Você está na página 1de 152
Sergei Eisenstein O Sentido do Filme Apresentagéo, notas e revisio técnica: José Carlos Avellar Tradugio: Teresa Ottoni Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Titulo original: The Fil Sense Copyright © 1947, 1942 by Harcourt Brace Jovanovich, Ine. Copyright renewed 1975, 1970 by Jay Leyda Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc Copyright © 2002 da edigao em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México, 31 sobreloja 2031-144 Rio de Janeiro, RJ tel: (21) 2240-0226 J fax: (21) 2262-5123 e-mail: jze@zahar.com.br www.zahar.com.br “Todos os direitos reservados. A reprodusio nio-autorizada desta publicagio, no todo ou em parte, constitui violagio de direitos autorais, (Lei 9.610/98) Capa: Sérgio Campante Primeira edigio em lingua portuguesa: 1990 Os editores agradecem a Fundagio do Cinema Brasileito e, em especial, sua Diretoria Técnica, representada por Ana Pessoa, pela reprodugio forografica das cenas dos filmes de Eisenstein utilizadas na edigio brasileira de A forma do filme e O sentido do filme. Os editores agradecem também & Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Ric A greve, O encouracado Potemkin e Outubro para que as reprodugbes fossem feitas diretamente dos fotogramas desses filmes de Janciro por ter cedido edpias dos filmes Alexander Nevsky, Reprodugio dos fotogramas feita no Laboratério da Fundasio do Cinema Brasileiro por José de Almeida Mauro. CIP- Brasil, catalogagio-na-fonte cional dos Editores de Livros, RJ. £37s sentido do filme revisio técnica, José Carlos Avelar, tradug: Rio de Janciro: jorge Zahar Ed., 2002 ib; enstein; apresentacio, notas € , Teresa Ortoni. — ‘Tradugio de: The film sense Anexos ISBN 85-7110-107-8 1. Cinema ~ Estética, I. Avellar, José Carlos, 1936-, I] Titulo. DD 791.4301 02-1642 CDU 791.43, Sumario INTRODUGAO: Seria impossivel viver, por José Carlos Avellar ... . . - 9 Palavraeimagem see eee ooo ie Sincronizagio dossentidos... 2... eee eee ol Core significado... ...... noe oce ooo or bee 77 Forma e contetido: pratica. 2... bee 108 NOTABIOGRAFICA . oo ee dooce 147 FILMOGRAFIA. 2. oa ee 149 SUGESTOES DE LEITURA . bee » 183 Textos de Eisenstein . oe 2 153 Textos sobre Eisenstein. 2... vee ) 154 INDICE DENOMESEASSUNTOS «2-0 ee ee 155 As notas ao final de cada capftulo assinaladas com as iniciais N.S-E. so originais de Sergei Eisenstein. Apesar de o autor ser da profissio e saber tudo aquilo que a experién- cia, com a ajuda de muita reflexio, pode ensinar, nao se debrugaré tanto quanto se poderia pensar sobre esta facera da arte que, para muitos artistas mediocres, parece constituir a arte em seu rodo, mas 4 dando a sensagio de invadir 0 dominio dos criticos das questdes estéticas, gente que, sem sem a qual a arte no existiria. Com isso, est duvida, acha a experiéncia desnecesséria para ascenderem & anélise especulativa das artes. ratard mais de questées filosoficas do que técnicas. Isto pode parecer singular num pintor que escreve sobre arte: muitos semi-eru ditos se dedicaram a filosofia da arte. Parece que consideravam sua profunda ignorancia das questées técn convencidos de que a preocupagio com esse aspecto tio vital para qualquer arte privava os artistas profissionais da especulagio estética. cas um titulo a ser respeitado, Parece até que imaginaram que uma profunda ignordncia das questées técnicas era uma razo a mais para se clevarem is considera Ges estritamente metafisicas; em suma, que a preocupaga a impede os artistas profissionais de ascenderem a alturas proi- 0 com a técr bidas para os que nao pertencem aos campos da estética ¢ da pura especulacio. Eugene Delacroix Journal, 13 de janeiro de 1857 INTRODUGAO Seria impossivel viver José Carlos Avellar A idéia deste livro surgiu em agosto de 1941. Eisenstein, entéo ainda em Moscou (em outubro ele € todo pessoal da Mosfilm seriam transferidos para Alma-Ata), enviou um telegrama a Jay Leyda, em Nova York, perguntando se ele conseguiria nos Estados Unidos a edicao de um livro com Montagem 1938 ¢ outros artigos no conhecidos fora da Unio Soviética. Pouco depois do telegrama, uma carta. Nela, 05 textos e uma indicaao da ordem em que deveriam ser publicados — primeiro Montagem 1938, depois as trés partes de Montagem vertical; também nela, as fotos de Alexander Nevsky para as ilustragdes ¢ uma observagio quanto & tradugio do primeiro capitulo — deveria ser consultada a versio de Montagem 1938 publicada em Life and Letters Today, de Londres, porque para esta revista ele selecionara especialmente exemplos de poemas escritos em inglés. Jay Leyda, que na década de 1930 estudara cinema com Eisenstein em Moscou e fora seu assistente de diregio no interrompido O prado de Bejin, conta como tudo aconteceu em Eisenstein at Work, livro que escreveu com Zina Voynow, publicado em 1982 pela Pantheon Books ¢ pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. O sentido do filme ficou pronto em agosto de 1942, ¢ Eisenstein recebeu o seu exemplar no dia em que comemorava 45 anos, em 23 de janeiro de 1943. Ele preparava entio a filmagem da primeira parte de va, 0 Terrivel, que comecaria em abril. Contente com o livro, escreve a Leyda dizendo que gostara de tudo, a comegar pela capa, amarelo e preto, como a capa de uma histéria de detetive, com um retrato dele com um sorriso de Giocondo, uma expresso meio irénica, um tipo de face daquele usado para ilustrar algo como “ele sabe tudo sobre o seu futuro”, ou como um livro sobre hipnotismo. A foto, diz Eisenstein, fora tirada no México. Ele tinha na mao direita, erguida até a altura do ombro, uma caveira de agticar, das usadas nas festas do dia dos mortos. Cortada a caveira 0 que ficou foi aquele sorriso de Giocondo. “Wonderful. Splen- did”, comentou para Leyda. O sentido do filme foi o primeiro livro a reunir textos de Eisenstein. Foi também o tinico de seus livros publicados enquanto ele vivia. Pouco depois da edigao norte-americana veio a inglesa, que ficou pronta no comego de 1943, ¢ para ela Eisenstein escreveu um prefacio que jamais chegou as mios do editor. Ele se encontrava entao em Alma-Ata. O texto — Seria impossivel viver — foi escrito ¢ enviado para Londres em outubro de 1942, mas se extraviou 10 O sentido do filme por causa da guerra, Parte deste preficio foi retomada pelo autor ¢ citada no quarto capitulo de A natureza nao indiferente, escrito em 1945. Nele, Eisenstein conta como em outubro de 1941 deixou Moscou, entio bombardeada pelos nazistas, a0 lado de outros cineastas soviéticos, em diregio a Alma-Ata — doze dias ¢ doze noites num trem, espécie de nova arca de Noé no meio do diliivio da guerta. Diz como encontrar Alma-Ata no mapa, tragando com a ponta do dedo uma linha que vai do Sul da [ndia para o alto, parando na fronteira asidtica do Sul da Unio Soviética. Diz que ali, tao longe, to na retaguarda, seria vergonhoso trabalhar € criar, seria imposstvel viver, se ndo estivessem todos conscientes das misses que deveriam desempenhar durante a guerra: primeiro, disparar filmes e filmes contra © inimigo, aplicando com o cinema golpes tio devastadores quanto os de um tanque ou de um avido; segundo, preservar a cultura cinematografica da onda de destruigao fascista. Diz mais, que as enormes montanhas cobertas de neve contra o céu azul de Alma-Ata convidam a meditagao; que observar a neve na montanha desloca o pensamento do caos daquele instante de guerra para a arte ea cultura que virdo depois de terminada a loucura; que quem luta longe do front tem como misao analisar 0 passado para preparar o futuro; lembra que o fim da Primeira Guerra Mundial trouxe um inesperado florescimento da cultura, ¢ que 0 periodo entre as duas guerras foi, mais do que qualquer outra coisa, a era do triunfo do cinema; diz que neste mesmo perfodo as outras artes se langaram febrilmente no caminho da desintegragio ¢ da desagregagao da forma, da imagem e do pensamen- to; que em nenhum outro momento da histéria as artes viveram semelhante impasse; que depois de atingir os mais altos pontos de seu desenvolvimento a arte subitamente despencou até chegar ao grau zero; ¢ que s6 0 cinema, porque é a mais jovem das artes, porque partiu exatamente da desintegragdo em que as outras artes encalharam, s6 o cinema soube resistir & tempestade de desagregacao. Corta entio 0 seu texto com uma frase solta: Aarte & 0 mais senstvel dos sismégrafos. E retoma a conversa dizendo que o impasse tragico em que as artes se encon- travam nos tiltimos anos antes da Segunda Guerra refletia com precisao 0 grau de tensio ¢ as contradigGes dilacerantes em que o mundo se encontrava, contradigées que finalmente explodiram numa carnificina de proporgdes jamais vistas até entio, de proporgies dificeis de estabelecer quando observadas dali, daquele momento, de outubro de 1942. Diz nao ter diividas da vitéria sobre as trevas, mas que nao era possivel ainda determinar o que 0 mundo teria de suportar até a vit6ria e depois dela. Relembra a histéria de Arquimedes, que teria gritado para os soldados roma- nos que invadiram sua casa para massacré-lo “no toquem nos meus desenhos”, ¢ diz que todos deveriam gritar um grito semelhante para salvar os filmes ¢ as reflexdes de toda a gente que trabalha em cinema; ¢ que era por isso, que era como um grito, que cle publicava entao, no meio da guerra, esta coletinea de artigos que examinam o pasado e se voltam para o futuro da montagem, que foi de certo modo Seria impossivel viver " acoluna vertebral da estilistica do cinema soviético até ento. Nos uiltimos anos, diz em seguida, esta linha foi mais ou menos apagada, a montagem deixou de ser 0 meio mais largamente usado nos filmes soviéticos, 0 que, sem duvida, historica- mente, nao foi simples obra do acaso. Explica que nos textos de O sentido do filme procura demonstrar que a montagem é uma propriedade orginica de todas as artes. E que, estudando a histéria dos aumentos e diminuigdes de intensidade do uso da montagem através da histéria das artes, chegou & concluséo de que a importincia do método e da estrutura de montagem diminui invariavelmente em épocas de estabilizacao social, em épocas em que as artes se dedicam antes de qualquer outra coisa a refletir a realidade. E que inversamente, nos perfodos de uma intromissio ativa no desmonte, reorganizagio ¢ reestruturacéo da realidade, nos petfodos de uma reconstrugio ativa da vida, a montagem ganha entre os métodos de construgao da arte uma importancia ¢ uma intensidade que nao cessam de crescer. Eo primeiro livro a reunir artigos de Eisenstein. Foi o tinico que ele chegou a ver publicado. ‘Na carta que enderecou a Jay Leyda com os textos ¢ a indicagéo da ordem em que cles deveriam ser publicados, Eisenstein cita outros artigos que terminava de escrever entio, agosto-setembro de 1941: um texto sobre El Greco, a versio inglexa de um artigo sobre Griffith, partes iniciais de um futuro livro sobre a histéria da idéia do primeiro plano, projeto que nao chegou a terminar. O artigo sobre El Greco, El Greco y el cine, foi posteriormente integrado 4 coletinea Cinematisme: 0 artigo sobre Griffith, Dickens, Griffith e nds foi posteriormente integrado & segunda coletanea de textos de Eisenstein. A forma do filme, editado em 1949, primeiro nos Estados Unidos, logo depois na Inglaterra, a partir de uma selegio de artigos feita pelo autor no final da década de 1930 e revista em 1947, um ano antes de sua morte, época em que trabalhava num outro projeto de livro: A natureza nao indiferente, mais ou menos organizado de acordo com o projeto original e divulga- do em francés ¢ inglés a partir de 1978. E bem af, no final deste ensaio, quando diz que nao indiferente nao é tanto a natureza que nos cerca mas sim a nossa prépria natureza, a natureza humana que jamais indiferente mas sim apaixonada, ativa ¢ criativamente investiga e reconstréi o mundo, bem af nesta frase € que quase se pode resumir a energia de Eisenstein (igual a m de montagem e cde velocidade da luz, ou de cinema ao quadrado, o que existe nos filmes, ¢ o que existe também em todas as outras artes). Energia nao indiferente que se espalha igual em seus textos € em seus filmes, que contagia o leitor ¢ o espectador a ponto de fazer presente pelo menos por um instante, pelo menos como sensagéo que brilha o tempo de um relimpago, pelo menos como coisa sentida como um sonho, sé no consciente, pelo menos como sentimento que mal se traduz em razio, que sem o cinema seria imposstvel viver. |. Palavra e imagem! Cada palavra foi permeada, como cada imagem foi transformada, pela intensidade da imaginago de um, ato criativo instigante. “Pense bem’, diz Abt Vogler sobre o milagre andlogo do misico: Pense bem: cada tom de nossa escala em si é nada; Estd em toda parte do mundo — alto, suave, ¢ tudo estd dito; Dé-me, para usé-lo! ewo misturo com mais dois em meu pensamento; Eis ai! Voces viram e ouviram: pensem ecurvem a cabeca! Dé a Coleridge uma palavra vivida de alguma antiga narrativa; deixe-o misturd-la a outras duas em seu pen- samento; e entio (traduzindo termos musicais para termos literdrios), “a partir de trés sons ele formard no um quarto som, mas uma estrela.” JOHN LIVINGSTONE LOWES” Houve um periodo do cinema soviético em que se proclamava que a montagem era “cudo”, Agora estamos no final de um perfodo no qual a montagem foi considerada como “nada”, Considerando a montagem nem como nada, nem como tudo, acho oportuno neste momento lembrar que a montagem € um componente tio indi pensdvel da produgio cinematogréfica quanto qualquer outro elemento eficaz. do cinema. Depois da tempestade “a favor da montagem” ¢ da batalha “contra a montage”, devemos voltar a abordar esse problema com a maior simplicidade. Isto é ainda mais necessétio quando se considera que, no perfodo de “negasao” da montagem, seu aspecto mais inquestiondvel, 0 tinico elemento realmente imune ao desafio, também foi repudiado. A questo é que os criadores de numerosos filmes, nos tiltimos anos, “descartaram” a montagem a tal ponto que esqueceram até de seu objetivo ¢ fungio fundamentais: o papel que toda obra de arte se impie, a necessi- dade da exposigio coerente e orgnica do tema, do material, da trama, da acdo, do movimento interno da seqiiéncia cinematografica ¢ de sua ago dramética como 13 14 O sentido do filme um todo. Sem falar no aspecto emocional da hist6ria, ou mesmo de sua Iégica e continuidade, o simples ato de narrar uma histéria coesa foi freqiientemente omi- tido nas obras de alguns proeminentes mestres do cinema, que realizam vérios géneros de filme. O que precisamos, claro, é nao tanto da critica individual desses mestres, mas basicamente de um esforgo organizado para recuperar o exercicio da montagem, que tantos abandonaram. Isto € ainda mais necessdrio a partir do momento em que nossos