Você está na página 1de 58
(U0 HNN |LHOS DAGUA 2554703 Vi s6 lagrimas e a lagrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tan- tas lagrimas, que eu me perguntei se minha me tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E s6 entao compreendi. Minha mae trazia, serenamente em si, aguas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mae era cor de OLHOS D’AGUA. Aguas de Mamae Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superficie. Sim, aguas de Mamae Oxum. ogbo MINISTEMO BA GUETURA ‘dt Igualdede Racial. union BIBLIOTECA NACIONAL, CONCEIGAO EVARISTO hhaseeu muma faveta da zona sul de Belo Hartonte. Teve que concitiar as esti dos com o trabaiho come empregada ‘em 1971, ica, até cancluir 0 curso Norm 0625 anos. Murdau-se entio para ¢ Riode Janeiro, onde passou num ‘concurso piiblice para.o magl esttidow Letras nia UFR, Na década de 1980, entrowem contato com o Grupo Quilonrisheje. Estreou na literatura em 1980, com obras publicadlas na série Cadernas Negros, publicada pela arganieagie E Mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, ¢ Doutora em Lites Comparada peta Universidade Fe Fluminense, Suas obras, em especial o romance Ponefa Viegncto, de 2003, abe temas como a discriminagao de género edectasse. A obra foi traduzida para o inglés e publicada nos Estados Unidos em 2007, Se OLHOS D’AGUA Conceicaio Evaristo Conceigao Evaristo DLHOS D’'AGUA cm, Copyright @2014 Gancelgdo Evarsio ae SE BRASIL Presi a pen residdocia da epbicn ra Rowan sepa de Pots Bem e ‘uate Bacal — SEPPMUPR into Ctra Mora Supity putas worvoma, Fans else rin rman ro navodawit ——suasiame rth ‘Dieter Executes Produgso wus Mim Lewin Area Bias tote Cabri cei detsinctsiongis ayo Santer Gonndomibnindetsiontt® capa dagen Manele So tna beat lec Ea Ona is Ao pe. ‘Grund irs Kool Mine ali, pare am Sent de i ve thrmagio ds le ons devel a pen S270. ‘or pe sass Ard dem gan Pens “ceo esrb Paes ene aaron spud pe ug co denen sone pea ena pea ie pa ide orm en CaPVRRASIL EATALOGACAD-RA-FONTE 1 eta mts Fata sec cna Tha FAQ) ehcicaicincemen temps peeeetoe PAULAS USSpisiamacimae Sumario freee} Introdupso, 13 Porter Were} feWrrtergrt|Monin tein) to i feria) G-cooper de Cida, 65 Pees Wrrerthe er eterno te as cal Pit oeaa eee etcst Osamores de Kimbé, 87 pate) PU amen) na fa Agente Pvpocr ee Vervgr ms caerecoesn oO prerkcto “Minha mde sempre costurou a vida com fios de ferro.” |As palavras acima, de uma personagern do conto “A Gente ‘combinames de no morter’, constituem contundente -epigrafe para um comentario sobre Othos d°dgua, esta nova colegio de contos de Conceigo Evaristo, Trata-se de fra- se-chave que enfeixa o turbilhiao de questaes sociais € exis- tenciais recorrentes na escrita da autora, a presidir sua cons- ‘rugdo ficcional e a reiterar sua unidade tematica, Como antes em sua obra ficcional, poética, ensaistica, ‘Conceigao ajusta o foco se seu interesse na populagao afto- -brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violéneia urbana que a acometem; "Ulimamente na favela tiroteios aeanteciam com frequéncia ¢ # qualquer hora”, le mos em "Zaita esqueceu de guardat os brinquedos", Sem sentimentalismos facilitadores, mas sempre incar- porando a tessitura pottica a fixgao, 03 contes de Concti- eoyex! GAO EVARISHO do Evarlsto apresentam uma significativa galeria de mu: theres - Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querenga, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zafta, Ou serio todas a mesma mulher, captada recriada no caleidoseéplo da literatura, em variados instantineos da vida? Diferem elas em idade € em conjunturas de experiéncias mas