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Publicado no livro Além da plataforma nove e meia, 2005, UPF Editora

CRESCIMENTO E BUSCA DA IDENTIDADE EM HARRY POTTER

‘“ ‘YOU DON’T KNOW HOW I FEEL!’ Harry roared.


‘YOU – STANDING THERE – YOU –.’ But words were
no longer enough, smashing things was no more help.
He wanted to run, he wanted to keep running and never
look back…”1
J.K. Rowling, The Order of the Phoenix.

Ao abordarmos o tema do envolvimento de pessoas de várias idades com o


fenômeno Harry Potter, a primeira coisa que precisamos reconhecer – e o próprio termo
“fenômeno” já indica - é que não estamos nos referindo a uma série de livros escritos
para o público infanto-juvenil, mas a um fenômeno de mídia, um produto da indústria
do entretenimento, significando a presença de enormes conglomerados econômicos por
detrás dela e da força que esses exercem sobre o nosso imaginário. Sofrer a influência
da indústria do entretenimento é uma situação inevitável para quem assiste à televisão,
vai ao cinema, ouve música, lê jornais e revistas, enfim, consome os produtos culturais
produzidos na atualidade. É claro que existe produção alternativa àquela com o selo, por
exemplo, Time-Warner, mas a presença desse tipo de produto cultural em nossas vidas é
incontestável, mesmo para seus críticos mais ferrenhos que, ao censurá-los, reconhecem
o alcance de sua presença e significação.
Contudo, Appelbaum2 afirma que creditar o sucesso dos livros da série Harry
Potter apenas ao marketing criado em torno do produto, é uma simplificação grosseira.

1
“O SENHOR NÃO SABE COMO ESTOU ME SENTIDO! - urrou Harry- O SENHOR ... FICA
PARADO AÍ ... SEU... Mas as palavras não eram suficiente, quebrar coisas já não adiantava: ele queria
fugir, queria fugir sem parar, sem nunca olhar pra trás…” ROWLING, J. K. Harry Potter e a Ordem da
Fênix. São Paulo: Rocco, 2003. p. 666.
2
APPELBAUM, Peter. Harry Potter’s World: Magic, technoculture, and Becoming Human. In:
HEILMAN, Elizabeth E. Harry Potter’s World – multidisciplinary critical perspectives. New York:
RoutledgeFalmer, 2003.
2

O autor insiste que nem todos os produtos nos quais a indústria do entretenimento
investe chegam a ser bem sucedidos comercialmente e poucos são aqueles cuja origem
reside em um livro, de autor desconhecido, do qual o primeiro lançamento se deu de
forma muito discreta. J.K. Rowling, autora da série, afirma que a vendagem dos livros
já era considerada expressiva antes da realização dos acordos com a Time-Warner, que
os transformaram em filmes e em uma infinidade de produtos spin-off,3. No entanto, é
inegável que, quer seja em virtude da mídia que atualmente os envolve, quer seja por
suas qualidades intrínsecas – um debate, aliás, cujo nível de polarização dificulta o
estudo da questão - os livros da série Harry Potter são, em si, um fenômeno no mercado
editorial, em um segmento, ficção infanto-juvenil, que normalmente não conhece
números tão grandiosos.
São mais de cem milhões de cópias vendidas em todo o mundo, com traduções
para mais de trinta e cinco línguas diferentes, atingindo de crianças no interior da Índia
a adultos nos metrôs de Londres. Para esses últimos, curiosamente, foram lançados na
Inglaterra livros exibindo capas mais sisudas, consideradas mais apropriadas para
adultos, de modo a livrá-los de algum possível embaraço público por estarem lendo
obras não escritas para a sua faixa etária. Isso nos diz algo de sua penetração e da
atração que sua leitura provoca. Heilman 4 vê a presença de Harry Potter na maior parte
dos espaços públicos e culturais de seu país, os Estados Unidos, e afirma que a
narrativa, as imagens e os temas originados dos livros infiltram as vidas e o pensamento
dos leitores e consumidores daqueles produtos. Segundo essa autora, quando imagens e
textos narrativos tornam-se tão difundidos na nossa cotidianidade, eles passam a
constituir parte do imaginário das pessoas que os consomem. Ela afirma:

