma concepgao da consciéncia como capacidade de dis- ena como consciéncia discernente. Era assim que Bergson podia afirmar, de modo apenas aparentemente paradoxal, que: “ha, na pobreza necessaria da nossa percepgiio consciente, qualquer coisa de positivo que anuncia ja 0 espirito: é, no sentido etimolégico do termo, o discernimento”s®. A tal ponto que o inconsciente, se incons- ciente af ha, seré af por definig&o aquilo que nao interessa, ou nao pode interessar: 0 que € incapaz de determinar a receptividade de um ser vivo como objecto de uma acgdo retardada possivel, seja porque ele foi incapaz de perceber aquilo de que é inconsciente, seja ainda porque fez dele o objecto de uma reaccao automatica que, na sua imediatez, suprimiu o intervalo em que a percepcao (e, por defini- ¢do, a escolha) poderia ter tido lugar. As palavras de Gilles Deleuze, comentando as passagens que acabdmos de citar, so extremamente elucidativas: “nés percebemos a coisa, menos 0 que nao nos inte- ressa em fungao das nossas necessidades... 0 que é uma maneira de definir 0 primeiro momento material da subjectividade: ela é sub- tractiva, ela subtrai da coisa aquilo que nao Ihe interessa. Mas, inversamente, € entdo preciso que a coisa mesma se apresente ela propria como uma percepgao, e uma percep¢aio completa, imediata, difusa’”s!, Em relacao ao que aqui ficou dito, forgoso é dizer que 0 complexo olho-mao apresenta e pde em jogo, na sua articulagaio com os diversos od OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO dispositivos manuais para a fabricagio de imagens, configuragdes organicamente determinadas de capacidades discriminantes, articu- ladas segundo modos precisos de selectividade discernente: ora, a compreensao destas configurag6es parece-nos ter sido extraordinaria- mente majorada pelo uso e pelo desenvolvimento das aplicagdes dos processos fotograficos, que muito contribuiram para tornar visiveis os seus limites. Quem leu alguns dos primeirissimos textos contem- poraneos da descoberta e dos primeiros passos da difusao dos pro- cessos fotograficos, nao pode ter deixado de reparar na profusao das referéncias A fatigabilidade e a irritabilidade dos desenhadores e dos pintores, confrontados com todas as magadas dos seus trabalhos, capazes de os fazerem sucumbir a pressa e a exaustao da paciéncia: para o homem, precisamente, é a paciéncia, a “mie do rigor”, a vir- tude indispensdvel para quem quiser retratar “com mao sincera e olho fiel” 0 verdadeiro na natureza. Toda essa prosa apontava para um modo de ser da selectividade que se ficaria a dever as incapaci- dades irremediavelmente humanas do artista, incapacidades essas que a cdmara e a placa teriam contribuido para revelar e expor aos olhos do século passado. Como se, de repente, com 0 advento dos processos fotograficos, a mao tivesse sido desmascarada como uma preguigosa e uma embusteira, e 0 olho como um infiel, incapaz, na sua miséria, de ver a verdade. Ora, se neste momento quiséssemos apontar a diferenga espect- fica da fotografia ou, pelo menos, uma delas, apenas 0 poderfamos fazer dizendo que esta coloca em jogo uma configuragao outra de capacidades discriminantes — configuragao essa consignada nos mecanismos da 6ptica mas também emergente da especificidade quimica das emuls6es —, a qual nao coincide inteiramente, nem pode coincidir, com a que caracteriza instrumentos cujos funciona- mentos s4o necessariamente sobredeterminados pela estrutura — tanto fisiol6gica quanto psicolégica — da percepgao humana. Tal configuracao, trazida ao acto, pode bem resultar numa actualizagao do olhar do mundo, mas apenas se nao confundirmos a plenitude da percep¢ao pura com a quase-percep¢ao, situada e orientada, parcial e preensiva que caracteriza a retengao fotografica do trajecto da luz. 95 FIGURAS DO ESPANTO Esta € um diferenga radical que nao deveria ser esquecida nem esca- moteada: entre os modos moventes da percepgao humana e a reten- cao fixa e fixada da camara e de emulsiio insensfvel na sua sensibili- dade existe um hiato insuprimivel ou, mesmo, um insuperdvel abismo. Da consideragio desse ponto cego da visao fotografica pode chegar-se 4 compreens4o de como podem os maquinismos fotografi- Cos proporcionar tantas surpresas aos seus operadores e resistir por vezes tao soberanamente a pretensiosa