Você está na página 1de 20
Sobre a ilus6ria origem da mais-valia’ Anricos REINALDO A. CARCANHOLO™ O capitalista individual, ou 0 conjunto dos capitalistas em cada ramo particular, com horizonte limitado, tem razao em acreditar que seu lucro nao deriva do trabalho empregado por ele ou em todo o ramo. Isto é absolutamente exato com referéncia a seu lucro médio. Até que ponto esse lucro se deve a exploragao global do trabalho por todo o capital, isto é, por todos os confrades capitalistas, 6 uma conexao para ele submergida em total mistério, tanto mais quanto os teoricos da burguesia, os economistas politicos, até hoje no a desvendaram. Marx 1. Introducaio A teoria do valor-trabalho de Marx tem sido submetida a intensa e sistema- tica critica, desde praticamente 0 seu surgimento, h4 mais de um século. Todo 0 esforgo dirigido a mostrar seus supostos equivocos ou inconsisténcias, sem diivi- da nenhuma, tem uma elevada motivacio ideolégica. E nao é para menos. Como € Gbvio, o que est por trés de toda a discussio ¢ de toda fiiria que sustenta tal esforgo nao € uma preocupagao técnica sobre como se determinam os precos, mas a explicagao da origem do lucro numa sociedade capitalista. De fato, ao contrdrio das teorias de Smith e Ricardo, a teoria marxista do valor tem como conseqiiéncia necesséria a conclusio de que 0 excedente econdmi- co capitalista e, em particular, 0 lucro, é fruto da exploragio, do trabalho nao- pago. Nao é possfvel aceitar integralmente a perspectiva de Marx sobre a riqueza € sobre o valor sem concluir-se que a prépria natureza intima do capital implica * Avversao preliminar deste trabalho foi apresentada no VI Encontro Nacional de Economia Politi- ca da SEP, em Séo Paulo, junho de 2001. ** Professor do Departamento de Economia da UFES. 76 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA { } uma contradigao antag6nica entre classes ¢ que ele significa uma violéncia con- tra a natureza humana. Nessa perspectiva, o capital é a propria negago do Ho- mem e a teoria de Marx 6, por si mesma, radicalmente anticapitalista. Nao é facil aceitar essas implicagdes e isso, com muito mais razao, por aqueles setores da sociedade atual que, de certa forma, beneficiam-se através dos privilégios que desfrutam. Mas nio é sé isso. A propria realidade capitalista, diretamente observada, mostra, de maneira indiscutfvel, que a origem do lucro empresarial nfo est no trabalho ¢ muito menos na sua exploragio. Nossos olhos no podem negar que ele tem origem diversa da mencionada: capacidade empre- sarial, tecnologia, grandes volumes de capital comprometidos, entre outros. Tal- vez fosse aceitavel pensar que sua explicagao est4 no conjunto desses fatores e de outros adicionais. Melhor ainda, nos dias de hoje, com o predominio do capital especulativo, talvez fosse pensar que o lucro tem como origem alguma proprie- dade imanente ¢ magica do préprio capital. O fato de que este tiltimo conceito, o de capital, nao seja muito compreensivel nao importa. Assim, fica até mais facil pensar que possui propriedades mégicas. Mesmo que 0 anterior tenha alguma dose de exagero, uma coisa € certa: a observagao da realidade permite concluir que, muitas vezes, 0 empresario nao é um explorador. Como € possivel aceitar a teoria do valor de Marx, com essas conclus6es retiradas diretamente da realidade? Afinal, a relaco capitalista implica ou nao a exploragio? O lucro é 0 fruto do trabalho nao pago? Lamentavelmente, a respos- ta n&o € trivial. O capital consiste, de fato, em uma relago social que, ao mesmo tempo, € ¢ no é exploradora ¢ isso na propria teoria de Marx. Na aparéncia, a relaco salarial €, por sua natureza e em si, uma relaco entre iguais ou, no mini- mo, uma relacao entre dois individuos auténomos ¢ capazes de estabelecer entre si, livremente, um contrato comercial legitimo. Por outro lado, mas ao mesmo tempo, a relago salarial, na esséncia, implica explorago; auséncia de liberdade de uma das duas partes; apropriagao pela outra de trabalho nao-pago. E isso é dialética ¢ nao € facil entendé-la, mesmo quando existe boa vontade. Duas caracteristicas importantes devem ser consideradas, aqui, sobre a apa- réncia na sociedade capitalista. A primeira 6 que cla nao é resultado de um erro ou um engano do observador. Trata-se de uma das duas dimensGes da realidade, to real quanto a sua oposta, a esséncia. O erro nao esta na aparéncia e nem mesmo na interpretac&io que ela sugere, mas na crenga de que a realidade tem uma s6 dimensio. O equivoco sobre o capitalismo consiste em pensar que a rea- lidade € unidimensional, ou melhor, nao saber de sua bidimensionalidade. Na verdade, existem, nesse aspecto, dois erros teGricos opostos: 0 empirismo daquele que somente vé a aparéncia ¢, por outro lado, o seu contrario, o fundamentalismo, que acredita que sé a esséncia é verdadeira. Este talvez seja CRITICA MARXISTA © 77 tZo nocivo quanto o primeiro. No entanto, poderfamos destacar que, apesar de tudo, a esséncia deve ser vista como tendo uma superioridade sobre a aparéncia e talvez por duas raz6es basicas. Em primeiro lugar, porque s6 ela € capaz de per- mitir a l6gica ¢ estruturada compreensao sobre os nexos mais intimos da realida- de, possibilitando prever as potencialidades do scu desenvolvimento, dos seus destinos possiveis. Em segundo, porque, a partir dela, com os instrumentos que fornece, € possivel entender todas as caracteristicas da aparéncia, além de expli- car a razao pela qual a aparéncia deve ser necessariamente como é. Em certo sentido, a esséncia contém dentro de si a propria aparéncia. A segunda caracteristica da aparéncia capitalista que convém destacar aqui é 0 fato de que ela resulta diretamente da observacio da realidade, mas desde um ponto de vista particular, espectfico: do ponto de vista do ato individual ¢ isolado! Enquanto a esséncia s6 € compreensfvel a partir da perspectiva da totalidade social, a aparéncia deriva direta e imediatamente de uma visdo parcial ou isolada da rela- so social; em caso extremo, da observaciio de uma especifica relagio entre um determinado empresério © um trabalhador. Essa relagdo especifica nao tem neces- sariamente de ser de exploragio e muitas vezes nao o é, de fato, na aparéncia, E como a aco dos individuos na sociedade capitalista s6 os obriga (ou até os limita) a observagao do ato individual e isolado, tendem a ser prisioneiros da aparéncia e da unidimensionalidade do real. Eles, na sociedade capitalista, nao sao facilmente capazes de observar a realidade de um ponto de vista global. Se somamos a isso 0 fato, destacado antes, de que a apar€ncia é real ¢ nao falsa, teremos os elementos necessarios para compreender a forga da perspectiva empirista. O fato € que Marx, depois de expor os resultados do