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© TRAFICO DE DROGAS NO RIO DE JANEIRO E SEUS EFEITOS NEGATIVOS EM TERMOS DE DESENVOLVIMENTO SOCIO- ESPACIAL Marcelo José Lopes de Souza’ Introdugao Buscando contribuir para uma critica ndo-conservadora do trafico de drogas © contato inicial do autor do presente texto com a problematica das drogas se deu, descontando-se um acompanhamento distante da evolugaéo do fendmeno ao longo dos anos 80, no momento de sua pesquisa de doutoramento. Foi quando, buscando investigar a nova dinamica da “questo urbana” no Brasil em geral e na metrépole do Rio de Janeiro em particular, viu-se ele pela primeira vez confrontado com a influéncia e os efeitos, nas favelas cariocas entdo visitadas, da Presenga dos traficantes de drogas (SOUZA, 1993a). Aquilo que, em SOUZA, 1998a (bem como em SOUZA, 1993b e 1994a) circunscreveu-se a um contato algo periférico com o problema do tréfico de téxicos, deu origem, a partir de 1994, a uma investigagdo especifica, motivada pelo reconhecimento cada vez mais forte de que todo um conjunto de problemas direta ou indiretamente ligados ao incremento do trafico de drogas - especialmente 0 aumento objetivo da criminalidade violenta, ou ao menos do sentimento de inseguranga por parte da populagdo - constitui um dos fatores imediatos mais essenciais da complexificagéo e do agravamento da “questdo urbana” em indmeras cidades brasileiras, e muito particularmente no Rio de Janeiro, verdadeiro simbolo nacional do problema. Sem duvida, as favelas n&o s&o os tnicos loci do trafico de téxicos, mas apenas consistem na sua instancia menos rica e sofisticada (voltar-se-4 a isso mais adiante). Este apenas nao deve minimizar o fato, porém, de que as favelas constituem, nas cidades brasileiras, bases de apoio logistico essenciais ao negécio das drogas. O drama objetivamente representado tendo as favelas como palco, assim como a centralidade das favelas no discurso cotidiano sobre a violéncia urbana, discurso esse perpassado por preconceitos e ideologia, justificam um tratamento especial para as mesmas no contexto da andlise da relagdo trafico de drogas/“questdo urbana”. Esta justificativa ser4 aprofundada mais adiante na seco 3.. As favelas foram e continuam sendo “caixas pretas” para os conservadores. Associagdes simplistas e generalizantes do tipo favelados=vagabundos ou favelados=desajustados, substrato ideolégico do velho mito da marginalidade, néo desapareceram, mesmo com as varias criticas e competentes desmontagens de discurso ideolégico ja produzidas (p.ex. PERLMAN, 1981), e ainda por cima, a partir da década de 80, se véem suplantadas por uma outra: favelados=bandidos (ou faveladosetraficantes). © curioso é que, também para alguns dos assim chamados progressistas, os quais, por desconfianga em relag&o ao Estado e @ sua policia e por simpatia para com tudo o que pareca se opor ao status quo, as favelas séo “caixas pretas”, passando eles ao largo da riqueza de conflitos e dramas vividos pelos favelados; assim é que, por ter dificuldades em parar de assimilar traficantes a Robin Hoods, equivoco repetidas vezes denunciado por Alba Zaluar (vide p.ex. ZALUAR, 1994:54), mas sendo ao " Professor do Departamento de Geografia da UFRJ 1065 mesmo tempo arrostada com a truculéncia dos traficantes e os efeitos do trafico de drogas sobre 0 tecido social, boa parte da esquerda esta desprovida de um discurso coerente e sem propostas consistentes diante dos choques entre os atores sociais envolvidos (moradores de favelas, moradores dos bairros comuns, bandidos, policia, Exército etc.). Desmistificar as drogas n&o pode desembocar em uma negligéncia leviana para com a andlise dos impactos negativos da ampliagao do trafico de téxicos sobre 0 tecido social. Da mesma forma, ser critico do modelo civilizatério capitalista no deve redundar em automética simpatia para com qualquer forma de reag&o desenvolvida pelas camadas populares, sem se perguntar se essa reagdo é socialmente construtiva ou se ela é, pelo contrario, em tiltima andlise ou sob varios aspectos disfuncional até mesmo para os préprios pobres urbanos entendidos no ‘seu todo. Indubitavelmente, uma relativizag&o histérico-politico-cultural e mesmo médica da perniciosidade das “drogas” torna-se cada vez mais necessédria. Historicamente, o que se observa 6 que drogas passam a ser vistas - ou deixam de ser vistas - negativamente de acordo com variagSes culturais e de mentalidade, mas também politicas e motivadas por interesses econémicos. Pela mesma razao é que, atualmente, o status quo involuntariamente estimula o uso de drogas (ao criar legides de socialmente fracassados do lado tanto dos consumidores de classe média quanto dos pequenos traficantes de favelas e loteamentos periféricos) e, em parte, torna-se ele mesmo cada vez mais dependente do trafico (de policiais corruptos ao sistema financeiro) mas, por outro lado, dialeticamente é forgado a reprimi-lo, na medida em que esse “poder paralelo” ameaga a face oficial do Estado. Por fim, sabe-se que nem todas as drogas s&o igualmente perigosas, e que algumas delas, consideradas leves (como a maconha), nao sdo necessariamente mais perigosas que 0 alcool. A questo central, aqui, néo é, por conseguinte, a de ‘se as drogas, em si, devem ser ou ndo execradas. A pergunta que aqui interessa 6 ‘a seguinte: pode 0 comércio ilegal de toxicos, no nosso contexto cultural, politico e econémico, contribuir para desordenar/reordenar (parcialmente) a sociedade e a organizagao territorial A escala da cidade (ou metrépole) e mesmo na escala nacional (através de novas correlagdes de forcas e efeitos colaterais como 0 incremento da corrup¢ao, a formagao de enclaves territoriais no interior das cidades controlados pelo crime organizado, a espiral da violéncia e a “militarizagéo da questo urbana’) - e, simultaneamente, bloquear um verdadeiro desenvolvimento sécio-espacial nas favelas (via asfixia de organizagdes comunitdrias, tolhimento da liberdade dos moradores em geral etc.)