compartilham da mes- ma vida de ferro, equilibrando-se na “frdgil vara" que, lemos no conto“O Cooper de Cida", é a “corda bamba do tempo”. Na verdade, essa mulher de multas faces € emblemética de milhdes de brasileizas na sociedade de exclusOes que é a nossa, Frégil vara, corda bamba, flos de ferro, ferro de pas- sar, a danga das metéforas as enlaga e retronstrdi a vida de pessoas despossuidas a qual expressa, apesar de tudo, uma vitalidade propria que o texto de Conceigio insiste em cele- rar; “Era tudo to doce, tao gozo, tio dor!" sintetiza "Ana Davenga”. Os contos, assim, equilibram-se entre a afirma- cdo ea negacdo, entre a dentincia e a-celebragdo da vida, en- tre o nascimento e a morte: “Brevemente iria parir um filo. ‘Um filho que fora cancebido nos Frageis limites da vida e da morte." (*Quantos filhos Natalina teve2")- No livro esto presentes mies, multas mies. E também filhas, avés, amantes, homens ¢ mulheres ~ todos evoca- dos em seus vinculos ¢ dilemas soclais, sexuais, existencials, ‘numa plutalidade e vulnerabilidade que constituem a hue mana condigio, Sem qualsquer idealizacdes, sie aqui recrla- das com firmeza ¢ talento as dutas condigGes enfrentadas pela comunidade afro-brasileira. ‘A abrangéncia de tal problemdtica ultrapassa, decerto, ‘0 mundo gro, assim como transcende o dia de hoje. Os contos, sempre fincades no fugilio presente, abarcam 0 pas- sado e interrogam 0 futuro. Sintomaticamente, so muitos € diversos ¢s velhos e as ctlangas que os habitam. O pasado @ inevitavel mente implacvel, o futuro, em geral duvidoso, certas vezes inexoravelmente negado, & 0 caso, por exem- PReFAcio plo, do pivete Lumbia, ou do menino Lixo, nos contos que levam os seus nomes: “E [Lixo] fol se encolhendo, se en- roscando até ganhar a posicio de feto”. A forca simbdlica de tal regressio fisica e emocional é de uma sintese irrepardvel. Em.sew percurse, 0 livro, além de mundo de mulheres ede meninos, incorpora homens como protagonistas (Quimbé, Ardoca), cuja perspectiva, acastonalmente, passaa comandar anarragao. Ousodizerqueo fluxo narrativoatingeoseuclimax no ja citado “A gente cambinamos de néo morrer” em que, pela primeira vez, diversas: nareadores encaminham a ago. Fragmenta-se uma univocidade feminina, por mals dispersa -e miiltipla que esta {a fosse. A par disso, constata-se, mum ‘crescendo, um estihagar ficclonal que 0 texto assume ao reduplicar a precariedade de seus personagens, para quem "4s vezes a morte é Jeve como poeira, Ea vida se confunde ‘com um p6 branco qualquer". O conto implode a sua pré- ppria técnica narrativa, Em um verdadelro avesso de apoteo- se, 0 texto ficcional, paradigmatico da sociedade, também se pulveriza: “Aiguém cantou a pedra e o segrede foi rompi- do, A desgraga vaza dos poros da tetra. O mundo explode. Seres de mil mdos agarram tudo. Nada escapa.” Atencio, leitor. com voeé, é conosea, ¢ com todos, que aqui se Fala. Mas a positividade textual prevalece, apesar de tudo. Uma positividade em que escrever é, certamente, “uma maneira de sangrar’; mas também de invocar e evocar vidas costura- das “com fios de ferro” — porém aqui preservadas com a per sistente costura dos fios da ficcéo, em que também se almeja se combina, incansavelmente, no decerto a imortalidade, ‘masa tenaz vitérla humana, a cada geracéo, sobre a morte. Heloisa Toller Gomes Introdugdo ‘A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (to- dos tem), Mas um contexte desfavervel, um cenirio de dis- ceriminagdes, as estatisticas que demonstram pobreza, babxa escolaridade, subempregos, violagdes de direitos humanos, traduzem histérias de dot. Quem nao