“Harry Potter então, não é apenas os livros que lemos, os filmes que
assistimos, ou as coisas que compramos. Os textos e imagens de Harry Potter
tornam-se parte de quem somos. Isso é verdadeiro para as pessoas, como
indivíduos, e é verdadeiro para “nós”, como cultura global. [...] Em grande
parte (como Jorge Luis Borges sugeriu em sua frase famosa) nós somos o que
lemos. Então, o que a popularidade de Harry Potter sugere sobre quem somos
nós? O que os livros têm a dizer e como eles dizem isso?”5

3
Spin-off products é como são chamados os itens comercializáveis, lançados a partir de um produto
principal, que variam de peças de vestuário a brinquedos, passando por materiais escolares e tudo o mais
que o mercado pareça apto a consumir.
4
HEILMAN, Elizabeth E. Fostering Critical Insight through multidisciplinary perspectives. In:
HEILMAN, Elizabeth E Harry Potter’s World – multidisciplinary critical perspectives. New York:
RoutledgeFalmer, 2003.
5
“Harry Potter then is not just books we read or movies we see or things we buy. The text and images of
Harry Potter become part of who we are. This is true of individuals and it is true of ‘us’ as a global
3

Muitas são as tentativas de respostas oferecidas a essas perguntas, mas não


podemos deixar de fazer eco àquelas que reconhecem na busca da identidade do herói
que dá nome à série, o elemento de identificação que une os fãs da história. De Rosa 6
crê que a resposta talvez resida no fato de o herói criado por J.K. Rowling representar
elementos quintessenciais da afetividade humana, com os quais todos podem se
identificar. Acreditamos que uma das facetas mais comoventes de Harry Potter é,
provavelmente, a representação das dores do crescimento. Ao criar um personagem que,
como bem coloca Smadja, “cresce no papel no mesmo ritmo de uma criança de verdade:
em tempo real”7, ou seja, é percebido como um menino passível de existência
verdadeira, J.K. Rowling oferece a todos os leitores que trazem viva a memória de sua
luta interna pela diferenciação e construção de identidade, uma oportunidade para
rememorar, através de metáforas riquíssimas, passagens fundamentais para a vida
adulta.
De Rosa afirma que Rowling realiza de forma hábil uma inversão do paradigma
de iniciação descrito por Joseph Campbell, ao localizar na partida para um lugar
distante, Hogwarts no caso, a chegada a um ambiente de segurança ou, no mínimo, de
maior oferta de afeto do que aquele vivenciado pelo jovem herói em seu suposto lar. Em
“O Herói de Mil Faces”, Campbell descreve a jornada do herói típico como sendo
aquela em que ele parte do mundo comum para uma jornada em um mundo especial,
durante a qual enfrentará muitos perigos, usufruirá da orientação de um mentor e
retornará à casa amadurecido em relação ao mundo, portador de uma dádiva que
dividirá com sua comunidade.
No caso de Harry Potter, a saída da casa dos Dursley – ocorrida sempre de forma
tumultuada – e a subseqüente chegada a Hogwarts, retratadas no começo dos primeiros
quatro livros, “representam o retorno a um ambiente mais seguro, no qual Harry pode
experimentar, até certo ponto, o estado físico e psicológico relativo à infância

culture. […] To a large degree (as Jorge Luis Borges has famously suggested) we are what we read. So,
what does the popularity of Harry Potter suggest about who we are? What do the books themselves have
to say and how do they say it?” HEILMAN, Elizabeth E. Op. Cit. p. 02.
6
DE ROSA, Deborah. Wizardly Challenges to and Affirmations of the Initiation Paradigm in Harry
potter. In: HEILMAN, Elizabeth E. Harry Potter’s World – multidisciplinary critical perspectives. New
York: RoutledgeFalmer, 2003.
7
SMADJA, Isabelle. Harry Potter – as razões do sucesso. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
4

