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M. I. FINLEY UFRGS - IFCH Departamento © PPG Histérie | | | nlicl€ dé histério entige { | 1 MONITOR: BRUNO CERETTA SCHNORR 2010 ‘A POLITICA NO MUNDO ANTIGO Tradugao | Alvaro Cabral ZAHAR EDITORES Rio de Janeiro | (965, CAPITULO 3 POLITICA Numa histéria amitide repetida, PLUTARCO nos conta como certa vez, ‘em Atenas, enquanto se procedia & votagdo para um ostracismo, um aldedo analfabeto acercou-se de um homem e pediu-lhe que inscre- esse para ele 0 nome ARISTIDES em seu caco de cerimica (dstrakon). © outro perguntou-lhe que mal Aristives Ihe fizera ¢ recebeu esta resposta: “Absolutamente nenhum. Nem sequer conheco o homem, mas estou farto de ouvir chamar-Ihe ‘O Justo’ por toda a parte.” ‘Ao que ARISTIDES, pois era ele o homem, claro, colocou seu pré~ prio nome como the fora solicitado (Aristides, 7.6). Uma hist6- Fa edifieante, mas 0 meu interesse esté na disposigéo dos historia Gores para a aceitarem como verdadeira e extrairem dela profundas Conclusdes sobre ARISTIDES, sobre o ostracismo e a democracia ateniense. Alguns tinham davidas acerca da imagem dos Ifderes po- Iiticos atenienses como nobres cavalheiros que no se deslustrariam com formas de comportamento to baixas como cabalar camponeses © comerciantes (somente os bons Iideres politicos, seria desnecessé- io acrescentar, ndo demagogos como CLfON). Os eéticos regis- traram agora um inesperado triunfo, Escavagbes efetuadas desde © final da altima guerra descobriram, principalmente no bairto do Ceramico, mais de 11 mil éstracos com nomes inscritos.t A maior parte deles tinka, obviamente, sido jogada fora, apés a conclusio Ge um ou outro processo de ostracismo. Entretanto, um lote de 190 encontrado na vertente oeste da AcrOpole tinha gravado em todos os éstracos o nome de TEMIsTOCLES, escrito por um ni- mero muito reduzido de méos; tinham sido claramente preparados de antemdo para distribuiggo entre votantes potenciais mas, a0 fim fe a0 cabo, m0 haviam sido usados. Nao ha como apurar que TOR. Thomsen, The Oritin of Ostracizm (Copenhague, 1972), pp. 84-108. politica 67 proporgio dos outros 11 mil fragmentos de cerdmica teria também Fido antecipadamente preparada. Nem hé como provar se a histo- Ha de PLUTARCO acerca de ARSTIDES ¢ verdadeira ou nio. Muitas Ge suas histbrias slo ficgbes moralizadoras ¢ & virtualmente incon- Gebivel que o lote de éstracos de TexdsTocLES por usar constituisse Gin caso tnico dessa tética em toda a hist6ria do ostracismo. Deve nos decidir com base nas probabilidades ¢ PLuTARCO nfo me persuade de que a politica ateniense tivesse uma, pureza moral des- Conhecida de qualquer outra sociedade politica ‘Os historiadores de Roma enfrentam maiores dificuldades por- que tém A sua disposigho essa colegio impar de documentos antigos ctiue sdo as cartas de CICERO. Aj, léemrse coisas como as sequintes, Ceritas para seu amigo ¢ confidente Atico (1.2.1) em julho de 65 aC. “De momento, proponho-me defender CATILINA, © can- Gidato meu concorrente [ao consulado], Temos o jiri que quere~ fos, com a plena coopera¢io da acusaglo. Se ele for absolvido, espero que s€ mostre mais inclinado a trabalhar comigo na cam- panha,”® CATILINA estava sendo processado por extorsio enquanto governador da provincia de Africa. Foi absolvido sem a ajuda de Clceno, que afinal néo se encarregou do caso, por motivos que fgnoramos. Dois anos depois, Cicero assumiria a lideranga na Gestruigdo da conspiragio de CATiLmNa. Isso também & elucidativo. Mas tals situagdes ¢ textos no justiiam a corrida precipitada para buscar abrigo sob a rubrica “corrupedo”. Cabalar, angariar Fotos, persuadir eleitores, permutar servigos, recompensas ¢ bene ficios, fazer ajustes e aliangas, sfo as técnicas essenciais da politica nna vida real, em toda e qualquer sociedade politica conhecida, e a Tinka