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Obra publicada com a colaboraco da UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Reitor: Prof. Dr. Waldyr Muniz Oliva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAQ PAULO. Presidente: Prof. Dr. Mario Guimardes Ferri Comissdo Editorial: Prof. Dr. Mario Guimaraes Fer (Instituto incias). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da Cunha (Instituto de Biociéncias), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicinal, Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educacao} A CRITICA E O DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO Quarto volume das atas do Coléquio Internacional sobre Filosofia da Ciéncia, realizado em Londres em 1965 talogacfo-na-Fonte leira do Livro, SP ‘A.critica ¢ 0 desenvolvimento do conhecimento: i cost quarto volume das atas do Coléquio Internacional sobre Organizado por Filosofia da Ciéncia, realizado em Londres em 1965 / organi- zado por Imre Lakatos Alan Musgrave ; [traduzido por Octa- IMRE LAKATOS vio Mendes Cajado ; revisio técnica de Pablo Mariconda). — ‘Sao Paulo + Cultrix : Ed, da Universidade de Sio Paulo, 1979. | a Ex-professor de Légica da Universidade de Londres Bibliografia. 1, Cigncia. — Filosofia I. Coléquio Internacional sobre e Filosofia da Ciéncia, Londres, 1965. II. Lakatos, Imre. III. Musgrave, Alan, ALAN MUSGRAVE Professor de Filosofia da Universidade de Otago 790113 cpp sot Indices para catélogo sistemético: — Filosofia 501 1 2. Filosofia da ciéncia 501 EDITORA CULTRIX | Sio Paulo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO ‘Titulo do original: CRITICISM AND THE GROWTH OF KNOWLEDGE Copyrigth © 1970, Cambridge University Press ‘Traduzido por OCTAVIO MENDES CAJADO Revistio técnica de PABLO MARICONDA (do Departamento de Filosofia da Humanas da Universidade de Sio Paulo) MCMLXXIX Diteitos de tradugo para a Iingua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA Rus Consetheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 Sio Paulo, SP que se reserva a propriedade literdria desta tradugéo Impresso no Brasil Printed in Brazil saculdade de Filosofia, Letras e Ciénci SUMARIO Prefdcio Nota sobre a Terceira Impressio T. S. KUHN: Légica da Descoberta ou Psicologia da Pesquis Discussio: J. W. N. WAIKINS: Contra a “Ciéncia Normal” S.E. TOULMIN: Adequada a Distingio entre Ciéncis Normal ¢ Ciencia Revolucionéria? L. PEARCE WILLIAMS: Cigncia Normal, Revolugées Cientificas ¢ a Hist6ria da Cigncia K.R. POPPER: A Ciéncia Normal e seus Perigos MARGARET MASTERMAN: A Natureza de um Peradigma 1. LAKATOS: 0 Falseamento ¢ a Metodologia dos Programas de Pesquisa Cientifica P. K. FEYERABEND: Consolando o Especialista T. S. KUHN: Reflextes sobre os meus Criticos 33 49 6 R 109 24 285, PREFACIO Este livro constitui 0 quarto volume das Atas do Seminario Internacional sobre Filosofia da Ciéncia de 1965 realizado no Bedford College, Regent’s Park, Londres, de 11 a 17 de julho de 1965. O Semindrio foi organizado conjuntamente pela British Society for the Philosophy of Science (Sociedade Britdnica de Filosofia da Ciéncia) e pela London School of Economics and Political Science (Escola de Economia e Ciéncia Politica de Londres), sob os auspicios da Divisio de Légica, Metodologia e Filosofia da Ciéncia da Unido Internacional de Histéria e Filosofia da Ciéncia. O Semindrio e as Atas joram generosamente subsidiados pelas instituiges patrocinadoras, assim como pela Leverhulme Foundation (Fundacao Leverhulme) e peta Alfred P. Sloan Foundation (Fundagao Alfred P. Sloan). O Comité Organizador foi formado por W.C. Knea- le (Presidente), I. Lakatos (Secretério Honordrio), J.W.N. Watkins (Segundo Secretério Honorério), 8. Kéber, Sit Karl Popper, H. R. Post e J. O. Wisdom. Os trés primeiros volumes das Atas foram publicados pela North- Holland Publishing Company, de Amsterda, sob os seguintes titiilos: Lakatos (org.): Problems in the Philosophy of Mathematics (Pro- blemas da Filosofia da Matemdtica), 1967. Lakatos (org.): The Problem of Inductive Logic (O Problema da Légica Indutiva), 1968. Lakatos e Musgrave (orgs.): Problems in the Philosophy of Science (Problemas da Filosofia da Ciéncia), 1968. Todo o programa do Semindrio esté impresso no primeiro volu- me das Atas. : Este quarto volume obedece 4 politica editorial seguida nos trés primeiros. é mais uma reconstrucdo racional e uma ampliagao dos debates do que propriamente um mero regisiro dos mesmos. Todo 0 volume se desenvolve a partir de um iinico simpésio, ocorrido no dia 1 13 de julho sobre A Critica ¢ 0 Desenvolvimento do Conhecimento. De acordo com os planos originais, o Professor Kuhn, o Professor Feyerabend e o Dr. Lakatos deveriam ser os principais oradores mas, por motivos diferentes (veja mais adiante, 4 p. 33), as colaboragées do Professor Feyerabend e do Dr. Lakatos sé chegaram depois do Semindrio. O Professor Watkins concordou, em substitui-los. O Pro- jessor Sit Karl Popper assumiu a presidéncia do acirrado debate do qual participaram, entre outros, o Professor Stephen Toulmin, o Pro- fessor Pearce Williams, a Srt¢ Margaret Masterman e o Presidente. Os textos dos trabalhos, tais como aqui se imprimiram, foram concluidos em diferentes ocasiées. O artigo do Professor Kuhn esté impresso essencialmente na forma em que foi lido pela primeira vez. Os trabalhos dos Professores John Watkins, Stephen Toulmin, Pearce William e de Sir Karl Popper sao verses ligeiramente modificadas das colaboragées originais. Por outro lado, a contribuigao da Srt.* Masterman sé foi terminada em 1966, ao passo que as do Dr. Lakatos e do Professor Feyerabend, juntamente com a réplica final do Profes- sor Kuhn, foram concluidas em 1969. Os Organizadores — auxiliados por Peter Clark e John Worrall — desejam agradecer a todos os colaboradores sua amdvel coopera- edo. Confessam-se igualmente gratos & Srt.“ Christine Jones e a Srt.* Mary McCormick pelo trabalho consciencioso e cuidadoso no prepa- ro dos manuscritos para a publicagao. OS ORGANIZADORES Londres, agosto de 1969. NOTA SOBRE A TERCEIRA IMPRESSAO A terceira impressto de A Critica e 0 Desenvolvimento do Co- nhecimento 56 difere da primeira pela eliminacao de uns poucos erros de impressao € pela introdugao de correcdes menores, essencialmente bibliogrificas e estilisticas. Desde que se publicou a primeira impressdo, as idéias discutidas neste volume foram ainda mais desenvolvidas por alguns autores: Thomas Kuhn publicou uma segunda edicto de sua The Struc~ ture of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revolugées Cientifi- cas) com um posfécio, que aperfeicoa sua teoria dos paradigmas (Chicago University Press, 1970). 2 Stephen Toulmin publicou 0 primeiro volume da sua Human Understanding (Compreensdo Humana — Princeton University Press ¢ Clarendon Press, 1972). Paul Feyerabend expos o seu anarquismo metodoldgico no livro ‘Against Method (Contra 0 Método) (New Left Books, 1974). Imre Lakatos desenvolveu ainda mais sua teoria dos programas de pesquisa cientifica em History of Science and Its Rational Recons- truction (Histéria da Ciéncia e Sua Reconstrugao Racional) e em suas Replies to Critics (Respostas aos Criticos), ambat publicadas na obra organizada por R. C. Buck e R. S. Cohen PSA 1970, Boston Studies in the Philosophy of Science, 8 (PSA 1970, Estudos Bostonianos de Filosofia da Ciéncia, 8) (Reidel Publishing House, 1971) e em seu trabatho Popper on Demarcation and Induction (Popper [fala] sobre Demarcagao ¢ Indugdo) na obra organizada por P. A. Schilpp: The Philosophy of Karl R. Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), Open Court, 1974. [Elie Zahar aperfeicoou substancialmente a metodologia de Lakatos em seu Why did Einstein’s Programme Supersede Lo- rentz’s? (Por que o Programa de Einstein Suplaniou 0 de Lorentz's?), no n° 24 do The Britsh Journal for the Philosophy of Science, pp. 95-123 e 223-62, aperfeicoamento esse também aplicado a reinter- pretacdo da Revolugéo Coperniciana no trabalho de Lakatos e Zahar: Why did Copernicu’s Programme Supersede Ptclemy’s? (Por que 0 Programa de Copémico Suplantou o de Ptolomex?) € no livro orga- nizado por R. Westman: The Copernican Achievement (A Realizacao Coperniciana), (Calijornia University Press, 1975).] OS ORGANIZADORES Londres, janeiro de 1974. LOGICA DA DESCOBERTA OU PSICOLOGIA DA PESQUISA? * THOMAS S. KUHN Princeton University Meu objetivo nestas paginas & justapor 0 ponto de vista sobre © desenvolvimento cientifico esbocado em meu livro, The Structure of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revolugdes Cientificas), a0s pontos de vista mais conhecidos do nosso presidente, Sir Karl Popper? Normalmente eu me negaria a um empreendimento dessa natureza, pois sou menos otimista que Sir Karl quanto 2 utilidade das confrontagées. Por outro lado, admirei por tanto tempo a sua obra que, a esta altura, nfo me é fécil criticé-la. Apesar disso, estou persuadido de que, nesta ocasido, a tentativa h4 que ser feita. Antes mesmo de meu livro ser publicado ha dois anos e meio, eu comegara a descobrir caracteristicas especiais e freqtientemente enigméticas da relaco entre minhas opinides e as dele. Essa relagéo e as reacées divergentes por ela provocadas dio a entender que uma comparacdo disciplinada entre as duas pode elucidar muita coisa. Permitam-me dizer por que isso me parece possivel. 1. Este ensaio foi inicialmente preparado a convite de P. A. Schilpp para seu volume prestes a sait The Philosophy of Karl R. Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), que ser4 publicado por The Open Court Publishing Company, La Salle, Ill, em The Library of Living Philosophers (A Biblioteca dos Fil6sofos Vivos). Confesso-me profundamente grato 20 Professor Schilpp © 20s editores pela autorizacdo que me concederam para imprimilo como parte das atas Geste simpésio antes de aparecer no volume para o qual foi primeiro solicitado. 2. Para preparar este trabalho, reli de Sir Karl Popper Logic of Scientific Discovery, Conjectures and Refutations ¢ The Poverty of Historicism. ‘Também referéncias ocasionais & sua Logik der Forschung © a The Open Society and its Enemies, Minha The Structure of Scientific Revclutions proporciona um relato mais extenso de muitas questdes adiante discutidas. Em quase todas as ocasides em que nos voltamos explicitamente “para os mesmos problemas, nossas opinides sobre ciéncia sio quase idénticas. Interessa-nos muito mais 0 processo dinamico por meio do qual se adquire o conhecimento cientifico do que a estrutura l6gica dos produtos da pesquisa cientifica. Em face desse interesse, ambos enfatizamos, como dados legitimos, os fatos e 0 espirito da vida cientffica real, e ambos nos voltamos com freqiiéncia para a historia ‘no intuito de encontré-los. Desse conjunto de dados partilhados, che- gamos a muitas das mesmas conclusGes. Ambos rejeitamos 0 parecer de que a ciéncia progride por acumulacao; em lugar disso, enfatizamos © proceso revoluciondrio pelo qual uma ‘teoria mais antiga é rejeita- da e substituida por uma nova teoria, incompativel com a anterior; “ ¢ ambos sublinhamos enfaticamente 0 papel desempenhado nesse pro- cesso pelo fracasso ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios langados pela légica, experimentacao ou observacdo. Final- mente, Sir Karl e eu estamos unidos na oposigdo a algumas das teses mais caracterfsticas do positivismo cléssico. Ambos enfatizamos, por exemplo, 0 embricamento fntimo e inevitével da observagéo com a teoria cientifica; conseqtientemente, somos céticos quanto aos esforgos para produzir qualquer linguagem observacional neutra; ¢ ambos in- sistimos em que os cientistas podem, com toda propriedade, procurar inventar teorias que expliquem os fenémenos observados, e que facam isso em termos de objetos reais, seja qual for o significado da tiltima expresso. Conquanto nao esgote as questdes a cujo respeito Sir Karl © eu concordamos, essa lista jé € suficientemente extensa para nos colocar 3. Uma simples coincidéncia nfo pode ser responsével por essa extensa superposigo. Conquanto eu nfo tivesse lido nenhuma obra de Sir Karl antes do aparecimento, em 1959, da sua Logik der Forschung (ocasido em que met livro estava. no rascunho), ouvi discutido repetidamente certo nmero de suas idéias principais. Ouvi, sobretudo, discutir algumas delas como *Conferencista William James” em Harvard na primavera de 1950. Tais circunstincias nao me permitem especificar uma divida intelectual para com Sir Karl, mas deve haver 4.) Utilize! alhures 0 termo \“paradigma”em lugar de “teoria” para deno- tar o ue € rejeitado e substituido durante as revolugdes cientificas. Algumas razées para a mudanca do termo surgirio mais adiante. 5. © realee dado a uma érea adicional de concordéncia a cujo respeito tem hovido miiios matententidns pris pr sinda mais em foco © qv nO meu entender, constitui as verdadeiras diferengas entre os pontos de. vista de Sir Karl e os meus. Ambos insistimos em que a fidelidade. a uma tradi desempenha papel essencial no desenvolvimento cientfico. Ele escrevew, por exemplo, “Quantitativa © qualitativamente a fonte mais importante do nosso 6 no mesmo grupo minoritadrio entre os filésofos da ciéncia contemporé nea, Presumo que seja por isso que os seguidores de Sir Karl tém do, com alguma regularidade, meu ptiblico filosofico mais compreen- sivo, ao qual continuo a sentir-me grato. Minha gratidfo, contudo, nao é sem reservas. A mesma concordancia, que provoca a simpatia desse grupo, nao raro Ihe dirige mal o interesse. Ao que tudo indica, ‘0s adeptos de Sir Karl so capazes de ler grande parte do meu livro ‘como capitulos de uma revisio tardia (e, para alguns, dréstica) de sua obra classica The Logic of Scientific Discovery (A Légica da Descoberta Cientifica). Um deles pergunta se a visio da ciéncia es- bocada na minha Scientific Revolutions nao constituiu por muito tempo matéria de conhecimento comum. Um segundo, mais caritati- vo, limita minha originalidade & demonstragio de que as descobertas de fato tém um ciclo vital muito semelhante a0 das inovagoes-da- teoria. Outros, ainda, declaravam-se satisfeitos de uma maneira geral com a leitura do livro, mas discutem apenas as duas questoes, com- parativamente secundérias, a cujo respeito minka discordancia com Sir Karl é mais explicita: a énfase que dou & importincia de um ‘compromisso profundo com a tradigdo e meu descontentamento com as implicagdes do termo “falseamento”. Resumindo, todos esses ho- mens leram meu livro com éculos muito especiais e ha outra mancira de lé-lo. A visio que se tem através desses culos nfo est4 errada — minha concordancia com Sir Karl é real e substancial. Entretanto, os Ieitores fora do cfrculo properiano quase invariavelmente deixam de notar até que a concordancia existe, ¢ so eles que com mais fre~ giiéncia reconhecem (nem sempre com simpatia) as questGes que me parecem mais importantes. Chego 4 concluséo de que uma mudanca de gestalt divide os leitores do meu livro em dois ou mais grupos. O que um deles vé como notével paralelismo € virtualmente invistvel para outros. O desejo de compreender tudo isso é 0 que motiva a presente comparacdo da minha visio com a de Sir Karl. ‘A comparagéo, todavia, nao deve limitar-se a uma justaposicao ponto por ponto. O que exige atenc&o ¢ menos a rea periférica em que se devem isolar nossas divergéncias secundarias ocasionais, do {que a regido central em que parecemos concordar. Sir Karl ¢ eu ape- lamos para os mesmos dados; vemos, numa extensio incomum, as mesmas linhas no mesmo papel; indagados sobre essas linhas ¢ esses conhecimenta — tiranda 9 conhecimento inato — é a tradiedo” (Popper, Con- jectures and Rejutations, p. 27). De maneira ainda mais pertinente, j& em 1948, escrevia: “Nio me parece que poderemos, algum dia, libertarnos de todos os Tacos da tradiglo. A chamada libertagdo, na realidade, € apenas a mudanga de uma tradigéo para outra” (Conjectures and Rejutations, 1963, p. 122). dados, damos, no