filmes enfrentam a misséo de apresentar nao apenas uma narrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha o mdximo de emogao € de vigor estimulante. ‘A montagem é uma poderosa ajuda na solugio desta tarefa. Afinal, por que usamos a montagem? Mesmo o mais fandtico inimigo da montagem concordard que no a usamos apenas porque o rolo de filme & nossa disposiggo nao tem um comprimento infinito ¢, conseqiientemente, condenados a trabalhar com pedagos de comprimento restrito, temos de colocé-los ocasional- mente. Os “esquerdistas” da montagem esto no extremo oposto. Ao brincar com pedagos de filme, descobriram uma propriedade do brinquedo que os deixou aténitos por muitos anos. Esta propriedade consiste no fato de que dois pedagos de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposi¢ao. Esta nao é, de modo algum, uma caracte- ristica peculiar do cinema, mas um fendmeno encontrado sempre que lidamos com a justaposicao de dois fatos, dois fendmenos, dois objetos. Estamos acostumados a fazer, quase que automaticamente, uma s{ntese dedutiva definida e ébvia quando quaisquer objetos isolados séo colocados A nossa frente lado a lado. Por exemplo, tomemos um timulo, justaposto a uma mulher de luto chorando ao lado, € dificilmente alguém deixard de concluir: uma vitiva. E exatamente neste aspecto da nossa percepgio que a seguinte minianedota de Ambrose Bierce bascia seu efeito. ‘Trata-se de: “A vitiva inconsolavel”, uma de suas Fébulas fantdsticas: Uma mulher de luto chorava sobre um timulo. “Acalme-se, minha senhora”, disse um estranho compassivo. “A misericérdia divina ¢ infinita. Em algum lugar hd um. outro homem, além de seu marido, com quem ainda poderd ser feliz.” “Havia”, ela solugou — “havia, mas este ¢ 0 seu imulo.” Todo o efeito da histéria é construfdo tendo por base o fato de que 0 tamulo ea mulher enlutada a seu lado levam 3 inferéncia, devido & convengio estabelecida, de que ela ¢ uma vitiva que chora o marido, quando na realidade o homem por quem chora ¢ seu amante. ‘A mesma circunstincia é freqtientemente encontrada em charadas — por exemplo, esta do folclore internacional: “O corvo voou enquanto um cachorro sentou-se em seu tabo. Como isso é possivel?” Automaticamente combinamos os Palavra e imagem 15 elementos justapostos ¢ os reduzimos a uma unidade. Como resultado, entende- mos a pergunta como se o cachorto estivesse sentado no rabo do corvo, quando na realidade a charada contém duas aces nao-relacionadas: 0 corvo voa, enquanto 0 cachorto senta-se em seu préprio rabo. Esta tendéncia a juntar numa unidade dois ou mais objetos ou qualidades independentes ¢ muito forte, mesmo no caso de palavras isoladas que caracterizam diferentes aspectos de um tinico fendmeno. Um exemplo extremo disso pode ser encontrado no inventor da “palavra portmanteau”, Lewis Carroll. A despretensiosa descrigao que fez de sua invengao, de “dois significados colocados em uma palavra, como se a palavra fosse uma mala portmanteau” * conclui a introdugao de seu A caca ao Snark (The Hunting of the Snark). Por exemplo, pegue duas palavras, “terrivel” © “horrivel”. Decida que diré as duas palavras, mas no decida qual dird primeiro. Agora abra a boca ¢ fale. Se seus pensamentos se inclinam mesmo sé um pouco em direcio a “terrivel”, vocé diré “terrivel-horrivel”; se eles se voltam, até devido a um golpe de ar, em diregio a “horrivel”, vocé diré “hortivel-terrivel”; mas se vocé tem 0 mais raro dos dons, uma mente perfeitamente equilibrada, dird “torrivel” > E claro que neste caso nfo ganhamos um novo conceito, ou uma nova qualidade. O encanto deste efeito “portmanteau” é construido com base na sensa- g40 de dualidade que existe na palavra formada arbitrariamente. Todo idioma tem seu profissional de “portmanteau” — o norte-americano tem seu Walter Winchell. Obviamente, a manipulagio méxima da palavra portmanteau & encontrada em Finnegans Wake. Por isso, 0 método de Carroll ¢ essencialmente uma parédia de um fendmeno natural, uma parte de nossa percepgao habitual — a formagio de unidades qualita- tivamente novas; em conseqiiéncia, é um método bisico para se obterem efeitos cémicos. Este efeito comico é conseguido através da percepgao tanto do novo resultado quanto de suas duas partes independentes — ao mesmo tempo. Os exemplos deste tipo de engenho s4o inumerdveis. Citarei aqui apenas trés exemplos que se podem encontrar em Freud: Durante a guerra entre a Turquia e 0s Estados balcdnicos, em 1912, Punch retratou 0 papel desempenhado pela Roménia (Roumania) representando-a como um ladrio de estrada assaltando membros da Alianga Balcanica. A caricatura foi intitulada: Klepto- roumania ‘A malicia européia rebatizou um ex-potentado, Leopold, de Cleopold, por causa de sua relagao com uma dama chamada Cleo... 16 O sentido do filme Num canto... um dos personagens, um “brincalhao”, fala da época do Natal como alcoholidays (férias alcodlicas). Por redugio, pode-se perceber facilmente que te- mos aqui uma palavra composta, uma combinagio de alcohol (Alcool) ¢ holidays (férias)...6 Acho evidente que 0 fendmeno que estamos discurindo esta mais do que difundido — ¢ literalmente universal. Por isso, nao hé nada de surpreendente no fato de uma platéia cinematografi- ca também fazer uma inferéncia precisa a partir da justaposicao de dois pedagos de filme colados. Certamente nao estamos criticando estes fatos, nem seu valor, nem sua uni- versalidade, mas apenas as falsas dedugdes ¢ conclusées a que deram origem. Com base nisso, serd possivel fazer as correcdes necessirias. De que omisséo fomos culpados quando destacamos pela primeira vez a indubité- vel importincia do fendmeno acima citado para a compreensio ¢ dominio da montagem? O que estava certo, ou errado, nas nossas entusidsticas declaragaes da época? O fato fundamental estava certo, permanece certo: a justaposigao de dois planos isolados através de sua unio nao parece a simples soma de um plano mais outro plano — mas 0 produto. Parece um produto — em vez de uma soma das partes — porque em toda justaposigio deste tipo o resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente. A esta altura, ninguém realmente ignora que quantidade e qualidade nao sio duas propriedades diferentes de um fenédmeno, mas apenas aspectos diferentes do mesmo fenémeno. Esta lei da fisica € verdadeira em outros campos da ciéncia e da arte. Entre os muitos campos em que pode ser aplicada, o uso feito pelo professor Koffka na esfera da psicologia comportamental tem relagdo com nossa discussio: J& foi dito: 0 todo é mais do que a soma de suas partes. E mais correto dizer que 0 todo €algo da soma de suas partes, porque a soma é um processo insignificante, enquanto a relagio todo-parte ¢ significativa.’ ‘A mulher, voltando ao nosso primeiro exemplo, € uma representagio, o luto que ela veste é uma representagio — isto é, ambos esto plasticamente representados. Mas “uma vitiva”, que surge da justaposigao de duas representagoes, nao é plastica- mente uma representagéo — mas uma nova idéia, um novo conceito, uma nova imagem. Qual foi a “distorgio” de nossa posigao, na época, com relagio a este fendme- no indiscut{vel? Palavra e imagem v7 O erro residiu no fato de ressaltarmos mais as possibilidades da justaposicao, enquanto parecfamos dar menor atengao ao problema da andlise do material justa- posto. Os que me criticaram apressaram-se em apresentar isso como uma falta de interesse pelo conterido dos fragmentos de montagem, confundindo o interesse de experimentador pela andlise de certo aspecto do problema com a atitude do préprio experimentador diante da realidade representada. Deixo-os com suas préprias consciéncias. O problema surgiu devido a minha atragao, antes de tudo, por aquele aspecto entéo recém-descoberto na jungéo de dois fragmentos de montagem de um filme, pelo fato de que — nao importa se eles nao sao relacionados entre si, € até freqiientemente a coisa se dé por causa disso mesmo — quando justapostos de acordo com a vontade do montador engendrarem “uma terceira coisa” e se torna- rem correlatos. Por isso, eu estava preocupado com uma potencialidade atipica da construcao ¢ composicao cinematogréficas normais. Trabalhando desde o infcio com este material ¢ esses fatos, era natural especu- lar principalmente sobre as potencialidades da justaposigao. Foi dada menor aten- gio & andlise da natureza real dos fragmentos justapostos. Tal atengio nao teria sido suficiente por si mesma. A histéria provou que este tipo de atengio, dirigida apenas ao contetido de planos isolados, na pritica levou 0 declinio da montagem ao nivel de “efeitos especiais”, “seqiiéncias de montagem”, etc., com todas as suas conse- qiténcias. Qual deveria ter sido a énfase correta, o que deveria ter recebido maior atengao, a fim de que nenhum elemento fosse indevidamente exagerado? Teria sido necessdrio voltar a base fundamental que determina igualmente tanto 0 contetido dos planos isolados quanto a justaposi¢éo compositiva dos con- tetidos independentes entre si, isto é, voltar ao contetido do todo, das necessidades ¢ unificadoras. Um extremo consistiu na falta de atencao quanto ao problema da técnica da unificagao (os métodos de montagem), 0 outro — na desatengio aos elementos unificados (0 contetido do plano). Deveriamos ter-nos preocupado mais em examinar a natureza do proprio principio unificador. Precisamente 0 principio que deveria determinar tanto o contetido do plano quanto o contetido revelado por uma determinada justaposigdo desses planos. Mas, com isso em mente, seria necessdrio que o interesse do pesquisador se voltasse basicamente ndo em diregdo aos casos paradoxais, nos quais o resultado global, geral e final nio € previsto, mas emerge inesperadamente. Deverfamos ter-nos voltado para os casos nos quais os planos nao sé estao relacionados entre si, mas nos quais este resultado final, geral, global nio é apenas previsto, mas predeter- gerais 18 O sentido do filme mina tanto os elementos individuais quanto as circunstancias de sua justaposigio. Casos como esses sfo normais, comumente aceitos ¢ ocorrem com freqiiéncia. Nestes casos, 0 todo emerge normalmente como “uma terceira coisa’. A imagem total do filme, determinada tanto pelo plano quanto pela montagem, também emerge, dando vida e diferenciando tanto 0 contetido do plano quanto o contetido da montagem. Casos assim é que sio tipicos da cinematografia. Com este critério de montagem, os planos isolados e sua justaposiczo atingem uma correta relagio mitua, Além disso, a propria natureza da montagem nao apenas deixa de se distanciar dos princ{pios do estilo cinematogréfico realista, mas funciona como um dos recursos mais coerentes e priticos para a narracao naturalis- tado contetido de um filme, © que esta compreensio da montagem implica essencialmente? Neste caso, cada fragmento de montagem jé nao existe mais como algo nao-relacionado, mas como uma dada representacio particular do tema geral, que penetra igualmente codos os fotogramas, A justaposicao desses detalhes parciais em uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participago ¢ que retine todos os detalhes num todo, isto é, naquela imagem generalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo espectador, apreende o tema. Se agora observamos dois fragmentos de filme reunidos, vemos sua justaposi- Gio sob uma luz bastante diferente. Ou sej Fragmento A (derivado dos elementos do tema em desenvolvimento) ¢ frag mento B (derivado da mesma fonte), em justaposigao, fazem surgit a imagem na qual o contetido do tema é corporificado da forma mais clara. No imperativo, com o objetivo de estabelecer uma formula de trabalho mais exata, esta proposigao soaria assim: A representagdo A ¢ a representagdo B devem ser selecionadas entre todos os aspectos possiveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua justaposi¢z@o — isto é, a justaposigao desses préprios elementos e nao de outros, alternativos — suscite na percep¢ao ¢ nos sentimentos do espectador a mais com- pleta imagem do préprio tema. Em nossa discussio sobre a montagem entraram dois novos termos: “repre- sentacio” e “imagem”. Quero definir a demarcagio entre eles antes de prosseguir- mos. Usaremos um exemplo para demonstragio. Tomemos um disco branco de tamanho médio e superficie lisa, dividido em 60 partes iguais. A cada cinco partes € colocado um ntimero na ordem consecutiva de 1a 12. No centro do disco séo fixadas duas varas de metal, que se movimentam livremente sobre sua extremidade fixa, pontu- Palavra e imagem 19 das nas extremidades livres, uma do tamanho do raio do disco, a outra um pouco mais curta, Deixemos a extremidade livre da vara pontuda mais longa marcar 0 niimero 12, a da mais curta, consecutivamente, apontar para os ntimeros 1, 2, 3€ assim por diante, até o ntimero 12. Isto implicard uma série de representagoes _geomdrricas de relagdes consecutivas das duas varas de metal, expressadas nas dimen- ses 30, 60, 90 graus, e assim por diante, até 360 graus. Porém, sc 0 disco dispuser de um mecanismo que movimenta uniformemente as varas metilicas, a figura geométrica formada em sua superficie adquire um significado especial. Agora nao € simplesmente uma representagdo, é uma imagem do tempo. Neste caso, a representagio ¢ a imagem que ela suscita em nossa percepsio esto téo completamente fundidas que apenas sob condiges especiais distinguimos a figura geométrica, formada pelos ponteiros do relégio, do conceito de tempo. Isto pode acontecer com qualquer um de nés, evidentemente que em circunstancias incomuns. Aconteceu com Vronsky depois que Ana Karenina Ihe contou que estava gravid Quando Vronsky olhou para seu relégio, na varanda dos Karenin, estava to preocu- pado, que olhou para os ponteiros no mostrador do telégio € nao viu as horas.® Neste caso, a imagem do tempo ctiada pelo reldgio nao surgiu. Ele viu apenas a representagio geométrica formada no mostrador pelos ponteiros do relégio. Como podemos ver, mesmo num exemplo tao simples, que diz respeito apenas ao tempo astronémico, & hora, a representacao formada no mostrador do relégio € insuficiente em si mesma, Nao é suficiente apenas ver — algo tem de acontecer com a representacao, algo mais tem de ser feito com ela, antes que deixe de ser percebida como apenas uma simples figura geométrica e se torne perceptivel como a imagem de uma “hora” particular na qual o acontecimento est ocorrendo. Tolstoi nos mostra o que acontece quando esse proceso nao ocorre. O que é esse processo exatamente? Uma determinada ordem de ponteiros no mostrador de um reldgio suscita um grupo de representagSes associadas a0 tempo, que corresponde & hora determinada. Suponhamos, por exemplo, que o ntimero seja cinco. Nossa imaginacio esté treinada para responder a este ntimero recordan- do cenas de todos os tipos de acontecimentos que ocorrem nesta hora. Talvez.o ché, 0 fim de uma jornada de trabalho, o comeso da hora do rush no metr6, talver lojas fechando as portas, ou a peculiar luminosidade do final da tarde... Em qualquer dos casos, automaticamente nos lembraremos de uma série de cenas (representagées) do que acontece as cinco horas. A imagem das cinco horas € composta de todas essas representagdes parti- culares. 