entre ‘corrupgo © no~corrupeo & nio sé extremamente dificil de tragar mas também muda de acordo com o sistema ético do observador Nem toda a gente concorda com PLATAo. J” Come indicazéo de como a opinido tradicional ficou profundamente enrsi- Jada, ver W. den Boer, Private Morality in Greece and Rome (Mnemosyne, Supl, 57, 1979). p. 184: “Consta que dstracos com o nome de Temistocles finham sido profusemente distribuldos, antes da votacdo que © condenou ¢ phar" politica, Iso foi uma fraude que indubitavelmente ocorreu mas nto ade afiemar que fosse geral.” Para uma demonsirasso recente da inconfia- illede de Plutarco como fonte para a Atenas do século V a.C.. ver A. Gindrewes, “The Opposition to Perikle, Journal of Hellenic Studies 98 (1978). pp. 1. 2 Traduzido por DR. Shackleton Bailey 68 politica no mundo antigo Entendo por “politica” algo especifico e muito mais limitado do que, por exemplo, “a atividade que consiste em atender as dis- posigdes gerais de um conjunto de pessoas @ quem 0. acaso ou 8 escoiha reuniu”.* Essa definigdo, largamente aceita, abrange todo @ qualquer grupo concebivel, desde uma familia ou clube ou vaga indade tribal até A mais onipotente monarquia autocritica ou trania, e sou incapaz de descobrir para ela qualquer uso analitico fv, de algum outro modo, significativo. Trés distingOes me parecem hecessérias. A primeira é entre Estados ¢ os miltiplos agrupamen- tos que existem dentro de um Estado — sociais, econémicos, edu- ‘cacionais ou o que for. No me interesso por usos metafricos tais ‘como “politica académica”. A segunda € entre Estados em que as Gecisbes so vincvlatérias © & possivel fazer respeitar sua. vigéncia, eas estruturas pré-Estado em que elas nfo slo. A terceira distin~ do € entre Estados em que um homem ou uma junta detém o poder absclito de deciséo, independentemente de ter buscado de Entemao 0 parecer ou conselho de colaboradores, ¢ Estados em que as decisdes vinculatérias sio tomadas através de discussio, debate e, finalmente, votacio. A discussio pode estar limitada a apenas um setor dos membros da comunidade, como numa oligar- quia — nfo restrinjo a minha definigéo as democracias — ov primordialmente a representantes eleitos ou & decisio sobre uma gama especifica de questfes, mas € essencial que a deciséo se mais do que consultive. So essas as razées para os meus limites Cronolégioos e, sobretudo, para a minha exclusio de Roma sob fos imperadores. Onde 0 principio Quod principi placuit legis habet yigorem (“O que o imperador decide tem a forca de lei’) preva Tece, mesmo que s6 em espitito, h& govemo por antecimara, no por cdmara, € portant nfo pode haver politica na minha acepsio. Quer dizer, embora houvesse discussto no Principado, o poder final efetivamente irrestrito de decisio em matérias de aco g0- vernamental repousava num s6 homem, nfo nos votantes (nem mesmo nas: centenas que compunham o Senado). Havia, reconbecidamente, grandes reas cinzentas néio facilmen- te classificdveis; por enemplo, as cidades seleucidas ou as cidades no Tmpério romiio, com seu privilégio de administragfo sutdnoma num n{vel local rigdrosamente definido. Excluo as segundas desta jnvestigagdo porque sua politica é de interesse no estudo da. psico- MM. Oakeshott, em Laslett (1956), p. 2 politica 69 Iogia social de uma elite, sob uma autocracia dominante, mas no Suficientemente no estudo do comportamento politico. Podemos com= parar dois documentos — s€ eles $80 ou ndo criacées puramente Fiterdrias € irrelevante — um breve didlogo entre SOCRATES € o jovem GiAvoON, not Memordveis (3.6), d¢ XENOFONTE, ¢ um longo fensaio, Preceitos Politicos, escrito pot PLUTARCO provavelmente cer- fe de’ 100 d.C. Ostensivamente, ambos oferecem conselhos @ um Jovem de classe alta com ambigdes politicas. Enquanto SOCRATES #¢ Rcentra na necessidade de conhecimentos