raro, respostas virtualmente idénticas ou, pelo menos, respostas que inevitavelmente parecem idénticas na limitaco imposta pelo processo de pergunta e resposta. Nao obstante, experién- cias como as que ja mencionei convencem-me de que nossas intengdes so muitas vezes totalmente diversas quando dizemos as mesmas coi- sas. Se bem as linhas sejam andlogas, as figuras que delas emergem ndo 0 so. Por isso chamo ao que nos separa mudanca de gestalt € nao discordancia e por isso me sinto, a0 mesmo tempo, perplexo intrigado sobre a melhor maneira de examinar a separacdo. Como poderei persuadir Sir Karl, que sabe tudo o que sei acerca do de- senvolvimento cientifico e que jé o disse num ou noutro lugar, de que 0 que ele chama de pato pode ser visto como um coelho? Como poderei ensiné-lo a usar meus éculos quando ele jé aprendeu a olhar através dos seus para tudo 0 que posso apontar? Nesta situagio, impde-se uma mudanca de estratégia, e a seguin- te se sugere. Relendo mais uma vez alguns dos principais livros ensaios de Sir Karl, torno a encontrar uma série de expressdes que se repetem e que, embora eu as compreenda e ndo as desaprove de todo, sdo expressoes que nunca teria usado nos mesmos lugares. Sem diivida, trata-se na maior parte das vezes, de metéforas retoricamente aplicadas a situagdes das quais Sir Karl forneceu alhures descricdes, inataciveis. Contudo, para os propésitos correntes, tais metéforas — que se me afiguram manifestamente inadequadas — podem revelar-se mais titeis do que descricdes diretas. Isto , podem sintomatizar dife- rencas contextuais que uma expressio literal cuidadosa esconde. A ser assim, tais expresses funcionam, no como linhas-sobre-o-papel, mas como a orelha-de-coelho, o xale ou a fita-na-garganta que se iso- Ja quando se est4 ensinando um amigo a transformar seu modo de ver um diagrama de gestalt. Essa, a0 menos, é minha esperanga no que a elas se refere. Tenho em mente quatro diferencas de expressdes e delas tratarei seriatim. I ‘Uma das questées fundamentais a cujo respeito Sir Karl e eu concordamos € a insisténcia em que uma anélise do desenvolvimento do conhecimento cientifico deve levar em consideracao a maneira pela qual a ciéncia é realmente praticada. Assim sendo, algumas das suas repetidas generalizaces me surpreendem. Uma delas aparece no ini- cio do primeiro capitulo de 4 Légica da Descoberta Cientifica: “tim cientista”, diz Sir Karl, “seja te6rico,. seja experimentador, apresenta enunciados, ou sistemas de enunciados, e os testa pouco a pouco. No campo das’ ciéncias empiricas, mais particularmente, ele constréi hi 8 poteses, ou sistemas de teorias, ¢ os pe A prova 2 luz da experiéncia, pela observacio e pela experimentacao”.® O enunciado é virtualmente um cliché e, no entanto, apresénta trés problemas em sua aplicacao. E ambiguo porque nao especifica qual das duas espécies de “enuncia- dos” ou “teorias” esté sendo testada. Nao hé diivida de que essa ambigiiidade pode ser eliminada por referéncia a outras passagens dos escritos de Sir Karl, mas a generalizacio que dela resulta é his toricamente equivocada. De mais a mais, o equivcco revela-se impor- tante, pois a forma ndo ambigua da descricao omite exatamente a ca- racterfstica da pratica cientifica que, de certo modo, distingue as cigncias de outras atividades criativas. Ha uma espécie de “enunciado” ou “hipéiese” que os cientistas submetem repetidamente ao teste sistemético. Tenho em mente os emunciados das conjeturas de um individuo acerca da maneira apro- priada de ligar seu problema de pesquisa 20 corpo do conhecimento cientifico aceito. Ele pode conjeturar, por exemplo, que determinada incégnita quimica contém o sal de uma terra rata, que a obesidade dos seus ratos experimentais se deve a um componente especifico da dieta deles, ou que um modelo espectral recém-descoberto deve ser compreendido como um efeito do spin nuclear. Em cada caso, os) passos seguintes de sua pesquisa se destinardo a testar a conjetura ou hipotese. Se esta passar por uma quantidade suficiente ou suficiente- mente persuasiva de testes, o cientista fez uma descoberta ou, pelo me- nos, resolveu enigma em cuja solucdo estava empenhado. Caso contrério, tera de abandonar inteiramente o enigma ou tentar resolvé- To com 0 auxflio de outra hipétese qualquer. Embora nem todos, muitos problemas de pesquisa assumem essa forma. Os testes desse | tipo representam um componente comum do que denominei “ciéncia normal” ou “pesquisa normal”, responsavel pela imensa maioria do trabalho realizado em ciéncia basica. Esses testes, porém no sd0 di- tigidos, em nenhum sentido usual, para a teoria corrente. Ao contré- io, quando esté as voltas com um problema de pesquisa normal, o cientista deve postular a teoria corrente como a regra do seu jogo. Seu objetivo € resolver uma charada, de preferéncia uma charada em que outros falharam, ¢ a teoria corrente é indispensével para defini-la e para assegurar que, em havendo talento suficiente, a charada poderd Ser resolvida.’/E evidente que quem se propde a um tal empreendi- 6. Popper, Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 21. 7) Sobre uma extensa discussao da ciéncia normal, a’ atividade para cujo exercivio os profissionais sfo treinados, veja minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 2524 © 135-42. E importante notar que, quando descrevo 0 cientista como um solucionador de enigmas © Sir Kerl 0 descreve como um 9 mento precisa testar com freqiiéncia a solucdo conjetural do enigma que seu engenho The sugere. Mas s6 € testada a sua conjetura pessoal. Se ela nao passar pelo teste, s6 se impugna a capacidade do cientista @ néo 0 corpo da ciéncia corrente. Em suma, conquanto ocorram com freqiiéncia na ciéncia normal, esses testes sio de um género peculiar pois na andlise final, é o cientista ¢ nao a teoria vigente que se poe A prova. Nao € essa, todavia, a espécie de teste que Sir Karl tem em men- te, Interessam-no, acima de tudo, os processos por cujo intermédio a iéncia se desenvolve, e ele esti convencido de que o “desenvolvi mento” tio ocorre principalmente por acumulacéo mas pela derru- bada revoluciondria da teoria aceita e pela substituico por uma teo- tia melhor.® (Considerar que “crescimento” inclui “derrubada repe- tida” & uma singularidade lingilstica cuja raison d'éire poderd tor- nar-se visivel & medida que prosseguirmos.) Segundo este ponto de vis- ta, os testes enfatizados por Sir Karl so os que se realizam para ex- plorar as limitacdes da teoria aceita ou para submeter a teoria vigente a uma tensdo maxima, Entre seus exemplos favoritos, todos de re- ‘sultados surpreendentes e destrutivos, estio as experiéncias de Lavoi- sier sobre oxidagao, a expedigao de 1919 para estudar o eclipse ¢ as recentes experiéncias sobre a conservagio da paridade.® Trata-se, na- turalmente, de testes cldssicos mas, ao utilizd-los para caracterizar a atividade cientifica, Sir Karl passa por alto um pormenor importan- tfssimo a respeito deles. Tais episédios so muito raros no desenvol- vimento da ciéncia. Sobrevém, quase sempre, provocados por uma ‘crisé"anterior 0 campo pertinente (as experiéncias de Lavoisier ou as de Lee e Yang) ou pela existéncia de uma teoria que compete solucionador de problemas (por exemplo em seu Conjectures and Refutations, pb. 67, 222), a similaridade de nossos termos disfarga uma divergéncia funda: ental, Escreve Sir Karl (os grifos si meus), "Nao hé divida de que nossas expectatives e, portanto, nossas teorias, podem até preceder, historicamente, hhossos problemas. Entretanto a ciéncia $6 comeca com problemas. Os proble- mas afloram sobretudo quando estamos decepcionados em nossas expectativas, fu quando nossas teorias nos envolvem em dificuldades, em contradigdes.” ‘Emprego 0 termo “enigma” no intuito de enfatizar que as dificuldades que de ordindrio so enfrentadas até pelos melhores cientistas so, como enigmas fe palavres cruzadas ou charadas de xadrez, desafios spenas a0 seu, engenho- £ ele quem est em dificuldade, ndo a teoria vigente, Meu ponto de vista € ‘tiase oposto a0 de Sir Karl. 8. Ci. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 129, 215 e 221, sobre enunciados ‘particularmente vigorosos dessa_posigao. ‘9. Por exemplo, Popper, Conjectures and Refutations, p. 220. 40. Sobre a obra acerca da oxidacto, veja Guerlac, Lavoisier — The Crucial Year, 1966. Sobre os antecedentes des experiéncias telativas & paridade yelase Hafner e Presswood, “Strong Interference and Weak Interactions”, 1965. 10 com os canones existentes da_pesquisa (relatividade geral de Eins- teiny>-Estes so, todavia, aspectos do que em outro lugar chamei de “pesquisa extraordindria” ou ocasides para ela, atividade em que os cientistas exibem muitas das caracterfsticas enfatizadas por Sir Karl, mas que, pelo menos no passado, s6 surgiram com intermiténcias € em circunstincias muito especiais em qualquer especialidade cienti-. fica! ‘A meu ver, portanto, Sir Karl caracterizou toda a atividade cien- tifica em termos que s6 se aplicam a suas partes revoluciondrias oca- Sionais, Sua énfase é natural e comum; os feitos de um Copérnico ow dé um Einstein constituem leitura mais aprazivel que os de um Brahe ou de um Lorentz; Sir Karl no seria 0 primeiro se tomasse (© que chamo de ciéncia normal por uma atividade intrinsecamente desinteressante. Apesar isso, nem a ciéncia nem o desenvolvimento do conhecimento tém probabilidades de ser compreendidos se a pes- quisa foi vista apenas através das revoludes que produz de vez em quando. Por exemplo, embora os compromissos bésicos s6 sejam testados na ciéncia extraordindria, é a ciéncia normal que revela, a0 mesmo tempo, os pontos que devem ser testados ¢ a maneira de testé- Jos. Ou ainda, é para a pritica normal, e nao para a prética extraor- dindria da ciéncia, que se treinam profissionais; se eles, entretanto, forem muitissimo bem-sucedidos nas substituigdes das teorias de que depende a prética normal, esta singularidade terd de ser explicada. Finalmente, e tal é por enquanto 0 meu ponto principal, um olhar cuidadoso dirigido & atividade cientifica dé a entender que é a ciéncia normal, onde ndo ocorre os tipos de testes de Sir Karl, e nio a ciéncia extraordindria que quase sempre distingue a ciéncia de outras ativida- des. A existir um critério de demarcacdo (entendo que no devemos procurar um critério nftido nem decisivo), s6 pode estar na parte da ciéneia que Sir Karl ignora. ‘Num de seus ensaios mais sugestivos, Sir Karl remonta a origem “da tradigio da discussio critica [que] representa o tinico modo praticével de expandir nosso conhecimento” até os fil6sofos gregos entre Tales e Plato, homens que, no seu entender, fomentaram a discussdo critica ndo s6 entre as escolas mas também dentro delas.1? A descricio do discurso pré-socratico € muito bem feita, mas o que se descreve em nada se parece com ciéncia. & antes a tradicéo de Ti, O argumento € desenvolvido de mansira cicunstanciada em minha The Stractre of Seis Revelations, 1962, pp 5237 12. Popper, Conjectures and Refuteions, capitulo 5, especialmente 148-52. * * aa ul razdes, contra-razdes e debates sobre questées fundamentais que, ex- ceto talvez durante a Idade Média, caracterizassem a filosofia ¢ boa parte da ciéncia social desde entao. J4 por volta do perfodo helents- tico a matemdtica, a astronomia, a estética e as partes geométricas da 6tica haviam abandonado esse tipo de discurso em favor da solugdo de enigmas. Outras ciéncias, em quantidades cada vez maiores, so- freram depois disso a mesma transicao. Em certo sentido, para virar do avesso 0 ponto de vista de Sir Karl, € precisamente o abandono do°discurso critico que assinala a transi¢ao para uma ciéncia. Depois que um campo opera essa transi¢ao, o discurso critico $6 se repete em momentos de crise, quando esto em jogo as bases desse campo.'3 ‘Apenas quando precisam escolher entre teorias concorrentes os cien- tistas se comportam como filésofos. E por isso provavelmente que a brilhante descrigo de Sir Karl das razdes da escolha entre sistemas metafisicos se parece tanto com minha descricéo das razées da esco- Iha entre teorias cientificas.¢ Em nenhuma das escolhas, como logo tentarei demonstrar, o sistema dos testes desempenha papel decisivo. Hi, contudo, uma boa razo para que 0 teste parega desempenhar esse papel ¢, ao estudé-lo, 0 pato de Sir Karl pode, afinal, conver- ter-se no meu coelho. Nao existird nenhuma atividade de solugdo de enigmas se os seus praticantes no partilharem de critérios que, para aquele grupo e aquele momento, determinam o instante em que certo enigma € solucionado. Os mesmos critérios determinam necessaria- mente 0 fracasso na obten¢io de uma solugdo, ¢ quem quer que escolha, pode ver esse fracasso como 0 fracasso de uma teoria em passar por um teste. Normalmente, porém, como jé tenho dito, nfo se vé dessa maneira. S6 se censura o praticante, néo se Ihe censuram os instrumentos. Mas em condicdes especiais, que provocam uma crise na profissio (como, por exemplo, um grande malogro, ou o malogro repetido dos profissionais mais brilhantes) a opiniéo do grupo pode mudar. Um fracasso visto antes como pessoal parece entio 0 fracas- so da teoria que est sendo testada. Dali por diante, por ter nascido de um enigma e. ter critérios determinados de solugio, o teste se revela, ao mesmo tempo, mais severo e mais diffcil de eludir do que os que se encontram dentro de uma tradi¢ao cujo processo normal é muito mais 0 discurso critico do que a solugio de enigmas. 15, Conquanto ett nao estivesse entio procurando um critério de demat cago, so exatamente esses 0s pontos desenvolvidos em minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 10-22 e 87-90. 14, Cf. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 192-200, com minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 145-58. 12 Num sentido, portanto, a severidade dos critétios-de-teste é tio- -s6 um lado da moeda cujo verso é a tradicao de solugio-de-enigmas. Daf que a linha de demarcaco de Sir Karl e a minha coincidam com tanta freqtiéncia. A coincidéncia, contudo, esta . sivel de nivel inferior) devia consistir em educar ¢ estimular o aluno a utilizar o|pensamento critico.)O cientista “normal”, descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foi ensinado com espirito dogmdtico: é ‘uma vitima da doutrinagdo. Aprendeu uma técnica que se pode apli- ‘car sem que seja preciso perguntar a razo pela qual pode ser aplicada (sobretudo na mecinica quantica). Em conseqiléncia disso, tornou- se 0 que pode ser chamado cientista aplicado, em contraposi¢ao a0 que eu chamaria cientisia puro. Para usarmos a expressio de Kuhn, ele se contenta em resolver “enigmas”1/A escolha desse termo pa- rece indicar que Kuhn deseja destacar que nao $ um problema real- mente fundamental o que o cientista “normal” esté preparado para enfrentar: é, antes, um problema de rotina, um problema de apli cago do que se aprendeu; Kuhn 0 descreve como um problema em que se aplica a teoria dominante (a que cle da o nome de “paradig- ma”). © éxito do cientista “normal” consiste téo-s6 em mostrar que fa teorid dominante pode ser apropriada e satisfatoriamente aplicada ‘na obtencéo de uma soluco para o enigma em questo. “No sei se o emprego do termo “enigma” por parte de Kuhn tem alguma que ver com o emprego de Wittgenstein. Wittgenstein, natural- mente, cmpregowo cm conexBo com aus tece de quo ndo hd problemas genuinos fem filosofia — apenas enigmas, isto é, pscudoproblemas ligados ao uso im proprio da linguagem. Seja como for, 9 emprego do temo “enigma” em lugar. ‘OF certo, umn decejo de mostrar que os problemas ‘assim deseritos no sfo muito sérios nem muito profundos. 