despreocupada”8. É um período de abundância, onde adultos se dispõem a alimentar


Harry não apenas no aspecto físico, mas em suas necessidades afetivas. Para De Rosa
essa fartura é simbolizada pelos lautos banquetes servidos em Hogwarts, pelas
festividades de fim-de-ano marcadas por presentes, até então minguados na vida do
herói e pela presença de adultos como Hagrid e a senhora Weasley, os quais, na maior
parte de seus encontros com Harry, preocupam-se em lhe oferecer algo para comer e
beber, símbolo do cuidado e carinho que nutrem por ele. Toda essa abastança contrasta
com o tratamento que lhe é dispensado na casa dos Dursley, onde as oportunidades de
nutrição, física e afetiva, sempre foram muito mesquinhas, chegando mesmo ao ponto,
em A Câmara Secreta, de Harry ser confinado ao seu quarto, saindo para ir ao banheiro
apenas duas vezes por dia e recebendo poucas e magras refeições.
Hogwarts, por contraste, fornece a Harry os elementos afetivos e físicos
necessários para a sua maturação e para o encontro consigo mesmo. É na escola, e no
mundo ao qual ele passa a ter acesso a partir de sua aceitação como aluno, que Harry
enfrenta os rituais de passagem relativos à busca de identidade pessoal, o que inclui a
elucidação de segredos familiares acerca do seu passado. A própria inserção em
Hogwarts é impregnada de símbolos externos que concorrem para a construção de um
novo self, de forma bastante semelhante ao ocorrido nas escolas da vida real. Para De
Rosa9, a obrigatoriedade da aquisição e vestimenta do uniforme, com todas as suas
peculiaridades, como o chapéu de bruxo e a varinha de condão, cumprem o propósito de
afirmar sua nova identidade e de antecipar o poder e o status do qual ele irá desfrutar
como membro adulto daquela comunidade. Dessa forma, Hogwarts funcionaria como o
ambiente estruturante da adolescência do herói. Em virtude de suas contradições
internas, a escola é fonte de perigos potencialmente aniquiladores, mas também de
conforto e orientação contra esses mesmos perigos, possibilitando que ele se empenhe
na construção de sua identidade, ainda que tal empreendimento seja doloroso e
arriscado.
Já na casa dos Dursley, vigora a determinação de inalterabilidade do cotidiano,
da vida como ela é conhecida e, portanto, considerada segura. Essa imobilidade tende a
sufocar as potencialidades de Harry, comprometendo seu futuro como homem adulto.
Crescer significar desacomodar-se, movimentar-se e, para que tal ocorra, todo o