? Conclua-se, agora, esta introdug&o com uma brevissima explicitagao do ‘significado que a express&o desenvolvimento sdécio-espacial assume neste trabalho. © conceito de desenvolvimento sécio-espacial objetiva superar duas falhas das conceituag6es existentes do desenvolvimento: uma, mais especifica, que 6 a antiga tendéncia de muitos especialistas de negligenciarem ou subestimarem a importancia da dimens&o espacial da sociedade, 0 que é um resultado da positivistica fragmentacéo epistemolégica da ciéncia social em campos independentes e, em ultima andlise, da artificial compartimentagdo ontoldgica entre Processos sociais, espago e tempo. O destaque dado ao adjetivo espacial na expresso desenvolvimento sécio-espacial no significa que, como revanche, esteja-se aqui a propor uma “concepgdo geografica do desenvolvimento”, em contraposigao as idéias oriundas de economistas e socidlogos; pelo contrario, 0 teferencial conceitual em tela tem a pretensdo de integrar as diversas dimensées da sociedade (dimensSes de processos sociais: economia, politica, cultura; dimensao espacial; dimensio temporal), visando lastrear andlises mais realistas. Uma segunda falha, mais geral, explica precisamente este desejo de maior 1066 concreticidade incorporado pelo conceito de desenvolvimento sécio-espaciak trata- se da monodimensionalidade das conceituagdes correntes (sobretudo no caso da idéia de “desenvolvimento econémico”), do seu contetido muitas vezes teleolégico e da sua amarrag&o acritica e apologética a um determinado modelo civilizatério (a saber, o Ocidente capitalista e sua modernidade), sendo elas portanto etnocéntricas. Diversamente, a idéia do desenvolvimento sécio-espacial, cuja construgao 0 autor iniciou em trabalhos escritos anteriormente (SOUZA, 1994d e 1995), n&o enfatiza, como parametro definicional basico, a performance econémica (crescimento + modemizag&o tecnolégica), e nem mesmo indicadores de qualidade de vida descolados de um exame critico do contexto sdcio-histérico, mas sim a idéia de autonomia, tal como trabalhada por Cornelius Castoriadis (ver p.ex. CASTORIADIS, 1983), e A qual o autor do presente artigo acrescentou explicitamente a dimenséo espago-territorial: a autonomia de uma sociedade ou grupo social para autogerir-se e gerir seus recursos e seu espaco - 0 que no fundo S&0 os dois lados da mesma moeda. Com isso abre-se, quer o autor crer, a Perspectiva de uma radical flexibilizagéo histérica e cultural do conceito de desenvolvimento, abandonando o teleologismo e 0 etnocentrismo, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento deixa de ser definido com base em aspectos parciais ou dependentes de valoragdes determinadas para reportar-se a propria condig&io fundamental para o estabelecimento livre, por uma coletividade, de seus objetivos em termos de ideal de sociedade. Para Contextualizar: Sobre Redes, Territérios e as Diversas Escalas do Tréfico de Drogas Em que a situag&io do Rio de Janeiro especifica, e em que ela se insere ‘em uma problematica muito mais geral? Compreender isso 6 importante para que um trabalho sobre o Rio possa servir, de modo realmente eficiente, para alertar sobre a gravidade do problema, ao qual nenhuma cidade esta a priori imune. E compreender isso exige a consideragdéo de varias escalas, além da local- metropolitana. © trafico de drogas é uma atividade multiescalar por exceléncia, manifestando-se tanto sob a forma de uma rede internacional do crime organizado quanto de uma favela controlada por uma determinada quadrilha ou organizagao. Na realidade, melhor seria falar, sob o prisma das organizagoes criminosas, de redes internacionais no plural, pois, embora existam as mais variadas conexdes intercontinentais, h& organizagdes particulares em certos _continentes especializadas no trafico de determinados tipos de drogas, em sua maior parte exportadas para a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Mesmo na escala intra-urbana, por exemplo no Rio de Janeiro, no existe uma Unica rede, a nao ser fazendo-se abstragéio da dimenséo politica - ou seja, enquanto simples conjunto, somatério de nds e arcos, superposigdo de todas as redes. Cada uma das organizagdes que, no Rio, disputam o mesmo ou aproximadamente 0 mesmo mercado consumidor (Comando Vermelho - CV, Terceiro Comando, Comando Caipira e bandos independentes), constitui sua propria rede. As redes articulam territérios vinculados a uma mesma organizacao, integrados pelas mesmas relagdes de poder e fluxos de comando e controle, se bem que nao formem territérios contiguos, pois entre os nés de uma rede existem espagos que nao pertencem a ela, ainda que possam sofrer sua influéncia, No que concerne aos fluxos de comando e controle supra-referidos, devem eles ser entendidos de modo bastante amplo, pois existem evidéncias de que o crime organizado no Rio de Janeiro é, na verdade, menos organizado do que 1067 muitos supdem. Talvez mesmo uma organizagao como o Comando Vermelho, responsdvel pela maior parte do trafico de téxicos na metrépole carioca, seja antes uma espécie de “cooperativa criminosa’, uma rede funcional mas também de solidariedade e amizade com origens que remontam ao final da década de 70, do que uma estrutura hierarquica rigida, em estilo mafioso.'* (E, ao que parece, a partir de 1993 mesmo essa solidariedade vem sendo solapada, com disputas sangrentas no interior do préprio CV, contrariando o espirito dos “fundadores”, os quais estéo, atualmente, mortos ou encarcerados). Uma das evid&ncias empiricas do relativamente baixo nivel de organizagao do trafico de drogas carioca reside em ‘sua extrema pulverizacao, com constantes “guerras” motivadas pelas disputas por bocas-de-fumo. Isto determina uma territorialidade distinta daquela que ¢ caracteristica de um cartel ou quase-cartel, como 6 0 caso do jogo do bicho, onde, de conformidade com um “pacto territorial”, cada bicheiro possui sua area de influéncia, a qual 6 um territério contiguo, portanto um territério em sentido convencional. J& cada uma das organizagdes do trafico de drogas se manifesta sob a forma do que se pode denominar de territorialidade descontinua ou em rede. © conceito de territério descontinuo expressa a necessidade de se construir uma ponte conceitual entre 0 territério em sentido usual (que pressupde contigiiidade espacial) e a rede (onde nao ha contigilidade espacial: o que ha 6, em termos abstratos e para efeito de representag&o grafica, um conjunto de pontos - nés - conectados entre si por segmentos arcos - que correspondem aos fluxos que interligam, “costuram” os nds - fluxos de bens, informagdes, pessoas). Trata-se, a0 mesmo tempo, de uma ponte