65 ‘A descricio do cientista “normal” feita por Kuhn lembra-me claramente uma conversa que tive com meu falecido amigo, Philipp Frank, por volta de 1933. Nessa ocasiio Frank se queixava amarga- mente do enfoque da ciéncia sem espirito critico caracteristico da maioria dos estudantes de engenharia. Eles queriam simplesmente “conhecer os fatos”. Rejeitavam as teorias ou hipéteses problemati- cas, que nfo fossem “geralmente aceitas”: elas intranqiiilizavam os estudantes, que s6 queriam conhecer as coisas, 0s fatos, que pudessem aplicar em sé consciéncia ¢ sem andlises introspectivas. Admito que esse tipo de atitude existe; © existe ndo s6 entre engenheiros, mas também entre pessoas educadas como cientistas. ‘$6 posso dizer que vejo um grande perigo nisso e na possibilidade que tem de tornar-se normal (assim como vejo um grande perigo no aumento da especializacdo, outro fato hist6rico inegavel): um perigo para a ciéncia ¢, na verdade, para nossa civilizagdo. O que mostra por que considero to importante a énfase dada por Kuhn a existén- cia desse tipo de ciéncia. Acredito, porém, que Kuhn se equivoca quando sugere que é _normal o que ele chama de ciéncia “normal”, Claro est que eu nem sonharia brigar por causa de um termo. ‘Mas gostaria de sugerir que| poucos cientistas lembrados pela hist6- ria da ciéncia foram. “normais” no sentido.de Kuhn, se é que houve algum que o fosse. Em outras palavras, discordo de Kuhn nao s6 no tocante.a certos fatos histéricos, mas também no tocante ao que é caracterfstico da_ciéncia. ‘Tome-se por exemplo Charles Darwin antes da publicacdo de The Origin of Species (A Origem das Espécies). Mesmo depois dessa pu- blicacdo ele foi o que se poderia descrever como um “revolucionario relutante”, para usarmos a bela descricao de Max Planck feita pelo Professor Pearce Williams; antes dela, Darwin ndo tinha nada de re- voluciondrio. Nada se assemelha a uma atitude revolucionéria cons- ciente em sua descrigto de The Voyage of the Beagle (A Viagem do Beagle). Mas ela est cheia de problemas; problemas auténticos, no- vos € fundamentais, e engenhosas conjeturas — conjeturas que com- petem freqiientemente umas com as outras — a respeito de possiveis solugdes. Dificilmente haveré uma ciéncia menos revoluciondria do que a boténica descritiva. Nao obstante, 0 botdnico descritivo enfrenta constantemente problemas auténticos ¢ interessantes: problemas de distribuicao, problemas de localizagGes caracteristicas, problemas de diferenciacdo de espécies ou subespécies, problemas como os da sim- 66 biose, inimigos caracteristicos, doencas caracteristicas, variedades re- sistentes, variedades mais ou menos férteis, ¢ assim pot diante. Mui- tos problemas descritivos obrigam o boténico a empregar um enfo- ‘que experimental; e isso leva a fisiologia das plantas e, assim, a uma cigncia teérica e experimental (em lugar de uma ciéncia puramente “descritiva”). As varias fases dessas transig6es fundem-se de modo quase imperceptivel e surgem em cada fase problemas auténticos em lugar de “enigmas”, Mas talvez Kuhn chame “enigma” ao que eu chamaria “proble- ma”; € 0 fato € que no queremos brigar por causa de palavras. Seja- me, portanto, permitido dizer alguma coisa mais geral a respeito da tipologia dos cientistas de Kuhn. Afirmo que entre 0 “cientista normal” de Kuhn ¢ o seu “cientis- ta extraordindrio” ha muitas gradagGes; e é preciso que haja. Tome-se Boltzmann, por exemplo; havera poucos cientistas maiores do que ele. Dificilmente, porém, se poderé dizer que sua grandeza consiste em haver ele preparado uma revolucdo importante porque era, em extensio considerdvel, um seguidor de Maxwell. Mas estava. tao Tonge de ser um “cientista normal” quanto se pode estar; lutador co- rajoso, resistiu & moda imperante em seu tempo —- moda que, a propésito, s6 imperou no continente ¢ teve poucos seguidores, na- quela época, na Inglaterra. Acredito que a idéia de Kuhn de uma tipologia dos cientistas.¢ dos perfodos cientificos é importante, mas necessita de restrigées. O seu esquema de perfodos “normais”, dominados por uma teoria impe- rante (um “paradigma”, segundo a terminologia de Kuhn) © segui- dos de revolugdes excepcionais, parece ajustar-se muito bem a astro- nomia. Mas nao se ajusta, por exemplo, & evolugéo da teoria da matéria; nem & evolugio da teoria das ciéncias biolgicas desde, di- gamos, Darwin e Pasteur. Em relacio ao problema da matéria, so- bretudo, tivemos pelo menos trés teorias dominantes que competi- ram desde a Antigilidade: as teorias da continuidade, as teorias até- micas e as teorias que tentavam combinar as duas primeiras. Além disso, tivemos por algum tempo a versio de Berkeley feita por Mach —ateoria de que a “matéria” era um conceito mais metafisico do que cientifico: de que néo havia nada parecido com uma teoria fisi- ca da estrutura da matéria; e de que a teoria fenomenolégica do ca- Jor devesia tornar-se o paradigma por exceléncia de todas as teorias fisicas. (Emprego aqui a palavra “paradigma” mum sentido um pou- fferente do que Ihe d4 Kuhn: ndo para indicar_uma teoria domi- ‘mas um programa de pesquisa — wm modo de explicagéo 67 considerado tio satisfat6rio por alguns cientistas que eles exigem a sua aceitacao. geral.) Conquanto eu considere importantfssimo o descobrimento de Kuhn do que ele chama de ciéncia “normal”, nfo concordo com a afirmativa de que a hist6ria da ciéncia the apdia a doutrina (essen- cial & sua teoria da comunicagéo racional) segundo a qual “normal- mente” temos uma teoria dominante — um paradigma — em cada dominio cientffico, ¢ ainda segundo a qual a histéria de uma ciéncia consiste numa seqiiéncia de teorias dominantes, com periodos revo- lucionatios intervenientes de cigncia “extraordindria”; perfodos que ele descreve como se a comunicacio entre cientistas se houvesse in- terrompido mercé da auséncia de uma teoria dominante. Essa imagem da hist6ria da ciéncia conflita com os fatos tais como 08 Vejo, Pois sempre houve, desde a Antigtidade, constante © proveitosa discusso entre as teorias dominantes concorrentes da matéria. Agora, em seu atual ensaio, Kuhn parece propor a tese de que a légica da ciéncia tem pouco interesse e nenhum poder explanatério para o historiador da ciéncia. Afigura-se-me que, vinda de Kuhn, essa tese é quase tio para- doxal quanto o foi a tese “Eu no uso hipéteses” exposta na Optics de Newton. Pois assim como Newton usava hipéteses, assim Kuhn usa a légica — nao s6 para argumentar, mas também no mesmissi- mo sentido em que me refiro & Légica da Descoberta. Ble emprega, todavia, uma I6gica da descoberta que, em certos pontos, difere radi- calmente da minha: [a légica de Kuhn € a ldgica do relativismo historico, Permitam-me mencionar primeiro alguns pontos de concordan- cia. Acredito que a ciéncia é essencialmente critica; que consiste em conjeturas audazes e, portanto, pode ser descrita como revolucionéria. ‘Sempre acentuei, todavia, a necessidade de algum dogmatismo: 0 cientista dogmAtico tem um papel importante para representar. Se “nos sujeitarmos a critica com demasiada facilidade, nunca descobri- remos onde esté a verdadeira forca das nossas teorias. Mas Kuhn ndo quer saber desse dogmatismo. Acredita no domt- nio de um dogma imperante por perfodos considerdveis; e nao acte- dita que o método da ciéncia seja, normalmente, 0 método de con- jeturas audazes e de critica. Quais so 0s seus principais argumentos? Nao sao psicolégicos nem histéricos — sdo légicos: Kuhn sugere que a racionalidade da ciéncia pressupée a aceitacdo de"uima referencial comum. Sugere que 68 a tacionalidade depende de algo como uma linguagem comum e um conjunto comum de suposicdes. Sugere que a discussio racional e a critica racional s6 serio possiveis se estivermos. de acordo. sobre questdes fundamentais. Essa é uma tese amplamente aceita ¢, com efeito, est4 na moda: a tese do relativismo. E é uma tese ldgica. — ~~ Gonsidero-a equivocada. Admito, naturalmente, que ¢ muito mais facil discutir enigmas dentro de um referencial comum aceito ¢ ser Ievado pela maré de uma nova moda imperante a um novo referen- cial, do que discutir principios fundamentais — isto é, 0 proprio re- ferencial de nossas suposigées. Mas a tese relativista de que a estru- tura_ndo pode ser discutida criticamente pode ser_discutida critica- ‘menie e no