seu descobrimento sobre a origem da mais-valia, isto é, a exploragao do trabalho, enfrenta a tarefa de utilizar se dos instrumentos tedricos derivados da esséncia para “reconstruir”, no pensamento, a maneira como ela se apresenta na apar€ncia. Procura explicar como © porque a mais-valia apresenta-se como lucro, ou melhor, como se processa a dissimulagao da origem da mais-valia. E 0 faz de maneira magistral, embora no de forma completa ¢ totalmente desenvolvida, no livro 3 d’O capital. Nos dois Primeiros capitulos desse livro, Marx expde o que seriam alguns dos diversos mecanismos, fatores, momentos, aspectos, determinantes, ou dimensdes da dissi- mulagao da origem da mais-valia. E segue com essa tarefa em capftulos posterio- res. O melhor termo para expressar esses momentos da dissimulagao € algo a ser mais bem pensado. Por comodidade ¢ sem maior compromisso com seu real sig- nificado, usaremos 0 termo dimensdo. Isso, pelo menos, evitard que se pense que eles so paralelos ou progressivos. "Para uma melhor compreensdo do assunto, ver cap. XXI (Reproducéo simples) de Karl Marx, O capital: critica da economia politica, Riv de Janeiro, Civilizacao Brasileira, livro 1, v. 1, 1980. 78 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA Nosso propésito aqui é expor as diferentes dimensdes dessa mistificagéo ou dissimulago; aquelas que foram apresentadas n’O capital e duas outras nao tra- tadas ali, mas muito importantes. Uma destas, por certo, a que chamamos para- doxo da desigualdade dos iguais, embora nao tratada por Marx, encontra em seu texto o caminho para sua descoberta; a outra, no aparece em sua obra talvez por 86 ter alcangado relevancia na realidade social nos dias de hoje. Comecemos, pois, pela dimensao mais elementar da dissimulaga ceito de prego de custo. ; © con- 2. Prego de custo e salério como pagamento do trabalho A primeira dimensio da mistificagao ou dissimulagao consiste no préprio conceito de prego de custo. O custo ou prego de custo de uma mercadoria nada mais é do que aquela parte do seu valor depois de deduzida a mais-valia. Assim, nessas condigdes, 0 prego de custo é 0 que necessita o empresdrio para ressarcir- se dos gastos com matérias-primas, matérias auxiliares, depreciagao do equipa- mento ¢ instalagdes ¢ com os salarios. Marx preocupa-se em destacar com muita precisio a diferenga entre o prego de custo e a magnitude do valor, mostrando que aquele € 0 custo da mercadoria para o empresério, mas no o verdadeiro custo social: Sio duas magnitudes bem diversas que a mercadoria custa ao capitalista ¢ 0 que custa produzi-la. Da mercadoria, a parte constitufda pela mais-valia nada custa ao capitalista, justamente por custar ao trabalhador trabalho que nao é pago. (Marx, OC 3, p. 30)? Em que sentido 0 prego de custo, como uma idéia, arbitraria ou nao, € capaz de constituir-se em dimensao (na primeira dimensio) da mistificagdo da origem da mais-valia? Na verdade, a simples adi¢o, no prego de custo, de duas partes que cum- prem fungoes distintas no que se refere & produgio ¢ & valorizagao é 0 que leva & dissimulagao. Essas duas partes diferentes, que se encontram somadas no prego de custo, so 0 capital constante consumido (c) ¢ o capital varidvel (v). Enquanto o valor do capital constante consumido entra por inteiro na pro- dugao do valor da nova mercadoria e, portanto, transfere-se a esta, o valor do capital varidvel desaparece com 0 consumo da forga de trabalho. Assim, ao mes- mo tempo que, na producfo, durante uma jornada de trabalho, destréi-se o valor de uso didrio da forga de trabalho, ao consumir-se a capacidade de trabalhar do individuo, destréi-se também seu valor. E verdade que essa destruigao ocorre Karl Marx, O capital: critica da economia politica, op. cit, livro 3, 1981. CRITICA MARXISTA © 79 justamente para que surja um valor novo, 0 valor produzido durante a jornada, mas trata-se de um novo valor, diferente daquele que existia na forga de trabalho. Esse é um assunto tratado de maneira suficiente, por Marx, nos capftulos 5 ¢ 6 do livro 1 d’O capital: Mas esse valor-capital [o capital varidvel, RC] adiantado nao entra absolutamente na producao do valor novo. A forga de trabalho é valor com referéncia ao adiantamento de capital, mas, no processo de produgo, tem a fungo de criar valor. (Marx, OC 3, p. 32) A forga de trabalho, no capital, aparece como valor; na produgiio, como valor de uso. © consumo desse valor de uso, que € 0 trabalho, aparece como a agiio capaz de criar novo valor. Assim, 0 que 0 prego de custo faz ao somar os dois diferentes componentes do valor da mercadoria € tornd-los iguais (nao € possfvel somar coisas diferen- tes); 0 prego de custo produz uma indiferenciagao entre o capital constante e o capital variével?. Nessa formula, a parte do capital adiantada em trabalho s6 se distingue da adiantada em meio de producfo ... por servir para pagar elemento materialmente diverso da pro- dugao, nao entrando em conta a fungo diversa que desempenha no processo de produ- co do valor da mercadoria.... Extinguiu-se a diferenga entre capital constante e varié- vel. (Marx, OC 3, p. 34-5) Para 0 empresdrio, aumentar 0 gasto com materiais e, na mesma magnitude, reduzir os salrios, ou o contrério, 6, para o que nos interessa aqui, absolutamente indiferente. Dessa maneira, se o excedente-valor capitalista (a mais-valia) é fru da exploragao do trabalho, diferenga entre 0 valor produzido pelo trabalho e o valor da forga de trabalho, como o € na teoria econdmica de Marx, 0 prego de custo “desmente” essa conclusao. A simples idéia de prego de custo (que surge natural- mente na consciéncia do empresério), ao produzir a indiferenciagio das duas formas de capital, faz com que o lucro aparega como resultado nao do capital varidvel, mas da soma das duas. O prego de custo, como idéia derivada direta- mente da aparéncia, € capaz de produzir uma ilusio sobre a origem da mais- valia. Abstraida a diferenga entre capital varidvel ¢ 0 capital constante, a mais-valia aparece n&o como acréscimo do primeiro, mas da soma dos dois, isto é, do prego de custo: * “A diferenga que separa esses dois componentes do valor-mercadoria ... salta ao olhos quando corre uma variacao alternada na magnitude do valor do capital constante e do capital variavel adiantados.” (Marx, OC 3, p. 32) 80 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA «0 capital varidvel, despendido em forga de trabalho, classificado como capital circulante, é, no tocante & formagao do valor, expressamente identificado com 0 ca- pital constante, e assim mistifica-se completamente 0 processo de valorizagdo do capital. (Marx, OC 3, p. 36) Ao mesmo tempo em que 0 capital constante e 0 capital varidvel, através da idéia aparencial de prego de custo, tornam-se