detalhados — sobre fi- Srangas publicas, recursos militares, defesa, as minas de prata, abaste- Gimento de alimentos? — PLUTARCO estende-se, prolixa ¢ sentencion SBmente, com umerosas citagdes de autores gregos ¢ latinos © Fadmeras historias, em consideragdes sobre 0 comportamento deco- foso, honestidade, modo circunspecto de vida, a escolha de amigos patronos cerlos e, sobretudo, a retérica. Pouca coisa podemos en Contrar no ensaio acerea de matérias substantivas, mesmo no passado, Grnada que elucide a politica passada ou presente, Que a diferenca Gatre os dois nfo é uma questo de duas personalidades ou tempe- famentos diferentes mas um reflexo de duas situades inteiramente Gistintas € assinalado, creio eu, pelo proprio PLUTARCO a meio do tensaio quando escreve (Obras Morais 813D-E): “Quando ingressais fem qualquer posto, no deveis considerar apenas a prudéncia de PERICLES. .., "Cuidado, PERICLES, estais governando homens livres, estais governando gregos, cidadios de Atenas’, mas deveis também dizer para v6s préprios, “Tu, que exerces um cargo, és um sidito, numa’ pélis controlada por procénsules, por procuradores de César” "A politica, em nossa acepedo, situa-se entre as atividades hu- manas mais excepcionais no mundo pré-moderno. Com efeito, foi uma inveng&o grega ou, talvez. mais corretamente, invengdes sepa- radas dos gregos e dos etruscos e(ou) romanos. Presumivelmente, houve outras comunidades politicas primitivas no Oriente Proximo, entre 08 fenicios, de qualquer modo, que depois levaram suas insti- tuigdes para Cartago, no Ocidente, O tinico Estado néo-grego jncluido ‘por ARISTOTELES em sua colegio de 158 monografias sobre “‘constituigdes" individuais foi Cartago. A obra perdew-se, embora algumas informagSes sobrevivam na Politica (especialmente 1.272b24-73626), € nfio encontro bases para pensar que nfo tivesse EGE, Arinételes, Retdrica, 1.359619-60037, 70 politica no mundo antigo hhavido qualquer difuso significativa dos fenicios para os yregos ou (65 otruscos (as quais, admito, estabeleceram os alicerces sobre os quais se desenvolveriam as instituigées politicas romanas). Que influ- Encia as primeiras comunidades gregas na Sicilia e Ttélia poderdo ter tido sobre os etruscos e romanos em suas fases formativas € uma {questéo muito debatida ¢ irrespondivel; na realidade, uma questio sem importincia, pois nenhuma resposta projetard luz sobre as for- ‘mas diferentes como a politica e as instituigOss politicas se desenvol- veram nas esferas grega ¢ romana, Sublinho a originalidade principalmente por seu corolétio, a compulsio férrea sob que estavam gregos e romanos para serem continuamente inventivos, quando novos ¢, com freqiléncia, impre~ vistos problemas ou inesperadas dificuldades surgiam que tinham de set resolvidos sem a ajuda de precedentes ou modelos. Daf a conhe- cida lista de instituigdes © dispositivos “ins6litos”, como as tribos clisténicas, © ostracismo © a graphé parandmén (a que revertere- mos) em Atenas, 0 “veto” tribunicio , especialmente, 0 extraordi- nirio procedimento de voto dos comitia centuriaa em Roma. BADIAN disse corretamente, a respeito destes iiltimos, que “quem studou os comitia centuriata romanos reformados pensard que nada & impossivel”.* Davip HUME achou diffcil compreender o “singular € aparentemente absurdo” graphé parandmén, um procedimento ate- niease introduzido durante 0 século V a.C., por meio do qual um cidadio qualquer podia instaurar processo contra um outro por ter apresentado uma “proposta ilegal” na Assembléia, mesmo quando a Assembléia soberana a tinha aprovado.' Tais dispositives sio inte- ressantes ndo s6 em si mesmos, como exemplos da extraordindria amplitude da inventiva humana no campo politico, mas também (e até mais) em’ suas histérias individuals, como estudos sobre os métodos pelos quais as instituigdes podem ser