ve? Parcelas da sociedade estao-dizendo para woot que este 0 cenario. As leituras que se faz dele tra possibilidades em ex- ‘tremos: pode se ver tantoa mulher destituida, vivendo olimt- te do ser-quenfo-pade-ser, inferiorizada, apequenada, violen- tada. Pode-se ver também aquela que nada, buscando formas de surfar na correnteza. A que inventa jeitos de sobrevivencia, para si, para a familia, para a comunidade. Pode-se ver a que é derrotada, expurgada. Mas, se prestar um pouco maisatencéo, val ver outra, Val ver Caliban (0 escravo de Sheakespeare em A Tempestade) atualizado, vivo, pujante. Aquele que aprendea lingua do senhor e constréi a tiberdade de maldizer! EONCEIGAD EUARISTO ‘Ao subverter a lingua de Prospero — 0 homem branco —, Caliban — a mulher negra — abre caminho para a liber~ dade. Radicaliza © jogo. Expde as regras do jogo que joga: conta © segredia, Descortina o mistério. ‘Aqui, instala-se a cultura de arkié atualizada, como €x- pressou Muniz Sodré. Atesta-se a presenca ¢ o poder de uma tradigao viva. ‘Neste livro encontrei outra vez Calibas ocupado em mut- tas subversées. Era lyaledé, a que fala pelas mutheres que no podem falar, contando, dizendo, amaldigoando. Era ‘Oxum, as portas da casa de Oxala, amaldig¢oando a pobreza a injustiga que recaia sobre as mulheres. E crescende em forga e poder, transformando-se na dona de toda a riqueza. £ assim que as mulheres, nds mulheres negras, buseasttos formas de ser no mundo. De contar o munde come forma de apropriarmo-nos dele. De nomeé-lo, De nomimo, 0 axé, a palavra que movimenta a existéncia. # assim que Conceigo Evaristo inventa este mundo que existe. De Ana Davenga, Marla, Duzt-Querenga, Natalina, Salinda, Luamanda, Cida, Zaita, Malta. E desses meninos/ homens perdidos, herdeiros de mies sem nome, heransa que as mulheres deixaram e que minguém quis receber. Sao ‘histérias duras de demrota, de morte, machucados. Sao his- +érias que insistem em dizer 0 que tantos no querem dizer. 0 mundo que € dito existe, Suas regras, explicitas. © lugar de mero ouvinte & desautorizado. Nesta literatu- ra/cultura, a palavea que é dita reivindica © corpo presen- te.O que quer dizer aco. ‘ConceicHo, lyalode, canta sua cantiga. Conta, Propaga oaxé. Aqui, onvida-nos a cantar com ela. Fazer existir outro:mundo. Eu agradeco Jeena Werneck Olhos d’agua ‘Uma noite, ha anos, acordei bruscamente ¢ uma estra- mha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mie? Atordoada, custei reconhecer squarto-da nova casa em eu que estava morando ¢ nao con- segula me lembrar de como havia chegado até ali. E a insis- tente pergunta martelando, martelanda. De que cor eram 5 alhos de minha mae? Aquela indagasao havia surgide hha dias, ha meses, posso dizer, Entre um afazer ¢ outro, cu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mie, E 0 que a principio tinha sida um mero pensamento interogativo, naquela noite se transformou em uma do- lorosa pergunta carregada de um tom acusativo. Entiio eu no sabia de que cor eram 0s olhos de minha mie? CONCEIGAO EVARISTO Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas proprias dificuldades, crescl répido, pas: sando por uma breve adolesctncla, Sempre ao lado de mi- nha mde, aprendi a conhect-la. Decifrava o seu silencio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer, em scus gestos, preniincios de possivels alegrias. Naquole mo- mento, entretante, me descobria chefa de culpa, por no recordar de que cor serlam os seus olhos. Eu achava tudo ‘muito estranho, pois me lembrava nitidamente de varios ‘detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo smin- dinhe do pé esquerdo... da