20 O sentido do filme Esta é a seqiiéncia completa do processo, que ocorre deste modo na etapa de assimilagao das representagSes formadas pelos ntimeros que suscitam as imagens das horas do dia e da noite. Em seguida, as leis de economia da energia psiquica entram em funcionamen- to. Ocorre uma “condensagao” no interior do processo acima descrito: a cadeia de vinculos intermedidrios desaparece e se estabelece uma conexio instantinea entre 0 ntimero e nossa percepsao do tempo ao qual corresponde. O exemplo de Vronsky nos mostra que uma forte perturbacao mental pode destruir esta conexio, € a representaco ¢ a imagem se separam. Estamos discutindo aqui a apresentagao plena do processo que ocorre quando uma imagem é formada a partir de uma representagio, como descrito acima. Esta “mecinica” da formagio de uma imagem nos interessa porque os meca- nismos de sua formagio na realidade servem como protétipo do método de criagao de imagens pela arte. Recapitulando: entre a representagio de uma hora no mostrador de um relégio € nossa percepgio da imagem dessa hora, hd uma longa cadeia de repre- sentagGes vinculadas aos aspectos caracteristicos distintos dessa hora. E repetimo: o habito psicoldgico tende a reduzir esta cadeia intermediria a um minimo, a fim de que apenas 0 inicio ¢ o fim do processo sejam percebidos. Mas assim que precisamos, por qualquer razio, estabelecer as conexdes entre uma representagio ¢ a imagem a ser suscitada por ela na consciéncia ¢ nos senti- mentos, somos inevitavelmente impelidos a recorrer novamente a uma cadeia de representagoes intermedidrias que, juntas, formam a imagem. Consideremos primeiro um exemplo bem préximo daquele outro exemplo da vida cotidiana. Em Nova York, a maioria das ruas nado tem nome — Quinta Avenida, rua 42, ¢ assim por diante. Os estrangeiros acham este método de designagio de ruas extremamente dificil nos primeiros momentos. Estamos acostumados a ruas com homes, 0 que é muito facil para nés, porque cada nome imediatamente suscita uma imagem da rua determinada, isto ¢, quando vocé ouve 0 nome da rua, aparece um conjunto particular de sensagdes e, com ele, a imagem. ‘Achei muito dificil lembrar das imagens das ruas de Nova York e, conseqiien- temente, reconhecer as ruas, Suas designagdes, nimeros neutros como “42” ou “45”, nao produziam em minha mente imagens que concentrariam minha percep- G40 nos aspectos gerais de uma ou outra rua. Para produzir estas imagens, tive de colocar na meméria um conjunto de objetos caracteristicos de uma ou outra rua, um conjunto de objetos surgidos em minha consciéncia em resposta ao sinal “42”, ¢ bastante diferentes dos surgidos em resposta ao sinal “45”. Minha meméria reuniu os teatros, lojas edificios caracterfsticos de cada uma das ruas que tinha de recordar. Este processo passou por estigios definidos. Dois desses estégios devem ser ressaltados: no primeiro, a designagao verbal “rua 42”, minha meméria com Palavra e imagem a grande dificuldade respondeu enumerando toda a cadeia de elementos caracteristi- cos, mas eu ainda nao tinha a verdadeira percepsio da rua, porque os varios elementos ainda nao haviam se consolidado numa imagem tinica. Apenas no segundo estégio todos os elementos comegam a se fundir numa tinica imagem: & mengio do “ntimero” da rua, ainda surgia todo este grupo de elementos independentes, mas agora néo como uma cadeia, mas como algo tinico — como uma caracterizagio total da rua, como sua imagem toral. Apenas depois deste estagio se pode dizer que realmente se memorizou a rua. A imagem da rua comega a emergir ¢ a viver na consciéncia e na percepsio ! exatamente como, durante a criagdo de uma obra de arte, sua imagem total, tinica, reconhectvel, é gradualmente formada por seus elementos. Em ambos os casos — seja uma questio de memorizagao, ou 0 processo de percepgio da obra de arte —, o método de entrada na consciéncia ¢ nos sentimen- tos, através do todo, e no todo, através da imagem, permanece fiel a esta lei. Além disso, apesar de a imagem entrar na consciéncia e na percepsao, através da agregagdo, cada detalhe & preservado nas sensagSes € na meméria como parte do todo. Isto ocorre seja ela uma imagem sonora — uma seqiiéncia rftmica ¢ melédica de sons — ou plastica, visual, que engloba, na forma pictérica, uma série lembrada de elementos isolados. De um modo ou de outro, a série de idéias € montada, na percepgio e na consciéncia, como uma imagem total, que acumula os elementos isolados. Vimos que no proceso de lembranga existem dois estdgios fundamentais: 0 primeiro é a reunido da imagem, enquanto o segundo consiste no resultado desta reuniao ¢ seu significado na meméria, Neste tiltimo estagio, € importante que a memiéria preste a menor atencao poss{vel ao primeiro estdgio, e chegue ao resultado depois de passar pelo estagio de reuniao o mais rapido possivel. Esta é a prética na vida, em contraste com a pratica na arte. Porque, quando entramos na esfera da arte, descobrimos um acentuado deslocamento da énfase, Na verdade, para conse- guir seu resultado, uma obra de arte dirige toda a sutileza de seus métodos para o processo. Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador.’ F isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital ¢ a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criagéo, em vez de ser absorvido no processo a medida que este se verifica. Esta condigao surge sempre ¢ em qualquer parte, ndo importa qual a forma artistica em discussio. Por exemplo, a interpretacao realista de um ator é constituf- da nao por sua representacio da cépia dos resultados de sentimentos, mas por sua capacidade de fazer estes sentimentos surgirem, se desenvolverem, se transformarem em outros sentimentos — viverem diante do espectador. 22 O sentido do filme Deste modo, a imagem de uma cena, de uma seqiiéncia, de uma criagdo completa, existe no como algo fixo e jé pronto. Precisa surgir, revelar-se diante dos sentidos do espectador. Do mesmo modo, um personagem (tanto num texto quanto na interpretacao de um papel), para produzir uma impresso verdadeiramente viva, deve ser cons- trufdo diante do espectador, durante o curso da acdo, e nao apresentado como uma figura mecinica com caracteristicas determinadas a priori No drama, é particularmente importante que, no curso da agio, seja nao apenas construfda uma idéia do personagem, mas também que seja construido, seja “formado mentalmente”, o préprio personagem. Conseqitentemente, no método real de criagdo de imagens, uma obra de arte deve reproduzir o processo pelo qual, na prépria vida, novas imagens sio formadas na consciéncia ¢ nos sentimentos humanos. Acabamos de mostrar a natureza disto em nosso exemplo das ruas numeradas. E seria correto se esperar de um artista, diante da tarefa de expressar uma determi- nada imagem através da representagao factual, o recurso a um método idéntico a essa “assimilaao” das ruas de Nova York. Também usamos 0 exemplo da representasio formada pelo mostrador de um reldgio, ¢ revelamos o processo pelo qual a imagem da hora surge em conseqiiéncia desta representagio. Para criar uma imagem, a obra de arte deve se basear num método idéntico, a construgéo de uma cadeia de representagoes. Examinemos mais amplamente este exemplo da hora. Com Vronsky, acima, a figura geométrica nao surgiu como uma imagem da hora. Mas existem casos em que o importante nao é ver que ¢ meia-noite cronome- tricamente, mas sentir a meia-noite com todas as associagées ¢ sensagdes que 0 autor quer suscitar de acordo com seu enredo. Pode ser a meia-noite da ansiosa espera de um compromisso, a meia-noite da morte, a meia-noite de uma fuga fatal; em outras palavras, pode muito bem estar longe de ser uma simples representagio da meia-noite cronométrica. Neste caso, de uma representagao das doze badaladas deve emergit a imagem da meia-noite como uma espécie de “hora do destino”, repleta de significado. Isto também pode ser ilustrado por um exemplo — desta vez de Bel Ami, de Maupassant. O exemplo tem uma importancia adicional por ser sonoro. E ainda mais uma porque, sendo em sua natureza pura montagem, através do método corretamente escolhido para sua solugao ele é apresentado na histéria como uma narrativa de acontecimentos reais. Ea cena em que George Duroy (que agora assina Du Roy) est esperando no fiacre por Suzanne, que concordou em fugir com ele & meia-noite. Aqui, doze horas da noite sé ¢ a hora cronométrica num grau minimo, ¢ é, num grau méximo, a hora na qual tudo (ou, de qualquer modo, muito) est4 em jogo (“Acabou-se. Deu tudo errado. Ela nao vird.”). Palavra e imagem 23 Este € 0 modo como Maupassant dirige & consciéncia e aos sentimentos do Ieitor a imagem desta hora ¢ seu significado, diferente de uma mera descrigao da hora particular da noite: Tornou a sair &s onze horas, errou durante algum tempo, tomou um fiacte e mandou parar na Place de la Concorde, junto as arcadas do Ministério da Marinha. De vez em quando acendia um fésforo, para olhar a hora no relégio. Quando viu aproximar-se a meia-noite, sua impaciéncia tornou-se febril. A todo instante punha a cabega na portinhola para olhar. Um relégio distante deu doze badaladas, depois um outro mais perto, depois dois juntos, depois um dltimo, muito longe. Quando este acabou de tocar, pensou: “Acabou-se. Deu tudo errado. Ela nao vird.” Estava entretanto resolvido a ficar, até de manha. Nestes casos € preciso ser paciente. Escutou ainda tocar um quarto, depois meia hora, depois trés quartos; ¢ todos os relégios repetiram a “uma”, tal como tinham anunciado a meia-noite...!° Neste exemplo, vemos que, quando Maupassant quis gravar na consciéncia e nas sensagdes do leitor a qualidade emocional da meia-noite, nao se limitou a mencionar que primeiro bateu a meia-noite e depois uma hora. Ele nos obrigou a experimentar a sensagao da meia-noite, fazendo com que as doze horas batessem em varios lugares ¢ em varios relégios. Combinados em nossa percepsio, estes grupos individuais de doze badaladas se transformam numa sensagio geral da meia-noite, As representagées separadas se transformaram em uma imagem. Isto foi inteiramente feito por meio de montagem. O exemplo de Maupassant pode servir de modelo para 0 mais requintado estilo de roteiro de montagem, onde o som das “doze horas” ¢ denotado por meio de uma série completa de planos “de diferentes angulos de camera’: “distante”, “mais pero”, “muito longe”. Este badalar dos reldgios, registrado a varias distan- cias, € como a filmagem de um objeto a partir de diferentes posicdes da camera € repetida numa série de trés diferentes enquadramentos: “plano geral”, “plano mé- dio”, “plano de conjunto”. Porém, a badalada real ou, mais corretamente, a batida variada dos relégios de modo algum é escolhida por sua virtude como um detalhe naturalista de Paris & noite. O efeito primdrio descas batidas conflitantes de relégios em Maupassant é a énfase insistente na imagem emocional da “meia-noite” fatal, nao a mera informagao: “zero hora”. Se seu objetivo fosse apenas informar que era zero hora, Maupassant dificil- mente teria recorrido a uma composi¢ao tao requintada. Do mesmo modo, sem a escolha cuidadosa de uma solugio criativa de montagem, ele nunca teria obtido, através de um meio tao simples, um efeito emocional tao palpavel. Enquanto falavamos de relégios ¢ horas, lembrei-me de um exemplo de minha prépria experiéncia. Durante a filmagem de Outubro, nos deparamos, no 24 O sentido do filme Palécio de Inverno, com um curioso espécime de relégio: além de mostrador principal, também tinha uma coroa de pequenos mostradores em redor do maior. Em cada um desses mostradores estava o nome de uma cidade: Paris, Londres, Nova York, Xangai, e assim por diante. Cada um mostravaa hora destas cidades, em contraste com a hora de Petrogrado, no mostrador principal. O aparecimento deste relégio ficou gravado em nossa meméria, E quando, em nosso filme, precisamos apresentar de modo especialmente enérgico 0 momento histérico da vitéria e instauragio do poder soviético, este reldgio sugeriu uma solugio especifica de montagem: repetimos a hora da queda do Governo Provisério, marcada no mostra- dor principal pela hora de Petrogrado, em toda a série de mostradores secundérios que marcavam a hora em Londres, Paris, Nova York, Xangai. Assim, esta hora, tinica na histéria € no destino dos povos, emergiu através de uma variedade enorme de horas locais, como que unindo ¢ fundindo todos os povos na percepgio do momento da vitéria. O mesmo conceito foi também anunciado por um movimen- to rotativo da prépria coroa de mostradores, um movimento que, ao aumentar € acelerar-se, também fundiu plasticamente todos os indicadores de tempo diferentes c independentes na sensagao da hora histérica tinica...'! Neste ponto, ougo a pergunta de meus adversérios invisiveis: “Esté tudo bem, mas o que tem a dizer sobre um longo pedago de filme, sem cortes, com a interpretagio de um ator — o que isto tem a ver com a montagem? A sua interpre- tagio, por si mesma, nao impressiona? A interpretagao de um papel por Tcherka- sov!2ou Okhlopkov,? Tchirkov'4ou Sverdlin!