8
DE ROSA, Deborah. Op. Cit. p. 163.
9
DE ROSA, Deborah. Op. Cit.
5

ambiente em torno daquele que cresce, sofre modificações. Outeiral 10 refere ao


adolescer como sendo o período da busca da independização, com a conseqüente
ruptura com a imagem idealizada dos cuidadores, típica da infância. Para o personagem
Harry Potter, aparentemente, todo esse processo se sucede a partir da entrada em
Hogwarts. Embora também necessite de adultos com os quais possa se identificar, Harry
não possui uma imagem idealizada de sua família adotante, os Dursley, mas em
Hogwarts ele irá conhecer e idealizar pelo menos três adultos do mesmo sexo, que lhe
servirão de mentores, aos quais ele admirará e a cujo patamar desejará ascender.
O primeiro deles, representação de poder e sabedoria, é o justo e equilibrado
diretor da escola, Alvo Dumbledore. Esse personagem é retratado como sendo tão
poderoso a ponto de ser o único capaz de fazer frente ao vilão da história, Voldemort,
que personifica o uso maléfico do poder e do conhecimento. Contudo, Dumbledore é
bondoso e, durante os quatro primeiros livros, se encarrega praticamente sozinho de
salvar Harry de grandes perigos, de lhe oferecer conforto emocional e de lhe esclarecer,
de forma sempre dosada, os enigmas de sua vida. É ele também quem lhe faculta,
através de uma série de artimanhas como o envio do manto da invisibilidade, uma
herança paterna, travar conhecimento com sua mãe e seu pai, sobre os quais Harry
virtualmente nada conhece.
Dumbledore é, na verdade, a única figura masculina que conhece fatos sobre a
vida de Harry que o próprio desconhece e cujas ações marcam o destino do menino de
forma indelével. Praticamente onipresente na vida do herói, Dumbledore sempre o
manteve sob carinhosa vigilância, estando ciente das aventuras de Harry e várias vezes
interferindo favoravelmente a ele. Dumbledore é o responsável pela colocação do herói,
ainda bebê, junto a sua família adotante, pela sua segurança na infância contra os
poderes do mal, por sua entrada em Hogwarts e, em última análise, pela sua chegada a
segunda fase da adolescência, quando finalmente lhe revela a terrível profecia que paira
sobre seu destino.
O segundo homem adulto mais influente para esse pré-adolescente, é Tiago
Potter, seu pai. Esse participa da existência do menino através de uma “ausência
onipresente” nos primeiros anos de sua vida, em virtude da completa inexistência de
alguma figura masculina adulta que assumisse, ainda que parcialmente, o papel de
representação paterna para Harry. No entanto, ao entrar em Hogwarts, escola aonde
10
OUTEIRAL, José. Adolescer - estudos revisados sobre a adolescência. 2ª edição. Rio de Janeiro:
Revinter, 2003.
6

Tiago estudou e que guarda os vestígios de sua passagem por ela, Harry passa a deparar-
se com a presença do pai e a construir uma imagem desse, idealizada, como todo o
menino, a partir das pistas que encontra.
A presença de Tiago Potter fica evidenciada no terceiro livro, O Prisioneiro de
Azkaban, o mais expressivo de todos no que se refere à descoberta desse pai idealizado
e ao estabelecimento de laços afetivos entre pai e filho. Nesse livro, Harry recebe um
mapa mágico de Hogwarts, confeccionado por seu pai e amigos, onde é possível
observar as pessoas se movimentando no castelo e onde são reveladas as passagens
secretas lá existentes. O elemento metafórico do mapa e da descoberta de passagens
secretas através deste é muito eloqüente, pois é de posse desse intrincado mapa que
Harry irá se envolver em situações emocionalmente muito perigosas. Ele vem a saber
terríveis verdades acerca da morte de seus pais e, mais uma vez, arrisca a própria vida
em busca do conhecimento referente às suas origens e da preservação do universo
hogwartiano, seu verdadeiro lar. Aparentemente, é seu pai que o salva da morte dessa
vez, quando, acossado por um dementador, Harry consegue invocar um “patrono” para
a sua proteção. Mais tarde, ao reviver a mesma cena de uma outra perspectiva –
promovendo seu retorno no tempo através da ampulheta mágica confiada a Hermione –
Harry vem a compreender que é ele mesmo o responsável por sua salvação, em mais
uma alusão aos rituais de passagem que cercam a transição para a vida adulta.
O dementador funciona aqui como uma metáfora para a morte psíquica, por ser
uma criatura mágica que tem o poder de aniquilar toda a alegria de viver daqueles de
quem se aproxima, trazendo à superfície seus piores temores e lembranças encobertas.
Através de um esforço pessoal muito intenso, Harry consegue “conjurar” uma
lembrança feliz, um objeto amado que possa protegê-lo da aniquilação afetiva e que
toma a forma de seu pai, transmutado em animal mágico. A motivação que leva Harry a
empreender uma luta tão árdua contra o dementador não é apenas a sua própria
proteção, mas a defesa da vida do terceiro homem adulto mais importante para ele: seu
padrinho, Sirius Black.
Sirius, como seu padrinho e melhor amigo de Tiago, assume uma enorme
importância na vida do menino. Ele é o “parente” vivo mais próximo de Harry, que se
dispõe a acolhê-lo emocionalmente e lhe fornece um elemento de ligação com o
passado, com a vida de seus pais, que ele desconhece. Sirius passa a ser o adulto
modelo, o primeiro ao qual Harry recorre quando tem problemas, seu companheiro,
7