entre escalas: 0 territ6rio descontinuo associa-se a uma escala onde, sendo os nés pontos adimensionais, nao se coloca evidentemente a questdo de se investigar a estrutura interna desses nés, j4 que cada ponto interessa somente enquanto parte de um todo maior, ao passo que, & escala do territério continuo, que 6 uma superficie e nao um ponto, a estrutura interna de cada territério é relevante de ser considerada. Ocorre que, como cada nd de um territério descontinuo é, concretamente e em outra escala, dependendo da distancia a partir da qual o objeto geografico 6 observado, uma superficie, ela mesma um terrifério (uma favela territorializada por uma organizago do trafico de drogas, um loteamento periférico, uma residéncia de luxo tipo bunker), temos que cada territério descontinuo representa, na realidade, uma rede a articular dois ou mais territ6rios continuos. O territério descontinuo 6, porém, de fato ainda mais complexo do que acima sugerido, j4 que, entre os nds de uma rede (territérios continuos individuais), existem areas nao direta e fortemente territorializadas, conquanto constituam uma rea de influéncia da rede, definida essa drea com base na influéncia que se exerce @ partir de seus nés, concretamente em termos de um mercado consumidor. Essas Areas so os bairros comuns ou, para usar a giria carioca, o “asfalto”. Por isso 6 que os territérios-rede das diversas organizagées do tréfico significam territérios apenas em um sentido bastante sofisticado; na verdade, cada uma das organizagSes por trés dessas redes territoriais, ao disputar sanguinolentamente um mesmo mercado consumidor, esté de fato empenhada em territorializar de forma continua e exclusiva a area de influéncia, ao buscar deter 0 monopélio da oferta de drogas. A complexidade da territorialidade em rede se coloca na medida em que Sobre as origens e a natureza do Comando Vermelho ver especialmente o relato de William da Silva LIMA (1991), 0 “Professor”, um dos seus fundadores, o qual salienta a necessidade dos detentos do antigo presidio da liha Grande, no litoral fluminense, de se tunirem contra abusos (estupros, espancamentos) praticados pelos préprios presos, bem como 0 contato entre presos comuns @ presos politicos, como 0 caldo de cultura em que se formou o CV, 0 qual posteriormente extravasaria os muros do presidio. 1068 varias redes territoriais podem se superpor no interior de uma mesma drea de influéncia em disputa (ou de 4reas de influéncia distintas mas com fortes intersegdes). Durante todo o tempo em que existirem essas superposigées, cada uma das redes territoriais representaré uma territorialidade de “baixa definigao”; uma “alta definigéio” s6 ser alcangada quando uma das organizagdes conseguir eliminar todas as rivais dentro da drea de influéncia econémica, ou se chegarem a um acordo de convivéncia estabelecendo um pacto territorial claro. As redes que articulam favelas no Rio de Janeiro através do trafico de drogas nao “dominam”, é dbvio, todo o Rio de Janeiro, mas so poderes (ilegais, paralelos ao Estado) que tém como rea de influéncia a metrdpole carioca (ou mesmo outros estados). Cada rede em questao territorializa contiguamente cada um de seus nés, ou seja, cada favela (que assim deixa de ser ponto a escala da metrépole para virar Area internamente diferenciada) e _ territorializa descontinuamente - e em regime de baixa definig&o - um espago muito mais amplo. Também no Rio de Janeiro se superpdem, em acirrada disputa por poder no interior de uma area de influéncia basicamente comum, essas diversas redes, em uma trama complexa: entre dois nés (favelas) de uma rede podemos encontrar, no espago concreto, um né (favela) pertencente a outra rede. Se mudar a escala do local (metrépole carioca) para o nacional ou internacional, porém, a rede local de uma determinada organizagéio estabelecida no Rio aparecerd, ela mesma, como um simples ponto, um né. Cada uma das redes descontinuas 6, de fato, um sistema aberto, e ndo um sistema fechado; cada uma delas esta conectada a redes internacionais, como subsistemas auténomos no interior de sistemas maiores, e 6 via essa insergao que se d&o os fluxos de mercadorias, armas e dinheiro que alimentam as redes locais em suas disputas por dominio exclusivo da area de influéncia comum. Essa consideragéo de escalas mais abrangentes 6 essencial para se observar mais claramente as desigualdades inerentes ao trdfico de drogas: internamente & tavela controlada por uma organizag&o do trafico j4 se pode notar hierarquia e desigualdade na distribuigéo dos frutos do negécio (diferenga notadamente entre o “olheiro” ou o “avido”, que recebem as vezes apenas em espécie, e 0 “gerente”, que possui participacaio nos lucros da boca-de-fumo); mas é a partir da consideragao da escala da cidade como um todo, do pais e do mundo, incluindo os financiadores e todos aqueles que, sem morarem em favelas e sem se exporem diretamente, so os principais beneficiarios do tréfico, que se percebe 0 quanto o tréfico de drogas nada tem de igualitdrio ou progressista, sendo um capitalismo altamente selvagem, a utilizar-se da populagao pobre como méo-de-obra barata e descartavel, verdadeira bucha para canhdo. Além do Rio de Janeiro, indmeras outras cidades brasileiras, da Amazénia a Regifio Sul, e com portes que variam do metropolitano ao pequeno, encontram-se integradas as redes de distribuig&o e comércio de drogas ilicitas. O estado de Sao Paulo destaca-se a esse propésito, pois, além da enorme importancia de sua regido metropolitana (ndo apenas como centro consumidor, mas também como centro de gestdo, dada a sua posigéio como mais expressivo centro financeiro do pais), pelo seu interior passam importantissimas rotas da cocaina, que ligam o exterior 4s duas metrépoles nacionais, SAo Paulo e Rio, e a alguns pontos do litoral além do Rio de Janeiro, por onde parte da droga segue para a Europa e os EUA. Diversas cidades paulistas, muitas delas présperas cidades de porte intermediario nas quais 0 consumo local é relativamente significative e algumas delas inclusive de porte pequeno, vo sendo abastecidas pelo caminho. No entanto, apesar dessa generalizagao do consumo e do tréfico de drogas em escala nacional, a situag&o do Rio de Janeiro mantém, no tocante & visibilidade sdcio-politica do 1069 problema, uma certa especificidade, em fung&o