soberania da vontade artista; compreender-se, ainda, como é que nos residuos dos seus funciona- mentos se imiscui um resto — indomével por qualquer vontade — para af insistir, como excesso irredutivel a qualquer intencionali- dade, em furtar-se a obedecer & regéncia do sentido. Serfamos demasiado apressados se consideréssemos este trago das imagens fotograficas como um defeito, como algo susceptivel de as depreciar. Na verdade, elas ficam a dever-Ihe muito da sua riqueza prépria de imagens, e apenas uma concep¢ao extremamente redutora do papel destas ultimas teimaria em colocé-las sob a tirania mfope da intencionalidade. Nos primeiros tempos da fotografia, aqueles em que a conquista mecAnica das aparéncias se acomodava sem esforgo ao tom exaltado de uma epopeia do visfvel, os imperati- vos de transcri¢io fiel dos factos na ciéncia e de ajustada restituigao do verdadeiro da natureza na arte conjugavam-se para fazer com que fosse possivel viver positivamente essa dissolugio do sujeito do olhar na superficie granulosa de uma emulsao que comecava entao, em algumas tarefas especializadas do ver, a substituir-se com vanta- gem ao seu olho. Celebrou-se entdo a fotografia como se ela tivesse preenchido um vacuo, e a natureza nunca teve tanto horror ao vacuo quanto os homens... Jé Fox Talbot, por alturas de 1844, saudava a descoberta da Arte Fotografica por ela ter permitido “introduzir nas nossas imagens uma multidéo de mintisculos detalhes que se adicio- nardo @ veracidade e ao realismo da representagao, mas que nenhum artista se macaria a copiar fielmente da natureza”2, Con- cepcao aditiva da missio do artista e da vocagio da arte que trai aqui — a personalidade cientista de Talbot para isso ajudando — a transposi¢ao para a estética dos ideais cientificos de uma total 96, OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO descriptibilidade-inscriptibilidade do facto, desembocando aqui numa extremada vontade de consumar a fusao do representante com © seu representado: 0 que trai, como atitude dominante em relagéo as imagens de entao, para além de um vertiginoso apetite do duplo, "uma concepcio tecnicista do realismo. Era esta que a fotografia parecia destinada a resolver — e mesmo a cumular — nos seus usos e aplicagdes, na medida mesma em que as incapacidades do homem pareciam desautorizar a esperanga de uma solugao natural para os problemas que colocava a exigéncia, pelo realismo verista na pin- _tura, de uma irrepreensivel exactidao representativa na restituigao do Verdadeiro. O realismo na pintura nao é, por definigao, mais per- verso do que qualquer outro: é-o por natureza, ao majorar sob a forma de uma exigéncia que nao pode — humanamente, pelo menos — ser cumprida, a contradigao assinalada por Barthes a propésito da literatura realista. Pois também aqui se parte da teoria de uma pré- tica que é dada como categoricamente realista ao instaurar — e apa- rentemente justificar — uma demanda em que se persegue 0 : cumprimento de um desejo de real... para se chegar, apenas e sem- pre, 4 constatagao do cardcter ficcional de uma demanda no quadro da qual o artista, nisso sempre defraudado, se vé na posi¢éo daquele que julgou “sensato o desejo do impossivel’”s3. Sem interferéncias intencionais, a emulsio armazena com um zelo cego um complexo mutavel e movente de luz, emanante de _configuragGes objectivas em perpétua variagao: na sua relagao com © exterior da cdmara, a cada momento em que o obturador se abre, pode bem acontecer — e acontece frequentemente — que o gesto -furtivo da retengao fotografica se resolva num gesto ilicito em rela- giao a qualquer consciéncia humana, numa insubordinagdo cega em telagdo a intengaio de quem o despoletou. Fica, depois, em cada ima- gem, um residuo perigoso, uma marginalidade ameagadora do sen- tido capaz, ao mesmo tempo, de dar a ver a precariedade deste tiltimo e de nos divertir dele. A imagem fotografica, antes mesmo de que ela possa provocar-nos um éxtase, provoca uma estase do visivel «lo que ela nao pode ser descuidadamente aproximada das visibilida- 8 contfnuas e moventes que constituem o correlato perceptivo da o7 FIGURAS DO ESPANTO nossa frequentagao de um mundo em perpétuo movimento: mas, e paradoxalmente, mesmo se ela nunca nos restitui aquilo que ja vimos, ela pode perfeitamente dar-nos