iguais (indiferenciam-se), o salario, de pagamento da forga de trabalho, aparece como pagamento do trabalho “o va- lor — 0 prego — da forca de trabalho se apresenta como valor — prego ~ do proprio trabalho, o salario.” (Marx, OC 3, p. 33) E nao importa se a idéia € de que o salario chega ou nao a ser suficiente para pagar todo o trabalho. Se paga o trabalho e no a forga de trabalho, pode até haver explorago, caso ele seja insuficiente para pagd-lo completamente. Mas, dessa maneira, a exploragiio nao é norma, é caso especial que pode até ser mais freqiiente ou generalizado, mas nao € a natureza mesma do sistema. A exploragio, de natureza intima do capital como se apresenta na teoria de Marx, passa a ser mera circunstancia particular que pode ser combatida. Terfamos, assim, os elementos necessérios para diferenciar 0 que seria o lucro “legitimo” 0 “ilegitimo” ¢ nao serfamos obrigados, eticamente, a exercer nossa oposigao ao capitalismo, mas ao selvagem do capitalismo. A diferenca, como sabemos, nfo € pequena. Enfim, com o preco de custo, modifica-se a propria natureza do valor da mercadoria: se em algum momento 0 entendfamos como V=c+(v+m), com 0 prego de custo torna-se Ve(c+v)+m ea mais-valia, que tem como origem o capital varidvel, torna-se lucro, cuja ori- gem é o capital por inteiro (c + v). Desapareceu a exploracao. 3. O capital fixo Como vimos no item anterior, com o prego de custo extingue-se a diferenga entre capital constante e varidvel e, com isso, o lucro parece provir de todo o capital consumido. Observe-se, no entanto, que o capital constante consumido, somado ao necessério aos salérios, nao € todo o capital necessario & produgao da mercadoria. Nele s6 incluimos a depreciagao dos instrumentos, das m4quinas, das instalag6es; em outras palavras, do capital fixo. CRITICA MARXISTA © 81 Para que a mercadoria seja produzida € necessério todo capital constante (C) e nao simplesmente 0 consumido (c). Para produzir a mais-valia necessita-se no s6 do capital correspondente ao prego de custo, mas de todo o capital. Logo o lucro tem como origem, provém, no s6 do prego de custo mas de todo o capital (C+v): Desse modo, a mais-valia provira tanto da parte do capital adiantado, absorvida no prego de custo, quanto da parte que néo entra nesse prego; numa palavra: igualmente, dos componentes fixos circulantes do capital utilizado. O capital todo — 0s meios de trabalho, as matérias de produgo ¢ 0 trabalho — serve materialmente para formar © produto, O capital todo entra materialmente no proceso efetivo de trabalho, embo- Ta apenas parte dele no processo de valorizacao. Seria precisamente esta a razdo por que s6 parcialmente contribui para formar o prego de cnsto e totalmente para formar a mais-valia. Seja como for, sobressai o resultado: a mais-valia brota simultaneamen- te de todas as partes do capital aplicado. (Marx, OC3, p. 38-9)! Para o capitalista fica entéio patente que esse acréscimo de valor provém dos proces- sos produtivos, empreendidos com o capital, derivando portanto do préprio capital; pois existe depois do processo de produgiio e no existia antes. (Marx, OC 3, p. 38) E necessétio destacar que capital adiantado ou desembolsado, tigorosa- mente, € um conceito mais concreto que os de capital total, capital constante consumido e capital constante, Para chegar-se a cle € necessaria toda a ampla andlise sobre a circulagdo e, especialmente, a rotagao do capital que Marx realiza no livro 2 d’O capital. Do ponto de vista que nos interessa aqui, isto é, a origem da mais-valia, € ao capital adiantado que se atribui a origem da mais-valia. 4, Divergéncia mais-valia/lucro em cada empresa e mesmo em cada setor Acreditar que a origem do lucro empresarial € a exploragio do trabalho trope- ga com uma dificuldade adicional. Se essa idéia fosse verdadeira, as empresas com proporcionalmente pouco capital constante e muito varidvel, isto é, com baixa com- posi¢ao organica, deveriam ter maior taxa de lucro que as demais. E é justamente 0 contririo do que, na maior parte das vezes, um observador qualquer poderia espe- rar: grandes empresas, com elevado capital em operacio, mesmo com um ntimero relativamente reduzido de trabalhadores, tém elevado Juco, tanto em termos abso- lutos (massa de lucro) quanto em termos relativos (taxa de lucro). * Quando Marx se refere a0 processo efetivo de trabalho e 20 processo de valorizagio, esti se utilizando do que estudou no capitulo 5 do livro 1 d’O capital, Tais conceltos 80 0s dois pélos contraditérios da unidade denominada processo de producSo capitalista e a cada um deles é dedicada uma das duas partes do mencionado capitulo. 82 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA Se altos lucros podem ocorrer em empresas com relativamente poucos traba- Thadores, como € possfvel pensar que a origem do lucro esteja justamente no trabalho? ‘A observagdo direta da aparéncia permite a hipétese exatamente contréria: a ori- gem est4 no capital e/ow no poder econémico que ele confere; nao no trabalho. Para esclarecer essa divergéncia entre a aparéncia ¢ a esséncia caracterfs- tica da sociedade capitalista, so necessdrios diversos passos que se iniciam pelo estudo da transformagao dos valores em pregos de produgao, continuam com 0 que poderfamos chamar de precos de monopélio e, no final, chegam aos precos de mercado, tal como 0s observamos na superficie da realidade. E indis- pensdvel entender, preliminarmente, dois conceitos opostos existentes na teo- ria econdmica marxista: produgio e apropriagiio. Enquanto a produgao da mais- valia fica determinada totalmente no nivel do valor, de maneira que divergéncias de magnitude entre prego ¢ valor em nada alteram a sua grandeza, a apropria- ¢4o s6 fica determinada no nivel mais concreto dos pregos de mercado. Nao € mister explicar novamente que, ao vender-se uma mercadoria acima ou abaixo do valor, a mais-valia apenas se reparte de maneira diferente, ¢ essa modificagao, essa nova proporgao em que diversas pessoas repartem entre sia mais-valia, em nada altera a natureza ¢ a magnitude dela. (Marx, OC 3, p. 47) Assim, explicar teoricamente as divergéncias entre a produgio e a apropria- ¢do da mais-valia significa esclarecer um dos aspectos decisivos da mistificagdo da origem da mais-valia. E Marx comega esse trabalho pela transformagio dos valores em precos de produgao. De maneira simplificada e numa primeira aproximagao, podemos dizer que preco de produgiio de uma mercadoria € 0 valor apropridvel na sua venda, que garante ao seu produtor a obten¢do do lucro médio, isto é, que garante a unifor- midade da taxa de lucro’. E um erro acreditar que, com a transformagdo do valor em prego de pro- dugio, Marx pretendia exclusiva ou prioritariamente explicar a