verruga que se perdia no miele uma cabeleira crespa e bela... Umt dia, brincando de pentear bhoneca, alegria que a mae nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, @ passa-passa das roupagens alheias e se tomava uma grande boneca negea para as filhas, descobrlmos uma bolinha escondida bem no couro cabelu- do dela. Pensamos que fosse carrapato, A mie cochilava € uma de minhas irmas, aflita, querendo livrar a boneca-mae daquele padecer, puxou rapido o bichinho. A mae e nds ti- ‘mos ¢ rimios ¢ rimos de nosso engano. A mae riu tanto, das lagritias escorrerem. Mas de que cor eram os olhos dela? Fu me Jembrava também de algumas histérias da infén- de minha mie. Ela havis nascido em um lugar perdido no interior de Minas. All, as criangas andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que 0s seios comegavarit & brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. As veees, a8 historias da Infancia de minha mie confundiam-se com as de minha propria infincia. Lembro-me de que muitas ve- zes, quando a mae cozinhava, da panela subia cheiro sl- gum. Fra como se cozinhasse, ali, apenas 0 nasso desespe- rado desejo de alimento. As labaredas, sob a agua solitaria ‘que fervia na panela chela de fame, pareciam debachar do vazio do nosso estomago, Ignorando nossas bocas infantis ‘em que as linguas brincavam a salivar sonho de comida, E tee ‘era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento {que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasides a brin- cadeira preferida era aquela em que a mae era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu frono, um pequeno ban- quinho de madelra. Felizes, colhfamos flores cultivadas em um pequeno pedago de terra que circundava 0 nosso barsa- co. As flores eram depois solenemente distribvuiclas por seus cabelas, beagos € colo, E diante dela faziamos reverénetas 2 Senhora. Postivamos deitadas no chia e batfamos cabega para a Rainha. Nos, princesas, em volta dela, cantévamos, dangivamos, sorriamos. A mie s6 ria de urna maneira triste © com um sortiso molhado... Mas de que cor eram 05 olhos de minha mae? Eu sabia, desde aquela época, que a-m Inventava esse e outros jogs para distrair a nossa fome. Ea nossa fome se distrafa. As veres, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do temps, ela se sentava na solelra da porta ¢, jun- tas, ficdvamos contemplando as artes das nuvens no céu Umas viravam carneitinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormeeidas, e havia aquelas que eram sa muvens, algodo doce. A mae, entio, espichava 0 brago, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhes e enfiava répido na boea de cada uma de nds. Tudo tinha de ser mui- to rapido, antes quea nuvem derretesse ¢ com ela 0s nassos somhos se esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mae? Lembro-me ainda do temor de minha mie nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agatrada a nds, ela nos protegia com seu abrago. E com os olhos alagados de pran- tos balbuciava rezas a Santa Barbara, temendo que 0 nosso {fragil barraco desabasse sobre nds. E eu no sei se o lamen- to-pranto de minha mae, se © barulho da chuva... Sel que tudo me causava a sensagao de que a nossa casa balangava ao vento, Nesses momentos os olhos de minha mae se con cOnergAO EVARIETO fundiam com os olhos da natureza, Chevia, choraval Cho- rava, chovial Entdo, por qué eu ndo conseguia lembrar a cor sos olhos dela? E naquela noite a pergunta continuava me atormentan- do, Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saira de minha casa em busca de melhor condigdo de vida para mim e para minha