uma visdo tornada perma- nente de muito do que terfamos podido ver e nao vimos... e em cer- tas circunstancias, é claro, ainda algo do que nao terfamos mesmo podido ver. Detida, congelada e posta & disposi¢ao do nosso olhar, a cena fotografada é-nos restitufda em bloco, mesmo quando dela nada mais recebemos que um fragmento: na verdade, mais do que de uma prega, deveriamos falar aqui de um vinco do tempo a tal ponto se pe essa espacialidade ao mesmo tempo confinada e transbor- dante a funcionar como temporalidade retida, signo de uma duragao sustida. A retengio fotografica esté para o visivel como esté um gar- rote que sustém uma hemorragia para uma artéria gravemente seccio- nada: estanca um fluxo, para mantendo um instante eleito — mas também possivelmente um qualquer — num simulacro de animagao Suspensa. Gragas 4 propria irreversibilidade do tempo que ela nega sem conseguir contrariar, a fotografia pode assumir, assim, 0 carac- ter espantoso de um artefacto que se obstina em fazer-nos ver ainda hoje os aspectos passados do que se desvaneceu sem que tivéssemos podido vé-lo. A cada vez que observamos uma fotografia, nos nos- sos olhos, espécie de abismos onde muito do nosso olhar consueto se perde num ver que nem tudo pode apreender, vem formar-se uma impossivel imagem. Ora, estando imersos num oceano de imagens diversas e situados — pouco importa se por “dever”, se por “opgo” ou se, simples- mente, por “condigao” — no interior de provincias limitadas da lin- guagem e do sentido, nao é dificil para nds aceitar que os homens das sociedades ditas modernas tenham podido retirar desta peculiar condi- ¢do anfibia uma insensibilidade — culturalmente apurada mas pouco refinada — que em muito lhes dificulta a imaginagao dessa multidao de possiveis que 0 seu presente, para poder vir a ser, teve que relegar para a estranha condigaio do que se tornou passado antes mesmo de que tivesse podido chegar a ocupar inteiramente qualquer presente. E conhecido o dito de Pascal: “que vanidade a da pintura, que suscita admiragao pela semelhanga com coisas das quais em nada 98 OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO admiramos os originais!”’54, depreciagdo de uma arte que entio afa- nosamente se entregava 4 reprodugao dos reflexos das coisas, 4 ver- tigem da duplica¢ao, coisa que Pascal apenas poderia ter como fitil. Condenagio austera de uma sofistica da sensagdo toda ela entregue a adulacdo, ao engano do olhar na e pela matéria dada a sensacao. O que poderia estar em jogo nessa condenagio tao veemente, nessa critica to severa? Num certo sentido, ela segue modelos vetustos. Platao, por um lado, que desconfiava dos pintores e dos poetas, em suma, dos produtores de reflexos, que ele estigmatizava, na sua Republica como aqueles que executam “tudo 0 que sabe fabricar cada um dos artifices de per si [596c]” e que, nessa execugao, desce ainda um grau mais abaixo do que 0 artista que, ao copiar a forma supra-sensi- vel, esta j4 a fazer “o que nio existe, e néo pode fazer o que existe, mas simplesmente algo de semelhante ao que existe, mas que nao existe [597a]: as duvidosas artes dos pintores miméticos, que se entregavam A copia das cépias das Ideias, eram tanto mais perigosas quanto elas correspondiam para Platao, no dominio das aparéncias sensiveis, 4 pseudo-arte que os sofistas punham em pratica no inte- rior apenas do logos, da linguagem5s. Por outro lado, a vanidade da pintura em Pascal nao é apenas a intuigao de um desconhecimento do pintor em relagdo a realidade do tepresentado, é sobretudo uma recusa da matéria da representagao: nesse pensamento dé-se a pressentir uma recusa da materialidade sensivel da pintura como aquilo que diverte o olhar, se entendermos aqui o divertimento no seu sentido etimolégico de um desvio, e de um desvio que é repreensivel. Esse raciocinio, que agora encontra- mos — em Pascal — sob a forma de uma recusa de adoracao da futi- lidade do mundo, ja o tinhamos encontrado com os Padres da Igreja na sua desconfianga em relagdo a imagem e a profusdo decorativa dos detalhes nas miniaturas, desconfianga que via entéo na matéria da imagem aquilo que poderia entorpecer perigosamente o sentido do devoto e incapacitd-lo de contemplar as verdades divinas, situa- das para além dela: procura-se, em ambos os casos, uma