desviadas e distorci- das, tornando-8s as vezes irreconheciveis, uma vez introduzidas no arsenal politico. Cumpre-me insistir de novo que é errado abordar esse t6pico como poucd mais do que uma histéria de demegogia, corrupsio popular, declinio e desintegragao, pois constitui um fio central na hist6ria da politica antiga, com f€ceis paralelos, embora % E, Dadian, “Archons and Sirategoi", Antickihon $ (1971), pp. 1-34, na p19 F sttume’s Early Memoranda, 1729-1740", org, por B.C. Mossner, Journat of the History of Ideas 9 (1988), pp, 4925518, no 237 politica = 72 freqiientemente sem tanto pitoresco, talvez, na histéria da politica moderna. “As fontes ndo nos ajudam muito. Os gregos € romanos inven- taram a politica e, como todos nés sabemos, também inventaram { histéria politica ou, melhor dizendo, a historia da guerra e da po- Titica. Mas © que todos conhecem € impreciso: os historiadores na ‘Aniigiiidade escreveram a historia da agao politica de governos, 0 {que nao é a mesma coisa que politica — os métodos € as téticas (que orientam ¢ determinam essa ado; ¢les escreveram principal- frente sobre a acdo politica externa, s6 se preocupando com a me: Canica da tomada de decisées polticas (isto é, suas causas, formagio @ desenvolvimento) em momentos de agudo conflito convertido em guerra civil. Atcnte-se para ‘Tucioipes. Sc climinarmos seu vasto paincl sobre a guerra civil em Corcira (hoje Corfu) ¢ outras breves arrativas de guerras civis, os discursos de tupo ideal e a deserigao fem seu iltimo livro, nao Tevisto, do golpe oligérquico de 411, res- tam apenas os comentirios sumamente casuais sobre politica, usual- mente introduzidos a fim de expressar um juizo moral (e na finguagem apropriada); por exemplo, seu comentério displicente (8.73.3) de que um tal HurERwoLo “tinha sido condenado a0 ostra- cismo no porque se temesse seu poder ou prestigio mas porque tera um patife ¢ uma vergonha para a pélis”, Iss0 € absurdo em ter~ mos politicos operacionais, e PLUTAROO nao perdeu a ocasiio de ssinalar a realidade em sua histOria circunstancial (Nicias, 11), Contando como, provavelmente em 416 aC., quando o conflito entre ‘Accipiabes e Nicias tinha atingido um ponto tal que © mais pro- Vavel era um deles ser ostracizado, os dois decidiram juntar suas orgas e conseguiram persuadir seus adeptos a votarem HiréRBoLo a0 ostracismo. Esta histéria, ao invés daquela sobre ARISTIDES, 0 Justo, tem uma aura genuina de plausibilidade. Tivesse sido ela tomada mais a sério pelos historiadores, ¢ nfo atacada como mais tum outro sinal de degenerescéncia popular, uma “iatriga sinistra”,* €¢ 08 6siracos pré-fabricados de TemisTocLes nic teriam causado um Go grande choque. Nada fd de terrivelmente esotérico ow dificil na histéria do os- tracismo, & parte 0s quebra-cabecas cronolégicos qu ocupam a © Higneit (1952), p. 165, Para um enfoque adequado Jo cas Hiérbolo, ver 9 comentitio de Andrewes sobre a passagem de Tucidides, © Connor (1971), pp. 79584, 72 politica no mundo antigo maior parte da extensa literatura modema sobre o assunto. Ele foi jntroduzido quando os atenienses criaram um sistema democratico, ape déeadas de Urania pissirtida, Com caracteristica ¢ inevitavel inventiva, decidiu-se que 0 risco de um outro tirano poderia ser re- duzido expulsando um-Iider manifestamente bem-sucedido © popular por um periodo de 10 anos, se um minimo de 6 mil votos fossem Pemnidos’num procedimento formal. Os politicos néo tardaram em descobrir que 0 ostracismo era um til dispositive para decapitar a foposigio —_um claro exemplo ilustrativo de_uma_das implicagies de_uma cara ate retree am omem Fisieamente do Estado cle fica sem Tinbas de comunicagdo com a cidadania, Mas era uiiia Grima perigosa’ de dois gumies; de modo que foi usado parcimonio- samente — nao se conhece com certeza nenhum caso entre 443 aC. ¢ 