familia: ela e minhas irmés tinham ficado para tras. Mas eu nunca esquecera a minha mae. Re- conhecia a importéncia dela na minha vida, nao s6 dela, mas de minhas tias ¢ de todas as mulheres de minha fa- milia, E também, ja naquela época, eu entoava cantos de Iouvor a todas nossas ancestrais, que desde 2 Africa vinham arando-a terra da vida com as suas préprias maos, palavras ¢ sangue. Nao, eu no esquego essas Senhoras, nossas Yabis, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mie? £ foi entao que, tomada pelo desespero por nfo me le brar de que cor seriam os ofhos de minha mie, naquele mo- mento resolvi deixar tudo ¢, no dia seguinte, voltar a cidade em que nascl. Eu precisava buscar 0 roste de minha mae, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor ide seus olhos. Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita, Vivia a sensagio de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixas deveria sex descoberta da cor dos olhos de minha mae, E quando, apés longos dias de viagem para chegar 4 mi nha terra, pude contemplar extasiada os alhos de minha mie, sabem 0 que vi? Sabem @ que vi? Vis6 ligtimas ¢ ligrimas. Entretanto, ela sorria feliz, Mas cram tantas lagrimas, que eu me perguntei se minha mae tinha olhos ou los catrdalosos sobre a face. E:s6 entao com preendi. Minha mae trazia, serenamente em si, guas cor- rentezas. Por isso, prantos< prantos a enfeitar 0 seu rosto, A cor dos olhos de minha mae era cor de olhos d’agua. Aguas. ibe ‘ounos o'Kaua dle Mamie Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superficie, Sim, Aguas de Mamae Oxum. Abracei a mie, encostel meu rosto no dela © pedi prote- ‘slo, Senti as légrimas delas se misturarem as minhas. Hoje, quando jé alcancel a cor dos olhos de minha mae, tento descobrir a cor dos othos de minha filha. Fago a brin- cadeira em que 0s olhos de uma se tomam o espelho para ‘os olhos da outra. E um dia desses me surpreend! com um, gesto de minha menina. Quando nés duas estévamos nesse tloce jogo, ela tecou suavemente no meu rosta, me contem- plando intensamente, E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas téo baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, au como estivesse buscando e encontrando a revelagae de um mistério ou de um grande sepredo. Eu eseutei quando, sussurrando, minha filha falou: — Mie, qual ¢ a cor tio timida de seus olhos? Ana Davenga ‘As batidas na porta ecoaram como um prentincio de samba. © coragao de Ana Davenga naquela quase meia-noite, tao aMlito, apaziguou um pouco. Tudo era paz entao, uma relat- ‘ya paz, Deu um salto da cama ¢ abriu a porta. Todos entra- fam, menos 0 seu. Os homens cercaram Ana Davenga. As mulheres, ouvindo 0 movimento vindo do barraco de Ana, foram também. De zepente, naquele mindsculo espago cou- be o mundo, Ana Davenga reconhecera a batida. Ela mio havia confundide a senha. © toque prendincio de samba ou le macumba estava a dizer que tudo estava bem. Tudo em paz, na medida do possivel. Um toque diferente, de batidas pressadas dizia de algo mau, ruim, danoso no ar. © toque que ela owvira antes nao prenunciava desgraga alguma. Se CONcEgKO evans era assim, onde andava o seu, j4 que os das outras estavam all? Por onde andava o seu homem? Por que Davenga nao cestava all? ‘Davenga ndo estava all. Os homens rodearam Ana com suldado, € as mulheres também. Era preciso cuidado. Da- venga era bom. Tinha um coragdo de Deus, mas, invacado, era 0 proprio diabo. Todos haviam aprendido a olhar Ana Davenga. Othavam a mulher buscando nao pereeber a vida © as delicias que expladiam por tado a seu corpo. ‘© barraco de Davenga era uma espécie de quartel-gene- ral, e cle cra o chefe. Ali se decidia tudo. No principio, os companhelros de Davenga olharam Ana com cidime, cobiga € descanfianca. 