austeridade do olho ou, se preferirmos, procura evitar-se a devassiddo do olhar. Mas, de um certo modo, nessa critica de Pascal joga-se também um. 99 FIGURAS DO ESPANTO certo desdém, um certo desprezo: desdém, em tudo platénico no seu espirito, pelo virtuosismo desses pintores que se entregam a essa futilidade algo devassa da duplicagio pela duplicag’o, sucumbindo assim, facilmente, 4 vertigem da representagdo semelhante pela qual se chega a desejar que a cdpia seja mais verdadeira e mais auténtica, em suma, mais perfeita, do qualquer original que pudesse realmente existir. Mas outro desdém ainda, e mais vincado, pela mesquinhez mesma dos objectos que essa actividade a seus olhos imitil escolhe, para se deliciar no seu labor delirante: desprezo puro e simples por essa vaidade do olho que se extasia face a todas essas formas vas, copiadas dos objectos a custa de tantas fadigas e de tantos esforgos em pura perda, todas essas pandplias absurdas de coisas poucas que, na realidade, apenas os estultos ou os imbecis se lembrariam de enaltecer ou de apoucar. Contudo, 0 que as primeiras fotografias vieram revelar e expor na fixidez das placas daguerreanas, mostrou para além de quaisquer equivocos que esse fascinio de coisa pouca era também — enquanto fascinio proprio da pintura do qual a fotografia permitia agora perce- ber melhor os seus limites e também as suas limitagdes — um fasci- nio de pouca coisa. Expliquemo-nos: nao se trata aqui de negar qualquer fascinio a pintura, ou de apoucd-la nos seus encantos pré- prios mas, 0 que é radicalmente diferente, de dizer que o fascinio que acompanhou a observacio e a difusao das primeiras fotografias foi seguramente diferente em relagao aos que aquela tinha até ent&o podido suscitar. Na verdade, o que desde logo caracterizou as foto- grafias foi precisamente uma incomparavel homogeneidade na resti- tuigao dos detalhes das coisas fotografadas, uma inteireza da restitui- ¢&o do diminuto da cena reproduzida que tinha até entao sido impossivel de conseguir na pintura, mesmo pelos seus mestres mais virtuosos. A fotografia foi entao tida como 0 meio de elei¢fio para a obtengao de representacGes respeitadoras da “verdade do visivel”, considerada como extraordinariamente adaptada para libertar uma representacao — que entao se pretendia verdadeira na arte e na ciéncia — de duas insuficiéncias que comegaram a imputar-se A pintura e ao desenho, 100 OS LIMITES DE UMA PERTURBAGAO insuficiéncias cuja gravidade a fotografia permitia agora revelar: por um lado, uma excessiva humanidade da mao, capaz, a cada golpe ea cada momento, de comprometer qualquer exercicio virtuoso do olhar; por outro, 0 caracter grosseiro e demasiadamente espesso dos seus materiais, que impedia a representagao pictural de dar a ver com subtileza as pequenissimas minticias do detalhe. A tal ponto que, face ao quadro mais saturado por uma profusao de coisas téo diminutas, face ao mais incrivel formigueiro de minticias safdo de uma mao que se pés a pintar — convidamos aqui alguns leitores a observar os “Provérbios Holandeses”, ou “O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel, 0 velho, por exemplo —, pode bem sentir-se uma espécie de “cegueira face 4 pintura’” (Pierre Daix) mas nunca, como 0 sentiram aqueles que primeiro se debrugaram sobre imagens como as “Vues sur le boulevard du Temple” de Daguerre, 0 sentimento : angustiado daquele que ndo vé o suficiente e que o sabe e que, por- que o sabe, é presa de um apetite quase irracional de querer ver mais, e mais ainda do que pode... Por seu turno, também Fox Talbot nao se enganara, ele que reconhecera imediatamente no processo fotografico de sua invengao uma “via real para o desenho”; porém, a estranheza dessas imagens sobrecarregadas de intimeros detalhes _ que mio nenhuma se magaria a reproduzir desde logo o obrigou, também, a deixar bem vincado todo o seu espanto. Nesses tempos, € face a imagens impressas pela luz mesma do Sol, era toda a elite cultivada que afanosamente se precipitava para os novissimos simu- lacros para na sua frequentagao estranhante se deixar possuir por uma estranha intemperanca do ver que, por momentos, pode dar-se ' como uma involuntdria sedigdo do saber no interior da propria von- tade de saber. 101

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