da particularmente alarmante violéncia urbana que nele tem seu palco. Efeitos Sécio-Espacialmente Negativos do Fortalecimento do Trafico de Drogas a Escala da Metrépole Carioca © principal marco histérico a propésito do trafico de drogas no Rio de Janeiro 6, de um modo um pouco vago, a década de 80. Muito embora o comércio de drogas ilegais (notadamente a maconha) fosse conhecido no Rio hé muitos decénios - por exemplo no Morro da Mangueira, onde, segundo uma de suas liderangas, “a maconha entrou (...) logo depois da guerra (Segunda Guerra Mundial)""'® -, nao foi senéio na virada da década de 70 para a de 80 que, para empregar as expressSes de outra lideranca da Mangueira, passou-se definitivamente, também em outras favelas da cidade, do par “maconha e 38” {isto 6, uma droga leve e n&o tao lucrativa + armas leves, simbolizadas pelo revélver calibre 38) para o par “cocaina e AR-15” (ou seja, uma droga pesada e altamente lucrativa + armamento mais pesado e sofisticado, simbolizado pelo fuzil AR-15).' No bojo do mesmo processo onde se dé a substituigdo - simbélica e também cada vez mais real - da maconha pela cocaina e do 38 pelo AR-15 dé-se, igualmente, uma crescente complexificagdo organizacional do trafico, além de uma expansao extraordinaria de sua influéncia na sociedade. Do final dos anos 70 data, conforme j4 foi comentado anteriormente, o surgimento do Comando Vermelho. Também em outras cidades brasileiras foi a partir da década passada que 0 tréfico ficou mais visivel, tornou-se digno de nota ou simplesmente surgiu. Certamente este processo se relaciona de perto com a deterioragéio da qualidade de vida dos pobres urbanos, afetada, ao longo da “década perdida”, como os anos 80 ficaram conhecidos na América Latina, pelo aumento do custo de vida, e, particularmente no que concerne aos moradores de favelas, pelo desengajamento do Estado em 4reas de interesse social como educagéo e satide. Tem-se, na verdade, uma dialética entre “ordem” e “desordem” a contribuir para a génese do tréfico de drogas em um patamar de malores poderio e organizagao: se, de um lado, a “orden? capitalista (especialmente no “Terceiro Mundo”), geradora de pobreza, segregag&io sécio-espacial e conflitos sociais, de “questo urbana” portanto, vem concorrendo para produzir as legides de jovens desempregados e frustrados que so potenciais candidatos a “olheiros”, “avides", “soldados” e “gerentes” do trafico nas favelas, por outro lado a desobrigagéio ainda maior do Estado para com a populagao favelada, ou seja, a diminuigéo da ja pequena presenga “social” da “order capitalista formal na esteira da crise do Estado brasileiro e do avango da onda neoliberal, vale dizer, a desestruturac&o(“desorden’’)/reestruturagaio da velha ordem, também ajudou a gerar o vacuo de poder e legitimidade do qual em parte nasceu a “order ilegal que 6 o crime organizado (SOUZA, 1994c). Além de uma dialética entre um fator (“ordem’ sistémica capitalista) e sua negac4o (“desordent” sistémica com 0 rearranjo do modo de regulagdo), tem-se, neste caso, igualmente, uma sinergia positiva, pois 6 a partir da ag&o conjunta dos dois fatores, a partir da década passada - permanéncia da esséncia da ordem sistémica enquanto moldura geral mas ao mesmo tempo colapso de uma certa forma de arranjo do sistema, 9 Entrevista de 26/1/95 do autor com o presidente da Associagao de Moradores e Amigos do Chalé e Farias (Subdrea da Mangueira), preso em novembro de 1994 pelo Exército e detido por trinta dias na POLINTER por suposto (n&o compravado) envolvimento com 0 1iffafion de téxicos local. * Entrevista concedida ao autor em 30/11/94. 1070 determinando 0 recuo do Estado no que respeita as suas intervengdes de cunho social -, que as condigdes de incremento do trafico de drogas amadurecem. De toda maneira, sublinhe-se que nem tudo pode ser explicado pela queda da qualidade de vida nas cidades. Decerto nao foi mera coincidéncia o fato de que o momento da substituig&o do binémio “maconha + 38” pelo binémio “cocaina + AR-15” nas favelas do Rio foi precedido de alguns anos pela ascens&o do trafico de cocaina na Colémbia, com a substituiggo da maconha pela cocaina e a emergéncia e consolidagao dos “cartéis”, entre 1970 e 1984 (GOUESET, 1992). Seja como for, nenhuma outra cidade brasileira apresenta um quadro téo. Preocupante quanto ao agravamento da “questao urbana” quanto o Rio de Janeiro. Na metrépole carioca o processo que o autor deste trabalho denominou em artigo anterior (SOUZA, 1994c) de fragmentap4o do tecido sdcio-politico-espacial encontra-se bem mais aprofundado e geograficamente disseminado que na metrépole paulistana. Essa fragmentagdo, fruto do processo de territorializagdo a que vem sendo submetido pelo tréfico de téxicos um numero crescente de favelas, foi verbalizada de maneira assaz interessante no depoimento de um lider favelado (favela Morro do Céu, na Zona Norte do Rio de Janeiro) entrevistado em 12/7/94 pelo autor. Conforme o entrevistado, 0 Rio de Janeiro passou de uma situagdo ‘onde as diferentes “comunidades” (isto 6, favelas) eram mais ou menos abertas, quando membros de “comunidades” distintas podiam se visitar sem problemas, para uma situagdo onde “as comunidades estéo se fechando” cada vez mais. Para ele, (6) no local onde vocé mora vocé tem seguranga’, devido ao fato de que, para garantir maior tranqililidade para o seu negécio, os traficantes tendem a coibir outros tipos de crimes praticados contra moradores da favela (estupros, roubos etc.), inclusive punindo exemplarmente os transgressores. As outras “comunidades”, porém, cada vez mais apresentar-se-iam como territorios fechados e mesmo inimigos, porque muitas vezes territorializados por uma facc&o rival do crime organizado. E, no meio, aquilo que o entrevistado chamou de “Area neutra” - territorializada exclusivamente pelo Estado através das “forgas da ordem” (policia e Exército) -; a “drea neutra’ é, para o entrevistado, “onde vocé pode morrer” - quando de um assalto ou mesmo devido a uma bala perdida, na rua, em um banco e até dentro da prépria casa -, uma vez que as “forgas da ordem” pouco tém conseguido garantir a integridade fisica dos moradores dos bairros comuns, integrantes da “Area neutra”. A territorializag&o de favelas pelo crime organizado 6, assim, um fator de fragmentagdo politico-espacial do tecido