0 homem morava sovinho. Ali armava e confabulava com os outros todas as proczas, E de repente, ‘Sem consultar oS companheiros, mete ali dentro uma mu- ther. Pensaram em escolher outro cheft ¢ outre lecal para ‘quartel-general, mas no tiveram coragem. Depois de certo tempo, Davenga comunicou a todos que aquela mulher fi- carla com ele e nada mudaria. Ela era cega, surda © muda mo que se referia a assuntos deles. Ele, entretanto, queria dizer mais umta coisa: qualquer um que bulisse com ela ha- veria de moner sangrando. nas maos dele feito porco capa- do, Os amigos entenderam. E quando © desejo aflorava ao vishimbrar os peitos-macas salientes da mulher, algo como uma dor profunda doia nas partes de baixo deles. O desejo abalxava entio, esvanecenda, diluindo a possibilidade de execdo do prazer. E Ana passou a ser quase uma inma que povoava 0s sonhos incestuosos dos homens comparsas dos delitos ¢ dos crimes de Davenga. © peito de Ana Davenga doia de temor, Todos estavam ali, menos o dela. Os homens rodeavam Ana. E as mulhe- es, como se estivessem formando pares para uma danga, rodeavam seus companheiros, parando atris de seu homem certo. Ana olhou todos ¢ nao percebeu tristeza alguma, © ze AMA DAVEE, quie seria aquilo? Estariam guardando uma dor profunda e apenas mascarando 0 sofrimento para que ela niio sofresse? Seria alguma brincadetra de Davenga? Ele estarla escondido por ali? Nao! Davenga nao era homem de tais modost Ele até brincava, porém, s6 com os. companhelros. Assim mes- mo deuma brincadeira bruta, Socos, pontapés, safandes, ta- pas, “seus filhos da puta’... Mais parecia briga. Onde estava Davenga? Feria se metido em alguma confusao? Sim, seu ho- mem 36 tinha tamanho, No mais era crianga em tudo. Fazia ‘coisas que ela nem gostava de pensar. As vezes, ficava dias € las, meses até, foragido, e quando ela menos esperava dava ‘com ele dentro de casa. Pois é, Davenga parecia ter mesmo ‘© poder de se tornar invisivel. Um pouco que ela saia para buscar roupas no varal ou falar uri tantinho com as amigas, quando voltava dava com ele, deitado na cama. Nuzinho. Bonito o Davenga vestido com a pele que Deus lhe deu, Uma pele negra, esticada, lisinha, brilhasa. Ela mal fechava a por- ta ese abria todinha para o seu homem. Davenga! Davengal Lai acontecia o qué ela nfo entendia, Davenga que era tio ‘grande, #80 forte, mas tio menino, tinha prazer banhado ‘em lagrimas, Chorava feito crlanga. Solugava, umedecia ela toda, Seu reste, seu conpo ficavam timidos das Lagrimas de Davenga. f todas as vezes que ela via aquele homem no go- {20-pranto, sentia uma dor intensa. Fra como se Davenga ex tivesse sofrendo mesmo, ¢ fosse ela a culpada. Depols entéo, -0s dois ainda de corpos nus, ficavam ali. Ela enxugando as ligrimas dele. Era tudo tio doce, tao gozo, to dor! Um dia pensou em se negar para nao ver Davenga chorando tanto. Mas ele pedia, cagava, buscava. Nao restava nada a fazer, a hijo ser enxugar © go20-pranto de seu hemem ‘Todos continuavam parados olhando Ana Davenga, Ela recordou que uns tempos atras nenhum deles era amigo. Eram inimigos, quase. Eles detestavam Ana. Ela nao os ama- va nem os odiava, Ela nao sabia onde eles estavam na concEIGAD vais de Davenga. & quando percebeu, viu que nfo poderia ter por eles indiferenga, Teria de amé-los au odié-los. Optou por ama-las, entao, Foi dificil, Eles nao a queriam. Nao era do agrado de nenhum deles aquela mulher dentro do quar- tel-general do chefe, sabendo de