® também nao impressionam?” E fuitil supor que esta pergunta significa um golpe mortal na concep¢éo de montagem. O princfpio da montagem é muito mais amplo do que uma pergunta como esta supde. E totalmente errado supor que se um ator atua num tinico ¢ longo pedaco de filme, nao cortado pelo diretor e cinegrafista em diferentes angulos de camera, esta construgio ¢ intocada pela montagem! De modo algum! Neste caso, tudo © que temos a fazer & procurar pela montagem em outro lugar, na realidade, na interpretagdo do ator. Mais tarde discutiremos a questio do grau em que o princfpio da técnica “interior” da interpretagao esté relacionado com a montagem. No momento serd suficiente deixar um grande artista do palco ¢ da tela, George Arliss, dar sua contribuicao: Sempre acreditei que, no cinema, a interpretagao devia ser exagerada, mas vi imed tamente que a discrigdo era a coisa principal a ser aprendida, por um ator, para transferir sua arte do palco para a tela... A arte da discrigio e da sugestio no cinema pode ser estudada a qualquer hora observando-se a interpretagao do inimitével Charlie Chaplin. "6 A representagio enfatica (exagero), Arliss contrape discrigao. Ele vé o grau desta discriggo na redugio da realidade 4 sugestio. Ele rejeita nao apenas a repre- Palavra e imagem 28 sentagéo exagerada da realidade, mas até a representagdo da realidade na {ntegra! Em vez disso, aconselha “sugestio”. Mas o que é “sugestao” senao um elemento, um detalhe, um “primeiro plano” da realidade que, justaposto a outros detalhes, fun- ciona como uma resolugio do fragmento inteiro da realidade? Assim, de acordo com Arliss, 0 eficaz trecho de interpretasio amalgamado é nada mais do que uma justaposicao de primeiros planos deste tipo, os quais, combinados, criam a imagem do contetido da interpretacao. E, para ir mais além, a interpretacao do ator pode ter 0 cardter de uma representacao insipida, ou de uma imagem genuina, de acordo com 0 método que empregue para construi-la. Mesmo se sua interpretagao for toda tomada de um tinico angulo (ou mesmo de uma tinica poltrona da platéia de um teatro), apesar disso — num caso bem sucedido — a interpretagao teré a qualidade de “montagem”. E preciso que se diga que 0 segundo exemplo de montagem citado acima (de Outubro) nio é um exemplo de montagem comum, e que o primeiro exemplo (de Maupassant) ilustra apenas um caso onde um objeto € filmado de varios pontos com vérios angulos de camera. Outro exemplo que citarei é bastante tipico da cinematografia, ndo mais relacionado a um objeto individual, mas, em vez disso, a uma imagem de todo um fendmeno — formada, porém, exatamente do mesmo modo. E um exemplo notavel de “roteiro de filmagem”. Nele, através de uma acumu- lagio crescente de detalhes e cenas, uma imagem palpavel surge diante de nés. Nao foi escrito como uma obra literaria acabada, mas apenas como uma nota de um grande mestre que tentou colocar no papel, para si mesmo, sua visualizagao do Dildvio. O “roteiro de filmagem” a que me refiro so as notas de Leonardo da Vinci para uma representagao do Dihtivio pela pintura. Escolhi este exemplo em particu lar porque nele a cena audiovisual do Dibivio € apresentada com uma clareza incomum. Uma realizagao como esta de coordenagio sonora ¢ visual é notdvel vinda de qualquer pintor, mesmo sendo Leonardo. Que se veja 0 ar escuro, nebuloso, agoitado pelo impeto de ventos contritios entrela- gados com a chuva incessante ¢ 0 granizo, carregando para Id e para c4 uma vasta rede de galhos de drvores quebrados, misturados com um niimero infinito de folhas. Que se vejam, em torno, drvores antigas desenraizadas ¢ feitas em pedagos pela fiiria dos ventos. Deve-se mostrar como fragmentos de montanhas, arrancados pelas torrentes impetuosas, precipitam-se nessas mesmas torrentes ¢ obstruem os vales, até que os rios bloqueados transbordam e cobrem as vastas planicies ¢ scus habitantes. Novamente devem ser vistos, amontoados nos topos de muitas das montanhas, muitas espécies diferentes de animais em tropel, aterrorizados ¢ reduzidos, finalmen- te,aum estado de docilidade, em companhia de homens e mulheres que fugiram para li com seus filhos. 26 O sentido do filme E, nos campos inundados, a superficie da 4gua estava quase que totalmente coalhada de mesas, camas, barcos e varios outros tipos de balsas improvisadas devido a necessidade e 20 medo da morte; nos quais havia homens e mulheres com seus filhos, amontoados, gritando e chorando, apavorados com a firia dos ventos, que encrespavam as ondas, fazendo-as girar como um poderoso furacio, carregando com elas os corpos dos afogados; ¢ nao havia objeto flutuando que nao estivesse coberto de virios ¢ diferentes animais, que haviam feito uma trégua ¢ se amontoavam aterrorizados, entre eles Jobos, raposas, cobras e criaturas de todo tipo, fugitivos da morte. E todas as ondas que golpeavam sem cessar, com os corpos dos afogados, os golpes, matando aqueles nos quais ainda havia vida. Seréo vistos alguns grupos de homens, com armas nas mios, defendendo os mintisculos pedagos de terra que Ihes restaram dos ledes, lobos e bestas predadoras que neles procuravam a seguranga. © tumult aterrador se ouve ressoando pelo ar sombrio, rasgado pela firia do trovio e dos raios que ele cospe ¢ que o atravessam céleres, levando destruisao, derrubando tudo 0 que se atravessa em seu caminho! ©, quantas pessoas podem ser vistas tampando os ouvidos com as mos para calar 0 rugido feroz langado através do ar obscuto pela firia dos ventos misturados com a chuva, pelo estrépito dos céus e pelo chispar dos relampagos! Outras nao se contentavam em fechar os olhos, mas, tapando-os com as mios, uma em cima da outra, os cobriam, ainda mais apertados, para nao ver © massacre impiedoso da raga humana pela ira de Deus. Ai de mim! quantos lamentos! Quantos em seu terror se jogavam das rochas! Podem-se ver galhos enormes dos gigantescos carvalhos, repletos de homens, sendo carregados pelos ares com a fiiria dos ventos impetuosos. Quantos barcos emborcados, alguns inteiros, outros em pedagos, em cima de homens que lutam para escapar com atos ¢ gestos de desespero que pressagiam uma terrivel morte. Outros, com atos frenéticos, tiravam as prdprias vidas, no desespero de nio conseguirem suportar tamanha angiistia; alguns se atiravam das altas rochas; outros se estrangulavam com as préprias mios; alguns agarravam os préprios filhos, com grande violéncia os matavam de um sé golp. alguns viravam suas armas contra si mesmos, para ferit-se e morrer; outros, caindo de joclhos, entregavam-se a Deus. Ail quantas mies choravam 0s filhos afogados, segurando-os sobre os joelhos, erguendo os bracos abertos para 0 céu e, com diversos gritos ¢ guinchos, clamando contra ira dos deuses? Outras, com as mios fechadas e os dedos entrelagados, mordem-nas até sangrar € as devoram, curvando-se a ponto de os peitos tocarem os joelhos, em sua intensa € insuporcavel agonia. Palavra e imagem. 7 Manadas de animais, como cavalos, bois, cabras, ovelhas, devem ser vistos jé cercados pela Agua, isolados sobre os altos picos das montanhas, apertados contra os outros, € 08 que estio no meio subindo até 0 topo ¢ pulando em cima dos outros, € lutando encarnigadamente, e muitos morrendo de fome. E os passaros jé comecavam a pousar nos homens € nos animais, por nao mais encontrarem nenhum pedaco de terra & flor d’égua que j4 nao estivesse coberto de seres vivos. A fome, o instrumento da morte, jd privara de vida a maior parte dos animais, quando os caddveres, jé mais leves, comecaram a surgit do fundo das 4guas profun- das, emergindo para a superficie no torvelinho das ondas; e Id ficaram batendo uns nos outros ¢ feito bexigas cheias de vento, que ricocheteiam de volta ao lugar de onde foram langadas, caem ¢ se espalham uns sobre os outros. E, acima desses horrores, a atmosfera se via coberta de nuvens higubres rasgadas pela chispa serpenteante dos terriveis raios do céu, que refulgiam, ora aqui, ora ali, em meio a densa escuridio...!” Esta desctigao nao foi concebida por seu autor como um poema ou ensaio literdrio. Péladan, 0 organizador da edigao francesa do Trattato della pittura, de Leonardo, a considera o projeto de um quadro nunca realizado, que teria sido uma insuperdvel “chef d oeuvre da paisagem e da representacio das forcas da natureza”.!® Apesar disso, a descriggo nao é um caos, mas foi executada com elementos caracte- risticos das artes “temporais”, em vez de “espaciais”. Sem analisar em detalhe a estrutura desse extraordindtio “roteiro de filma- gem”, devemos salientar porém o fato de que a descrigio segue um movimento bastante definido. Além disso, o curso deste movimento de modo algum é fortuito. O movimento segue uma ordem definida, e depois, na correspondente ordem inversa, volta aos fendmenos do inicio. Comecando com uma descrigéo dos céus, 0 quadro termina com uma descrigao semelhante, mas consideravelmente intensificada. No centro esté o grupo de seres humanos ¢ suas experiéncias; a cena se desenvolve dos céus para os homens, e dos homens para os céus, passando pelos animais, Os detalhes maiores (0s primeiros planos) sio encontrados no centro, no climax da desctigio ("... maos fechadas com os dedos entrelagados... mordem-nas até san- grar..”). Com absoluta nitidez emergem os elementos t{picos de uma composigio de montagem. O contetido de cada quadro das cenas independentes é reforcado pela crescen- te intensidade da ago. Vejamos o que chamaremos de “tema animal”: animais tentando fugir; ani- mais arrastados pela torrente; animais se afogando; animais lutando com seres humanos; animais lutando uns com os outros; as carcagas de animais afogados flutuando na superficie. Ou o progressivo desaparecimento da terra firme sob os pés das pessoas, animais e pdssaros, que atinge 0 auge no ponto em que os passaros 28 O sentido do filme sao forcados a pousar nos homens e animais, sem encontrar nenhum pedago de terra ainda nao-submerso, ou desocupado. Esta passagem nos lembra obrigatoria- mente que a distribuigio de detalhes em um quadro de um sé plano também presume movimento — um movimento dos olhos, de um fendmeno para outro, de acordo com a composigao. Aqui, é claro, o movimento é expressado com nao menos nitidez do que no cinema, onde o olho ndo pode discernir a sucessio da seqiiéncia de detalhes numa ordem diferente da estabelecida por quem determina a ordem da montagem. Inquestionavelmente, porém, a descrigio extraordinariamente sequiencial de Leonardo cumpre nao apenas a tarefa de enumerar os detalhes, mas a de tragar a trajet6ria do futuro movimento sobre a superficie da tela. Aqui vemos um exemplo brilhante de como, na aparentemente estatica “coexisténcia” simultinea de deta- Ihes, num quadro imével, ainda foi aplicada exatamente a mesma selesio de montagem, existe exatamente a mesma sucesso ordenada na justaposigao de deta- Ihes, como nas artes que incluem o fator tempo. ‘A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados produzem, em justaposigao, o quadro geral, a sintese do tema. Isto é, a imagem que incorpora o tema. Passando desta defini¢ao para o proceso criativo, veremos que este ocorre do seguinte modo. Diante da visio interna, diante da percepgio do autor, paira uma determinada imagem, que personifica emocionalmente o tema do autor. A tarefa com a qual cle se defronta transformar esta imagem em algumas representagdes parciais basicas que, em sua combinagio ¢ justaposi¢a0, evocaréo na consciéncia € nos sentimentos do espectador, leitor ou ouvinte a mesma imagem geral inicial que originalmente pairou diante do artista criador. Isto se aplica tanto a imagem da obra de arte como um todo, quanto imagem de cada cena ou parte independente. No mesmo sentido, isto explica a criagio de uma imagem pelo ator. O ator tem diante de si exatamente a mesma tarefa: expressar, com dois, trés, ou quatro aspectos do carter ou modo de conduta, os elementos basicos que, em justaposigéo, criam a imagem integral concebida pelo autor, pelo diretor ¢ pelo préprio ator. O que é mais digno de nota num método como este? Primeiro eantes de tudo, seu dinamismo. Que reside basicamente no fato de que a imagem desejada nao é {fixa ou jd pronta, mas surge — nasce. A imagem concebida por autor, diretor ¢ ator é concretizada por eles através dos elementos de representagio independentes, ¢ reunida — de novo ¢ finalmente — na percepcio do espectador. Este é, na realida- de, 0 objetivo final do esforso criativo de todo artista. Gorki colocou isto com elogiiéncia numa carta a Konstantin Fedin: Palavra e imagem 29 Vocé diz: Esta atormentado com a questio “como escrever?”. Hé 25 anos observo como esta quest4o preocupa as pessoas... Sim, € uma questo s¢ria; preocupei-me, preocupo-me, ¢ continuarei me preocupando com ela até o fim de meus dias. Mas para mim a pergunta se formula assim: como devo escrever, a fim de que o homem, nao importa quem seja, emerja das paginas da histéria a seu respeito com a forga da palpabilidade fisica de sua existéncia, com a irrefutabilidade de sua realidade semi- imagindria, com a qual 0 vejo ¢ o sinto? Este € 0 ponto como o entendo, este é 0 segredo da questio...!9 A montagem ajuda na solugao desta tarefa. A forga da montagem reside nisto, no fato de incluir no proceso criativo a raz4o € 0 sentimento do espectador. O espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. O espectador nao apenas vé os elementos representados na obra terminada, mas também experimenta o proceso dinamico do surgimento e reuniéo da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. E este é, obviamente, o maior grau posstvel de aproximagio do objetivo de transmitir visual- mente as percepgées e intengGes do autor em toda a sua plenitude, de transmiti-las com “a forca da tangibilidade fisica’, com a qual elas surgiram diante do autor em sua obra ¢ em sua vis4o criativas. Relevante nesta parte da discussdo € a definigio de Marx do caminho da verdadeira investigacao: Zur Wahrheit gehért nicht nur das Resultat, sondern auch der Weg. Die Untersu- chung der Wahrheit muss selbst wahr sein, die wahre Untersuchung ist die entfaltete Wahrheit, deren auseinander, gestreute Glieder sich im Resultat zusammenfassen?” A forca do método reside também no fato de que o espectador é arrastado para © ato criativo no qual sua individualidade nao esté subordinada a individualidade do autor, mas se manifesta através do processo de fuséo com a intengao do autor, exatamente como a individualidade de um grande ator se funde com a individuali- dade de um grande dramaturgo na criagio de uma imagem cénica clissica, Na realidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu préprio modo, ea partir de sua propria experiéncia— a partir das entranhas de sua fantasia, a partir da urdidura ¢ trama de suas associagées, todas condicionadas pelas premis- sas de seu carter, habitos ¢ condigao social —, cria uma imagem de acordo com a orientagio plastica sugerida pelo autor, levando-o a entender ¢ sentir 0 tema do autor. E a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, a0 mesmo tempo, também é criada pelo proprio espectador. + Em alemio no original: A verdade pertence nio apenas o resultado, mas também 0 caminho. A investigagio da verdade deve em si ser verdadeira, a verdadeira investigagio &a revelacio da verdade, cujos membros separados se unem no resultado. 