urbano, vale dizer, de desordem a escala da cidade como um todo, se bem que, conforme se discutira mais pormenorizadamente na.proxima sedi, a escala de uma dada favela os traficantes representam um fator de ordem, de uma férrea e brutal ordem - alids, via de regra quase que 0 Unico fator de ordem, em virtude da auséncia do Estado. ‘Ao longo do processo de fragmentagao do tecido sécio-politico-espacial, paralelamente a processos conectados como 0 incremento da corrupgéio politica e policial, vai tendo lugar uma deterioragéo do “clima social”, sob 0 efeito cumulativo (e amplificado pela midia) da incidéncia da criminalidade violenta. Crescentemente amedrontado, desconfiado e desiludido, torna-se cada vez mais dificil enxergar no carioca um individuo que corresponda ao cliché de extroversdo, jovialidade e ‘otimismo tradicionalmente a ele associado. O agravamento da “questéo urbana” j4 pareceu ao autor, por isso, estar promovendo uma espécie de “mutacdo antropolégica” nos moradores do Rio de Janeiro (SOUZA, 1993a). Essa deteriora¢ao do “clima social’, na esteira da qual ver sendo gerado aquilo que ja se chamou de “cultura do medo”, finalmente desembocou, em novembro de 1994, em uma franca militarizagao da “questéo urbana”, com a concretizagao do cenario de uma intervengdo do Exército para combater tensdes sociais e a criminalidade - 1071 neste caso especificamente 0 trafico de drogas - construido pelo autor em trabalhos anteriores sobre a “questéo urbana” no Rio de Janeiro (SOUZA, 1993a; 1993b; 1994a). Conforme o autor j4 advertira nestes trabalhos, esse tipo de “solugdo”, pautada fundamental ou exclusivamente na represso, conduz antes a um “feedback positivo” no contexto do agravamento da “questao urbana” do que a um alivio duradouro, por gerar mais tensdes e ressentimentos (atritos entre as forcas policiais/militares e a populacao favelada) e realimentar a violéncia, ao invés de combater as suas causas mais profundas. Adverténcia semelhante contém a sotuma previséo de um lider favelado do Morro da Mangueira a propésito da intervengdo militar: “a Unica coisa que essa intervencdo pode causar é mais ousadia da parte dos traficantes”."° Dentre outras raz6es, cabe acrescentar, porque uma intervengdo dessa natureza, limitada no tempo, pode acabar levando a asfixia somente dos elos mais fracos (bandos independentes), enquanto que os “comandos" principais sem duivida conseguem sobreviver (inclusive langando mao, como realmente ocorreu no principio de 1996, de fontes alternativas como seqiestros, assaltos a bancos e carros-forte), acarretando uma elevac4o do nivel de oligopolizagao. A séria considerag&o da dialética entre o geral e o particular obriga, porém, a delimitar as especificidades do Rio de Janeiro. Sem divida, contingéncias histéricas jogaram um papel decisivo para que o Rio, e ndo, por exemplo, Sao Paulo, adquirisse com o tempo uma triste notoriedade nacional e internacional. O primeiro governo de Leonel Brizola (1983-1986) pode, 6 certo, ser considerado, para tomar emprestado um termo popularizado pelo fisico-quimico Ilya Prigogine,'" uma flutuagdo decisiva, uma pequena “perturbagao” mais ou menos contingente que propiciou o fortalecimento do crime organizado no Rio. Em nome de uma - em si mesma evidentemente correta - politica de humanizag&o do aparato policial e respeito aos direitos humanos e civis dos favelados, Brizola acabou por enfraquecer @ presenga das “forcas da ordem” nas favelas, ao diminuir-se o abuso e a truculéncia policiais, sem contudo substituir essa presenca atrabiliaria por uma outra (do policiamento comunitario eficaz a um engajamento social mais profundo do poder piblico, por exemplo via urbanizag&o). O vacuo de poder foi preenchido eficientemente pelos traficantes. No entanto, nfo se pode esquecer a contribuigo de outros fatores, alguns inespecificos do Rio (como a dialética dedilhada Pparagrafos atrds entre a “ordem” capitalista e a “desordem” do desengajamento estatal em 4reas de interesse social, operando em escala nacional e mesmo ‘supranacional), e outros, pelo contrario, bastante especificos (surgimento do CV no extinto presidio da Ilha Grande, na costa fluminense, e nao, por exemplo, no Carandiru, em Sao Paulo; sitio urbano do Rio favorecendo um padréo altamente complexo de segregagao sécio-espacial, com muitas favelas encravadas em bairros residenciais da classe média e mesmo da elite, o que concorre para a visibilidade e @ exacerbacdo das tensées). Na verdade, a viruléncia extremada do trafico carioca tem suas origens em uma complexa dindmica de natureza sinergética, com a confluéncia, em determinado momento, de diversos fatores, operando em escalas espaciais e temporais diferentes: trata-se da sinergia positiva mencionada mais cima a propésito da dialética entre a “ordem” capitalista e a “desordem” decorrente "8 Entrevista de 19/1/96 do autor com o presidente da Associagao de Moradores e Amigos do Chalé e Farias. "8 Consulte-se, para um breve exame critico das potencialidades de contribuigso de certos aportes da Fisica modema - dentre os quais as teorias dos sistemas dissipativos @ do caos, as quais se relaciona o termo flutuago -, freqlentemente identificados como feprasentativos de um nove peradigma cientfico geal paracigma da complenidade’), UZA, 1994¢. 1072 do desengajamento estatal em 4reas de interesse social, sinergia essa tornada agora mais concreta pela incluséio das especificidades locais do Rio de Janeiro. Todavia, 6 inegavel que as especificidades locais, se contribuiram para um certo pioneirismo e uma visi lade e viruléncia maiores, nao devem, por outro, ‘ser exageradas. O trafico generaliza-se e espraia-se pela rede urbana brasileira. ‘Sem querer sugerir a inevitabilidade de um processo de fragmentagdo do tecido ‘sdcio-politico-espacial e de deterioragaio do “clima social” como o hoje observado no Rio de Janeiro, o fato é que nao sé nenhuma cidade esta imune a essas situagdes como, na realidade, algumas cidades - sobretudo Sao Paulo - j4 apresentam, mutatis mutandis - ou seja, em escala menor e com menos complexidade -, quadros comparaveis ao carioca. Efeitos Sécio-Espacialmente Negativos do Fortalecimento do Trafico de Drogas & Escala das Favelas Vale a pena retomar a justificativa da singularizagdo das favelas, uma vez que, para contrapor-se a uma generalizada