0 ostracismo de HipERBOLO em 416 aC. — © depois de 416 foi permitido que morresse de uma morte trangilila, Em contraste, a ‘graphé parandémén, originalmente destinada a dar aos atenienses uma Oportunidade de reexaminar uma decisio possivelmente, precipitada, provou ser uma arma util nas Jutas internas dos circulos de lide~ Tanga ¢ foi empregada com alguma freqléncia com o passar dos anos? ‘© epiteto “intriga sinistra”, na medida em que nfo ¢ um re- flexo de sobranceria pedantesca acerca da politica (toda a politica, antiga ¢ moderna), é€ um bom ‘exemplo do lamentivel habito de consentir que as fontes conduzam 0 historiador. No tocante 4 Gré- cia classica, é suficientemente bem: conhecido que muitas das fontes principais — entre os historiadores, assim como 08 filbsofos © pan- fletérios — erani hostis ‘A prética politica predominante ¢ expres- savam seu desigrado em! termos morais. Nao preciso multiplicar os ‘exemplos:' isso no fortaleceria meu argumento para repelir 0 véu ‘moralizador na’ busca da’ realidade politica. Tampouco se faz ne- Tessério que fepita'a argumentagdo no tocante a Roma, Apesar das Giferengas, notadamente que as instituigdes romanas, pendendo de imaneira maciga em’ favor dos ricos e dos poucos, néo atrairam 0 {ogo dos escritores Tomanos ou comentadores gregos, literatura THEI. Wollt, Normenkontrolle und Gesetzesbesrif} in der rove. (Situngsberichte der Heidelberger Akad. 4, Wiss. Phi Toro), substitu todas as deserigbes prévias da eraphé parandmén. Os 39 casos tonhecidos (alguns ineertos) entre 415 ¢ 322 a.C., dos quais talvex metade ceanmou em abeolvigées, sKo resumidos por M.H. Hansen, The Public Action ‘Sunae Unconstitutional Proposals (Odense Univ. Classical Studies 4, 1974), pp. 22-83 politica 73 presenta, no entanto, a mesma concentragio, a mesma falta de qual Guer interesse sistomético na politica (excetuandose sempre | 38 Gorias de CICERO, em contraste, messe aspecto, com seus escritos feoticos © suas alusoes historicas). A veemente disputa que prece- eu a decisto de destruir Cartago na chamada Terceira Guerra PG~ ftica (149-146 a.C.) & um exemplo suficiente: embora as discor- Tnciss dentro do circulo governante romano “devam ter constitul- Go um fator altamente significativo na politica interna de Roma (..-) poucos vestigios delas podem ser discernidas”.' Tampouco preciso, ereio eu, perder muito tempo com a dife- renga fundamental entre dircito constitucional ¢ politica. © bébito Ge eair na armadilha do direito constitucional € talvez mais comum entre oS historiadores romanos, gragas ao grande corpus da litera~ fura juridica romana © gragas, ainda mais, @ essa imponente cons- trugdo intelectual que € a obra Rémisches Staatsrecht, de MOMMSEN ‘Astim, temos o interminével debate acerca da natureza ¢ dos limi- fee da autoridade do Senado sobre os magistrados, como se nfio fossem as mesmas pessoas extraidas de um pequeno circulo da pobilitas, e nio falassem umas com as outras antes de ser tomada qualquer medida formal. A histéria,grega nfo esté imune; uma GMgente e extensa monografia sobre 0s papéis relativos do Conselho eda Assembléia na legislagéo ateniense propoe-se explicitamente ocalizar 0 “processo legislativo ou decisério” e afirma té-lo feito mediante uma andlise puramente formal (¢ defeituosa) tio-s6 da mecdnica “parlamentar”.%* $ claro, a constituicéo, escrita ow néo-escrita, forneceu a mol dura dentro da qual a’atividade politica era levada a efeito. Isso & (quase de uma banalidade to grande que nem suporta ser posto em palavras. Sobre poucas coisas se teré escrito mais freqientemente do ue @ respeito das constituigdes © da histéria constitucional gregas e'fomanas; os detalhes sio facilmente acessiveis em manuais, com- Se monografias, e néo tentarei abranger aqui todo o campo. Fntretanto, uum certo mimero de pontos gerais sto por demais ¢s- 10 Astin (1967), p. 53. tt patel ma, veveto. critica da digcussfo, ver W. Kunkel, “Magistratische Genatt und ‘Senatsherschalt™, em Aufstieg und Niedergang der rémischen Welt, org. por H. Temporini 2 (1972), pp. 322. se A Detain, Probouleusis at Athens (Berkeley, 1973). Sobre os defcitos, Tresmo dentro’ de seu limitada Ambito. ver w critica de H.W. Pleket em ‘Mnemosyne, A® série, 31 (1978), pp. 328-33. 