30 O sentido do filme Seria possivel achar que nada poderia ser mais definido ¢ claro do que a listagem quase cientifica dos detalhes do Diltivio, que passam diante de nés no “roteiro de filmagem” de Leonardo. Porém, quao pessoais ¢ individuais sao as imagens resultantes que surgem na mente de cada leitor, que derivam de uma especificago ¢ justaposicao de detalhes partilhadas por todos os leitores de um documento como este. Cada imagem é exatamente tao semelhante e diferente quanto o seria o papel de Hamlet, ou Lear, interpretado por atores diferentes de diferentes pafses, épocas ou teatros. Maupassant oferece a cada leitor a mesma estrutura de montagem para a batida dos relégios. Ele sabe que esta estrutura particular evocard na percepgao mais do que mera informacio sobre a hora. Uma experiéncia do significado da meia-noi- te serd lembrada. Cada leitor ouve o bater das horas de modo idéntido. Mas em cada leitor surge uma imagem prépria, sua prdpria representagao da meia-noite, € seu significado. Cada representagao é, no que diz respeito & imagem, individual, diferente e, no entanto, idéntica tematicamente. E cada uma dessas imagens da meia-noite, ao mesmo tempo em que é para todo leitor também a do autor, também do mesmo modo a sua prépria — viva, préxima, {ntima. A imagem concebida pelo autor tornou-se carne ¢ osso da imagem do espec- tador... Dentro de mim, espectador, esta imagem nasceu € cresceu. Nao apenas 0 autor criou, mas eu também — o espectador que cria — participei. No inicio deste capftulo falei de uma histéria emocionalmente excitante comovente, diferente de uma exposicao Iégica dos fatos — tio diferente quanto uma experiéncia é diferente de um testemunho. Uma exposi¢do-testemunho seria a correspondente estrutura de ndo-montagem de cada um dos exemplos citados. No caso das notas de Leonardo da Vinci para O Dibivio, uma exposigio-testemunho nio teria levado em consideracao, como ele 0 fez, as varias escalas e perspectivas a serem distribufdas sobre a superficie do quadro terminado, de acordo com seus calculos da trajetéria do olho do espectador. Teria sido suficiente a mera apresentagio do mostrador do relégio que mostra a hora exata da queda do Governo Provisério. Se Maupassant tivesse usado um método como este na passagem sobre o encontro de Duroy, teria dado a breve informagao de que a meia-noite soara. Em outras palavras, uma abordagem como esta transmi- te apenas informagio documental, nao transformada pela arte em uma forga esti- mulante ¢ um efeito emocional criados. Como exposigdes-testemunho, todos esses exemplos seriam, na linguagem cinematogréfica, representagdes filmadas de um tinico angulo. Mas, moldados pelos artistas, estes exemplos constituem imagens, criadas através da estrutura da montagem. E agora podemos dizer que é precisamente o princ{pio da montagem, diferente do da representagdo, que obriga os préprios espectadores a criar, ¢ 0 principio da montagem, através disso, adquire o grande poder do estimulo criativo interior do espectador, que distingue uma obra emocionalmente empolgante de uma outra Palavra e imagem xn que nfo vai além da apresentacao da informagio ou do registro do acontecimento.”! Examinando esta diferenga, descobrimos que o princ{pio da montagem no cinema & apenas um caso particular de aplicagio do principio da montagem em geral, um princfpio que, se entendido plenamente, ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme. Como afirmamos acima, os métodos de montagem comparados, de criagéo pelo espectador e criagao pelo ator, podem levar a conclus6es fascinantes. Nesta compara- do, ocorre um encontro entre o método de montagem ea esfera da técnica interior do autor; isto é, a forma do processo interno através do qual o ator cria um sentimen- to palpitante, exibido em seguida na autenticidade de sua atuagio no palco ou na tela. Foram ctiados varios sistemas ¢ doutrinas sobre os problemas da interpretaga0 do ator. Para ser preciso, hd na verdade dois ou trés sistemas, com varias ramifica- Ges. As ramificagGes se distinguem umas das outras no apenas por diferengas de terminologia, mas principalmente por suas diferentes concepgdes quanto ao prin- cipal papel desempenhado pelos diferentes pontos basicos da técnica da interpreta- gio. Algumas vezes uma escola esquece quase completamente todo um elo do processo psicoldgico da criagio da imagem. Algumas vezes um elo ndo-bdsico € elevado & posigio principal. Mesmo num método té0 monolitico quanto 0 do Teatro de Arte de Moscou, com todo o seu corpo de postulados bisicos, ha tendéncias independentes na interpretasio desses postulados. Nao tenho a intengio de entrar nas sutilezas das diferengas, essenciais ou terminolégicas, dos métodos de treinamento ou de criagao do ator. Meu objetivo € analisar os aspectos da técnica do trabalho do ator que o capacitam a obter resulta- dos — que conquistem a imaginagao do espectador. Qualquer ator ou diretor é, na realidade, capaz de deduzir estes aspectos a partir de sua experiéncia “interior”, se ele consegue deter 0 processo para examiné-lo. As técnicas do ator e do diretor sao, com relagao a este ponto, indistinguiveis, a partir do momento em que o diretor, neste proceso, é também, numa certa medida, um ator. A partir da observacio deste “lado ator” em minha prépria experiéncia como diretor, tentarei esbogar esta técnica interna que estamos analisando através de um exemplo concreto. Ao fazé- lo, nao tenho a menor intengio de dizer algo novo com relagio a esta questéo em particular. Suponhamos que estou diante do problema de interpretar a “manha seguinte” de um homem que, na noite anterior, perdeu dinheiro dos cofres puiblicos num jogo de cartas. Suponhamos que a cena esté cheia de todo tipo de peripécias, inclusive, digamos, uma conversa com a mulher que nao suspeita de nada, uma cena com a filha que fixa atentamente o pai, cujo comportamento the parece 32 sentido do filme estranho, uma cena do autor do desfalque esperando nervoso que o telefone toque responsabilizando-o, ¢ assim por diante, Suponhamos que uma série destas cenas leve 0 autor do desfalque a. uma tentativa de suicidio com um tiro. A tarefa diante do ator é a de interpretar o tiltimo fragmento do climax, no qual ele chega 4 conclusio de que sé hd uma solugo — o suicidio — e suas mios comegam a tatear, na gaveta de sua escrivaninha, & procura do revélver.. Acredito que seria quase imposstvel encontrar um ator experiente que, nesta cena, comegasse tentando “interpretar o sentimento” de um homem & beira do suicidio. Cada um de nds, em vez de suar e se esforgar para imaginar como um homem se comportaria sob tal circunstncia, abordaria a questéo de um modo bastante diferente, Fatfamos com que o estado de 4nimo apropriado eo sentimento apropriado se apoderassem de nds. E 0 estado, a sensagio, a experiéncia autentica- mente sentida, em conseqiiéncia direta, se “manifestaria” em movimentos, ages, comportamento geral emocionalmente corretos. Este € 0 caminho em diresio & descoberta dos elementos iniciais de um comportamento corteto, correto no sentido de que ¢ apropriado a um estado ou sentimento verdadeiramente vivenciado. O préximo estdgio do trabalho de um ator consiste na escolha da composigao desses elementos, depurando-se de qualquer acréscimo fortuito e refinando-os para dar-lhes 0 grau maximo de expressividade. Mas este € 0 estagio seguinte. Nossa preocupagio aqui é com 0 estagio anterior. Estamos interessados na parte do processo na qual 0 ator € possuido pelo sentimento. Como isto € conseguido? J4 dissemos que nao pode ser feito com 0 método do “esforgo e suot”. Em vez disso, tomamos 0 caminho que deveria ser usado em todas as situagdes como esta. O que na realidade fazemos € obrigar nossa imaginagio a descrever para nés varias situag6es e quadros concretos apropriados ao nosso tema. A agregagio dos quadros imaginados suscita em nés a emogio requerida, o sentimento, a compreen- sio ¢ a experiéncia real que estamos procurando, Naturalmente, 0 material desses quadros imaginados vai variar, dependendo das caracteristicas peculiares do cardter da imagem do personagem que o ator esté interpretando no momento. Suponhamos que um trago caracterfstico de nosso autor do desfalque seja o medo da opinigo ptiblica. O que o aterrorizaré mais nao seré tanto o remorso, a consciéncia de sua culpa ou o sofrimento com sua futura prisiéo, mas “o que as pessoas vio dizer?” Nosso homem, ao se ver nessa posigio, imaginard em primeiro lugar todas as terriveis conseqiiéncias de seu ato nesses termos. SerZo essas conseqiiéncias imaginadas, € suas combinagées, que reduzirio o homem a um tal grau de desespero que ele procurard uma saida inesperada. E assim, exatamente deste modo, que ocorre na vida. O terror resultante da dade comega a revelar 0 quadro febril das conseqiién- consciéncia da responsabil Palavra e imagem 33 cias. E este conjunto de quadros imaginados, agindo sobre os sentimentos, aumen- ta 0 terror, reduzindo o autor do desfalque ao auge do horror ¢ desespero. processo € idéntico aquele com que o ator provoca um estado semelhante no teatro. Existe apenas uma diferenga: 0 seu uso da vontade para forgar a imagina- ¢4o a pintar © mesmo quadro de conseqiiéncias, que na vida real a imaginacao do homem suscitaria espontaneamente. Os métodos pelos quais a imaginagao ¢ levada a isto, com base nas circunstan- cias presumidas e imagindrias, nao séo no momento pertinentes. Estamos tratando do processo no momento em que a imaginagio jé estd descrevendo o que € necessé- rio para a situagdo. Nio é necessdrio ao ator obrigar-se a sentir e vivenciar as conseqiiéncias previstas. Sentimento € experiéncia, como as ages que fluem deles, surgem por si mesmos, criados pelos quadros que sua imaginasao pinta. O senti- mento vivo serd suscitado pelos prdprios quadros, por sua agregagao ¢ justaposigio. Ao procurar modos de despertar o sentimento exigido, pode-se descrever para si mesmo uma inumeravel quantidade de situaées e quadros relevantes nos quais emergird o tema sob varios aspectos. Como exemplo, elegerei as duas situages que me vieram & mente entre a multiplicidade de quadros imaginados. Sem refletir sobre cles cuidadosamente, tentarei me lembrar deles como me ocorreram. “Sou um criminoso aos olhos de meus ex-amigos ¢ conhecidos. As pessoas me evitam. Sou colocado no ostracismo por elas”, € assim por diante. Para sentir isto com todos os meus sentidos, sigo 0 processo esbocado acima, descrevendo para mim mesmo situagGes concretas, qua- dros reais do destino que me espera. A primeira situagio na qual me imagino ¢ 0 tribunal, onde meu caso esta sendo julgado. A segunda situagio seré minha volta 4 vida normal depois de cumprir minha pena. Estas notas tentario reproduzir as qualidades plasticas ¢ grdficas que varias situagées fragmentadas como estas possuem naturalmente, quando nossa imaginasao esté funcionando a pleno vapor. O modo como essas situagGes surgem difere de ator a ator. Isto ¢ apenas 0 que veio & minha mente quando estabeleci para mim mesmo a tarefi O tribunal. Meu caso estd sendo julgado. Estou no banco dos réus. A sala esta repleta de pessoas que me conhecem — algumas casualmente, outras muito bem, Capto 0 olhar de meu vizinho fixado em mim. Somos vizinhos ha 30 anos. Ele percebe que o violhando para mim. Seus olhos resvalam sobre mim com afetada abstragao. Ele olha fixamente para a janela, fingindo fastio... Outro espectador na sala do tribunal — a mulher que vive no apartamento acima do meu. Encontrando meu olhar, ela baixa os olhos aterrorizada, enquanto olha para mim com o rabo do olho Com um movimento claro, meus companheiros de bilhar viram as costas para mim... Hé 0 gordo, dono do salao de bilhar, e sua mulher — encarando-me com 34 O sentido do filme insoléncia... Tento me encolher olhando para os pés. No vejo nada, mas a minha 2.0 murmuirio de vozes. Como um golpe atras do outro, caem as palavras da stimula do promotor volta ouco os sussurros de censu Imagino a outra cena com a mesma nitidez — minha volta da prisio: A batida dos portées atrés de mim, quando sou libertado... O olhar espantado da empregada, que para de limpar as janelas do vizinho quando me vé entrando em meu velho prédio... Ha um nome novo na caixa do correio... O chio do vestibulo foi m frente & minha porta... A porta do recentemente encerado ¢ ha um novo tapere apartamento a0 lado se abre... Pessoas que eu nunca vita antes me olham com suspeita ¢ inquisitivamente. Os filhos se agarram nelas; instintivamente se escondem De baixo, com os éculos rortos no nariz, 0 velho porteiro, que se lembra de mim, olha para cima através do vao da escad: Trés ou quatro cartas amareladas enviadas para meu endereco antes que minha desgraga fosse do dominio priblico... Duas ou trés moedas soam em meu bolso... E entio — a porta é fechada em minha cara pelos ex-conhecidos que agora ocupam meu apartamento... Minhas pernas carregam-me, relurantemente, para cima, em diregio a0 apartament da mulher que eu costumava visitar ¢ entio, quando sé faltam mais dois passos, volto. A gola rapidamente levantada de um transeunte que me reconhec E assim por diante. Acima esté o resultado apenas de anotagdes sobre tudo 0 indo, tanto como diretor, quanto que passa pela minha mente ¢ sentimentos qu como ator, tento me apossar emocionalmente da situagio proposta Depois de me colocar mentalmente na primeira situagio, ¢ depois de passar mentalmente pela segunda, fazendo o mesmo com duas ow trés situagdes relevantes de intensidade variada, gradualmente atinjo a percepsio auténtica do que me espera no futuro ¢, em conseqiiéncia, & experiéncia real da desesperanga ¢ da tragédia de minha posigao. A justaposigio de detalhes da primeira situagéo imagi- nada produz um mati desta sensasio. A justaposigio de detalhes da segunda situagio — outro. O matiz de um sentimento é acrescentado ao outro, ¢ de todos eles comega a surgir a imagem da desesperanga, inseparavelmente ligada a intensa experiéncia emocional de sentir de fato tal desesperanga. Deste modo, sem esforgo para representar 0 préprio sentimento, é possivel alhes ¢ situagdes deliberadamente suscitd-lo pela reunido e¢ justaposigio de de selecionadas entre todas as que primeiro se acumularam na imaginagao. E irrelevante se a descrigio deste proceso, como esbocei acima, coincida ou nao em seus detalhes mecanicos com qualquer escola de técnica de representagio. O que importa é que um estégio semelhante ao descrito acima existe em qualquer formagito e intensificagao da emogao, seja na vida real ou na técnica caminho rumo a Palavra e imagem 35 do processo criativo. Podemos nos convencer disto com um minimo de auto-obser- vacio, seja das condigées da criagao, scja das circunstancias da vida real. Outra questéo importante € 0 fato de que a técnica da criagdo recria um proceso da vida, condicionado apenas pelas circunstincias especiais exigidas pela arte. Deve-se levar em conta, é claro, que nao analisamos todo o corpo da técnica de interpretagao, mas apenas um tinico clo de seu sistema. Por exemplo, nao abordamos absolutamente a natureza da prépria imagina- G40, particularmente a técnica de seu “aquecimento” até 0 ponto em que ela seja capaz de pintar os quadros que desejamos, aqueles exigidos pelo tema particular. A falta de espaco nao permite um exame desses clos, apesar de que sua andlise confirmaria as afirmagées aqui feitas. No momento, nos limitamos ao ponto ja