resiste & critica. Dei-the o nome de O Mito do Reférencial, ¢ discuti-a em vérias ocasiées. Considero-a um equivoco légico e filoséfico. (Lembro-me de que Kuhn nio gosta do meu emprego da palavra “equivoco”; mas, essa_aversio é simplesmente parte do seu relativismo.) Eu gostaria de dizer em poucas palavras por que n&o sou re~ lativista:? acredito na verdade “absoluta” ou “objetiva”, no sentido de Tarski (embora, naturalmetne, no seja um “absolutista”, pois no penso que eu, nem qualquer outra pessoa, temos a verdade no bolso). Nao duvido de que este, seja um dos pontos em que estamos “mais profundamente divididos; e € um ponto légico. ‘Admito que @ qualquer momento somos prisioneiros apanhados no referencial das nossas teorias; das nossas expectativas; das nossas, experiéncias passadas; da nossa linguagem. Mas somos prisioneiros num sentido pickwickiano; se o tentarmos, poderemos sair de nosso referencial a qualquer momento. E verdade que tornaremos a en- contrar-nos em outro referencial, mas este seré melhor © mais espa~ g0s0; e poderemos, a quaisquer momento, deixé-lo também. © ponto central é que é sempre possivel uma discussio critica © uma comparacao dos varios referenciais. Nao passa de um dogma —e um dogma perigoso — 0 que estatui que os diversos referen- ” tiais so como linguagens mutuamente intradutiyeis. O fato é que nem linguas totalmente diferentes (como inglés ¢ o hopi, ovo chinés) so intraduziveis, ¢ que existem iniimeros indios ou chine- ses que aprenderam a dominar perfeitamente o inglés. 2. Vela, por exemplo, o Capitulo 10 das minhas Conjectures and Refu. tations, e 0 primeiro Addendum & 4." (1962) ¢ & Gltima edigio do volume ii de minha Open Society. 69 © Mito do Referencial, em nosso tempo, ¢ 0 baluarte central do irracionalismo. A tese que Ihe oponho é que ele simplesmente exa~ gera a dificuldade, transformando-a numa impossibilidade. Nao se pode deixar de admitir a dificuldade da discusséo entre pessoas edu- cadas situadas em diferentes referéncias, Mas nada mais proveitoso que uma discussiio dessa natureza; do que o embate cultural que estimulou algumas das maiores revolugdes intelectuais. Admito que uma revolucdo intelectual se assemelha com fre- giiéncia a uma conversio religiosa. Uma nova viséo das coisas pode apanhar-nos como 0 fuzilar de um raio. Mas isso nfo quer dizer que no podemos avaliar, critica e racionalmente, nossos pontos de vista anteriores & luz dos novos. Seria, desse modo, |simplesmente falso dizer que a transicéo da teoria da gravidade de Newton para a de Einstein é um salto irracio- fal © que as duas nao so racionalmente compardveis. Existem, a0 contrério, imimeros pontos de contato (tais como o papel da equa- io de Poisson) ¢ pontos de comparacdo: segue-se da teoria de Einstein que a teoria de Newton é uma excelente aproximacao (a ndo ser mo que concerne aos planetas ¢ cometas que se move em Orbitas elipticas com excentricidades consideraveis). Nessas condigdes, em ciéncia, A diferenca do que acontece na teologia, é sempre possivel o confronto critico das teorias concorren: tes, dos referenciais que competem entre si. E a negagio dessa possi- bilidade representa um equivoco. Na ciéncia (e $6 na ciéncia) pode- mos dizer que fizemos progressos geniuinos ¢ que sabemos mais agora do que sabfamos antes. ‘Assim sendo, a diferenga entre mim e Kuhn remonta, de manei- ra fundamental, 4 légica. E 0 mesmo acontece com toda a teoria de Kuhn. A sua proposta: “A Psicologia em lugar da Légica da Desco- berta” podemos responder: todos os seus argumentos advém da tese de que o cientista é logicamente obrigado a aceitar um referencial, visto que nenhuma discussio racional € possivel entre referenciais. Eis af uma tese l6gica — mesmo que seja uma tese equivocada, De fato, como j4 expliquei alhures, 0 “conhecimento cientifico” pode ser considerado como destitufdo de objeto.? Pode ser encarado como um sistema de teorias do qual trabalhamos como trabalham 3, Vela agora minha palestra intitulada “Epistemology Without @ Kno- wing Subject” estampada nas Atas do Terceiro Congresso Internacional de Légien, Metodologa e Filosofia da Citnea, que se realizou em Amsterdi. no ‘ano de 1967. 70 os pedreiros numa catedral. A meta é descobrir teorias que, & luz da discussdo critica, cheguem mais perto da verdade. Desse modo, a meta é 0 aumento do contetido de verdade das nossas teorias (0 que, como j4 demonstrei, s6 pode ser conseguido pelo aumento do seu contesdo). Nao posso concluir sem assinalar que, no meu entender, € sur- preendente e decepcionante a idéia de recorrer A sociologia ou & ps cologia (ou ainda, como Pearce Williams recomenda, 2 histéria da ciéncia) a fim de informar-se a respeito das metas da ciéncia e do seu progresso possivel. De fato, cotejadas com a fisica, a sociologia e a psicologia estio cheias de modas e dogmas ndo-controlados. A sugestio de que pode- mos encontrar aqui algo parecido com uma “descrigao pura, objetiva” esté claramente equivocada. Além disso, como pode 0 retrocesso tais ciéncias, a mitido espirias, ajudar-nos a resolver essa dificulda- de? Nao serd sociolégica (nem psicolégica, ou hist6rica) a ciéncia 1a que vocés desejam recorrer a fim de decidir quanto monta a per- punta “Que é ciéncia?” ou “Que é, de fato, normal em ciéncia?” Pois vocés, evidentemente, nao querem recorrer & orla lundtica sociolé- gica (ou psicol6gica ou histérica)? E a quem desejam consultar: Slogo (ou psicélogo, ou historiador) “normal” ou ao “extra Por isso considero tio surpreendente a idéia de recorrer & socio Jogia ou a psicologia, E considero-a tao decepcionante porque ela mostra que foi baldado tudo o que eu disse até agora contra as ten- déncias e processos sociologistas ¢ psicologistas, especialmente na histéria. Nao, esta néo ¢ a maneira, como a simples légica pode mos- trar; e assim a resposta A pergunta de Kuhn “Légica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?” € a seguinte: enquanto que a Logica da Descoberta tem muito pouca coisa para apreader com a Psicolo- gia da Pesquisa, esta tem muito que aprender com aquela. 4. Veja meu estudo intitulado “A Theorem on Truth-Content”, publicado na obra Mind, Matter, and Method, de Feigl Festschrift, organizado por P. K. Feyerabend ¢ Graver Maxwell, em 1966. nm A NATUREZA DO PARADIGMA! MARGARET MASTERMAN Cambridge Language Research Unit 1. A dificuldade inicial: as miltiplas definicées de paradigma da- das por Kuhn. 2. A originalidade da nogao sociolégica do paradigma de Kuhn: 0 paradigma é algo que pode funcionar quando nao existe a teoria. 3. A consegiiéncia filosdfica da insisténcia de Kuhn na centralidade da ciéncia normal: filosoficamente falando, 0 paradigma é um artejato que pode ser utilizado como expediente na solucao de enigmas; € ndo como visto metafisica do mundo. 4. O paradigma precisa ser uma “imagem concreta usada analogi- camente; porque precisa ser um “modo de ver”. 5. Conclusdo: visto prévia das caracteristicas Idgicas do paradigma. © propésito deste estudo é elucidar a concepgao de paradigma de T. S. Kuhn; e foi escrito na suposicio de que T. S. Kuhn é um dos mais notaveis filésofos da ciéncia do nosso tempo. curioso que, até agora, nenhuma tentativa tenha sido feita para elucidar essa nogdo de paradigma, fundamental a toda con- 1. Este ensalo é uma versio ulterior de um trabalho que me_pedi para apresentar quando fosse discutida a obra de 'T. S. Kuhn neste Simpésio; € que no pude escrever por ter sido acometida de severa hepatite infecciosa. Dedico, pottanto, esta nova versio aos médicos, 2s enfermeiras e 20, pessoal do Pavilhdo n° 8 do Norwich Hospital, que permitiram fosse um {indice dos ‘assuntos yentilados por Kuhn feito numa cama de hospital. Foithe dada uma forma capaz de conformar-se da melhor maneira possivel com a contribuicéo convalescente que acabei fazendo da plaigia do Simpésio. 