determinagao dos pregos de mercado. Nao era esse seu propésito ou, pelo menos, nfo era seu propésito fundamental. O que ele queria, na verdade, era esclarecer um aspecto mais do complexo da dissimulagao da origem da mais-valia: a divergéncia quan- titativa entre lucro e mais-valia em cada setor da economia. Exatamente sobre isso, vejamos os trés tiltimos e importantfssimos paragrafos do capitulo II do * Para uma compreensiio mais adequada do conceito de prego de produgao, cf. Reinaldo A. Carcanholo. “O paradoxo da desigualdade dos iguais: incompreensdes ricardianas sobre os precos de producao”. Revista Perspectiva Econémica. Vitoria, ano |, v. |, n. 0, janeiro de 2000, p- 229-59 e, também, Reinaldo Carcanholo. Dialéctica de la mercancia y teorfa del valor. San José / Costa Rica, Educa, 1982, Entendido, assim, que nos parece a maneira adequada, 0 preco de produgao eo valor tém a mesma unidade de medida: 0 tempo de trabalho. CRITICA MARXISTA # 83 livro 3 d°O capital, em que Marx anuncia o que pretende realizar na seco (ou parte*) seguinte desse livro (segunda segao), justamente onde analisa a questo da transformagio: Na mais-valia se pOe a nu a relagdo entre capital e trabalho; na relago entre capital e lucro, isto é, entre capital e mais-valia — onde esta aparece como excedente sobre 0 prego de custo da mercadoria (...) — apresenta-se 0 capital como relagao consigo mesmo (...) Sabe-se que produz esse valor novo, ao movimentar-se através dos pro- cessos de producao e de circulacdo. Mas fica dissimulada a maneira como isso ocor- re, parecendo que o valor excedente provém de propriedades ocultas, inerentes ao pr6prio capital. E quanto mais seguimos 0 processo de valorizagao do capital, mais dissimulada fica a relacdo-capital, e menos se percebe o segredo de sua estrutura interna. Nesta parte do livro, a taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia; lucro e mais-valia, entretanto, so considerados grandezas iguais, divergindo apenas quanto & forma. Na parte seguinte veremos como prossegue o alheamento (Veriiussetlichung), passando o lucro a desviar-se da mais-valia também quantita- tivamente, (Marx, OC 3, p. 51-2) No primeiro dos trés pardgrafos, o autor esti se referindo ao que efetiva- mente realizou naquele capitulo (II do livro 3), isto é, mostrar a mistificagao existente, quando analisou algumas das suas dimensdes. No segundo pardgrafo, afirma que a dissimulagao, de fato, é muito maior do que a esclarecida até entao © que a continuidade do estudo permitira entender novas dimensées dela que a fazem ainda mais profunda. Finalmente, no terceiro pardgrafo, anuncia seu pro- pésito para a parte seguinte do seu trabalho (a seco correspondente a transfor- mag&o) que € o de mostrar como prossegue ou se aprofunda o “alheamento”, a dissimulagao. Observe-se, também, que seu propésito fica claramente expresso nos pré- prios titulos das duas primeiras segdes do livro mencionado: a) “a transformagao da mais-valia em lucro” ¢ b) “conversfo do lucro em lucro médio”. Nao chama a segunda se¢do de transformagao de valores em precos de produgdo, mas destaca, no proprio nome, sua preocupacao em analisar as divergéncias quantitativas. Es- sas divergéncias quantitativas, como é dbvio, so decisivas na dissimulagao da origem da mais-valia. E ni ¢ s6 isso. Na propria segunda seco, quase ao final do capitulo IX, depois jade haver explicado a transformagao dos valores em prego de produgio, afirma: * Na tradugio da DifeV/Civilizagdo, os és diferentes livros d’O capital aparecem divididos em “partes” 84 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA | Vimos na primeira parte: mais-valia e lucro eram idénticos, quanto & massa. Todavia, a taxa de lucro desde logo se distinguiu da taxa de mais-valia, parecendo ser inicial- mente apenas outra forma de calcular; mas, isto desde logo obscurece e dissimula a verdadeira origem da mais-valia, pois a taxa de lucto pode subir ou descer sem que se altere a taxa de mais-valia ou vice-versa. (Marx, OC 3, p. 189-90) ‘Até af, a diferenga entre lucro e mais-valia referia-se apenas A mudanga qualitativa de forma, s6 existindo diferenga quantitativa, nessa primeira ordem de transformagio, entre taxa de lucro ¢ taxa de mais-valia e nfo de lucro e mais-valia. A coisa muda quando se estabelece taxa geral de lucro e por meio dela lucro médio, correspondente & magnitude dada do capital aplicado nos diferentes ramos de produgao. Agora sabemos que 86 por casualidade a mais-valia realmente produzida num ramo particular de produgiio, ou seja, o lucro, coincide com o lucro contido no prego de venda da mercadoria. (Marx, OC 3, p. 190) Assim, a andlise que o mencionado autor realiza constata a existéncia de divergéncia quantitativa entre a mais-valia produzida e a apropriada (ou lucro) em cada ramo de produgdo. Ele passa, entdo, a apresentar as conseqiiéncias desse fato sobre a aparéncia da origem do lucro: A diferenga quantitativa real entre lucto ¢ mais-valia (...) nos ramos particulares de produgio oculta entio inteiramente a verdadeira natureza e a origem do lucro, nzo apenas para o capitalista que tem af especial interesse em enganar-se, mas também. para o trabalhador. Com a transformagio dos valores em prego de producio enco- bre-se a prépria base da determinagao do valor. (Marx, OC 3, p. 191) Agora, nio 6 s6 0 empresdrio, com 0 seu interesse objetivo em negar que a origem da mais-valia é a exploracdo, mas também o préprio trabalhador — cujo inte- resse seria justamente o contrério (0 esclarecimento da natureza fntima da relagdio salarial) — véem-se prisioneiros da visdo que deriva necessariamente da aparéncia capitalista. E essa imagem plenamente se confirma, consolida e ossifica, quando, na realidade, 0 lucro acrescentado ao prego de custo, em cada ramo particular de produgio, nao & determinado pelos limites da formagao do valor af ocorrida, mas por fatores inteira- mente externos. (Marx, OC 3, p. 191) O capitalista individual, ou o conjunto dos capitalistas em cada ramo particular, com horizonte limitado, tem razfio em acreditar que seu lucro nao deriva do trabalho em- pregado por ele ou em todo o ramo. Isto € absolutamente exato com referéncia a seu lucro médio. Até que ponto esse lucro se deve & exploracio global do trabalho por todo o capital, isto é, por todos os confrades capitalistas, € uma conexao para ele CRITICA MARXISTA * 85 submergida em total mistério, tanto mais quanto os tedricos da burguesia, os econo- mistas politicos, até hoje nfo a desvendaram. (Marx, OC 3, p. 193) Assim, 0 empresdtio, o prdprio trabalhador ¢ até os economistas tém razao em acreditar que o lucro nao tem origem na exploragao. Eles, pensando assim, nio s&o vitimas de um erro de interpretagao; a aparéncia os obriga a