discutido, mas tendo em mente que o elo que analisamos nao ocupa um espaco maior na técnica do ator do que a montagem entre os recursos expressivos do cinema. Nem tampouco podemos presumir que a montagem ocupa um lugar menos importante. Pois bem, de que modo essa introdugio ao campo da técnica interior do ator difere, na pratica ou em principio, do que esbosamos previamente como a esséncia da montagem cinematogrifica? A diferenga esta no campo da aplicagio, e nao no da esséncia do método. Nossa tiltima pergunta foi como fazer para que os sentimentos vivos ¢ as experiéncias emerjam do interior do ator. A pergunta anterior foi como evocar nos sentimentos do espectador uma imagem sentida emocionalmente. Em ambas as perguntas, os elementos estaticos, os fatores dados e os imagina- dos, todos em justaposigio, criam uma emogio que emerge dinamicamente, uma imagem que emerge dinamicamente. Nao consideramos isto, de modo algum, diferente, em principio, do processo de montagem no cinema: aqui hé a mesma concretizaco intensa do tema tornan- do-se perceptivel através de detalhes determinantes, sendo o efeito resultante da justaposicao desses detalhes a evocacao do préprio sentimento. Quanto & verdadeira natureza dessas “visbes” que aparecem diante do “olho interior” do ator, seus aspectos plisticos (ou auditivos) so completamente homo- géncos com as caracteristicas tipicas do plano cinematogréfico. Os termos “frag- mentos” e “detalhes”, conforme aplicados, acima, a essas visdes, nao foram escolh dos ao acaso, j4 que a imaginagio nao evoca quadros completos, ¢ sim propriedades decisivas e determinantes desses quadros. Porque, se examinamos as muitas “visoes” anotadas quase que automaticamente acima, que eu honestamente tentei registrar 36 O sentido do filme com a precisio fotogréfica de um documento psicolégico, veremos que estas “vi- s6es” tm uma ordem positivamente cinematografica — com angulos de camera, tomadas de varias distancias e rico material de montagem. Um plano, por exemplo, era principalmente 0 de um homem virando as costas, obviamente uma composigo que mostra as costas, em vez de toda a figura. Dois rostos com um olhar vitreo ¢ obstinado contrastam com os cilios abaixados, sob os quais a mulher do apartamento de cima me olhava de soslaio — obviamente exigindo diferentes distancias de camera. Ha varios primeiros planos ébvios — do tapete novo diante da porta, dos trés envelopes, Ou, usando outro sentido, que é igualmente parte de nossa midia — o plano geral sonoro do ptiblico que murmura na corte de justiga, contrastando com as poucas moedas tilintando em meu bolso etc. As lentes mentais trabalham deste modo com variagdes — ampliam a escala ou adiminuem, ajustando-se tao fielmente quanto uma camera de filmagem aos vitios quadros exigidos —, avangando ou afastando o microfone. $6 0 que falta para transformar esses fragmentos imaginados num t{pico roteiro de filmagem é a colocagio de ntimeros antes de cada fragmento! Este exemplo revela © segredo da realizacdo do roteiro de filmagem, com emogio genufna e movimento, em vez de uma mera alternancia tediosa de primei- ros planos, planos médios ¢ planos gerais! Aesséncia bisica do método vale para ambas as esferas. A primeira tarefa é a divisio criativa do tema em representagées determinantes, e depois combinasao dessas representagdes com 0 objetivo de dar vida & imagem inicial do tema. Eo processo pelo qual esta imagem é percebida é idéntico & experiéncia original do tema, do contetido da imagem. Também to inseparavel desta experiéncia intensa ¢ genuina ¢ 0 trabalho do diretor ao escrever o roteiro de filmagem. $6 ele pode lhe sugerir as representac6es decisivas através das quais a imagem completa do tema pode irromper na forma de vida criativa. Nisto reside o segredo daquela qualidade de exposigo emocionalmente insti- gante (diferente da exposicao-testemunho da mera informagio), da qual falamos antes, e que € uma condigao tanto da interpretagao viva de um ator, quanto da viva realizagao de filmes. Veremos que um conjunto semelhante de quadros, cuidadosamente selecio- nados e reduzidos ao extremo laconismo de dois ou trés detalhes, seré encontrado nos melhores exemplos da literatura. Vejamos 0 poema narrativo de Puchkin, Poltava — a cena da execugao de Kochubei. Nesta cena, o tema do “final de Kochubei” € expressado com brilho incomum pela imagem do “final da execugdo de Kochubei”. A imagem real deste final da execugao emerge e cresce da justaposicao de trés representagées seleciona- das quase “documentalmente” de trés detalhes do episédio: Palavra e imagem 37 ide demais’, disse alguém O dedo apontando para o campo. Lé, 0 cadafalso fatal era desmontado Um padre de sotaina preta rezava E sobre uma catroga era colocado Por dois cossacos um caixao de carvalho.? Seria dificil encontrar uma selegdo mais eficaz de detalhes para descrever a sensacao da imagem da morte em todo o seu horror, do que esta da conclusio da cena de execugio. A validade da escolha de um método realista para criar e obter uma qualidade emocional pode ser confirmada por varios exemplos muito curiosos. Eis, por exemplo, outra cena de Poltava, de Puchkin, na qual o poeta faz com que a imagem de uma fuga noturna surja magicamente diante do leitor com todas as suas possibi- lidades pictéricas ¢ emocionais. Mas ninguém sabia como ou quando Ela sumira, Um pescador solitério Ouviu naquela noite o galope de cavalos, mulh Vozes de cossacos ¢ o sussurro de um: Trés planos: 1. Galope de cavalos 2. Vozes de cossacos 3. O sussurro de uma mulher Novamente trés representagdes objetivamente expressadas (sonoras!) se jun- tam numa imagem unificadora expressada emocionalmente, diferente da percep- gio de fendmenos isolados percebidos desvinculados de sua associago um com o vo de suscitar a necesséria experiéncia outro, O método é usado apenas com 0 objet emocional no leitor. Apenas a experiéncia emocional, porque a informagio de que Marya desaparecera fora dada no verso anterior (“Ela sumina. Um pescador solitd- io rio”). Tendo contado ao leitor que ela desaparecera, 0 autor quis dar-lhe a sensac: também. Para consegui-lo, usa a montagem. Com trés detalhes selecionados entre todos os elementos da fuga, sua imagem de fuga noturna surge na forma de montagem, comunicando a experiéncia da aco aos sentidos. Aos trés quadros sonoros ele acrescenta um quarto quadro, que tem o efeito de um ponto final. Para obter este efeito, ele escolhe seu quarto quadro em outro sentido. Este tiltimo “primeiro plano” nao é sonoro, mas visual: E oito ferraduras de cavalos deixam suas pegadas Sobre 0 orvalho da mana no prado... 38 O sentido do filme Assim, Puchkin usa a montagem para criar as imagens de uma obra de arte. Mas também usa a montagem com igual habilidade quando cria a imagem de um personagem, ou de todo um dramatis personae. Com uma combinagio superlativa de varios aspectos (isto é, “ingulos de camera”) ¢ de diferentes elementos (isto é, a montagem de coisas representadas pictoricamente, destacadas pelo enquadramento do plano), Puchkin obtém espantoso realismo em suas descricées. E na verdade o homem, completo em seus sentimentos, que emerge das paginas dos poemas de Puchkin. Quando Puchkin trabalha com uma grande quantidade de trechos de monta- gem, scu uso desse recurso se torna mais complicado. O ritmo, construido com sucessivas frases longas ¢ frases to curtas que constam de uma tinica palavra, introduz uma caracteristica dinamica na imagem da estructura da montagem. Este ritmo serve para estabelecer 0 verdadeiro temperamento do personagem descrito, dando-nos uma caracterizacao dindmica de seu comportamento. Pode-se aprender também com Puchkin como fazer para que uma sucesso ordenada da apresentagio ¢ revelagao das caracteristicas ¢ da personalidade de um homem aumente o valor total da imagem. Um exemplo excelente desta conexio € sua desctigio de Pedro, o Grande, em Poltava: L .. Eentio, com a maior veeméncia, Hi Soou, vibrante, a voz de Pedro: ML. armas, Deus esteja conosco!” Da tenda, IV. Por intimeros favoritos rodeado, V. Pedro surge. Seus olhos VI. Fafscam. Seu olhar ¢ terrivel. Vil. Seus movimentos dgeis. Magnifico, divina. Vill. Todo 0 seu aspecto, fi IX. Avanga. Seu corcel Ihe € entregue. X. Fogoso e décil,fiel cavalo de batalha. XI. Pressentindo o fogo fatal, XIL.Treme. Enviesa os olhos. Xill. Ese langa na poeira da luta. XIV. Orgulhoso de seu poderoso cavaleiro.”4 Anumeragio acima é a dos versos do poema: agora descreveremos novamente esta passagem como se fosse o roteiro de um filme numerando os “planos” tal como montados por Puchkin 1. Eentao, com a maior veeméncia, soou, vibrante, a voz de Pedro: “As armas, Deus esteja conosco!” 2. Da tenda, por intimeros favoritos rodeado. 3. Pedro surge. Palavra e imagem 39 . Seus olhos fafscam. . Seu olhar é terrivel. . Seus movimentos dgeis. . Magnifico. . Todo o seu aspecto, fiiria divina. 9. Avanga. 10. Seu corcel Ihe é entregue. 11. Fogoso e décil, fiel cavalo de batalha. 12. Pressentindo o fogo fatal, treme. 13. Enviesa os olhos. 14, E se langa na poeira da luta, orgulhoso de seu poderoso cavaleiro. eA O niimero de versos ¢ 0 ntimero de planos se mostram idénticos, 14 em cada caso, mas quase no hé coincidéncia entre 0 esquema dos versos ¢ 0 esquema dos planos; tal coincidéncia ocorre apenas duas vezes nos 14 versos: VIII = 8 eX = 11. Além disso, 0 contetido de um plano varia de dois versos completos (1, 14) a uma nica palavra (9). Isto é muito instrutivo para profissionais de cinema, particularmente os espe- cialistas em som. Examinemos como Pedro ¢ “montado”: Os planos 1, 2 ¢ 3 contém um excelente exemplo de apresentagio significante de uma figura em agdo. Aqui trés niveis, és estagios de seu aparecimento, sio absolutamente distintos: (1) Pedro ainda nao € mostrado, mas é apresentado pelo som — sua voz. (2) Pedro sai da tenda, mas ainda nio € visivel. Tudo o que podemos ver € 0 grupo de favoritos rodeando-o. (3) Finalmente, apenas num terceiro estégio, Pedro é realmente visto ao se afastar da tenda. Isto é seguido pelos olbos fiscantes, o detalhe mais importante de sua aparén- cia geral (4). Em seguida, todo o rosto (5). Sé entao sua figura inteira ¢ apresentada (apesar de cortada nos joelhos pelo enquadramento de um plano em traveling), para O ritmo do movimento ¢ o mostrar seus movimentos, sua agilidade ¢ energia personagem que cle ilumina sio expressados “impetuosamente” pelo choque de frases curtas. A apresentacio total de toda a figura sé ocorre no Plano 7, ¢ agora de um modo que supera a descrigao informativa — vividamente, como uma imagem “Magnifico.” No plano seguinte, esta descricao ¢ reforgada e ampliada: “Todo o seu aspecto, fiiria divina.” Apenas no oitavo plano Puchkin revela Pedro com o poder ste oitavo plano, obviamente, enquadra Pedro do plano, total de uma representagao plastica. em todo o seu tamanho, salientado por todos os recursos da composi com uma coroa de nuvens acima dele, com tendas ¢ pessoas rodeando-o a seus pés. Depois deste plano amplo, o poeta nos reconduz imediatamente para o ambito do movimento ¢ da ado, com a tinica palavra “avanga”, Seria dificil capturar de modo mais intenso a segunda caracteristica decisiva de Pedro: o andar de Pedro — a mais 40 O sentido do filme impressionante desde os “olhos faiscantes”. O lacénico “avanga” transmite comple- tamente a sensagio do enorme, primitivo, impetuoso andar de Pedro, que sempre tornou dificil a seu séquito segui-lo. De um modo igualmente genial Valentin Serov capturou € registrou este “andar de Pedro” com seu famoso quadro de Pedro na construgio de Sao Petersburgo.> Acredito que a apresentaao acima seja uma leitura cinematogréfica correta dessa passage. Em primeiro lugar, uma “introdugio” como esta de um persona- gem de Puchkin ¢ geralmente tipica de seu estilo. Basta ver, por exemplo, outra brilhante passagem de um tipo exatamente igual de “apresentagio”, o da bailarina Iscomina em Eugene Oneguin.Uma segunda prova da correcio da leitura acima a determinasao da ordem das palavras que, com absoluta exatidio, por sua vez, ardena o aparecimento sucessivo de cada elemento, os quais finalmente se fundem na imagem do personagem, “revelando-o” plasticamente. Os planos 2 ¢ 3 seriam construidos de modo bastante diferente se, em vez de w Da tenda Por intimeros favoritos rodeado, Pedro surge... © texto dissesse: Pedro surge, Por iniimeros favoritos rodeado, Da tenda... Se 0 aparecimento tivesse comecado com Pedro, em vez de conduzir a Pedro, a impressio seria bastante diferente. Como Puchkin escreveu, € um modelo de expressividade, conseguido através de um puro método de montagem ¢ com meios de pura montagem. Para cada caso ha dispontvel uma estrutura expressiva diferen- te, Masa estrutura expressiva escolhida para cada caso prescteve ¢ traga pteviamente “a Ginica organizagio correta das tinicas palavras adequadas”, sobre a qual Tolstoi escreveu no ensaio O que ¢ a arte? O som da voz de Pedro e suas palavras sio ordenados com a mesma qualidade de sucessio Idgica que permeia as imagens pictéricas (ver Plano 1). Porque Puchkin no escreveu: ..