14 politica no mundo antigo senciais para o estudo da politica para que os omitamos (e alguns pontos especificos terio de ser reekaminados no préximo capitulo). Deverse comegar com uma generalizagao: todo o governo da cidade-Estado consistia em, pelo menos, uma assembléia mais nu- rmerosa (e, usualmente, sé uma), um conselho ou conselhos meno~ tes € um certo mimero de funcionérios escolhidos entre os homens clegiveis, quase sempre numa base de rodizio anual. A composicio desses Grgaos, seus métodos de selegao, seus poderes, os nomes ppelos quais eram conhecidos, tudo variava consideravelmente, no lugar e no tempo, mas o sistema tripartite era tho ubiquo que é Tieito pensar nele como sinénimo de governo da cidade-Estado. A mais antiga documentagdo existente provém de lugares tio disper- sos quanto Dreros (Creta) © Esparta, antes de 600 aC, Atenas provavelmente pouco depois, Quio em meados do século VI, ¢ por Wolta de 500 aC. uma regido atrasada da Grécia, a Lécrida, assim como Roma. Nenhuma implicagio deve ser aduzida da propria lista, além de sew cardter fortuito; sabemos a respeito de Esparta, ‘Atenas e Roma porque séo Esparta, Atenas ¢ Roma, com uma forte tradigio que domina a literatura; sabemos da existéncia de Dreros, Quio e Lécrida através da sobrevivencia acidental de_breves inscri- goes em pedra ou bronze, ¢ sua informagao nio vai além do mero fato da. existéncia de assembléia, conselho ¢ funciondrios.'8 Hé quanto tempo, antes do primeiro documento sobrevivente, o sistema pode ter sido instalado em qualquer comunidade ¢ ignorado ¢, para {65 meus propésitos, de somenos importancia, tal como no importa fe se actita ou nfo a tradigdo de que SSLON estabeleceu 0 primeiro conselho em Atenas. "As variagOes nos detalhes acarretaram freqllentemente impor- tantes conseqiléncias, deliberadas ou néo. E impossivel, em par- ticular, fazer um estudo comparativo sem notar uma diferenga fun- damental entre Roma ¢ Atenas. Nesta, a maioria dos cargos estava Timitada a um mandato anual, os membros do Conselho a manda- tos de dois anos, com a notével excegdo do cargo de estratego, desde 19 comeso do século V aC. 0 mais prestigioso no Estado, para o {qual se era eleito (nfo escolhido por sorteio) ¢ se podia ser reeleito Sen limite de prazo. Em Roma, pelo contrério, todos os cargos esta~ Yam, em. principio, restringidos a um nico mandato de um ano On textos provenientes de Dreros, Quio ¢ Lécrida sio Meiggs/Lewis (1968), no 2, 8 ¢ 13, respectivamente. politica 75 (uma regra que era violada na prética mas niio de mancira signi- ficativa antes do ultimo século da Repiblica), a0 passo que 0 con- selho, 0 Senado, era um Orgio permanente com o que equivalia & Mitalitiedade, Por conseguinte, um ateniense politicamente ambicioso podia candidatar-se para repetida cleigio para a estratégia como Uma importante embora no essencial base para agir, eaquamto o Seu congénere romano estava proibido de fazer qualquer coisa ané- Toga, Uma vez que tivesse sido consul, um romano sO podia exercer jnfludncia poliiea através do Scnado ou de canais nao-convencionais "A. estrutura constitucional tripartite assentava na necessidade de eficiéncia ou, pelo menos, de um mecanismo vidvel; seu estabe~ fecimento no resultou de uma idéia de separagio de poderes no sentido desenvolvido por MoNTEsQuieU (embora teéricos como ‘AnisTOreLes (Politica, 1.297b35-1.301415] fossem ciimplices Yos no esboco da idéia). Tampouco existia a modema separacio de poderes na esfera judicial; havia, € claro, toda uma engrenagem forense mas que coincidia parcialmente com o resto, no direito de tum conselho ou assembléia para funcionar como tribunal no jul- gamento de cas0s importantes ou, no outro extremo, no poder ple- hipotencidrio de magistrados para punit certas categorias de delin- qizentes.