mesmo distante, e protetor. Sendo solteiro, sem filhos e rompido com sua família de
origem, Sirius Black é também um homem muito solitário, inclusive em virtude de ter
passado parte de sua vida adulta na prisão de Azkaban. Reencontrar o filho do melhor
amigo pode significar, para ele, a oportunidade de voltar a nutrir suas necessidades
afetivas, o que fica mais evidente no quinto livro, quando Sirius passa a esperar de
Harry condutas típicas de Tiago, chegando a demonstrar desapontamento frente aos
esforços de individuação do garoto.
Durante os quatro primeiros livros desenvolve-se uma relação de admiração da
parte de Harry para com esses homens que, ao acolhê-lo em suas necessidades, cada um
dentro de suas possibilidades, assumem um papel modelador. Eles o auxiliam a
organizar sua personalidade iniciando-o em um mundo desconhecido, sendo
fundamentais, portanto, na sua construção de uma nova identidade.
Há ainda outros elementos, masculinos e femininos, que tomam para si a
responsabilidade por auxiliar esse herói em sua caminhada em busca de si mesmo. Um
quarto elemento adulto masculino, na verdade o primeiro enviado do mundo mágico
para ajudar Harry a transpor os obstáculos entrepostos pelos Dursley e possibilitar que o
chamado para a entrada no mundo bruxo chegasse até ele, é Hagrid. O gigante é puro
afeto em relação ao garoto e, prova de sua incapacidade de ferir, é que a ele foi confiada
a missão de buscar Harry, recém-orfanado, e trazê-lo para junto de Dumbledore,
conforme narrado no primeiro livro da série, A Pedra Filosofal. Contudo, apesar do
prestigio que goza junto a Dumbledore pela sua lealdade e pureza de caráter, é infantil
em sua interpretação do mundo e representa para Harry algo próximo a um amigo da
mesma idade, a quem se confia dificuldades mais pelo alívio de poder compartilhá-las,
do que pela expectativa de uma resolução madura dos problemas. Na verdade, ainda no
primeiro livro, e cada vez mais a medida em que vai crescendo, é Harry quem ajuda
Hagrid a escapar das enrascadas em que aquele se enreda.
Mas nem apenas de homens significativos é entremeada a relação de Harry com
o mundo mágico, no qual deve construir seu caminho para a idade adulta. Para o
exercício da função feminina da maternagem, da qual Harry se viu completamente
desprovido depois da morte de seus pais, a autora constrói alguns personagens
femininos excepcionais. Existem, no universo hogwartiano, mulheres poderosas,
dispostas a cercar o herói de amorosidade como também de limites, quando necessários.
A de convivência mais próxima, no dia-a-dia da escola, é a professora Minerva
8

