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INTRODUCAO Nos ultimos dez anos, historiadores tém-se vol- tado para o estudo sistematico da familia, pene- trando em um campo anteriormente praticamente limitado a trabalhos de antropdlogos e socidlogos. Essa preocupacao se justifica, dada a importan- cia do tema para se entender a natureza das socie- dades, tanto no presente como no passado, levando- se em conta que a familia é uma instituicdo social fundamental, de cujas contribuicdes dependem todas as outras instituigdes. Especificamente no caso brasileiro, 0 assunto sé recentemente tem sido objeto de reflexdo, apesar do papel relevante desempenhado pela familia na Histé- tia do Brasil, desde 0 inicio do periodo colonial. De acordo com a literatura, a familia brasileira seria 0 resultado da transplantac4o e adaptacao da familia portuguesa ao nosso ambiente colonial, tendo gerado um modelo com caracteristicas patriarcais e Pee Mesquita Samara tendéncias conservadoras em suaesséncia. modelo genérico de estrutura familiar, de- nominado comumente de “patriarcal”’, serviu de base para se caracterizar a familia brasileira. Tal concepgao de familia, explorada por estudiosos como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, permaneceu tra- dicionalmente aceita pela historiografia como repre- sentativa, estatica e praticamente Gnica para exem- plificar toda a sociedade brasileira, esquecidas as variagdes que ocorrem na estrutura das familias em funcao do tempo, do espacgo e dos grupos sociais. Por outro lado, estudos e pesquisas mais recen- tes tém tornado evidente que as familias “‘extensas do tipo patriarcal” nado foram as predominantes, sendo mais comuns aquelas com estruturas mais simplifi- cadas e menor numero de integrantes. Isso significa que a descrigdo de familia apresentada por Gilberto Freyre como caracteristica das 4reas de lavoura cana- vieira do Nordeste foi impropriamente utilizada para identificar a familia brasileira de modo geral. Em vista disso, ap6s essa caracterizac¢ao inicial, fez-se uma ligac4o pouco pertinente entre o conceito de familia “‘patriarcal’’, que passou a ser usado como sindnimo de familia brasileira. Do mesmo modo, a familia brasileira passou a ser identificada, a priori, como uma familia “‘extensa’’. A familia patriarcal, entretanto, assumiu confi- guragdes regionalmente diferentes e mudou com 0 tempo. Quando e como foi substituida por outros tipos de familia? Que outros modelos permitem iden- tificar melhor a familia brasileira? Seria essa familia A Familia Brasileira realmente extensa? Esse trabalho procura basicamente responder a essas questées, assim como analisar outros aspectos que decorrem do mesmo problema. Por isso, dedi- camos uma parte ao casamento, procurando verificar a parcela da populacdo que realmente optava por constituir familias legitimas. Por outro lado, a énfase dada a familia do tipo patriarcal logicamente ajudou a conceber o mito da mulher submissa ¢ do marido dominador que tam- bém estaré em debate através da anilise do casa- mento e do divércio. Essa gama variada de problemas nos levou a recorrer aos documentos manuscritos da época (Tes- tamentos, Recenseamentos da Populacao e Processos de Divércio). Ainda por tratar-se de um tema com- plexo e inédito, sempre que possivel, procuraremos comparar o quadro geral da familia brasileira com os dados reunidos a partir da documentacdo especifica a familia paulista durante o século XIX. SOBRE O CONCEITO DE FAMILIA PATRIARCAL Segundo a literatura, no Brasil desde o inicio da coloniza¢4o as condi¢des locais favoreceram 0 estabe- lecimento de uma estrutura econémica de base agra- ria, latifundiaria e escravocrata. Essa situac¢4o, asso- ciada a varios fatores, como a descentralizagao admi- nistrativa local, excessiva concentragao fundiaria e acentuada dispers4o populacional, provocou a insta- lag4o de uma sociedade do tipo paternalista, onde as relagées de carater pessoal assumiram vital impor- tancia. A familia patriarcal era a base desse sistema mais amplo e, por suas caracteristicas quanto a com- posig4o e relacionamento entre seus membros, esti- mulava a dependéncia na autoridade paterna e a soli- dariedade entre os parentes. De acordo com esse modelo, a familia brasileira, no periodo colonial, apresentava uma feig¢ao com- A Familia Brasueira plexa, incorporando ao seu niicleo central compo- nentes de varias origens, que mantinham diversos tipos de relagdes com o dono da casa, sua mulher e prole legitima. Assim, todos viviam juntos sob um mesmo teto. Na periferia da familia patriarcal apareciam, portanto, diversos individuos ligados ao proprietario, por lacos de parentesco, trabalho ou amizade, que, por sua vez, definiam a complexidade do modelo, pois a composicao do niicleo central estava, até certo ponto, bem delimitada. A anexacao de outros elementos, como filhos ilegitimos ou de criacao, parentes, afilhados, expos- tos, servicais, amigos, agregados e escravos, é que conferia a familia patriarcal uma forma especifica de organiza¢4o, j4 que a historiografia utiliza 0 conceito de familia patriarcal como sinénimo de familia ex- tensa. Concentrando em seu seio as funcdes econé- mico-sociais mais importantes, a familia desempe- nhou um papel fundamental na sociedade colonial, aparecendo também como solugdo para os proble- mas de acomodaco s6cio-cultural da populacdo livre e pobre. Localizada, nos primeiros séculos da nossa his- toria, principalmente no ambiente rural, dispersa pelos latifindios monocultores, condicionou seus membros a uma certa trama de relacdes aparente- mente estaveis, permanentes e tradicionais. Nesse contexto era quase uma contingéncia para os indi- viduos de se incorporarem as familias ou grupos de i

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