pensar dessa ma- neira; ela é uma das dimensdes da realidade e tao real quanto a esséncia, s6 que capaz de impedir, como dissemos, uma interpretagdo adequada da conexao intima do real. Eles nao sio capazes, facilmente, de observar a realidade de um ponto de vista global, que € 0 tinico que permite a visio da esséncia; esto prisioneiros, em grande medida, do ponto de vista do ato individual e isolado (ou pelo menos par- cial); sfio prisioneiros da aparéncia, ou melhor, da unidimensionalidade do real. 5. O paradoxo da desigualdade dos iguais A divergéncia quantitativa, em cada ramo e em cada empresa, entre a mais- valia produzida ¢ o lucro — entre outras dimensées da dissimulagao — faz do em- presério, do trabalhador ¢ de grande parte dos economistas prisioneiros da apa- réncia. No entanto, como o préprio Marx afirma: a dissimulagdo prossegue, ¢ outras dimensGes somam-se as apresentadas até agora. Como € bem sabido, a transformacio dos valores em pregos de produgao, tal como pensada por Marx, tem como pressuposto duas exigéncias simulténeas: 1) a igualdade quantitativa entre a soma dos valores e dos pregos de produgio do conjunto das mereadorias produzidas em todos os ramos econémicos (valor total e preco de produgao total) e 2) igualdade quantitativa entre a mais-valia total produzida e o lucro total apropriado. Enquanto a segunda igualdade é, de forma direta, fundamental para que se possa afirmar que o lucro é simplesmente a mais-valia distribuida de maneira diversa de sua produgio e, assim, para mostrar que a origem dele é a exploracao, a primeira igualdade também o 6, s6 que de maneira indireta. Se o prego de pro- dugao total nao fosse necessariamente igual ao valor total, sempre haveria uma magnitude daquele que permitiria fazer do lucro um miiltiplo qualquer da mais- valia, inclusive para que os fizesse iguais; s6 que isso seria uma arbitrariedade ¢, por isso, inaceitével teoricamente. A dificuldade est4 em que, na transformagao completa (incluindo a dos insumos"), a igualdade quantitativa entre lucro ¢ mais-valia totais nao ocorre, Cf. Ladislaus von Bortkiewicz. “Contribucién a una rectificacién de los fundamentos de la Construccién tedrica de M en el volumen Ill de £1 Capital”. In Rudolf Hilferding e outros. Economia burguesa y economia sacialista. Cuademos de Pasado y Presente, n. 49, Buenos Aircs/ Cérdoba, Siglo XXI, 1974. 86 ¢ SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA salvo em condigées muito especiais (por exemplo, em reprodugio simples, a com- posigdo organica e a rotago do setor que produz bens de consumo suntudrios iguais & média). Vejamos 0 assunto com detalhe, embora de maneira o mais simplificada possfvel. Suponhamos condigdes de reproducao simples, rotago anual igual a 1 em todos os ramos. Consideremos a produgao anual da economia no perfodo de um ano ¢ a divistio da mesma nos trés conhecidos setores: 1) produgao de meios de produg&o, 2) produgdo de bens de consumo dos trabalhadores ¢ 3) de bens de consumo suntudrios. Consideremos também que: valor do capital constante consumido no setor i, ¢ — seu prego de produgio; valor do capital varidvel no setor i, € seu prego de produgio; m, = valor da mais-valia produzida no setor i, & 1? = lucro médio do setor i; os subindices “t” referem-se & magnitude no total da economia, soma das corres- pondentes magnitudes dos 3 setores. Assim, Esquema em valores Esquema em prego de produgao ¢, + m = W, G+ % m = W, 6+ % m= W,; = CEE NP Se Le = No lado esquerdo encontra-se a situagdo, apresentada em termos de magni- tudes de valores (unidade de medida: horas de trabalho) e, no lado direito, apare- cem as magnitudes anteriores transformadas em prego de produgao (unidade de medida: horas de trabalho), supondo-se a transformagao inclusive dos insumos*. ® Para a realizagio formal da transformacdo e para uma discusso maior sobre o assunto deste item (Yo paradoxo da desigualdade dos iguais”), cf. Reinaldo A. Carcanholo. “O paradoxo da desigualdade dos iguais: incompreensdes ricardianas sobre os precos de producdo”. Revista Porspectiva Econémica. Vitoria, ano |, v. I, n. 0, janeiro de 2000, p. 229-59 e, também, Reinaldo Carcanholo. Dialéctica de la mercancfa y teorfa del valor, op. cit. CRITICA MARXISTA © 87 Observe-se que, no esquema em pregos de produgao, a magnitude do prego de produgio total aparece como W,, igual ao valor total. Facilmente podemos mostrar que, sendo a composicao organica do setor 3 diferente da média, M, # L,’, isto €, o lucro total devera ser, necessariamente, diferente da mais-valia total. Vejamos. Como condigao de reprodugio simples temos que W,=M, e W,'=L,’. Além disso, uma vez que a composigao organica do capital do ramo 3 € diferente da média, podemos afirmar que W, # W,' normal. Logo, M, # L,’. Isso significa que, em condigdes de composigao organica diferente da mé- dia no setor 3 (que € 0 caso mais normal), o lucro total apropriado pelos capitais tem magnitude diferente da mais-valia total e, assim, qualquer observador sera obrigado a concluir que a teoria da mais-valia nao € capaz de explicar o lucro; que este nao pode ter como origem teérica a exploragao. Que isso seja mera apar€ncia ¢ que nao passe de outra dimensio, mais pro- funda e mais complexa, da dissimulagao da origem da mais-valia é algo que ex- plicaremos logo mais. Antes disso, vejamos outro aspecto da questiio. Observe- mos a composicao do valor do total da produciio e também a do prego de produgaio: GqQ+vy+™M=wW, Cpe VP aul = WW, Se a mais-valia total tem magnitude diferente do lucro total, entdo o valor do capital total consumido (C, + V,) difere do seu prego de produgao (C + V,’). Mas isso significa que existem duas taxas de lucro (lucro dividido por capital total); uma em valor e outra em prego de produgao! Exatamente, mas, para nés, isso nao passa de um aspecto mais da dissimulagao da origem da mais-valia’. Como explicar esse paradoxo: o lucro total difere da mais-valia total? Tra- ta-se do que chamamos paradoxo da desigualdade dos iguais. Seria muito sim- ples dizer que, tratando-se de relagdo dialética entre a esséncia ¢ a aparéncia, nao se necesita uma explicagdo baseada na légica formal. Estarfamos, assim, frente a.um paradoxo dialético inexplicavel pela légica formal. No entanto, essa nao é nossa compreensao sobre o assunto, Para nés, embora a l6gica dialética supere a formal, ndo a pode violar. E por isso que as explicagdes dialéticas podem ser entendidas através de uma exposigao que pressupée exclusivamente a légica for- mal; O capital de Marx 6 a prova disso. ® Obviamente que as conclusdes de Steedman, prisioneiro da aparéncia, diferem totalmente das Rosas. Cf. lan Stedman. Marx, Sraffa y el problema de la transformacién. México, FCE, 1985 (Iitulo original: Marx after Sraffa) 88 © SOBREA ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA Apresentemos nossa interpretagao sobre o paradoxo. Para isso, podemos partir de qualquer elemento do esquema em valor e de seu correspondente em preco de produgao, apresentados acima. No entanto, é preferivel escolher al- gum que seja mais trivial, nao submetido a um fetiche tao grande como o lucro © a mais-valia. Partamos de ¢,; 0 que é ¢,? Trata-se do capital constante consu- mido no ramo I; mais precisamente, 0 valor do capital constante consumido. Por outro lado, ¢,' 6 0 prego de produgao desse mesmo capital. O que existe de comum entre c, € ¢,"? Resposta: trata-se da mesma substancia (os elementos materiais componentes do capital constante consumido pelo ramo I); eles tém em comum o contetido material; enquanto um deles indica a grandeza da di- mensdo valor daquele conjunto de meios de produgao, o outro mostra a grandeza da dimensao prego de produgao do mesmo conjunto. E como se um estivesse indicando a altura de uma determinada drvore e, o outro, o diametro maximo do seu tronco. As duas medidas aparecem em niimero de horas de trabalho e, ape- sar de que se trata de medidas diferentes, referem-se, ambas, & mesma substin- cia material, ao mesmo contetido, a0 mesmo conjunto de meios de produgao. O contetido é 0 mesmo, mas as medidas referem-se a formas ou dimensdes dife- rentes (valor ¢ prego de produgao). Embora a altura ¢ o diametro do tronco da 4rvore tenham medidas diferentes, ninguém poderia imaginar, por isso, que se trata de drvores diferentes. A mesma coisa poderfamos afirmar sobre qualquer outro par de elementos dos referidos esquemas, com excegdo dos que representam a mais-valia produzi- da e 0 lucro apropriado em cada ramo, Nesse caso, trata-se de medidas das for- mas de diferentes substancias: 0 lucro, em certos casos, deve corresponder a uma substancia maior que a mais-valia e, em outros, menor. No entanto, se se trata do conjunto da economia, o que diz nossa teoria? Ela afirma que o lucro total nao pode ser mais do que a mais-valia total dividida de outra maneira e, por isso, devem ter a mesma substincia: riqueza econdmica excedente. Assim, M, é 0 valor do excedente econ6mico capitalista e L,’ é 0 seu preco de produgio. Eles sao diferentes!? Obviamente, pois se trata de medidas de duas diferentes dimen- sOes da mesma substancia que tém como origem a exploracio do trabalho. O fato de que a altura da drvore e o didmetro do seu tronco tenham medidas diferentes no quer dizer que se trata de duas distintas arvores. ‘Vejamos a coisa de outra forma. Se os empresérios do ramo I venderem suas mercadorias por um prego de mercado correspondente ao prego de producéo, poderao reservar uma parcela do que se apropriarem, correspondente a ¢,', para comprarem os meios de produgao necessarios para repor o capital constante con- sumido. Comprarao esses meios de produgio por precos de mercado correspon- dentes aos seus precos de produgo. Podemos perguntar agora: qual 6 o valor desses meios de produco? Resposta: ¢,. CRITICA MARXISTA © 89 Da mesma maneira, se os empresérios de todos os ramos vendessem suas mercadorias por precos de mercado correspondentes aos seus pregos de produ- gio, obteriam como lucro total L,’. Com essa apropriago, comprariam bens suntudrios do ramo III (estamos supondo reprodugio simples) para seu consumo. Podemos perguntar agora: qual seria 0 valor total desses bens de propriedade dos empresérios que seriam destinados ao seu consumo? Resposta: M,. Uma tiltima forma de ver o assunto. Olhemos 0 esquema em pregos de pro- dugo, apresentado mais acima. Vejamos o lucro total: ele € L,’. Trata-se, na verdade, do seu preco de produgao. Mas, qual € o seu valor? Resposta: M, é 0 valor do lucro total. Por outro lado, qual seria 0 prego de produgo da mais-valia, cujo valor € M,? Resposta: L. Em conclusio, 0 que acontece € que, com a transformacdaio, a0 mesmo tempo. que se transforma mais-valia em lucro médio, altera-se a dimensao mensurada da riqueza capitalista; de um lado, ela é medida pelo seu valor, de outro, pelo seu prego de produgiio. Quando procuramos saber se o lucro total € ou nao igual A mais- valia total, observamos 0 valor da mais-valia e 0 prego de produgao do lucro. Obvia- mente eles devem ser diferentes (salvo nas condiges especiais ja anunciadas). Assim, justamente por serem a mesma coisa, do ponto de vista da substan- cia, justamente por ser o lucro nada mais que a mais-valia repartida de outra maneira, 0 lucro total medido em prego de produgao deverd ser diferente da mais- valia total medida em valor. Justamente por serem iguais, so diferentes: € 0 paradoxo da desigualdade dos iguais. Dessa forma, se até o item 4 deste trabalho j4 podfamos afirmar que empre- sdrios, trabalhadores e grande parte dos economistas se véem prisioneiros da apa- réncia, agora, com esse paradoxo, podemos entender que até mesmo aqueles (ou a maior parte deles, pelos menos) que desejariam ser marxistas, esforgam-se para sé-lo e se sentem como tais, sucumbem, de alguma maneira, frente a tao profunda dissimulagao. E verdade que Marx, por nao chegar a se preocupar em realizar a transfor- magio do lucro em lucro médio, incluindo a transforma¢do em prego de produ- gio dos insumos, no podia perceber o fato de que a mais-valia total apareceria como diferente do lucro total. Muito menos poderia chegar a explicar o parado- xo, como 0 fizemos. No entanto, se voltarmos a uma passagem ja citada antes neste trabalho, localizada no final do capitulo II do livro 3 d’O capital, podemos observar algo interessante: Nesta parte do livro, a taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia; Tucro ¢ mais-valia, entretanto, sao considerados grandezas iguais, divergindo apenas quanto & forma. Na parte seguinte veremos como prossegue 0 alheamento (Veriiusserlichung), passando o lucro a desviar-se da mais-valia também quantita- tivamente. (Marx, OC 3, p. 51-2) 90 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA Dessa maneira, anunciando o que faria na segunda se¢4o do livro, afirmava que verfamos como 0 lucro passa a desviar-se da mais-valia também quantita- tivamente. Nao se referiu, nessé momento, ao lugar em que isso ocorre; nao afir- mou que seria em cada ramo particular. Na verdade, nao chegou a afirmar que 0 desvio também aparece no total da economia; mas também jamais chegou a dizer contrério! No entanto, talvez seja um exagero pensar que ele tenha chegado a suspeitar da existéncia do paradoxo. 