McGonagall, braço direito do diretor, cujo coração terno e a afeição por Harry
transparecem por detrás de seus modos rígidos e de suas exigências acadêmicas.
Minerva é outra figura emblemática na vida do herói por ser a terceira pessoa presente
na cena em que esse é entregue na porta dos Dursley, aceitando assim, responsabilizar-
se parcialmente por seu destino. Já a figura materna por excelência é a mãe de Ron, seu
melhor amigo, a senhora Molly Weasley. Esta é retratada de forma bastante
convencional, como mãe de uma família numerosa e dona-de-casa dedicada, em tempo
integral, responsável pelo bem-estar dos filhos e, ao mesmo tempo, principal autoridade
familiar no concernente ao estabelecimento de limites.
Apesar da presença de figuras femininas em posições relevantes na história, os
livros de J.K. Rowling têm sido alvo de protestos no que se refere à caracterização de
seus personagens femininos, tidos como excessivamente estereotipados, aos quais não
são destinados papéis centrais na história. Heilman 11, afirma que a maior parte do
enredo é dedicada aos personagens masculinos e que a maioria daqueles que detêm
posições de poder, ainda que seja por sua maldade, são homens. A autora afirma que,
ainda que os leitores não estejam buscando lições sobre questões de gênero, essas são
apreendidas mesmo assim, e exorta os educadores a auxiliarem seus alunos no
desvelamento desses padrões.
Do ponto de vista da vivência de experiências de passagem para o mundo adulto
e considerando que o principal personagem do livro é um menino, talvez possamos
explicar, ainda que parcialmente, essa aparente predileção de J.K. Rowling pelos
personagens masculinos. Harry precisa de modelos para crescer e o apego e subseqüente
conflito com os homens que o rodeiam são parte natural de seu processo de
amadurecimento e individuação. Também é importante ressaltar que, no quinto livro,
intitulado A Ordem da Fênix, cujo lançamento é posterior aos ensaios referidos neste
trabalho, novos personagens femininos são introduzidos e alguns estereótipos são
debilitados, se não rompidos.
Um claro exemplo é Nynphadora Tonks, uma jovem de cabelo colorido, que
apresenta um comportamento audacioso e irreverente. De forma contrastante com as
personagens femininas anteriormente citadas, que pertencem a uma outra geração,
Tonks exerce uma das profissões mais perigosas do mundo bruxo, por sinal a única a
11
HEILMAN, Elizabeth E. Blue Wizards and Pink Witches. In: HEILMAN, Elizabeth E Harry Potter’s
World – multidisciplinary critical perspectives. New York: RoutledgeFalmer, 2003.
9

qual o corajoso Harry aspira: ser auror. Os aurores são uma espécie de polícia do mundo
bruxo, altamente especializados, que arriscam a própria vida em favor da nobre causa da
defesa dos inocentes, bruxos ou trouxas. Também a caseira Molly Weasley vai se
revelar muito aguerrida no quinto livro, participando da ordem secreta que reúne
aqueles que lutam contra Voldemort. Ao mesmo tempo em que é sua a iniciativa na
realização de trabalhos mais prosaicos, como preparar o jantar, ela não é poupada das
tarefas que cabem aos demais membros do grupo, como montar guarda em situações de
risco.
Quanto ao lado das trevas, surgem duas sinistras personagens femininas,
terrivelmente más e absolutamente implacáveis na perseguição aos seus inimigos. São
elas, a nova diretora de Hogwarts, Dolores Umbridge, que não faz caso em infligir
punições torturantes aos alunos, e a poderosa prima de Sirius, Bellatrix Lestrange.
Embora Bellatrix já tivesse sido nomeada em livros anteriores em situações que
revelavam o tamanho de sua maldade, em a Ordem da Fênix seu personagem se supera.
Ela será a responsável por infligir a Harry a maior perda de sua vida depois da morte
dos pais. Bellatrix é forte o suficiente para derrotar e assassinar o destemido Sirius
Black, pela morte do qual Harry passa a sentir-se culpado.
Como a formação de um indivíduo não é forjada apenas em relação àqueles que
o acolhem, mas também por experiências de rejeição, fazem o contra-ponto aos homens
que Harry admira dois personagens masculinos que provocam nele um misto de raiva e
temor e, com os quais, no que depender de suas escolhas conscientes, ele não gostaria
de se parecer. O primeiro deles é seu maior inimigo, o responsável pela morte de seus
pais e a maior ameaça ao único mundo onde Harry se sentiu acolhido em toda a sua
existência. Voldemort não é apenas uma ameaça à vida de Harry. Ele representa o fim
do mundo bruxo como Harry veio a conhecer e amar e o menino sofre com o fato de tê-
lo derrotado, de forma totalmente involuntária, em virtude do amor que lhe dedica sua
mãe em seus últimos momentos de vida.
O segundo é o repugnante professor de poções, Severus Snape, responsável pela
casa da escola de onde costumam sair os bruxos que se convertem às artes das trevas.
Snape é um personagem recheado de contradições, pois, apesar de seu desprezo
manifesto por Harry, herdado da inimizade que cultivava pelo pai do garoto, em mais de
uma ocasião responsabilizou-se por ajudá-lo. Embora seja um ex-comensal da morte,
Snape goza da confiança de Dumbledore e realiza um trabalho de espionagem que exige
10