# Em principio, também néo existia separagio entre 0s departa- mentos civis e militares de governo. Nao s6 0 exéreito (embora nae usualmente a marinha) era uma milicia de cidadios mas os oficiais omandantes eram funcionérios civis comissionados. A excegdo Ver 3S. Richardson, “The Triumph, the Praetors and the Senate in the Early Second Century B.C", Journal of Roman Studies, 65 (1975), 50-63, brangendo um espago mais amplo dé"tempo do que o titulo sugere, i HS. Veranel, Telumphus (Leiden, 1970). politica. 85 Catéo, o Antico! “Em toda a Antighidade”, foi assinalado, “no ha um dinico general que (...) néo sentisse ser necessério, pelo menos ocasionaimente, demonstrar suas qualidades pessoais median- te alguma agio prestigiosa.” Seja como for, o cético mais severo no pode negar que a estrutura de comando, dentro dos exércitos gregos e romanos, era um monopélio das classes superiores, ¢ que Os membros individuais das familias dominantes nfo tinham escolha nna matéria: ao invés da politica, 0 comando militar era algo @ que nao se podia escapar (até a0 século I a.C.), pelo menos a0 nivel de “brigada”. Tampouco os cidadaos, salvo 0s mais pobres, tinbam {qualquer possibilidade de escolha: SécRaTES combateu. como hopli- ta, pelo menos duas veres, quando jé estava com seus 40 € poucos ‘Nada existe na experiéncia moderna que seja comparivel a isso. ‘A guerra era uma parte normal da vida; nem todos 0s periodos se compararam em intensidade ao das Guerras Persas ¢'do Peloponeso, ou das Guerras Pinicas, mas dificilmente passava um ano sem exi- gir uma decisio formal de lutar, seguida de uma convocagdo geral € dos necessérios preparativos ¢, finalmente, o combate em algum ni- vel. A maioria dos cidadaos que participavam diretamente nessa t0- mada de decisio jé possufa experiéncia direta da guerra ¢ podia ra- zoavelmente esperar que nova convocagio acoateceria, O exército era uma milicia de cidadaos stricto sensu; no existia uma classe mi- litar, nenhuma casta de oficiais propriamente dita, distinta da hi rarquia social em seu aspecto civil. A exigéncia de que os lideres politicos tivessem, e continuassem demonstrando, distingao militar era, portanto, séria € compreensivel. ‘AS nuangas em casos individuais escapam ao nosso conheci- mento, por certo, Nao podemos realmente saber se ARISTIDES ou Périctes ou CaTho, 0 ANTIGO, era competente como general, muito menos se como tal se distinguiu; por que motivo os dois atenienses, ‘que parece terem sido seus chefes militares mais habeis na Guerra do Peloponeso, LAMACO e DEMOSTENES, ndo mostratam, aparente- mente, qualquer interesse pela politica; se alguns romanos com no- tdve's folhas de servigos militares desejaram 0 consulado exclusiva- mente como uma nonraria, sem qualquer ambicéo politica genuina. Tampouco estamos em posicio de avaliar o desprezo e a repulsa a1 “Asn (1978, capitulos 1-2, que estd promo para acreditar nessas pre- tensbes 82 Garlan (1978), p. 148; ef. Harris (1979), pp. 28-40. 