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he Oe maine oi AMARA MUNICIPAL ett e Se BE aa CROMELEQUE DOS ALMENDRES UM DOs PRIMEIROS GRANDES MONUMENTOS PUBLICOS DA HUMANIDADE MArio VarELA GomEs* Descoberta e trabalhos arqueolégicos monumento megalitico comummente denominado Cromeleque dos Almendres situa-se proximo do cimo de uma encosta suave, voltada a nascente, com 413m de altitude, a 1250m a sudoeste do monte dos Almendres, na freguesia de Guadalupe, ¢ a cerca de 12Kms a poente de Evora. Inicialmente constituido por mais de uma centena de monélitos é, na sua forma actual, o resultado de uma longa evolugdo funcional e construtiva processada a partir dos finais do VI milénio, ou dos inicios do seguinte, desenvolvendo-se até comegos do III milénio a.C.. Ela reflecte as transformagées econdmicas, sociais ¢ ideolégicas entdo ocorridas, 4 qual também nao sio estranhas alteragdes provocadas pelos agentes meteéricos ou por acgao antrépica ulterior, Apesar de se encontrar numa regio onde hi muito eram conhecidos numerosos testemunhos funeririos do complexo cultural megalitico, somente em 1964, aquando dos trabalhos de campo da Carta Geolégica de Portugal, o micro-topénimo Alto das Talhas conduziu Henrique Leonor Pina a descobrir 0 maior conjunto de menires estruturados da Peninsula Ibérica ¢ um dos mais importantes da Europa. Aquele arquedlogo procedeu, depois da limpeza da densa vegetagiio que cobria o local, a algumas sondagens, nomeadamente na extremidade poente do monumento, tendo entio recolhido fragmentos de cermica e ‘um machado de pedra polida. Tais materiais encontram-se, ainda, inéditos, tendo sido somente publicada aplanta do recinto ¢ algumas fotografias do mesmo, tal como um menir decorado, com possiveis, * Academia Portuguesa da His ALMENDRES~MENIRES 72, 80,88 ia ¢ Instituto Oriental da Universidade Nova de Lisboa 25 representagées solares, identificado em 1996, ¢ um outro ostentando covinhas (Pina, 1971; 1976). Osestudos sobre este arqueossitio foram por nds retomados de Outubro a Dezembro de 1986, efectuando- outra campanha entre Fevereiro de 1989 e Janeiro de 1990, sendo continuados nos finais de 1995. Os mesmos foram subsidiados pela Camara Municipal de Evora, designadamente através do Programa Life, e pelo Instituto Portugués do Patriménio Cultural, tendo-se contado, também, com os apoios do Servigo Regional de Arqueologia da Zona Sul (tanto através do seu primeiro director, 0 meu saudoso Amigo Doutor Caetano de Mello Beirdo, como do Dr. Antonio Carlos Silva), da Junta de Freguesia de Guadalupe e do Centro de Estratigrafia e Paleobiologia da Universidade Nova de Li Prof. Doutor Joao Pais, que procedeu a pesquisa e identificagao de pélens. As campanhas de trabalhos acima enunciadas tiveram como principais objectivos determinar a primitiva constituigo do monumento, sempre considerado como um recinto tinico e de forma eliptica, assim como reconhecer as suas principais fases evolutivas, integrando-as em termos cronolégicos € culturais. Para atingir tais propésitos deveriamos estudar a matéria-prima, forma ¢ implantagao dos monilitos existentes ¢ tentaraveriguar da conservagiio das estruturas de sustentago de outros desaparecidos, reconhecer os tipos de tais construgdes, a possivel ocorréncia de depésitos rituais, de oferendas ou de ‘outros materiais arqueologicos, assim como proceder a prospecgio sistematica, levantamento ¢ estudo dos menires decorados, A informagio obtida com os trabalhos referidos deveria ser utilizada na recuperac’ arquitectonica e integragiio paisagistica do monumento © Cromeleque dos Almendres foi classificado como Imével de Interesse Piblico, pelo Decreto- Lein® 735/74 de 21.12.1974. A propriedade onde se encontra pertence actualmente ao Senhor José Manuel Neves Rufino ¢ a zona envolvente do monumento foi cedida & autarquia eborense para uso piiblico. sboa, na pessoa do fio ierea do Cromeleque dos Almendres Aarquitectura } O recinto dos Almendres foi erguido em zona de terrenos pouco espessos, assentes em substrato de gnaisses granitéides. A cerca de 250m encontra-se um afloramento de quartzodioritos Porfirdides, de gro grosseiro a médio, que pode ter sido utilizado no talhe de alguns dos seus mondlitos, a 1Km, para nascente, desenvolve-se extensa bancada de rochas eruptivas, composta sobretudo Por quartzodioritos e granodioritos que, igualmente, poder ter colmatado a necessidades de grandes blocos para o talhe de outros menires constituintes domonumento. De facto, aqueles elementos foram esculpidos nio