astúcia e destemor. É novamente apenas no quinto livro que Harry descobre as razões
da inimizade entre Snape e Tiago e se dá conta de que seu pai, durante a juventude, não
foi o ideal de nobreza que ele idealizava. Essa é uma ruptura muito grave para Harry, ter
seu amor ao pai posto à prova e aceitar que um homem que ele odeia e que considerava
um inimigo, também tem seu lado humano e tormentos do passado para resolver.
O quinto livro marca a ruptura completa com o mundo de aconchego que
Hogwarts havia representado até então. Mesmo já tendo enfrentado a morte
anteriormente – no quarto livro, intitulado O Cálice de Fogo, Harry escapa da morte por
muito pouco – em nenhuma outra ocasião o herói havia adquirido a clareza de que sua
vida se encontra em uma encruzilhada, como ao final de A Ordem da Fênix. É o
momento de um insight poderoso, que demole quaisquer esperanças que Harry pudesse
ter de vir a levar uma vida comum. De acordo com uma antiga profecia que liga Harry a
Voldemort, nenhum dos dois poderá viver plenamente enquanto o outro existir,
significando que, ao final da série, um dos dois terá de morrer. Ao tomar conhecimento
dessa profecia, ainda sob o trauma da morte de seu padrinho, Harry passa por uma
experiência de perda da ingenuidade característica da infância e, ao ouvir os sons dos
colegas brincando do lado de fora do castelo, se pergunta como é possível que a
realidade dos outros se pareça tão distante da dor que ele sente naquele momento.
Quando, aos onze anos de idade, se descobre um bruxo, Harry passa da condição
de um garoto desprezado, impotente, desconhecido, cujas perspectivas de futuro são
bastante sombrias, para a condição de alguém que é querido, amado, mesmo famoso em
sua sociedade e ao qual são oferecidas, pela primeira vez, as ferramentas e
oportunidades adequadas para a realização de suas potencialidades. Para tanto, ele
precisa se reorganizar de modo a forjar uma nova identidade para si, pois seu futuro
depende de suas escolhas pessoais. De Rosa12 acredita que Harry percebe, lentamente,
ter herdado as boas qualidades de seus pais, o que o auxilia na construção de uma
imagem positiva para si mesmo. No entanto, apesar de ter tido acesso a esse
entendimento somente na entrada da adolescência, ele ainda tem uma segunda tarefa
com a qual se defrontar, comum a todos os que passam pelo processo de crescimento. A
autora afirma que “Harry vivencia um processo de formação de identidade dilacerado
pelo conflito, porque a busca pela verdade acerca de seus pais faz com que ele se
aproxime cada vez mais deles, o que, em conseqüência, complica sua habilidade de criar