6. A circulagio Existe ainda, no capitulo II do livro 3 d’O capital, antes mesmo da segao sobre a transformagao, um momento em que Marx se refere, de passagem, a cir- culagiio como outra dimensiao existente na dissimulag&o da origem da mais-valia. Trata-se da seguinte: No processo de circulagiio aparece, ao lado do tempo de trabalho, o tempo de cir- culagio, que limita a quantidade de mais-valia realizdvel em determinado prazo. Outros fatores, oriundos da circulagdo, intervém, de maneira decisiva no proceso imediato de produgao. (...) entrecruzam-se os caminhos do tempo de circulagao & do tempo de trabalho e ambos igualmente parecem determinar a mais-valia. (Marx, OC 3, p. 41)” Sem diivida esté aqui pensando no fato de que o tempo de circulagao e a rotag&o do capital interferem na determinagao da taxa de lucro, particularmente no que se refere & taxa anual de lucro de um determinado capital. Dessa maneira, a0 lado da produgao, a circulagao e a rotagao parecem entrecruzar-se para a de- terminagao da magnitude do lucro. Surge aqui uma nova dimensao da dissimula- go. Lembremos que o problema da transformagao, para 0 autor, aparece nfio s6 pela existéncia de diferentes composig6es organicas do capital mas, também, pela ocorréncia de diferentes tempos de rotagao do capital. E, como sabemos, este 1 Ha, também, uma outra passagem importante sobre a questo: “Sem diivida, durante o processo imediato de producao, o capitalista tem consciéncia da natu reza da mais-valia, conforme demonstra sua avidez por trabalho alheio etc., observada ao estu- darmos a mais-valia. Contudo: 1) o processo imediato de producao transitério, fluindo para o processo de circulagao e vice-versa; assim, a idéia que se revela mais ou menos clara no proceso de producao, a respeito da fonte do ganho nele obtido, isto é, a respeito da natureza da mais- valia, parece, no maximo, equipararse 8 concepcao, segundo a qual 0 excedente realizado provém do movimento oriundo da circulagdo, desligado do processo de produgao, proprio do capi- tal independentemente de suas relagSes com 0 trabalho (...) 2) Na conta de custos (...) a exten- sfo de trabalho no-pago toma o aspecto de economia no pagamento de um dos artigos que entram nos custos, de pagamento menor por determinada quantidade de trabalho, como se fosse poupanga que se faz comprando matéria-prima mais barato ou reduzindo o desgaste da maqui- naria”. (Marx, OC 3, p. 47-8) CRITICA MARXISTA ¢ 91 aspecto € também levado em consideragao, por Marx, nas andlises referentes & transformagao do lucro em lucro médio ou do valor em prego de produgao. 7. A sagacidade do empresario No mesmo capitulo mencionado no item anterior, Marx indica ainda uma outra dimensao da dissimulagio da origem da mais-valia; esta, referida direta- mente a instincia dos fenémenos, tal qual podem ser diretamente observados na realidade. Constata o autor que o lucro pode existir mesmo que o prego de mercado no seja capaz de alcancar 0 correspondente ao valor e, agregamos por nossa conta, ao prego de produgao. Basta que o prego de venda seja superior aquele que corresponderia ao prego de custo para que exista lucro: O excedente do valor da mercadoria sobre o preco de custo, embora se origine dire- tamente do processo de producio, s6 se realiza no processo de circulagio, e a aparén- cia de provir do processo de circulagao se robustece porque, efetivamente, em meio 4 concorréncia, no mercado real, depende das condigdes deste a possibilidade de realizar-se e o grau em que se realiza em dinheiro esse excedente. Nao é mister expli- car novamente que, ao vender-se uma mercadoria acima ou abaixo do valor, a mais- valia apenas se reparte de maneira diferente, e essa modificago, essa nova propor- go em que diversas pessoas repartem entre si a mais-valia, em nada altera anatureza ea magnitude dela. No processo efetivo de circulagiio (...) a mais-valia que os capi- talistas, individualmente, realizam depende do logro reefproco como da exploracao direta do trabalho. (Marx, OC 3, p. 46-7) Isso significa, obviamente, que quanto maior o prego de mercado obtido pelo empresdrio, maior sera seu lucro ¢ sua taxa de lucro. Assim, o lucro parece provir do processo de circulagdo", como afirma Marx, e, muito mais que isso, parece depender diretamente da competéncia e/ou da sagacidade do empresé- tio. E essa conclusio nao consiste em um erro de interpretagdo de qualquer observador; isso é real, totalmente correto, pelo menos do ponto de vista das agdes individuais, do ponto de vista do ato individual e isolado, que € 0 ponto de vista da aparéncia. Ninguém sera capaz de mostrar, a qualquer observador, que essa nfo é a conclusao correta; 0 lucro tem como origem a capacidade empresarial, a compe- téncia ou a sagacidade do empresario. Como é forte a dissimulagio da origem da mais-valia! ™ Robustecendo-se, dessa maneira, o efeito da dimensao apresentada no item anterior. 92 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA 8. O lucro ficticio Finalmente, chegamos & ultima dimensdo que desejévamos apresentar. Tra- ta-se de uma que nio foi sugerida ¢ nem mesmo intufda por Marx. Pelo menos € © que acreditamos. E isso 6 explicdvel por cla nfio haver apresentado, em seu tempo, uma relevancia maior, embora, nos dias de hoje, seja absolutamente fun- damental para entendermos a ldgica do capitalismo ¢ decisiva para a dissimula- giio da verdadeira origem do lucro. Marx, em muitos momentos, j4 advertia que a divisdo da mais-valia nas diversas formas de lucro e de outros rendimentos e/ou gastos (juros, salérios ¢ gastos improdutivos, impostos etc.) funcionava como mecanismo da dissimula- ¢40", Destacou, também, que o capital a juros € a forma mais irracional do capi- tal, por ser a que mais esconde o nexo entre a origem do lucro (0 trabalho) e ele préprio. Explicou também que, com o desenvolvimento do capital a juros como forma funcional autonomizada do capital industrial, surgia 0 capital ficticio. Essa forma de capital, a ficticia, embora produto necessério da l6gica capi- talista, até a época de Marx ndo apresentava volumes exagerados ¢ podia convi- ver, sem maiores problemas, com o capital industrial. Nas tiltimas décadas, no entanto, apresentou crescimento explosivo, chegando a comprometer 0 normal funcionamento da economia capitalista e converteu-se no que chamamos capital especulativo parasitdrio™. © Talvez até devéssemos incluir esse aspecto como outra diferente dimensdo na dissimulagao. Marx, falando sobre as diversas formas de lucro, afirma no livro 3, cap. L: “Mas a coisa assume aspecto totalmente diverso na mente dos industriais, comerciantes e ban- queiros e também na do economista vulgar. Para eles, o valor da mercadoria, depois de deduzi- do 0 valor dos meios de producio nela consumidos, no é um elemento dado = 100, depois repartido por x, y, 2. Ao contrario, 0 preco da mercadoria se compe simplesmente do valor do salario, do lucro e da renda fundiaria, determinados cada um de maneira independente e sem subordinag3o