tendenciosidade de fundo ideolégico, no presente texto foi sublinhado anteriormente o fato de que os verdadeiros chefdes do trfico e aqueles que mais lucram com ele néo moram em favelas (além do que, 0 essencial da demanda vem dos estratos médios e altos da sociedade - e sem demanda no haveria oferta). A isso acresce que, mesmo no que tange aos espagos dos pobres, bases logisticas do trafico, nao se trata apenas de favelas: conjuntos habitacionais de baixa renda e loteamentos periféricos podem também desempenhar esse papel. No entanto, as favelas so, de longe, os exemplos mais espetaculares, e néo apenas por serem as principais bases de apoio logistico do trdfico naquela cidade que tornou-se 0 simbolo da violéncia associada ao trfico de drogas, 0 Rio de Janeiro. As caracteristicas de “enclaves” das favelas territorializadas pelo tréfico, especialmente daquelas situadas no na periferia, mas ‘no préprio nticleo metropolitano (no raro, no caso do Rio, encravadas em bairros nobres, portanto localizadas bem préximas dos consumidores de mais alto poder aquisitivo), realgam 0 processo de fragmentag&o do tecido sécio-politico-espacial anteriormente comentado. Por fim, afora as caracteristicas geodemograficas (elevada densidade populacional) e sécio-econémicas (a enorme pobreza da grande maioria de sua populagdo), a propria estrutura espacial de uma favela e (no caso de uma favela de morro) de seu sitio - e ndo tanto dos loteamentos ou conjuntos habitacionais - contribuem tremendamente para conferir a ela um valor tinico enquanto esconderijo: as vielas estreitas (em alguns casos sem saida), os acidentes capitais (pontos dominantes como lajes ¢ elevagses naturais, cuja posse permite a observagao e 0 controle de rotas de entrada e saida), a estrutura vidria abirintica; tudo isso representa vantagens para o defensor e desvantagens para um eventual invasor, como bem percebeu o Comando Militar do Leste em documento elaborado como parte da preparagao da intervengao do Exército nas favelas do Rio. E preciso, entretanto, frisar que as relagdes entre os traficantes de favela a populagéo favelada estéo muito longe da harmonia e da pura e simples cumplicidade que so muitas vezes sugeridas pela midia. Por um lado, retomando um esclarecimento iniciado na seg&o anterior a propésito da discussdo sobre a dialética entre “ordem” e “desordem” envolvida na génese, na dindmica e nos impactos sécio-espaciais do trafico de téxicos, as organizagdes do tréfico representam, na escala da favela, um fator de ordem, "” Documento reproduzido na Folha de Sao Paulo de 13/11/94. 1073 ocupando um vazio deixado (e em parte nunca preenchido) pelo Estado capitalista. Em primeiro lugar, os traficantes exercem fungdes que, no “asfalto”, cabem ao aparelho de Estado (juizes, policia etc.): conforme ja fora informado na segao anterior, para garantir tranqliilidade para os seus negécios, evitar atrair desnecessariamente para 0 local atengdes ou forgas da ordem e buscar garantir legitimidade junto aos moradores, os traficantes reprimem duramente crimes “comuns” praticados por outros bandidos, como assaltos a moradores da favela (ou mesmo do seu entorno imediato), estupros etc.. Brigas de vizinhos e outras situagdes de conflito podem também contar com a participagdo dos traficantes como arbitros supremos. Além disso, 0 paternalismo dos traficantes ndo se limita ao terreno da “seguranga’, mas se manifesta através de doagdes e benfeitorias pontuais (festas para a comunidade, construg4o de uma quadra de esportes, dinheiro para alguém comprar remédios...). Neste sentido, que alimenta o mito dos “Robin Hoods das favelas”, os traficantes séio Uteis para os moradores. Sem esquecer, ademais, que o tréfico garante ocupagSes para muitas pessoas da favela, dos “avidezinhos” ao “gerente” da boca-de-fumo, pessoas essas que nao sao, freqiientemente, estranhos ao local, mas sim individuos muitas vezes 4 nascidos e criados, com parentes na “comunidade”. Pode-se perceber, assim, porque, para 0 insider, para o integrante de uma determinada “comunidade”, nao existe algo como uma “desordem” generalizada - sentimento predominante no outsider, no morador do “asfalto”, da “Area neutra”, que se sente quase que completamente desprotegido ~; 0 que ha 6, ao menos em parte, simplesmente uma nova ordem. Por outro lado, os beneficios acima relatados séo apenas um dos lados da moeda, no se podendo, de toda maneira, negligenciar que, assim como as proprias favelas, também as relages entre “bandidos” e “trabalhadores” nao sao idénticas em todos os lugares e momentos. O paternalismo dos traficantes pode, de acordo com o local e a circunstancia, dar lugar a uma brutal tirania, onde casas de moradores so requisitadas por razdes estratégicas, os préprios traficantes se apossam de mulheres alheias, “toque de recolher’ e diversas proibigses sao ordenados. Isso parece ser sobretudo o caso quando, como tende a acontecer com freqiiéncia cada vez maior, as liderangas do trafico de uma dada favela nao possuem raizes no local. (A medida que as organizagées - particularmente o CV - se complexificam, torna-se menos raro que traficantes oriundos de outras favelas assumam 0 poder em uma determinada “comunidade”, por acordo ou mesmo pela forga, na esteira da decrescente coes&o do Comando Vermelho). Além do mais, durante as “guerras” entre grupos rivais, as incursées da policia e as chacinas promovidas por grupos de exterminio (como a de Vigério Geral, em 1993), sao amide inocentes, inclusive criangas, que acabam levando a pior, tombando em meio a tiroteios € execugdes sumérias. Este 6 0 elemento de desordem que telativiza, mesmo a escala da favela, a “ordem” representada pelos traficantes - uma “ordem”, por sinal, altamente instavel. As ponderagdes do paragrafo anterior limitam-se, de todo modo, aos impactos negativos mais brutais e evidentes da presenga dos traficantes para os moradores das favelas. Existem, porém, varios outros. Um deles é a asfixia das associagdes de moradores, que tendem a ser controladas ou influenciadas pelos traficantes. Nessa esteira elas podem perder legitimidade internamente a favela, ¢ certamente a perdem perante o Estado e outras instituigdes externas a favela (um exemplo sera fornecido mais a frente). Os lideres comunitarios normalmente nao tém outra alternativa a ndo ser se arranjar com