“As armas, Deus esteja conosco!” Soou a voz de Pedro, vibrante, com a maior veeméncia. mas: Palavra e imagem a1 ... E entao, com a maior veeméncia, Soou, vibrante, a voz de Pedro: “As armas, Deus esteja conosco! Se nés, como cineastas, tivermos que enfrentar a tarefa de construir a expre sividade de uma tal exclamagao, também devemos transmiti-la de modo que haja uma sucessio ordenada, revelando primeiro sua veeméncia, depois sua qualidade vibrante, seguida pelo nosso reconhecimento da voz. como a de Pedro, ¢ final mente, distinguindo as palavras que esta voz exaltada, poderosa, de Pedro emite: “As armas, Deus esteja conosco!” Parece evidente que, ao “encenar” tal passagem, a questio deveria ser resolvida simplesmente ouvindo-se primeiro uma frase de exclamagio saindo da tenda, na qual as palavras nao poderiam ser distinguidas, mas que jé cransmitiriam as qualidades de veeméncia e vibrasao que mais tarde se reconheceria como caracteristicas da voz de Pedro. Como vemos, isto é de grande importincia com relagio a0 problema do enriquecimento dos recursos expressivos do cinema. O exemplo é um modelo do tipo mais complexo de composicéo som-imagem ou Audio-visual. Parece incrivel que ainda exista entre nés quem considere desne- cessdtio buscar esse tipo de ajuda para nosso meio de expressio, e considere que é possivel acumular experigncia suficiente através do estudo da coordenagio da mtisica com a aco apenas na pera ou no bald! Puchkin nos ensina até como trabalhar de modo a evitar uma coincidéncia mecanica entre os planos ¢ o ritmo da trilha musical. Consideremos apenas o caso mais simples — a nao coincidéncia dos compas- sos (neste caso, os versos) com os finais, inicios ¢ duragdes dos quadros plisticos isolados. Num diagrama simples seria mais ou menos assim: Musica [1 [i [m[w[v [wyvi[vm] x] x [xX [x yxmxiv] Imagem 1 2 [3] 4 [slo[7} s [oftol mn [12 [13 “| Alinha superior é ocupada pelos 14 versos da passagem. A linha inferior, pelas 14 imagens feitas a partir dos versos O diagrama indica sua distribuigao correspondente em relagao a passagem. Este diagrama torna evidente o primoroso estilo de contraponto de elementos sonoros-visuais que Puchkin usa para obter os magnificos resultados desta passa- gem polifénica do poema. Como jd vimos, com a excegao de VIII = 8 e X = 11, nao verificamos nem mais um tinico caso de correspondéncia idéntica de verso ¢ plano. Além disso, plano e verso coincidem em relagdo a ordem apenas uma vez; VIII 8. Isto ndo pode ser acidental. Esta tinica correspondéncia exata entre as articula- oes da musica e as articulagdes dos planos marca o trecho de montagem mais significativo de toda composigao. E tinico: neste oitavo plano, as caracteristicas de 42 sentido do filme Pedro sio plenamente desenvolvidas e plenamente reveladas ¢, além disto, é 0 tinico verso que usa uma comparagio pictérica: “Todo o seu aspecto, firia divina.” Vemos que este recurso de coincidir a énfase da muisica com a énfase da representagio é usado por Puchkin no caso de maior impacto da passagem. Isto exatamente 0 que faria no cinema um montador experiente — como um compositor de harmonias audiovisuais. Na poesia, 0 encadeamento de uma frase descritiva, de um verso para outro, é chamado de “enjambement”. Em sua Introdugdo a métrica, Zhirmunsky escreve: Quando a articulagio métrica nao coincide com a sintética, surge 0 chamado enca- deamento (enjambement)... O sinal mais caracteristico de um encadeamento € a presenga, em um verso, de uma pausa sintdtica mais significativa do que a do inicio ou fim do verso...” Ou conforme se pode ler no Webster’ Dictionary: ENJAMBEMENT... Continuagéo do sentido em uma frase, depois do final de um verso ou distico, prolongamento de uma frase de um verso para outro, de forma que palavras intimamente relacionadas caem em versos diferentes...?® Um bom exemplo de enjambement pode ser visto no Endymion, de Keats: ... Assim terminou ele, ¢ ambos Sentaram-se silenciosos: porque a jovem relutava muito Em responder; percebendo bem que aquelas palavras sussurradas Se perderiam, sem serem ouvidas, e vis como espadas Contra crocodilos empalhados, ou pulos De gafanhotos contra o sol. Ela chora, E imagina; esforca-se para divisar alguma culpa Para colocar no olhar a expressio, Vergonha Por esta pequena fraquezal mas apesar de todo 0 esforgo, Seria mais facil para ela tirar a vida De uma pomba doente. Finalmente, para quebrar o siléncio, Ela disse, com trémula expectativa: “E esse o motivo? Zhirmunsky também fala de uma interpretacdo particular deste tipo de cons- trugdo que também nos interessa, de certo modo, com relagio as nossas harmonias audiovisuais no cinema, onde o quadro desempenha o papel da frase sintatica e a estrutura musical o papel da articulagio ritmica: Qualquer ndo-coincidéncia da articulagao sintética com a métrica é uma dissondncia artisticamente deliberada, que se resolve no ponto em que, depois de uma série de Palavra e imagem 43 nao-coincidéncias, a pausa sintatica finalmente coincide com os limites da série ritmica. °° Isto pode ser ilustrado por um exemplo, desta vez de Shelley, de Julian ¢ Maddalo: Ele parou e, | perturbado, reclinou-se um pouco, |} Entio levantando-se, com um sortiso melancélico Foi para um sofi, || e deitou-se, |] e dormiu Um sono pesado, |] e em seus sonhos ele chorow E murmurou um nome familiar, || e nés Choramos, sem nos envergonharmos, em sua companhia. Na poesia russa, 0 “enjambement” assume formas particularmente ricas na obra de Puchkin. Na poesia francesa, uso mais consistente desta técnica se encontra na obra de Victor Hugo e André Chénier, apesar de 0 exemplo mais claro que jamais encontrei na poesia francesa estar num poema de Alfred de Musset: Lantilope aux yeux bleus, | est plus tendre peut-étre Que le roi des foréts; || mais le lion répond Quil nest pas antilope, | et qu'il a nom || lion’ © “enjambement” enriquece a obra de Shakespeare ¢ Milton, reaparecendo cm James Thomson, Keats ¢ Shelley. Mas ¢ claro que o poeta mais interessante a este respeito Milton, que teve grande influéncia sobre Keats e Shelley em seu uso desta técnica. Ele declarow seu entu perdido: asmo pelo “enjambement” na introdusio de Paraiso . verdadeiro deleite musical... consiste apenas em Numeros apropriados, quantida- labas, ¢ o sentido prolongado, de formas variadas, de um Verso para de adequada de S outro..2° O proprio Paraiso perdido é uma escola de primeiro nivel no ensino de montagem e relagdes audiovisuais. Citarei varias passagens de diferentes partes da + Em francés no original: © antilope de olhos auis | é talver mais terno Que 0 Rei da Floresta ||] Mas o lefo responde Que nio é antilope | ¢ que seu nome é || leio 44 O sentido do fitme obra — em primeiro lugat, porque Puchkin, traduzido, munca consegue dar a0 leitor estrangeiro o deleite direto das peculiaridades de sua composigio, conseguido pelo leitor russo em passagens como as analisadas acima. Isto 0 leitor pode conse- guir obter mais sucesso em Milton. E, em segundo lugar, porque duvido muito que meus colegas britinicos ou norte-americanos tenham 0 hdbito de folhear com freqiiéncia o Paraiso perdido, apesar de ele conter coisas muito instrutivas para 0 cineasta. Milton é particularmente bom em cenas de batalha. Aqui sua experiéncia pessoal e observagoes de testemunha ocular freqiientemente tomam corpo. Hilaire Belloc escrevew com justia sobre ele: Tudo o que é marcial, que combina som e multidao, atraiu Milton desde as Guerras Civis... Sua imaginagio capturava especialmente 0 apelo da miisica ¢ o esplendor das cores...3! E, conseqiientemente, ele descreveu as batalhas divinas com detalhes tao intensamente terrenos que freqiientemente foi alvo de sérios ataques € reprovagées. Estudando as paginas de seu poema e, em cada caso individual, analisando as qualidades determinantes ¢ efeitos expressivos de cada exemplo, enriquecemos extraordinariamente nossa experiéncia com relagao a distribuicio audiovisual das imagens em sua montagem sonora. Mas cis as imagens: (A aproximagdo da “Hoste de Sata”) finalmente Ao longe, no Horizonte, descobriu-se De um lado ao outro, Regio fgnea, disposta Sob a forma de exército, que, aproximando-se ‘Mostrava poderes ligados a Satands, Cobertos com os raios inumerdveis De sélidas ¢ inflexiveis Langas; via-se uma afluéncia de Capacetes e de varios Escudos Guarnecidos com Pinturas insolentes Esses Poderes se apressavam Com furiosa rapidez...? Notem a instrugéo cinematogréfica, no terceiro verso completo, para mudar 0 lugar da cémera: “aproximando-se"! (O movimento correspondente das "Hostes Celestiais”) ... essa alta honra é reclamada, como direito, Por Azazel, grande Querubin, Palavra e imagem 48 Que, imediatamente, desfralda da Haste brilhante A Insignia Imperial que, elevada e plenamente avangada, Brilha como um Meteoro, flutuando ao Vento, Como as Pérolas e a rica cintilagao do Ouro, A brasonarem as Armas e os Troféus seréficos. Durante tudo este tempo O bronze sonoro enchia o ar, com sons Marciais, E o exército universal expediu Um grito, que rasgou a Cavidade do Inferno, e, mais longe ainda, Assustou o Reino do Caos e da velha Noite. Num instante, no meio das Trevas, foram vistas Dez mil Bandeiras levantadas no Ar, Ondulando as Cores Orientais: com estas bandeiras, ergueu-se Enorme Floresta de Langas, Capacetes aglomerados Apareceram ¢ os Escudos curvaram-se em densa linha De extensio incomensurével! Dentro em pouco, os guerreiros movem-se Em perfeita Falange, maneira dos Dérios Flautas e suaves Oboés; uma tal meneira elevou A altura da mais nobre calma heréis antigos 33 ‘Aarmarem-se para a Batalha E aqui estd uma parte da propria batalha, Eu a transcreverei com os mesmos dois tipos de transcrigio como o fiz na passagem de Poltava de Puchkin. Primeiro, como dividida em versos por Milton, ¢ depois arrumados de acordo com os varios quadros de composigio, como um roteiro de filmagem, onde cada nimero indica um novo fragmento de montagem, ou plano. Primeira transcrigao: em forga, cada mo armada valia Uma Legiao. Conduzido ao combate, cada Soldado parecia um Chefe, I. Cada Chefe um Soldado; destros, II, Sabiam quando deviam avangar ou deter-se, quando deviam mudar a direcao IV. Da Batalha, abrir ou fechar V. Os sulcos da horrivel Guerra. Nenhum pensamento de fuga vi. Nem de retirada, nenhuma agao indecorosa VIL. Que provasse o medo; cada um confiava em si mesmo VIII. Como se o momento da vitéria dependesse IX. Somente do seu brago. Inumerdveis feitos de fama imorredoura X. Foram efetuados, pois vasta e variada se estendia XI. A Guerra; ora o combate mantido em terra firme XI. Ora elevando-se sobre poderosa asa, XII]. Atormentava todo o Ar, e entio todo o Eter parecia XIV, Fogo Militante. A Batalha por muito XV. Foi suspensa em igual balanga...>4 46 O sentido do filme Segunda transcricéo: . Conduzido ao combate, cada soldado parecia um chefe, cada chefe um soldados . destros, sabiam quando deviam avangar . ou deter-se . quando deviam mudar a diregao da baralha abrir | . ou fechar os sulcos da horrivel guerra . Nenhum pensamento de fuga, nem de retirada, nenhuma ago indecorosa, que provasse o medo; cada um confiava em si mesmo, como se o momento da vitéria dependesse de seu brao 10. Inumersiveis feitos de fama imorredoura foram efetuados Sen avawne 11. pois vasta e variada se estendia a guerra; 12, ora o combate mantido se estendia em terra firme 13. ora levando-se sobre poderosa asa, atormentava todo o ar, 14. e entio todo o éter parecia fogo militante 15. A baralha por muito foi suspensa em igual balanga, Como na citacéo de Puchkin, aqui também hé um ntimero idéntico de versos € planos. Também como em Puchkin, é construfdo aqui um esquema de contra- ponto nao-coincidente entre os limites das representacées ¢ os limites das articula- goes ritmicas. E-se levado a exclamar, nas préprias palavras de Milton em outra parte do poema: labitintos intrincados, Excéntricos, envolvidos uns nos outros porém regulares ‘Ao maximo, quanto mais irregulares parecem...° Mais uma passagem do Livro VI, quando 0s anjos rebelados sao jogados no Inferno: No entanto, o Filho de Deus nao tinha ainda usado a metade de sua forga, ¢ refreou Seu Trovio no meio da Descarga, pois Ele nao visava Destrui-los, mas desarraigé-los do Céus 1. Levantou os que estavam caidos e, como a um Fato I. De Cabras ou a um rebanho timido, reunido em tropel, Mil, Expulsa-os a sua frente. Fulminados, perseguidos IV. Pelos cerrores e pelas firias até os limites, V. Atéa Muralha de Cristal do Céu, que, abrindo-se amplamente, VI. Rola no seu Amago ¢ descobre, por espacos Brecha. Vil. © Abismo devastado; esta vista monstruosa Palavra e imagem 47 VIII. Os fere de horror, mas ao longe, horror ainda pior IX. Os faz recuar; cabesa para baixo, eles préprios se precipitam X. Da borda do Céu, a célera eterna XI. Arde atrés deles até o abismo insondével. Nove dias cairam...3° E como se fosse um roteiro de filmagem: 1, Levantou os que estavam caidos, 2. como aum fato de cabras ou a um rebanho timido, reunido em tropel 3. expulsa-os & sua frente, fulminados, 4, perseguidos pelos terrores e pelas fiirias até os limites, até a muralha de cristal do céu que, abrindo-se amplamente, rola no seu amago e descobre, por espacosa brecha o abismo devastado; esta vista monstruosa os fere de horror . mais ao longe, horror ainda pior os faz recuar 0. cabega para baixo, eles préprios se precipitam da borda do céu; 1. acdlera eterna arde atrds deles até o abismo insondével. Hee enay E possivel achar em Milton tantos exemplos de coordenacio, instrutivos como estes, quanto se desejar. O esquema formal de um poema, em geral, observa a forma de estrofes distribufdas internamente de acordo com a articulagio métrica — em versos. Mas a poesia também nos proporciona outro esquema, que tem um poderoso defensor em Maiakovski, Em seu “verso cortado”, a articulacao ¢ feita no de acordo com os limites do verso, mas de acordo com os limites do “plano”. Maiakovski nao trabalha com versos: Vicuo. Voa nas alturas, Nas estrelas esculpindo seu caminho. >” Ele trabalha com plano’ Vacuo. Voa nas alturas. Nas estrelas esculpindo seu caminho. Aqui Maiakovski corta seu verso exatamente como um experiente montador © faria a0 construir uma seqiigncia tipica de “impacto” (as estrelas — ¢ Yesenin. Primeiro — um, Depois — 0 outro. Seguido pelo impacto de um contra 0 outro. 48 O sentido do filme 1. Vaewo (se féssemos filmar este “plano”, enquadrariamos as estrelas para enfatizar 0 vatio, mas ao mesmo tempo fazendo com que sua presenga seja sentida). 2. Voa nas alturas 3. E apenas no serceiro plano retratamos claramente os contetidos do primeiro € segundo planos nas circunstancias de impacto. Como podemos ver, ¢ como poderia ser multiplicado com outros exemplos, a criagdo de Maiakovski é impressionantemente grafica nesta questdo da montagem. Em geral, porém, neste caso € mais excitante voltar aos cléssicos, porque cles pertencem a um perfodo em que nem se sonhava com a “montagem” neste sentido. Maiakovski, afinal de contas, pertence ao perfodo no qual as reflexées sobre a montagem ¢ os principios de montagem se tornaram amplamente correntes em todas as artes préximas da literatura: no teatro, no cinema, na montagem fotografi- ca, ¢ assim por diante. Em conseqiténcia, exemplos de estilo realista de montagem tirados do tesouro de nossa heranga cldssica, onde interagdes desta natureza com campos préximos (por exemplo, com o cinema) eram poucas, ou totalmente inexistentes, sio os mais intensos mais interessantes ¢, talvez, mais instrutivos. Porém, néo importa se na imagem, no som ou em combinagdes imagem — som, se na criaggo de uma imagem, de uma situagio, ou na “magica” encarnacio diante de nossos olhos das imagens dos dramatis personae — seja em Milton ou em Maiakovski —, em toda parte encontramos igualmente presente este mesmo méto- do de montagem. Que conclusio podemos tirar sobre o que foi dito até agora? A conclusio € que no hé nenhuma incompatibilidade entre o método pelo qual o poeta escreve, 0 método pelo qual o ator forma sua criagio dentro de si mesmo, © método pelo qual o mesmo ator interpreta seu papel dentro do enquadra- mento de um nico plano, ¢ 0 método pelo qual suas agdes € toda a interpretacio, assim como as agées que o cercam, formando seu meio ambiente (ou todo o material de um filme), fulguram nas maos do diretor através da mediagio da exposigio e da construcao em montagem, do filme inteiro. Na base de todos estes meétodos residem, em igual medida, as mesmas qualidades humanas vitais ¢ fatores determinantes inerentes a todo ser humano e a toda arte vital. Nao importa quao opostos sejam os pélos nos quais cada uma dessas esferas possa parecer se mover, clas se encontram na afinidade ¢ unidade final de um método como o que agora percebemos nelas. Essas premissas colocam diante de nés, com nova forga, a questo de que os profissionais da arte cinematogréfica devem nao apenas estudar 0 estilo dramético ca mestria do ator, mas devem dar igual atengao ao dominio de todas as sutilezas da ctiagio da montagem em todas as suas aplicagGes. Palavra e imagem 49 Notas 1. Montazh 1938. Escrito em 1937, retrabalhado entre margo e maio do ano seguinte € publicado apenas em parte na edigio de janeiro de 1939 de Iskusstua Kino (Arte do cinema). Uma outra ver retrabalhado para publicagio como primeiro capitulo de O sentido do filme em 1941: Eisenstein mudow o titulo (de Monzagem 1938 para Palavra e imagem) e ajustou 0 texto para o leitor de lingua inglesa 2. NS.Es John Livingston Lowes, The Road to Xanadu, 1930. 