2 cepgio da ciéncia de Kubn tal como ele a expds em sua The Structu- re of Scientific Revolutions? Isso talvez aconteca porque esse livro 6 a0 mesmo tempo, cientificamente claro e filosoficamente obscuro. Est sendo muito lido, e cada vez mais apreciado, pelos verdadeiros pesquisadores cientificos, de modo que deve ser (até certo ponto) cientificamente bem expresso. Por outro lado, os filésofos Ihe tém dado interpretagdes muito diversas, 0 que nos faz supé-lo filosofica- mente obscuro. © motivo dessa dupla reacdo, a meu ver, deriva de haver Kuhn olhado realmente para a ciéncia, em diversos campos, em lugar de restringir a sua esfera de leitura ao campo da histéria ¢ da filosofia da ciéncia, ou seja, a um s6 campo. Até agora, portan- to, na medida em que 0 seu material é reconhecfvel e familiar aos cientistas verdadeiros, estes the consideram o pensamento facil de compreender. Na medida em que o mesmo material € estranho € pou- co familiar aos filésofos da ciéncia, estes consideram opaco qualquer pensamento que nele se baseie. Na realidade, porém, a forma de pen- sar de Kuhn nao é opaca, sendo complexa, jé que reflete, filosofica- mente falando, a complexidade do seu material. De um modo seme- Ihante, em Proofs and Refutations* introduziu Lakatos nova comple~ xidade e novo realismo em nossa concepeo da matematica, porque examinou com atencdo 0 que os mateméticos realmente fazem quan- do refinam e mudam os dispositivos e idéias uns dos outros. Como filésofos, por conseguinte, devemos progredir além do novo “ponto de realismo” relativo 8 ciéncia estabelecido por esses dois, ¢ ndo re- gredir aquém dele. E, como cientistas, cabe-nos examinar com suma atencao a obra dos dois destacados pensadores, visto que, mesmo como um simples guia geral, podem ser de efetiva utilidade no inte- rior da ciéncia. O presente estudo é escrito mais de um ponto de vista cientifico do que de um ponto de vista filos6fico; embora deva ser dito de int- cio que no me ocupo de ciéncias fisicas, mas das ciéncias do com- putador. Nessas condigdes, longe de expressar dividas a respeito da existéncia da “ciéncia normal” de Kuhn, aceito-a por verdadeira. Nao hé necessidade de continuar aqui invocando a histéria, Que existe jéncia normal — e que ela é exatamente como Kuhn a descreve — € 0 fato notavel, esmagadoramente Sbvio, que se depara a qualquer filésofo da ciéncia que se dispde, de um’ modo pritico ou tecnolé- 2. A concepgio apresentada neste estudo baseiase no livra de Kuhn The Structure of Scientific Revolutions, e n&o no resto da sua obra publicada. Todos os nimeros de paginas inclufdos no texto referemse a esse trabalho de Kuhn. 3. Lakatos, “Proofs and Refutations”, 3 [gico, @ empreender alguma pesquisa cientifica real. Foi por haver Kuhn — finalmente — notado o fato central a propésito de toda ciéncia real (pesquisa bésica, aplicada, tecnolégica, so todas iguais aqui), de que se trata normalmente de uma atividade governada por Indbitos, de solugao-de-enigmas, e ndo uma atividade fundamental- mente perturbadora ou falseadora, (isto é, de que ndo se trata de uma atividade filoséfica), que os verdadeiros cientistas estdo agora, cada vez mais, endo Kuhn em vez de ler Popper: tanto que, sobretudo jnos novos campos cientificos, a “palavra correta” passou a ser “pa- radigma” e deixou de ser “hip6tese”. E pois cientificamente urgente je filosoficamente importante tentar descobrir 0 que € 0 paradigma kuhniano. Sendo cientifico © meu ponto de vista global, o presente estudo também aceita por verdadeiro que a ciéncia como é realmente exer- cida — a saber, a ciéneia mais ou menos como Kuhn a descreve — é também a ciéncia como deve ser exercida. Pois se néo houver algum mecanismo autocorretor que opere no interior da prépria ciéncia, ndo haveré esperanca de que, cientificamente falando, as coisas venham a emendar-se depois de desandar. Pois a tinica coisa que os cientistas jue trabalham nao fario é modificar sua maneira de pensar, no ‘Serco da Gacla: ex mare plllosophiao. paraue Popper & Fever ‘bend pontificam para eles como se fossem tedlogos do século XVIII; principalmente porque tanto Popper quanto Feyerabend costumam pontificar ainda mais que os tedlogos do século XVIII Receio que o prefacio me tenha safdo um tanto agressivo; a ne- cessidade de comprimir o material e a indignacio que me causou o que chamarei no estudo o “eterismo-da-filosofia-da-ciéncia” foram a razio disso. Em todo caso, sobretudo em vista de algumas expressdes menos moderadas de Watkins,’ um pouco de agressividade em fa- vor de Kuhn injetada neste simpésio no far mal a ninguém. 4. Feyerabend, “Explanation, Reduction and Empiricism”, p. 60. (Essa explosdo mais do que profética inclui dentro em si mesma uma metaexplosio contra a filosofia lingiistica contemporénea de Oxford.) Veja também, mais sucintamente, Watkins no presente simpésio. 5. Por exemplo, na comparacio entre a concepefio de Kuhn da “comuni- dade cientifica como’ sociedade essencialmente fechada, intermitentemente sa- cudida por colapsos nervosos coletivos seguidos de um unissono mental res- taurado”, e a (nobre) concepgéo de Popper da mesma sociedade como socie- dade aberta; veja Watkins, neste volume, p. 34, nota de pé de pégina 2 © pp. 2930. Esta dltima contém uma deformagao realmente muito grosseira da verdadeira concepeio de Kuhn — deformacio repetida nas pp. 31-52, e-em todo o tom do trecho, em que acusa Kuhn de “ver a cincia como a religido do cientista”; e no trecho em que discute 0 que ele denomina “A 14, 1, A DIFICULDADE INICIAL: AS MOLTIPLAS DEFINICOES DE PARADIGMA DADAS POR KUHN. Duas dificuldades vitais se apresentam aos que levam a sério a “nova imagem da ciéncia” de Kuhn. Na primeira, que é a sua con- cepgao de verificaco da experiéncia (ou a auséncia dela), néio con- cordo com ele € nisso me parece que 0 mundo filos6fico empirista tem argumentos contra ele. Mas no segundo, que é a sua concepcao do paradigma, sobejam-Ihe argumentos contra esse mundo. Pois néo somente o paradigma de Kuhn, a meu ver, é uma idéia fundamental ¢ nova na filosofia da ciéncia e, portanto, uma idéia que merece ser exa- minada, mas também, conquanto dependa dela toda a concepgo ge- ral de Kuhn da natureza das revolucdes cientificas, os que 0 atacam nunca se deram ao trabalho de descobrir do que se trata. Ao invés disso, presumem sem discutir que 0 paradigma é uma “teoria bisica” ou um “ponto de vista metafisico geral”; a0 pass que, a meu juizo, € muito facil mostrar que, em seu sentido primério, ele ndo pode ser uma coisa nem outra. Kuhn, naturalmente, com o seu estilo quase poético, torna a elu- cidagdo do paradigma autenticamente dificil para o leitor superficial. De acordo com a minha contagem, ele emprega a ralavra “paradigma” em pelo menos vinte e um sentidos diferentes em sua The Structure of Scientific Revolutions. Assim descreve um paradigma: (1) Como uma realizagio cientifica universalmente reconhecida (p. 10 “[Paradigmas] so, no meu entender, realizagées cieutificas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem modelos de problemas © solugées para uma comunidade de profissionais.” (2) Como mito (p. 2): “Os historiadores defrontam-se com dificuldades cerescentes. no distinguir o componente “cientifico” da cbservaggo e da crenga passadas daquilo que os seus predecessores rotularam de “erro” e “supersticéo”. Quanto mais cuidadosamente estudam, digamos, a dindmica aristotélica, a qui- mica flogistica, a termodindmica calérica, mais seguros se sentem de que essas concepgses outrora vigentes da natureza ndo eram, no seu todo, menos cientfficas nem mais recorrentes da idiossincrasia humana do que as concepgdes hoje do- minantes. Se tais crengas antiquadas podem ser denominadas mitos, os mitos Tose do Paradigma Instanténeo”. Digase a bem da justia que Watkins desculpa duas vezes pela desnecesséria violencia do estilo; de uma feit quando se acusa corretamente de “certa injustiga incoasciente”; e, de outra, quando confessa cstar falondo “um tanto maldosamente’. Mas que um fildsofo sério do seu calibre se considere justificado em ser, ac mesmo tempo, super- ficial © inexato na critica e violento no estilo — no € apenas motivo de co- mentérios, mas também de surpresa. 6. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 1 € 3. 15 podem ser produzidos pelos mesmos tipos de métodos e mantidos pelos mesmos lipos de razdes que hoje conduzem ao conhecimento eientifieo. Se, por outro lado, elas tiverem de ser chamadas ciéncia, entdo a ciéncia incluiu Corpos de crengas totalmente incompativeis com as que sustentamos hoje.” (3) Como “filosofia” ou constelagdo de perguntas (pp. 4-5): “{Nenhum] grupo elenifeo pode exereer seu offeo sem um conjunto qualquer de crengas recebidas. Nem isso torna menos importante a constelagao a que o grupo, em dado momento, estd de fato ligado.. A. pesquisa eficar difcimente,comecaré antes que a comunidade clenifiea pense ter adquiido respostas firmes 2 per guntas como estas: De que. entidedes fundamentals se. compée 0 universo? Gomo interagem las entre si e comm os sentidos? “Que pergonta, podem. set Togiimamente formuladas respeito dees entidades e que teonicas se podem empregar na busca de. solugoes?™ (4) Como manual, ou obra cléssica (p. 10): * ‘Cincia Normal’ significa pesquisa firmemente bascada em realizagoes cientificas passadas, realizacOes. que alguma comunidade cientifica reconhece por algum tempo como propiciadoras da base da sua prética subseqliente. Hoje tais realizagées sio relatadas, se bem que raramente na forma original, pelos manuais cientificos, elementares ¢ avan- gados. Esses manuais expdem 0 corpo da teoria aceita, ilustram muitas ou fodas a5 suas aplicagées bem-sucedidas, © comparam tais aplicagGes com obser- vvagdes e experiéncias exemplares. Antes que esses livros se tornassem populares no princfpio do século XIX (¢ até mais tarde nas ciéncias recém-desenvolvidas), muitos dos famosos cléssicos da ciéncia desempenharam funcio semelhante. A Fisica de Aristételes, 0 Almagesto de Ptolomeu, os Principios ¢ a Otica de Newton, a Eleiricidade de Franklin, a Quimica de Lavoisier e a Geoiogia de Lyell — estas © muitas outras obras serviram, durante algum tempo, impli mente, para definir os problemas e métodos legitimos de um campo de pesquisa para sucessivas geracdes de profissionais. Elas puderam fazélo porque parti- Thavara de duas caracteristicas essenciais. Sua realizagdo era tio sem precedentes que atrafa um grupo duradouro de adeptos, desviando-os de tipos concorrentes de atividade cientifica. Ao mesmo tempo, era to aberta que deixava a solugdo de todas as espécies de problemas para o' grupo redefinido de profissionsis. “As reslizacdes que partitharem dessas duas caracteristicas chamarei, daqui por dian- te, ‘paradigmas’.* (3) Como toda uma tradic&o ¢, em certo sentido, como modelo (pp. 10-11) . alguns exemplos aceitos da pratica cientifica verdadeira — exemplos que incluem ao mesmo tempo a lei, a teoria, « aplicagio e a instrumentagai fornecem modelos dos quais emanam tradigGes coerentes de pesquisa cientifica So as tradigdes que, para o historiador, pertencem a rubricas como “astronomis ptolemaica”’ (ou “coperniciana”), “dinamica aristotélica” (ou “newtoniana”), “6tica corpuscular” (ou “ondulatéria”), © assim por diante. O estudo de pars. digmas, incluindo intimeros outros muito mais especializados do que os acima ‘mencionados, prepara o aluno para fazer parte de determinada comunidade cien- iifica com a’ qual praticaré mais tarde.” (6) Como realizagio cientifica (p. 11): “Visto que neste ensaio 0 con- ceito de paradigma substituiré uma variedade de nogées familiares, urge dizer ‘mais alguma coisa acerea das razoes da sua introdugao. Por que a realizacao cientifica conereta, como local de compromisso_profissional, ¢ anterior 20s varios conceitos, leis, teorias © pontos de vista que podem ser abstraidos dela? Em. que sentido € 0’ paradigms partithado numa unidade fundamental para o estudioso do desenvolvimento cientifico, unidade que ndo se pode reduzir ple- 6 amente a componentes logicamente atémicos, capazes de funcionar em seu ugar?” (7) Como analogia (p. 14): “Um grupo primitive de teorias, que se seguiram a pritica do século XVII, considerava a alracdo ¢ geragio produzidas pelo atrto ‘como. os fendmenos cléricos fundamentais. Esse grupo tendia 2 fratar a repulséo como efeito secundario, que se devia a uma espécie de rebote ‘mecnico e também a adiar para o mais tarde possivel a discussdo © a pesquisa sistemética do’ recém-descoberto efeito de Gray, a condugéo elétrica. Outros eletricistas” (0 termo € deles mesmos) consideravam a atravdo ¢ a repulsio manifestagoes igualmente elementares da eletricidade © modificaram, nessa con- formidade, suas teorias e sua pesquisa. (Na verdade, esse grupo é notavelmente pequeno a prépria teoria ‘de Franklin nunca explicou cabalmente a mdtua Tepulsio de dois corpos com carga negativa.) Mas ele encontrou tanta di culdade quanto o primeiro grupo para explicar simultaneamente qualquer um dos efeitos menos simples de condugio. Esses efeitos, no entanto, forneceram © ponto de partida para um terceiro grupo, que tendia a falar em eletricidade como um “fluido" capaz de correr através de condutores em lugar de um ‘que emanava de néo-condutores.” Como especulago metafisica bemsucedida (pp. 17-18): nas jais do desenvolvimento de qualquer ciéncia, homens diferentes que enfrentam a mesma série de fendmenos, mes nem sempre os mesmos fendmenos, descrevem-nos e interpretamnos de manciras diferentes, O que surpreende € talvez seja nico em seu grau para os campos @ que chamamos ciéncia, € que cessas divergéncias iniciais sempre desaperecem,.. Para ser aceita como para digma, uma teoria precisa parecer melhor do que suas concorrentes, mas no precisa explicar, como de fato nunca explics, todos os faios com que se pode poder se dirige para a escolha precisa do momento em que valeré a pena o trabalho de construf-la. A altemativa é “continuar como estamos indo ago- 1a”; isto 6, com algum truque, ou técnica embriondria, ou imagem, e um discernimento da sua aplicabilidade nesse campo. E € esse truque, mais esse discernimento que, juntos, constituem o paradig- ma. A metafisica explicita (0 que 0 proprio cientista denomina “a filosofia” ou “o gés”), @ mais plena inovacdo matematizante, os processos experimentais mais desenvolvidos — todas essas coisas cujo conjunto, no depois, vird a ser “a realizaco cientffica concreta, estabelecida” — quase sempre aparecem muito depois do truque- -pratico-inicial, que trabalha-o-suficiente-para-que-a-sua-escolha-encor- pore-uma-visio-potencial, isto é, depois do primeiro teste do para- digma. De fato, na ciéneia genuina e viva, o préprio esforco para estabelecer umia “realizacio cientifica concreta” precisa justificar-se. Para que a teoria resultante (e/ou a técnica mais exata e dispen- diosa) seja aceitavel, 6 preciso que ela permita a obtencéo de resul- tados que ndo se poderiam obter de outra maneira. Nenhum bom cientista deseja estabelecer uma realizago dessa natureza s6 para figurar mais tarde em livros de filosofia da ciéncia. Menos ainda desejaré teoricamente limpar o seu tema removendo da descricao coloquial dos fatos até aqui usada qualquer anilise posstvel dos verdadeiros centros de dificuldade. Assim, o problema real na ob- tengéo de uma filosofia da nova ciéncia consiste em descrever filo- soficamente 0 truque ou expediente original em que se funda o pa- radigma sociolégico (isto 6, 0 conjunto de hébites). Com tudo isso em mente, é esclarecedor voltarmo-nos de novo comparativamente ao primeiro ¢ ao terceiro sentidos de “‘paradigma” de Kuhn. Como ja vimos, se perguntarmos 0 que é um paradigma ‘kuhniano, o habito das definigées miltiplas de Kuhn coloca um problema, Se perguntarmos, todavia, 0 que faz um paradigma, logo se torna claro (presumindo-se sempre a existéncia da ciéncia nor mal) que o fundamental € 0 sentido de construgdo de “paradigma”, € nio o sentido metafisico ou metaparadigma. Pois sé com um arte- fato se podem solucionar enigmas. E conquanto tenha afirmado 85

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