os traficantes, procurando preservar um minimo de margem de manobra mas, ao mesmo tempo, reconhecendo tacitamente os traficantes como a verdadeira instancia deciséria no local, o que implica em ter de notificar antecipadamente e mesmo pedir autorizacéo dos 1074 traficantes para a condugo de varias atividades. Implica, também, em ter de aceitar que 0s traficantes se utilizem da associagéo como fachada ou ponto de apoio logistico (telefones etc.). Como jé ocorreu diversas vezes, lideres que ndo esto dispostos a se submeter a isso so destituidos do cargo, expulsos da favela e mesmo assassinados. A presenga do trafico pode, além do mais, ter varios reflexos negativos sobre a vida de relagdes e até sobre a paisagem: o “abandono” da Mangueira apés fevereiro de 1994 serve como uma ilustragdo bastante didatica. Um tal exemplo mostra as implicagdes profundas do trafico de drogas - que representa, reportando- se a terminologia habermasiana, uma instancia sistémica ilegal''® enquanto economia da droga e poder paralelo - em termos da agressdo a um Lebenswelt favelado, disseminando o medo e a desconfianga (expressos pela “lei do siléncio” que vigora entre os favelados), minando a possibilidade de comportamentos individuais mais soltos e iniciativas comunitdrias mais espontaneas. Todos os aspectos negativos - violéncia, asfixia das associagdes de moradores, agressdo e “colonizagéo” do Lebenswelt - acima referidos confluem para um grande impacto: o bloqueio do desenvolvimento sécio-espacial, problema que parece se manifestar de modo particularmente nitido a propésito do desatio da urbanizagao das favelas. E mais do que evidente que a urbanizacao, tradicional bandeira do movimento favelado e geoestratégia apoiada pelas forgas progressistas e a intelectualidade critica em geral, nao esgota a questao da justiga social para os moradores de favelas; afinal, nenhuma urbanizagéo pode propriamente elevar o padrao de vida dos individuos, gerando renda. No entanto, por propiciar uma melhoria da qualidade de vida no local de moradia, uma urbanizagao, desde que abrangente, tecnicamente bem executada e conduzida no contexto de uma verdadeira participagéo dos moradores na tomada de decisées, pode representar um consideravel avango em matéria de desenvolvimento sécio-espacial. A questéo & que as perspectivas de uma auténtica urbanizagao ficam, devido a territorializagao de um numero crescente de favelas pelo trafico de drogas, comprometidas: se, de uma parte, os prdprios traficantes, assumindo fungSes que caberiam ao Estado, se encarregam de apoiar ou implementar melhorias pontuais no local, fica contudo dificil imaginar como eles poderiam incentivar ou admitir uma urbanizagéo completa, que subvertesse grande parte da estrutura espacial da favela, com conseqliéncias de alcance esiratégico. Especialmente perniciosa para os interesses dos traficantes deve ser a remodelacdo da estrutura de circulagdo interna a favela, aprimorando-se a estrutura vidria através da pavimentagao convencional das vias e o alargamento de muitas delas; esta medida, de largo alcance em termos de qualidade de vida por facilitar a circulagao dos moradores, contribuir para uma melhor drenagem superficial das Aguas pluviais e permitir, em muitos casos, 0 acesso de viaturas como 0 tratorzinho de coleta de lixo ou a ambulancia até pontos antes s6 acessiveis a pé, viria também facilitar 0 acesso e a mobilidade das forgas da ordem (policia, Exército) e, por extensdo, o controle e uma eventual invaso da favela.'"? Ademais “8 HABERMAS (1988) apresenta, no contexto de sua teoria do agir comunicativo, os dois conceitos basicos de sistema (de agSes sociais) e Lebensweit (‘mundo da vida’), que correspondem a dois componentes fundamentais da dindmica das sociedades modemas. O Lebenswelt abarca a cultura, as normas de conduta ética, os cédigos de integragdo e socializagao e as identidades individuals. Perante este Lebenswelt, no qual ‘operam os mecanismos de integragao social, autonomizam-se, em meio a um processo de racionalizago da sociedade, os mecanismos de integragao sistémica - troca econdmica (cujo locus & 0 mercado) e poder (especificamente enquanto Estado). "19 Neste sentido, um programa como o Favela-Bairro Popular, proposto pelo Grupo Executivo de Assentamentos Populares (GEAP) da Prefeitura do Rio de Janeiro em 1075 disso, na medida em que a enorme caréncia dos moradores é uma fonte de poder para os traficantes locais, que assim podem exercer sua tutela paternalista por meio de beneficios pontuais, melhorias significativas da qualidade de vida dos moradores devem, se redundarem em uma presumivel redugao de dependéncia, néo ser bem vistas pelos traficantes. Last, but not least: uma “urbanizagao” sem participagdo livre de todos os envolvidos na tomada de decisées nao 6 exatamente o que se poderia chamar de um modelo, por ser anti-democrdtica e nao ter efeitos pedagégico- ‘comunitarios positives - e nao ha divida de que as organizagées do trafico, ao cooptarem, eliminarem ou “fabricarem” liderangas comunitarias, o que leva a deslegitimagao das associagbes de moradores, tém contribuido para restringir as possibilidades de um planejamento participativo digno desse nome.'*° Isso significa que, aos tradicionais fatores de bloqueio de programas de urbanizagao de favelas {interesse do capital imobiliério e dos moradores de bairros nobres em remover as favelas neles situadas, reacionarismo do Estado, escassez de recursos etc.), mais ou menos efetivos conforme a conjuntura politica e a situag&io econémica, vem se somar agora mais um fator, desta feita (em principio) endégeno a propria favela. Concluséo Retorne-se, agora, 4 pergunta formulada na introdugéio, e que constitui a preocupagdo central das pesquisas do autor: pode o comércio ilegal de téxicos, no nosso contexto cultural, politico e econdmico, contribuir para desordenar/reordenar (parcialmente) a sociedade e a organizagdo territorial & escala da cidade/metrépole @ mesmo na escala nacional e, simultaneamente, bloquear um verdadeiro desenvolvimento sécio-espacial nas favelas? A pergunta contém duas subquest6es, as quais foram tratadas de maneira especifica: 0 desordenamento/ reordenamento da sociedade na escala da cidade sobretudo na segdo 2., e o bloqueio do desenvolvimento sécio-espacial nas favelas na seo 3. No tocante & questéo da contribuigdo do tréfico de téxicos para o desordenamento/reordenamento parcial da sociedade e da organizacdo territorial na escala local, o presente estudo trouxe alguns subsidios importantes para uma resposta afirmativa a pergunta; j& a abordagem direta da problemética a nivel nacional, teve, infelizmente, de ser deixada de lado neste trabalho sobre o Rio de Janeiro. O exame da situagao da metrépole carioca, com destaque para 0 processo de fragmentacdio do tecido sécio-politico-espacial, decerto foi, todavia, eloqdente o bastante para nao deixar duvidas de que o crime organizado tem ajudado a gerar 1993 com 0s objetivos de “complementar (ou construit) a estrutura urbana principal {saneamento @ democratizagao de acessos)" @ “oferecer condigdes ambientais de leitura a favela como baitro da cidade” (GEAP, 1993), significa, independentemente de quaisquer limitagdes que o programa venha a apresentar, mexer em casa de marimbondos. © problema do enfraquecimento e da perda de representatividade das associagdes de moradores de favelas foi levantado explicitamente pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) em sua quinta consulta A Prefeitura do Rio de Janeiro a propésito de pedir esclarecimentos sobre 0 contetido do edital do concurso de selecdo de técnicos e detalhes da condugéo do programa Favela-Bairro (IAB, 1994): “E amplamente sabido que qualquer projeto de interferéncia legal no cotidiano de uma favela na cidade do Rio de Janeiro, seja até para a implantagdo de beneticios que resultem em melhorias da qualidade de vida para a populagdo local, tem que levar em consideragao, primordialmente, 0 contexto das intrincadas relagdes sociais mantidas pelos moradores com 0 narcotréfico (grifo do \AB]. Como fendmeno social, 0 narcotrafico apresenta caracteristica de um poder paralelo que interfere e até pode descaracterizar a representagao comunitéria legitima”. 1076 mudangas profundas na sociedade e na dindmica territorial do Rio de Janeiro: da “mutagao antropolégica” do carioca, referente & formagéio de uma “cultura do medo”, até a consolidag&o de enclaves territoriais (especialmente favelas) controlados por organizagées de traficantes, passando pelas questdées da corrup¢ao policial e politica. Quanto A subquestdo a propésito do bloqueio do desenvolvimento sécio- espacial nas favelas, a resposta, apés a consideragdo dos diversos aspectos apresentados, 6 igualmente positiva. A dominagdo localmente exercida pelos traficantes de favela - que na verdade s&o apenas o brago mais pobre do trafico - possui conseqiiéncias sérias em termos de bloqueio do desenvolvimento. Da forma como 0 autor vem buscando reconceitualizar 0 desenvolvimento, com base na idéia de autonomia, a tutela asfixiante praticada pelos traficantes sobre os moradores das favelas 6, nitidamente, um fator enormemente inibidor e negativo. As dificuldades postas para programas de urbanizagdo sao um aspecto importante nesse contexto, mas varios outros, mais cotidianos, como a castragao da liberdade do moradores e especialmente o encolhimento ou Supresséio do espago politico das associagdes ‘so elementos de um processo de transformagao das condigdes de vida nas favelas do Rio de Janeiro, onde uma “subcultura da violéncia” se aprofunda e faz ‘contraponto com a “cultura do medo” que toma conta dos moradores do “asfalto”. Os traficantes de téxicos emergem, na andlise contida neste trabalho, de um modo diferenciado: nem como monstros absolutos - todo-poderosos, desprovidos de dimensdo humana e desvinculados do universo causal da pobreza -, nem como benfeitores absolutos das favelas, Robin Hoods ou mesmo “socialistas”. Se, a escala da cidade/metrépole, a negatividade do trafico de drogas aparece de modo mais direto, também para a maioria da populagdo favelada o tréfico acarreta diversos prejuizos, ao inibir avangos sécio-politicos e conquistas em termos de desenvolvimento sécio-espacial em geral; isto é um fato, ainda que alguns beneficios limitados que o negocio das drogas traz para essa populagdio ou parte dela exijam uma interpretagao que va além da visdo simplista de uma “vitimizagao” dos favelados, sem contudo resvalar para preconceitos conservadores e dentincias igualmente simplistas da “cumplicidade” entre traficantes e moradores comuns. A imagem diferenciada aqui transmitida do relacionamento entre “bandidos” e “trabalhadores” das favelas do Rio de Janeiro forga, por fim, a conclusdo estratégica de que, a despeito das conseqiéncias negativas da presenga do crime organizado para a populagéo favelada, o enfrentamento do problema nao deve jamais se restringir & mera repressdo, uma vez esta nao pode suprimir o contexto de pobreza, segregagao, frustragéio e revolta no qual se enraiza e do qual se alimenta 0 trafico de drogas. Bibliografia CASTORIADIS, Cornelius (1983): Introdugao: socialismo e sociedade auténoma. In: Socialismo ou barbarie. O contetido do socialismo. S&o Paulo, Brasiliense GEAP (Grupo Executivo de Assentamentos Populares) (1993): Bases da politica habitacional da cidade do Rio de Janeiro. Mimeo. GOUESET, Vincent (1992): Limpact du “narcotrafic” 4 Médellin. Cahiers des Ameriques Latines, n.° 13. Paris HABERMAS, Jirgen (1988): Theorie des kommunikativen Handeins, Frankfurt, Suhrkamp (2 vols.) IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) (1994): Concurso Favela-Bairro - Consulta n.° Mimeo. 1077 LIMA, William da Silva (1991): Quatrocentos contra um. Uma historia do Comando Vermelho. Petrépolis, Vozes, 2.* ed. PERLMAN, Janice (1981/1976): O mito da marginalidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra SOUZA, Marcelo José Lopes de (1993a): Armut, sozialrdumliche Segregation und sozialer Konflikt in der Metropolitanregion von Rio de Janeiro. Ein Beitrag zur Analyse der “Stadtfrage” in Brasilien. Tubingen, Selbstverlag des Geographischen Instituts der Universitat Tabingen (1993b): “Miseropolizagao” e “clima de guerra civil”: sobre o agravamento e ‘as condigdes de superagao da “questo urbana” na metropole do Rio de Janeiro. Anais do 3° Simpésio Nacional de Geografia Urbana, Rio de Janeiro (1994a): Rio de Janeiro - Causas e perspectivas da crise. Principios, n° 32. ‘SAo Paulo (1994b): Funcionalidade e disfuncionalidade das metrépoles para o desenvolvimento brasileiro. 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