ao valor da mercadoria.” (Marx, OC 3, p. 993-4) “Esses produtos da decomposicao do valor-mercadoria sempre aparecem como se fossem as condigSes prévias da propria formagao do valor, e 0 segredo dessa ilusdo simples: 0 modo capitalista de produgao, como qualquer outro, nao s6 reproduz sem cessar o produto material, mas também as relagdes econdmicas e socials e as formas econémicas especificas, adequadas para criar esse produto. Temos assim a permanente ilusao: os resultados parecem condicées prévias, e estas, resultados. E esta reproducdo permanente das mesmas relagies é 0 que o caj talista individual preliba, considerando-a fato evidente, indiscutfvel.” (Marx, OC 3, p. 998) © Para uma andlise detalhada do capital ficticio e do capital especulativo parasitério, cf. Reinaldo A. Carcanholo e Paulo Nakatani. “O capital especulativo parasitario: uma preciso tedrica sobre © capital financeiro, caracteristico da globalizag3o". Ensaios FEE. Porto Alegre, ano 20, n. 1, 1999, p. 284-304 e, também, Reinaldo A. Carcanholo. “O capital especulativo e a desmaterializagao do dinheiro”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Politica. Rio de Janeiro, Letras, n. 8, 2001, p. 26-45. Algumas das id¢ias que aprescntamos neste item do traba Iho aparecem muito mais desenvolvidas nesses artigos. CRITICA MARXISTA * 93 O capital ficticio e, em particular, o capital especulativo parasitario, do ponto de vista do ato individual ¢ isolado, é um capital real; nas maos de qualquer empre- sdrio pode converter-se em qualquer outra forma de capital ou de riqueza real. Por outro lado, do ponto de vista da totalidade é real ¢ ficticio ao mesmo tempo; real, por exigir remuneragdo como qualquer outro; ficticio, por nao ter substancia mate- rial nenhuma e em nada contribuir para a produgao do excedente, da mais-valia. O crescimento explosivo do capital especulativo parasitdrio nos dias de hoje tem como sustentagao, em especial mas nao exclusivamente, a expansao da divi- da piiblica nos diversos pafses. Caracteriza-se, atualmente, como uma forma pri- vilegiada de valorizagao e, por isso mesmo, preferencial inclusive para corporagoes tradicionalmente comprometidas com a légica da producao. Pois bem, sabemos que, em parte, o destino da remuneragao de qualquer capital, do seu lucro (deduzidos impostos e gastos improdutivos), é 0 consumo dos préprios empresarios. No entanto, a maior parcela desse lucro destina-se a incrementar 0 volume do capital existente, em todas as suas formas: produtiva, comercial, a juros ou ficticia. De outro angulo, podemos dizer que qualquer incremento do capital, em qualquer de suas formas, de um ano para 0 outro, necessariamente provém de seus lucros. O crescimento do capital real, com subst4ncia material e capaz de produzir tiqueza adicional, s6 pode provir de um excedente real, produto da exploragio segundo a teoria aqui exposta. Mas, o crescimento do capital ficticio ocorre sem que corresponda & verdadeira produgao de mais-valia. O capital ficticio cresce com a expansio da dfvida publica, com a valorizagao especulativa dos ativos em titulos privados ou mesmo dos bens reais (como iméveis) etc. Esse crescimento do capital ficticio provém de um lucro que nao tem origem na mais-valia; trata-se de um lucro “ficticio” que, na mesma medida do capital especulativo parasitério, € real do ponto de vista do ato individual e isolado e, do ponto de vista da totali- dade, € real e fictfcio ao mesmo tempo. O fato € que essa remuneracio, esse lucro, nfo tem origem na mais-valia. Trata-se de um lucro ficticio. Com isso, a exploragao fica ainda mais dissimulada. Com o predomfnio do capital especulativo parasitério no capitalismo con- tempordneo ¢ com a correspondente relevancia do lucro ficticio, a dissimulacio da verdadeira origem da mais-valia chega a limites insuspeitaveis. Se nos itens anteriores deste artigo conclufmos que, desde os empresarios, passando pelos trabalhadores e chegando até os economistas (inclusive aqueles que desejam es- lar entre os marxistas), todos chegavam a ser prisioneiros da apar€ncia, 0 que podemos concluir agora? Haverd outras dimensées na dissimulagéio? Prosseguird ainda mais 0 alheamento? E, por fim, terminaremos todos, nds mesmos, prisio- neiros da aparéncia capitalista? No que se refere, em particular, a nds mesmos ¢ s6 a n6s, esperamos estar imunes a esse pecado. 94 © SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA 9. Final Analisamos diferentes dimensées da dissimulagao da origem da mais-valia, partindo da mais elementar, 0 prego de custo, passando pelo surpreendente para- doxo da desigualdade dos iguais e chegando até os lucros ficticios, 0 que nos levou a coneluir que a mistificagao alcanga limites antes insuspeitaveis. Na ver- dade, caberia agora uma discussdo sobre a relagdo entre cada uma das diferentes dimensées; até que ponto haveria entre elas sobreposicAo, paralelismo ou outra relagdo qualquer. Isso, talvez, nos permitiria justificar adequadamente o melhor termo a ser utilizado para referir-se a elas: se dimensdes como preferimos ou mecanismos, fatores, momentos, aspectos, determinantes. Mas, aqui, nao ha es- pago para isso. Contentemo-nos com 0 que foi feito. Talvez fossem convenientes. antes de concluir, umas poucas palavras sobre a idéia de que o excedente capitalista ¢, particularmente seu crescimento, tem como fundamento a tecnologia. Essa visdo encontra sua origem na teoria de David Ricardo e, especialmente, em sua ingénua perspectiva sobre a natureza da rique- za capitalista’’, Na perspectiva de Marx, de fato, apesar de que se possa aceitar que, dada a quantidade total de trabalho social, a tecnologia € responsdvel, desde © ponto de vista do contetido material da riqueza, pelo volume do excedente, isso nao é suficiente para resolver a questao. O problema € que, para Marx, a riqueza capitalista € unidade de dois pélos, contetido e forma, e esta € dominante sobre aquele. Assim, do ponto de vista da forma, o excedente é mais-valia ou lucro (que pressupée uma particular relago social) e sua origem € 0 trabalho, ou me- Ihor, a exploragao do trabalho’. Assim, pensar que 0 lucro é resultado da tecnologia € também cair vitima da idéia da unidimensionalidade, é fazer-se prisioneiro do conteiido. Mas isso também é um tema que mereceria um tratamento mais amplo. 1# Sobre a nossa posi¢o sobre 0 assunto, cf. Reinaldo A. Carcanholo e Olivio Teixeira. “Sobre a leitura ricardiana de Marx”. Ensaios FEE. Porto Alegre, ano 13, n. 2, 1992. p. 581-91 15 Também é verdade que a tecnologia, via produtividade do trabalho no setor que produz bens de consumo dos trabalhadures, € decisiva ne determninagao do grau da exploragao, mas isso € uma outra questo. CRITICA MARXISTA ¢ 95

Você também pode gostar