todos os segredos, Acha- ‘vam que Davenga iria se dar mal e comprometer toda.o gru- po. Mas Davenga estava mesmo apaixonado pela mulher. ‘Quando Davenga conheceu Ana em uma roda de samba, cla estava ali, faceira, dancando macio. Davenga gostou dos. movimentos do corpo da mulher, Ela fazia um movimento bonite € ligeiro de bunda, Estava tio distraida na danca que nem percebeu Davenga olhando Insistentemente para cla. Naqueles dias, ele andava com temor no peito. Era preciso cuidado. Os homens estavam atris dele Tinha havido um assalte a um banco e 0 eaixa deserevera alguém parecido com ele. A policia {4 tinha subido 0 morro ¢ entrado em seu barraco varias vezes. O pior é que ele nao estava metico naquela merda, Seria burro de assaltar um banco all mesmo no balrro, tao perto dele? Fazia os seus servigos mais longe, € além do mais nao gostava de assaltos a bancos. Ja até par- ra de alguns, mas achava o servicinho sem graca. Nao dava tempo de ver as feigées das vitimas. © que ele gostava mesmo era de ver 0 medo, otemor, o pavor nas fei¢des e mo- dos das pessoas. Quanto mais forte 0 sujeito, melhor. Ado- rava ver 05 chefdes, os mandachuvas se cagando de medo, feito aquele deputado que ele assaltou um dia, Foi a maior comédia, Ficou na ronda perto da casa do homem. Quando ‘ele chegou e saltou do carta, Davenga se aproximou, —Pols é, doutor, a vida ndo té fcil! Ainda bem que tem homem li em cima come-o senhor defendendo a gente, 05 pobres. — Era mentira, — Doutor, eu votel no senhor. — Era mentiva também. — Endo me atrependi. Veio visitar a familia? Eu também tou indo ver a minha € quets levar uns presentinhos. Quero chegar bem-vestido, camo o-senhor. 246 ‘© bomem nao deu trabalho algum, Pressentiu a arma que Davenga nem tinha sacado ainda. E quando isto acon- teceu, 0 préprio deputado jé tinha adiantado @ servico en- tregando tudo, Davenga olhou a rua, Tudo ermo, tudo escu- fo, Madrugada e fio, Mandou que o homem abrisse 0 carro ‘© pedit as ehaves, O deputado tremia, as chaves tilintavam em suas mos. Davenga mardeu o labio, contendo o riso. Olhou o politica bem no fundo das olhos, mandou entao que ele tirasse a roupae foi recolhendo tudo. — Nao, doutor, a cueca mio! Sua cueca néo! Sei li seo senhor tem alguma doenga ou se ti com o cu sujo! ‘Quando arrecadou tudo, empurtou o homem para den- tro do carro, Olhou para ele € balancou as chaves. Deu um adeusao deputado, que correspondeu ao gesto. Davenga ti- inha.o peito explodindo em gargalhadas, mas conteve 0 riso. Apertou © passo, tinha de abreviar Eram trés e quinze da madnegada, Dai a pouco passaria por ali uma patrulhinha. Dias atrds ele hnavia estuclado o ambiente, oi por aqueles dias do assalto ao deputado que Davenga conheceu Ana. A venda do relégio the havia rendido algum dinheiro, fora o que estava na cartelra, E de cabega leve re- solveu ir com os amigos para © samba. Sabla, porém, que devia ficaratento. Estava atento, sim. Estava atento 20s mo- vimentos e a danga da mulher. Ela Ihe lembrava uma baila- tina nua, tal qual a que ele vira um dia no filme da televisda. Abailarina dangava livre, solta, na festa de uma aldeia afri- cana, Sé quando a bateria parou foi que Ana também parou © se eneaminhou com as outras para o banhelro, Davenga ‘ssistia a tudo. Na volta ela passou por ele, olhou-o deu- Ihe um largo sorriso. Ele criow coragem, Era preciso coragem, pita chegar a unia mulher. Mais coragem até do que para fazer um servigo, Aproximou-s¢ ¢ convidou-a para uma cer- Veja. Ela agradeceu. Estava com sede, queria Agua ¢ deu-Ihe lum sorriso mais profundo ainda. Davenga se emocionou. 225.

Você também pode gostar