12
DE ROSA, Deborah. Op. Cit
11

uma identidade separada ”13. Harry precisa diferenciar-se de seu(s) pai(s), forjando uma
personalidade para si que, embora contenha elementos parentais, é única.
Tal separação, infelizmente, se dá de forma bastante traumática, ao presenciar,
através de uma “viagem” ao passado, seu pai comportando-se de maneira desprezível,
humilhando colegas menos habilidosos do que ele, especialmente Severus Snape. Por
sempre ter sido alvo de abusos e injustiças perpetrados por colegas e familiares mais
fortes do que ele, Harry sofre um grande choque diante das atitudes do jovem Tiago e se
vê forçado a definir uma identidade para si contrária àquela que ele percebe no
comportamento de seu pai.
Desde o primeiro livro, A Pedra Filosofal, frente à mudança inesperada de sua
identidade, Harry busca se reorganizar da forma mais saudável que consegue. Ele se
preocupa com o fato de ser famoso e luta para obter reconhecimento pelas suas
qualidades pessoais. Pode não ser um aluno brilhante, mas é estudioso e acima de tudo
procura demonstrar ser corajoso e leal. Segundo De Rosa:

Harry poderia recriar a si mesmo como poderoso e opressivo, ao


modo de Dudley, tiranizando seus pares, que o idolatram. Ao invés disso,
Harry coloca-se junto aos seus colegas e procura encontrar seu lugar em meio
a eles, não acima.... Ele precisa discernir se é fundamentalmente corajoso e
bom, ou manipulador e mau. Sua confusão acerca de sua identidade como
bruxo começa imediatamente, com a cerimônia do chapéu seletor. 14 (tradução
nossa)

No entanto, ao final de A Ordem da Fênix, nosso herói está bastante fragilizado.


Ele sofreu perdas irreparáveis e viu rompidos os sonhos que havia acalentado a respeito
de sua identidade familiar. Marcado pelo destino de forma indelével, através da sempre
lembrada cicatriz em forma de raio na testa, Harry não tem como fugir de seu futuro.
Ele terá de enfrentar o Mal, ao qual está intimamente relacionado, de forma a poder
cicatrizar suas feridas abertas. Para vir a tornar-se um homem, Harry terá de fazer frente
aos seus piores temores, seus medos mais profundos e lembranças traumáticas, que são
desvelados diante da presença dos dementadores. Ele adquire a clareza de que não

13
“Harry undergoes a process of identity formation fraught with conflict because his search for the truth
about his parents brings him closer to them, which in turn complicates, his ability to create an identity
separate from them.” DE ROSA, Deborah. Op. Cit. p. 175
14
“Harry could re-create himself as a powerful and oppressive, Dudley-like figure who lords over the
peers who idolize him. Instead, Harry gauges his footing along with his peers to find his place among
them, not above them... Harry must discern whether he is fundamentally courageous and good or
manipulative and evil. Harry’s confusion about his wizardly identity begins immediately with the sorting
ceremony.” DE ROSA, Deborah. Op. Cit. p. 174
12

poderá se esquivar do enfrentamento com o inimigo e de que, na verdade, a mais dura


das provas ainda está por vir. Harry deverá decidir se tem forças para chegar a idade
adulta, com todas as provações e cicatrizes que se farão necessárias, ou se desistirá,
metáfora talvez para a vida de muitos adolescentes cujas condições existenciais estão
longe das idealizadas como saudáveis ou favoráveis. É um final melancólico, que deixa
no ar a previsão de um sexto e sétimo livros muito sombrios e em nada lembra a leveza
e a alegria da chegada ao mundo mágico, como em cenas descritas nos primeiros livros
da série.
Assim, o encantamento de pessoas de todas as idades pela série de livros Harry
Potter, parece dever-se, pelo menos parcialmente, a saga do personagem como metáfora
do crescimento, do enfrentamento da dor e da superação de si mesmo na busca pela
felicidade. Esses são temas comuns a todos, mesmo àqueles que já atravessaram o
período crítico do crescimento físico e afetivo, pois o próprio movimento interminável
que significa estar vivo, nos cerca de rituais de passagem que simbolizam o sempre
renovado encontro e enfrentamento de nós com a nossa intimidade e as sombras que
essa projeta.

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