sé em diferentes tipos de quartzodioritos, evidenciando origens distintas, como oferecem formas e dimensdes muito dispares, Assim, ali foram utilizados desde pequenos blocos rudemente afeicoados, sub-paralelepipédicos, subcilindricos ou ovdides, a outros maiores, atingindo cerca de trés metros de altura, de forma cilindrica e de aspecto filico ou estelar. Asestruturas de sustentagdo dos menires investigados ofereceram diferente constituigaio, podendo classificar-se em quatro tipos essenciais O primeito, comum aos grandes monélitos, mostra fossa aberta no substrato rochoso, pouco maior que 0 topo do volume da extremidade proximal do meni, tendo-se colocado pedras & sua volta, em cunha, de modo a preencher os espacos deixados vazios, consolidando-se 0 conjunto com coroa de blocos imbricados, de diferentes dimensdes mas onde os maiores ocupam evidente importincia estrutural, depois coberta por terra ¢ pedras mitidas. Todavia, observmos menires de grandes dimensdes onde as coroas de grandes blocos sao inexistentes, tendo aquelas sido substituidas por pedras mitidas. O segundo tipo de estrutura de sustentagio mostra pequena fossa aberta na terra, quase nunca atingindo © substrato, sendo os monélitos sustentados por coroa de pedras mitidas. O terceiro tipo ndo oferecia fossa, sendo os menires, geralmente de dimensées reduzidas, mantidos na vertical através de coroa litica constituida por elementos de pequena dimensdes mas com blocos maiores na periferia, por vezes formando uma espécie de tumulus, de forma oval, sobretudo em zonas onde o declive do terreno é mais acentuado. E possivel que aquelas estruturas nio fossem totalmente cobertas por terra ou, sendo-o, mostrariam certa elevagiio em relagio ao nivel do solo envolvente. Por fim, a quarta variante oferecia, apenas, algumas pedras servindo de calces a monélitos de pequenas dimensdes ¢ base aplanada, Dada a escassez de materiais utilizados na sua erecgdo ¢ a auséncia de fossas tornou-se extremamente dificil, ou até, impossivel, reconhecer a localizago da totalidade dos elementos desaparecidos. Os dados obtidos através da escavagao ¢ da anilise do monumento, assim como do espolio recolhido, permitiram concluir que aquele é, essencialmente, constituido por dois recintos erguidos em Spocas distintas, geminados ¢ ambos orientados segundo as direcgSes equinociais, ou seja nascente- -poente. Orecinto mais antigo, que atribuimos a fase avangada do Neolitico Antigo hoje muito alterado, era formado por trés circulos concéntricos definidos por pequenos mondlitos. O circulo maior mede 18,80m de didmetro e menor 11,40m. Conserva vinte ¢ dois menires in sitt, dois tombados, tendo-se identificado restos das estruturas de sustentagao de cinco outros. 2z Aspecto da eseavagio Aspecto da escavagio Adarenones Imediatamente e a poente daquele recinto foi construido e a ele adossado , algumas centenas de anos depois, provavelmente ja durante 0 Neolitico Médio, um segundo recinto, com duas elipses concéntricas e irregulares, formadas por menires de grandes dimensdes. Estes foram afeigoados em rochas de caracteristicas diferentes dos pequenos mondlitos do recinto primitivo, sendo possivel que alguns elementos daquela construgio mais antiga tenham sido entio reutilizados. A clipse exterior mede 43,60m segundo o eixo maior ¢ 32,00m no eixo menor. Ali contimos vinte © nove menires erguidos in situ, dezassete tombados in loco e onze restos de estruturas de sustentagao de mondlitos desaparecidos. Mais tarde, durante 0 Neolitico Final, ambas estruturas sofreram alteragdes, tendo-se transformado 6 recinto mais antigo em uma espécie de dtrio que ientaria a entrada no maior e solenizaria os rituais iosos nele praticados, para o que tera contribuido a sua localizag’o em zona de cota inferior E possivel que ao longo daquele periodo se tenham erguido outros menires no interior do recinto maior e transformado em estelas certos mondlitos, da aplanagdo parcial, de modo a criar uma face depois decorada através de relevos ou de gravuras. Asassinaliveis dimensdes da forma final do monumento de Almendres ¢ a sua localizagio, atingindo a extremidade poente do recinto maior 0 cimo de importante relevo, de onde se desfruta vasta panoramica, monumentalizaria a prdpria paisagem, servindo esta de cenario as actividades rituais nele desenvolvidas. Este aspecto, decorrente da evolugio cultural, enquadra-se na fase mais evoluida das sociedades construtoras de grandes estruturas funerdrias que habitaram a mesma regitio durante 0 Neolitico Final 