86 politica no mundo antigo com que Tuctoines (4.27537) narra em detalhe como CLEéoN, em 425 a.C, arrogantemente prometeu recuperar Pilo em 20 dias © assim fez, Entretanto, mesmo essa histéria, seja qual for a verdade acerca da personalidade ou capacidade militar de Cito, ilustra bem © modelo. E, uma vez mais, importantes’ diferengas devem ser assinaladas entre a Grécia — quer dizer, Atenas — e Roma, Na Atenas cléssica, rio existia um vinculo automatico entre qualquer das magistraturas tradicionais (como os arcontes) e 0 alto comando militar. Os estra~ {egos eram sumamente atipicos: eles eram eleitos, nao escolhidos por sortcio, € admitidos reeleigio, obviamente porque seu reconhecido talento militar era considerado uma condigo necesséria. Entretanto, as provas incompletas também sugerem que, de fato, eam de wés tipos reconhecidamente distintos: aqueles como CiMoN ou ALCIBIA- és, militarmente capazes ¢ politicamente ambiciosos, homens como LAMACo ¢ DEMOSTENES, que eram escolhidos unicamente por sua co- nhecida habilidade militar, © outros como PénicLes ¢ CLéoN, scle- cionados por'serem lideres politicos de elevada posigio (embora se esperasse deles que também comandassem exércitos). Na Roma re~ publicana, em contraste, © comando. militar, continuo sendo um dever e uma prerrogativa dos dois cdnsules e era sem divida, com bastante freqiiéncia, a razio principal para que um individuo am- bicionasse o cargo. A tigorosa adesSo as regras também criou 0 pa- radoxo de Roma, o: Estado de conquista, sofrer niio poucas vezes as conseqiiéncias.de comandantes incompetentes, até expitar 0 man- dato de um: ano no exercicio das fungdes. Somente quando mais de dois generais eram necessdrios simultaneamente Roma recorria a ‘outros e, mesmo nesse caso, 0 principio original era preservado con: vocando os pretores, quando entéo, para fins militares, cOnsules © [Pretores tinham seus mandatos prorrogados a titulo de procénsules € propretores.™® : Obviamenté,'x qualidade das relagdes entre atividade civil atividade militar:afetava a vida politica ¢ era, por seu turno, afetada por esta dltima: Assim, na Atenas do século IV 2.C., ocorreu uma importante mudanga, como indiquei anteriormente. Apesar do con- inuo estado de guerra, havia um crescente divércio entre a lideranga 33” Esta descrigto sucinta esté necestarlamente simpliticada, Tgnorei, por exem- plo. © ditador romano nos primeiros anos da Repablica, um funcionério inver- tido de poderes superiores, normalmente militares, nomeado num momento de crise por um petiodo que nfo excedia ot seis meses politica 87 politica e militar. Esse desenvolvimento foi notado ¢ acentuado por escritores do tempo, especialmente pelos criticos do sistema. Con- tudo, parece nao ter enfraquecido a posigio dos principais politicos (que continuaram servindo como hoplitas ¢, se suficientemente ri- 0s, como trierarcas na marinha), O considerével recrudescimento do profissionalismo no aspecto militar contribuiu para isso, sem di- vida, mas nao posso acreditar que seja uma suficiente explicacéo. Os exércitos de Roma eram, e assim podemos dizer, mais profissio~ ais mas af no ocorreram quaisquer mudancas compariveis. O que ‘aconteceu em Roma, no século final da Repiblica, foi diferente e, fem titima instincia, destrutivo. Ao passo que Estado ateniense, f isso quer dizer o démos, reteve 0 controle sobre os generais pro- fissionais, de modo que tanto CONON quanto IFICRATES nio desem- penharam um sério papel politico, a Repablica romana acabou sen- do destrufda por uma série de comandantes muito politicos, desde Mino a JéLio César, que nao estavam sujeitos a um compardvel controle popular. ‘Varios séculos tinham transcorrido nesse entretempo ¢ nenhum dos paddes de comportamento ou desenvolvimentos que descrevi, fem suas linhas gerais, € inteligivel sem uma compreensio da politica envolvida. Tanto 0s ‘aliados e competidores da elite quanto a po- pulaga niio eram espectadores passivos. Era preciso recorrer a eles, que tinham de ser consultados, manipulados, induzidos a agir desta fou daquela maneira; em suma, tinham de ser- politicamente envol- vidos de diferentes formas, Esse era 0 prego pago pelo sistema de cidade-Estado, com seu elemento de participagio popular. 6 Pritchett (1971-9), 1, capitulos 2-3,

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