05 Almendres - Menir Cromeleque dos Almendres 29 M56 Os menires decorados Detectou-seuma dezena demondlitos que exibem, relevos ou gravuras, dos quais quatro mostram, apenas, ccovinhas, em dois deles nos topos (menires Se 13). O menir 64, situado a cerca de cinco met- ros do centro do recinto maior apresenta, no lado voltado a poente, um grupo de gravuras em forma de raquetas e de circulos. Noextremo sul do cixo menor daquele mesmo recinto encontra-se 0 menir 48, onde se reconhece um conjunto de gravuras, constituido por pequena figura antropomérfica esquematica, rodeada por circulos e associada a representagiio de “biculo”. Nacextremidade oposta do eixo mencionado observam-se, no menir 58, as gravuras descobertas em 1966, onde se identificam tés possiveis figuragdes de discos solares, as quais se associam linhas onduladas verticais, representando 0s raios. Esta composigao € semelhante tanto & do segundo periodo das gravuras da estela-menir da Caparrosa (Tondela), na Beira Alta, como a da peniiltima fase da decoragio do menir de Vale de Rodrigo, situado no longe dos Almendres. ‘A poente do mondlito referido encontra-se ‘© menir 57, onde em uma face, propositadamente aplanada, se observam treze figuragdes de“biculos” em tamanho natural e em relevo. As imagens de “baculos”, que igualmente descobrimos em muitos outros menires do Alentejo e até em um do Algarve, figuram possiveis objectos de prestigio social, construidos em materiais pereciveis ¢ também reproduzidosem xisto, Estes io caractersticos dos espolios finerrios da fase evoluida do megalitismo alto-alentejano, Aliés,um dosbiculos do menir 57, onde ‘ocupa lugar central na superficie decorada, com a extremidade proximal curva, encontra apenas paralelo em artefacto procedente de um déimen do vizinho concelho de Montemor-0-Novo (Herdade das Antas). Naquela mesma regio a denominada Anta Grande da Comenda da Igreja, contendo “baculos” de xisto, possui uma datago absoluta, por termoluminescéncia, de 3235 + 310a.C. (Whittle e Amaud, 1975, 7) Ainda a poente do mondlito antes citado observam-se, gravados no topo da face aplanada do menir 56, uma forma rectangular com pequeno circulo decada lado,a que se associa, na base, uma outra lunular, ‘Trata-se de composieiio antropomérfica que permite conferir ao mondlito a categoria de estitua-menir. 30 ‘Uma outra figura sub-rectangular, em relevo, encontra-se no centro do topo da face aplanada do meni 76, a que se juntam algumas linhas incisas onduladas, oferecendo idéntico caricter antropomérfico. ‘As decoragdes dos menires 56 ¢ 76 parecem repetir a exibida por mondlitos do Cromeleque da Portela de Mogos. Encontram-se paralelos na Bretanha para o raro reportério iconogrifico detectado no menir 64, cesignadamente no d6lmen II de Petit Mont, também ali se registando, em diferentes monumentos, figuracdes de“baculos”, que permite supor um fenémeno de difusio artistica e ideol6gica que abrangeu diferentes pontos da fachada atlintica da Europa, durante © Neolitico Médio e Final. Pelo contrrio, as gravuras do menir 58 dos Almendres, com soliformes, devem corresponder 4.um momento final do Neolitico ou jé ao Calcolitico, quando naquela regidio se fizeram sentir os estimulos culturais das primeiras comunidades produtoras de artefactos de cobre. Estas cram portadoras de nova superstrutura religiosa, centrada em uma super-divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares -a “grande deusa-mde mediterranica” - presente em diversos objectos com fungaio magico- religiosa. O espélio Tal como previamos, os materiais arqueolégicos exumados no monumento dos Almendres nio sio abundantes. Contudo, eles oferecem importantes informagSes que permitem melhor compreender as fungdes e evolugao daquela construgio. Os utensilios liticos melhor representados sto os percutores/moventes, de quartzo ou granito, por certo com funges mialtiplas,podendo servir no afeigoamento e regularizagiio das superficies dos menires como na farinago de cereais e, talvez, de alguns frutos. Elementos dormentes de més, de gnaisse, e alguns moventes, foram detectados nas estruturas de sustentagio de seis mondlitos. Trata-se de aspecto, por certo ritual, que tinhamos evidenciado na escavacio de algus menires do Algarve (Amantes, Padrio, Courela do Castanheiro). Um machado de dolerito, polido somente no volume distal, tem 0 gume exausto devido, possivelmente, a ter trabalhado contra pedra, talvez mesmo como percutor. Também recolhemos “incisores”, frustemente afeicoados a partir de seixos de quartzo, com as extremidades apontadas esgotadas, em consequéncia do seu uso na realizagio de gravut Ascerimicas, em geral pequenos fragmentos, distribuiam-se de modo irregular na drea ocupada pelo monumento. Uma zona com maior concentrago de tais testemunhos correspondia ao recinto ‘mais antigo, ali se tendo exumado dois fragmentos decorados por tragos incisos paralelos, que devem ser correlacionados com os encontrados a 100m a nascente, no local onde pensamos ter sido o assentamento dos construtores daquela estrutura, Estes enquadram-se nos tipos que tém vindo a ser atribuidos 20 Neolitico Antigo, dos finais do VI e inicios do V milénio a.C. Outros fragmentos de tagas hemisféricas, de um recipiente esférico ¢ de vasos sub-estéricos ou alongados, mostram afinidades com as cerimicas provenientes dos sepulcros megaliticos da regio. Prof, Jodo Pais, da U.N.L, procedeu a identificagao palinolégica em terras pertencentes estruturas de sustentagdio dos menires 51, 52 e 56. Apenas a amostra recolhida sob o menir $2 ofereceu algum material floristico, escasso e pouco representativo. Conforme relatério daquele investigador, “Pinus e Cistus constituem as formas mais abundantes. Seguem-se-lhe Quercus, Briofitas € Polypodiaceae. No conjunto, os elementos palinolégicos sugerem a existéncia de floresta mista de pinheiros e de Quercus. O estrato arbustivo era dominado por Cistus, acompanhado por algumas Ericaceae. A presenca, mesmo rara, de Salix, Hex e Hedera indicam a existéncia de locais frescos, relativamente hiimidos, talvez na proximidade de um curso de dgua. As bridfitas e os fetc (Polypodiaceae) apontam no mesmo sentido e sugerem, mesmo, locais sombrios e bastante htimidos”. 3l Dormente de mo (menir $2) Conclusées © Cromeleque dos Almendres constituiu, por certo, uma construgaio de caricter plurifuncional, verdadeiro monumento, criado segundo projecto preciso e propésitos objectives, capaz de organizar, durante cerca de dois milénios, o espago em termos fisicos e psicolégicos, estruturando, como “lugar central”, o territorio em seu redor. Ele foi, também, local de agregago e coesio social, dado até o esforgo desenvolvido na sua edificagdo, e simbolo da autoridade politico-religiosa, no seio das populagdes de economia agro-pastoril e semi-némadas que habitaram aquela regitio. Em termos mais especiticos, é possivel que a sua forma e composigio sejam reflexo de fiungdes ligadas com as observagées ¢ previsdes astrais, como com priticas propiciatérias da fecundidade, em geral, conforme demonstram tanto o falimorfismo de alguns menires como as suas decoragdes. De igual modo, a deposicdo de elementos de més, nomeadamente de dormentes, em cinco estruturas de sustentagiio de menires do recinto maior, deve conotar-se com aquelas fungées, tornados simbolos da abundancia e fertilidade da terra, ligando a vertente econémica e a mégico-religiosa. Tal comportamento encontra, conforme antes referimos, paralelos em outros menires do Sul de Portugal. Aqueles artefactos, ligados a importante actividade produtiva secundaria, passaram a assumir significado simbélico e caracter votivo, sendo colocados com as superficies de trabalho contra os menites. Importa relacionar este aspecto com a utilizagzio, em Cegonhas (Idanha-a-Nova), de uma md como menir, suportado por bem estruturada coroa litica com fungdes que ultrapassam a finalidade estitica. Ela dava forma a “transformacdo qualitativa de um artefacto tecnémico em ideotéenico isto &, segundo Binford (1962, 218, 219) perdendo o seu contexto funcional primério para reflectir a componente ideolégica do sistema social” (Cardoso, Gomes , Caninas e Henriques, 1995, 12) O monumento de Almendres foi desactivado durante 0 Calcolitico, tendo sido, entao, muitos dos seus menires bojardados, fracturados ou derrubados, designadamente os decorados. E excepgiio 0 menir 58, cuja iconografia atribuimos, exactamente, is primeiras sociedades de metalurgistas. Estas foram responsaveis por fortes influxos ideolégicos de origem meridional ¢ mediterriinica que “destronaram”’ a antiga cultura megalitica de componente atliintica. Aos grandes délmenes construidos com pesados mondlitos sucederam-se tholoi erguidas com elementos de pequenas dimensdes ¢ os antigos simbolos masculinos, como os menires filicos, da sociedade pastoril e semi-némada, tribo- -patriarcal, foram substituidos pelas representagdes femininas da deusa - mie , comum a todas as comunidades, sedentirias ¢ agricolas, mediterrinicas. 32

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