3. NS.Ei Ambrose Bierce, The Monk and the Hangman Daughter: Fantastic Fables, 1925. 4.NR: “porta-casaco”) as grandes valises muito em voga na época durea das viagens de trem e navio, q em cabides, a0 mesmo tempo. Palavras portmanteau sio as que cattegam dois ou mais significados a0 mavam-se malas portmanteau (literalment e podiam carregar varias roupas, penduradas mesmo tempo. 5. NSE: The Complete Works of Lewit Carroll, 1937 (O texto original citado por Eisenstein usa as palavras fuming e furious, e como montagem final fivmious.] 6. NE: Sigmund Freud, Der Wire und seine Beziehung zum Unbewussten (O chiste e sua relagio com o inconsciente). Viena, 1905. 7. NSE. Kurt Koffka, Principles of Gestale Peychology, 1935. 8. NSE: Leon Tolstoy, Anna Karenina. 9. NSE: Mais tarde veremos que este mesmo principio dindmico esté na base de todas as imagens realmente vitais, mesmo num meio aparentemente estitico e imével como, por exemplo, a pincura. 10. NS.F.: Guy de Maupassant, Bel ami. [Tradugio brasileira de Clovis Ramalhete. Sio Paulo, Livearia Martins, 1953.] 11. Eisenstein se refere aqui a seqiléncia final de Outubro, onde 14 planos deste relégio com vitios mosteadores indicando a hora em diversas cidades aparecem montados ao lado de planos de mios que aplaudem e rostos que sorriem. 12. Nikolai Tcherkasov (1903-1976), intérprete de Poet i Czar (O poeta ¢ 0 tzar, 1927) de Vladimir Gardine (1877-1965), seu primeiro trabalho no cinema; Deputat Balti (O deputado do Béltico, 1937) de Alexander Zarkhi (+1908) c lossif Kheifits (71905); ¢ de dois filmes de Eisenstein, Alexander Nevsky (Cavaleiros de ferro, 1938) ¢ Ivan Grozny (lod, o Terrivel, 1944-1946) entre outros. 13. Nikolai Okhlopkov, intérprete, entre outros, de Lenin » Oktiabr (Lenin em outubro, 1937) ¢ Lenin v 1918 (Lenin em 1918) de Mikhail Romm (1901-1971); de Alexander Nevsky (Cavaleiros de ferro, 1938) de Eisenstein. 14. Boris Tchirkoy, intérprete, entre outros, de Urchitel (O professor, 1939) de Sergei Guerassi- mov (1906-1985) ¢ da Tvilagia de Maximo: Iunost Maxima (A juventude de Maximo, 1934), Vezwnas- tchenie Maxima (A volea de Maximo, 1937) ¢ Vyborgskaia storona (O bairro de Vyborg, 1938) filmes de Grigori Kozintzev (1905-1973) e Leonid Trauberg (*1902). 15. Lev Sverdlin, intérprete de, entre outros, Volochayevskyi dni (A defésa de Volochaievski, 1938) de Sergei (1900-1955) ¢ Georgi (1899-1946) Vassiliev; e Viadniki (Cavaleiros, 1939) de Igor Savtchenko (1906-1950). 16, NS.E: George Arliss, Up the Years from Bloomsbury, 1927. 17. NS.E: Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, citado em Leonardo da Vinci de A. Volinski, Moscou, 1923. 18. NS.E: Leonardo da Vinci, Traité de la peinture, Patis, 1921. Nota de pé de pagina de Joséphin Peladan. 50 O sentido do filme Publicado em Literarurnaya Gazeta, Moscou, 26 de margo de 1938. 20, NSE: Karl Marx, Bemerkungen ueber de neweste priissische Zensurinstruktion in Werke und Schriften, Briefe und Dkumenten, Berlirm, Marx-Engels Gesamtausgabe, vol-1 21. NS.E: E ébvio que o tema como tal é capaz de excitar emocionalmente, independente da forma em que é apresentado, Uma curta noticia de jornal sobre a vitéria dos republicanos espanhéis cm Guadalajara € mais emocionante que uma obra de Beethoven. Mas aqui estamos discutindo como, através da arte, podemos elevar um determinado tema ou assunto, que pode ser excitante “em si mesmo”, a um grau maximo de eficicia. E claro que a montagem, como tal, de modo algum é um meio exaustivo neste campo, apesar de ser um meio tremendamente poderoso. 22. NS.E: Alexander Sergeievitch Puchkin, Polnoye Sobraniye Sochinenil, Leningrado, 1936. 23. NS.Ex Ibid. 24. NSE: Ibid. 25. NS.E2 Pedro 1, guache de Valentin Serov, parte da colegio da Galeria ‘Tretiakov, de Moscou {Valentin Alexandrovich Serov (1865-1911) pintor famoso por seus retratos, professor de pintura em Moscou entre 1909 ¢ 1911. No sétimo capitulo de Cinematisme (Editions Complexe, Bruxclas, 1980) Eisenstein analisa longamente um quadro de Seroy, o retrato da atriz Maria Nicolaieva Ermolova (1853-1928) pintado em 1908. No quarto capitulo de A natureza nao indiferente (La non-indifférente nature, dois volumes, Union Générale d’Editions, Paris, 1978) Eisenstein analisa um outro quadro de Seroy, o retrato de Gorki feito em 1904] 26. NSE: O teatro esté cheio, os camarotes resplandecem, As poltronas estio agitadas, a platéia ruge, A galeria bate palmas e sapatcia excitada; Acortina sussurra ao ser levantada; Uma luz fantistica em redor de sua danga, ‘A magica da saudagio obedecendo, Uma multidio de ninfas em volta dela — veja! Iscomina na ponta dos pés.. (Puchkin, obra citada). 27.NSE: Viktor Maximovitch Zhirmunsky, Vedeni v Metriku, teoria stikha, Leningrado, 1925. 28. N.R: Eisenstein cita diretamente o verbete do dicionsrio Webster’ na versio preparada para a edigio de lingua inglesa. 29. NSE: Viktor M. Zhirmunsky, obra citada. 30. NSE: The Works of John Milton, voli, Paradise Lost, The Verve. Columbia University Press, 1931. 31. NSE: Hilaire Belloc, Milton. Lippincott, 1935. 32. NS.Ez John Milton, Paradise Lost (Paraiso perdido, tradugio de Conceigio G. de Sotto Maior, Edig6es de Ouro, livro V1, p.189.] 33. NSE: Ibid., Livro! 34..NS.E: Ibid., Livro VI 35. NSE: Ibid., Livro V 36. NSE: Ibid., Livro VI 37. NS.E: A Sergei Yesenin (Este poema de Vladimir Maiakovski (1893-1930) foi publicado na revista LEF pouco depois da morte do poeta Sergei Yesenin (1895-1925), que se suicidou num hotel de Leningrado deixando uma tiltima poesia escrita com o sangue dos pulsos cortados, Até logo, até Logo, companhreiro\ Il. Sincronizagdo dos sentidos' ._ na realidade, quanto mais as artes se desenvolvem, tanto mais dependem umas das outras para se defini- rem. Primeiro pediremos um empréstimo & pintura, € chamaremos de forma. Mais tarde, peditemos um em- préstimo & musica, e chamaremos de ritmo, > E.M. FORSTE! Ele gradualmente dissolveu-se no Infinito — seus sen- tidos corporais jé haviam sido deixados para trés, ou, de qualquer modo, estavam todos misturados: de modo que as mesinhas verdes do café s6 0 atingiam como um tilintante arpejo do sonoro contrabaixo da luz do sol, no estrondeante céu Ii fora: enquanto 0 chocalhar de um carro de boi que passava era traduzi do por uma série de vividos clardes de cor, ¢ 0 descon- forto da cadeira desconjuntada onde ele se sentava tinha um cheiro amargo em suas narinas.. RICHARD HUGUI a ‘A montagem foi definida anteriormente aqui como: © fragmento A, derivado dos elementos do tema em desenvolvimento, ¢ 0 fragmento B, derivado da mesma fonte, ao serem justapostos fazem surgir a imagem na qual o contetido do tema é personificado de forma mais clara. Ou: A representagdo A ¢ a representagao B devem ser selecionadas entre os muitos possiveis aspectos do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de modo que sua justaposigdo — isto é, a justaposicao destes precisos elementos ¢ nio de elementos alternatives — suscite na percepcao ¢ nos sentidos do espectador a mais completa imagem deste tema preciso. 51 82 O sentido do filme Esta formulacao foi apresentada deste modo, sem que fossemos limitados por qualquer tentativa de determinar os graus gualitativos de A ou B, ou de fixar qualquer sistema de mensuragao de A ou B. A formulagdo permanece, mas devemos desenvolver suas qualidades ¢ proporgies. “Entre os muitos possiveis aspectos do tema em desenvolvimento.” Esta frase nao foi incluida na formulagao por acaso. Tomando por base que a imagem Unica, unificadora, determinada por suas partes componentes, desempenha o papel decisivo na hora cinematogréfica criati- va, queremos salientar logo no inicio desta parte da discussio que os meios de expresso podem ser retirados de qualquer um dos varios campos com objetivo de enriquecer ainda mais a imagem. Nao deve haver limites arbitrérios a variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasta. Gostaria de pensar que isto foi conclusivamente demonstrado pelos exemplos acima, de Leonardo da Vinci, Milton ¢ Maiakovski. Nas notas de Leonardo para O Diltivio, todos os seus varios elementos — os puramente plisticos (0 elemento visual), os que indicam o comportamento huma- no (o elemento dramdtico), e o barulho do desmoronamento e dos gritos (o elemento sonoro) — todos séo igualmente fundidos numa imagem tnica, unifica- dora, definitiva, de um diltivio. Tendo isto presente, vemos que a transigio da montagem do cinema mudo para o cinema sonoro, ou montagem audiovisual, nao muda nada quanto ao principio. Aconcepgao de montagem apresentada aqui engloba igualmente a montagem do cinema mudo e do cinema sonoro. Isto nado quer dizer, porém, que, ao trabalhar com o cinema sonoro, nao somos confrontados com novas tarefas, novas dificuldades e até métodos totalmen- te novos. Pelo contrario! Eis por que € tao necessrio fazermos uma andlise global da natureza dos fenémenos audiovisuais. Nossa primeira pergunta é: onde devemos procurar uma base segura de experiéncia para comegarmos nossa andlise? Como sempre, a mais rica fonte de experiéncia € 0 proprio Homem. O estudo de seu comportamento e, particularmente neste caso, de seus métodos de perceber a tealidade e de formar imagens da realidade serd nosso determinante. Posteriormente, em nosso exame de questécs estritamente de estilo, veremos que o Homem e as relagdes entre seus gestos entonagdes da voz, que surgem das mesmas emogées, so nossos modelos para determinar estruturas audiovisuais, que se desenvolverm de um modo exatamente idéntico ao da imagem dominante. Sobre isto — mais tarde. Até entrarmos em maiores detalhes sobre este paralelis- mo, esta tese serd suficiente: ao selecionar o material de montagem a set fundido nesta ou naquela imagem particular que deve ser manifestada, devemos estudar a nés mesmos. Sincronizagio dos sentidos 33 Devemos ter plena consciéncia dos meios ¢ dos elementos através dos quais a imagem se forma em nossa mente. Nossas primeiras ¢ mais espontdneas percepgoes so freqiientemente nossas percepges mais valiosas, porque estas impresses intensas, frescas, vivas, invaria- velmente derivam dos campos mais amplamente variados. Por isso, ao abordar os classicos, € titil examinarmos ndo apenas obras acaba- das, mas também os esbogos ¢ notas em que os artistas esforgaram-se para gravar suas primeiras impresses vividas e imediatas. Por esta razio, um esboco € freqiientemente mais vivo do que a tela acabada — fato observado por Byron em sua critica de um colega poeta: Campbell corrige demais: nunca esté satisfeito com 0 que faz; suas melhores coisas foram estragadas pelo excesso de polimento — a veeméncia do esbogo é jogada fora. Tal como 05 quadros, os pocmas também podem acabar muito retocados. A grande arte ¢ efeito, nao importa como produzido.* O Dilivio de Leonardo nio foi um esbogo no sentido de um “esboco feito a0 vivo”, mas certamente um esbogo no qual ele se esforgou para colocar todos os aspectos da imagem como ela passava diante de seu olho interior. Isto é responsivel pela profusio, em sua descricéo, néo apenas de elementos grificos e plisticos, mas também de elementos sonoros ¢ dramiticos. Examinemos outro esbogo, que contém toda a “palpitagio” de nossas primei- ras, imediatas impressdes. E do Diario dos Goncourt — uma nota de pé de pagina, no registro de 18 de setembro de 1867: Encontro uma descrigio do Campo de Exportes no caderno de notas para nossos (futuros romances que nao foram realizados, viva! Na profunda sombra dos dois cantos da sala, a cintilagéo dos bot6es e das copas das espadas dos policiais. Os membros resplandecentes de lutadores surgindo em plena luz. — Olhos desafiadores. — Mios golpeando a carne ao se agatrarem. — Suor com cheito de animal selvagem. — Palidez misturada a bigodes louros. — Carne machucada se avermelhando, — Dorsos suando como as paredes de pedra de um banho a vapor. — Avangando, arrastando-se de joelhos. — Girando sobre as préprias cabegas etc. etc. A cena nos atinge através de uma combinagao de bem escolhidos “primeiros planos”, e pela imagem incomumente tangivel que surge de sua justaposicdo. Mas © que é mais notavel em tudo isso? E que, nestas poucas linhas descritivas, os diferentes planos — os “elementos de montagem” — atingem literalmente todos os sentidos — exceto, talvez, o paladar, que, porém, esta presente de forma implicita: 34 O sentido do filme 1. O sentido do tato (dorsos suando como as paredes de pedra de um banho a vapor) 2. O sentido do olfito (suor com cheiro de animal selvagem) 3. O sentido da visdo, incluindo Juz (a profunda sombra ¢ os resplandecentes membros dos lutadores surgindo em. plena luz; os botées e copas das espadas dos policiais na sombra profunda) ¢ cor (palidez misturada a bigodes louros, carne machucada se avermelhando) 4, O sentido da audigdo (mios golpeando a carne) 5. O sentido do movimento (avangando de joclhos, gitando sobre as préprias cabegas) 6. Pura emogio, ou drama (olhos desafiadores) Incontéveis exemplos deste tipo poderiam ser citados, mas todos ilustrariam, num grau maior ou menor, a tese apresentada acima, a sabe Nio ha diferenca fundamental quanto as abordagens dos problemas da mon- tagem puramente visual e da montagem que liga diferentes esferas dos sentidos — particularmente a imagem visual A imagem sonora — no processo de criagao de uma imagem tinica, unificadora, sonoro-visual. Como um principio, isto era conhecido por nés desde 1928, quando Pudoy- kin, Alexandrov e eu langamos nossa “Declaragio” sobre 0 cinema sonoro.$ Mas um princ{pio nao é mais do que um principio, enquanto nossa tarefa atual ¢ urgente é encontrar a correta abordagem deste novo tipo de montagem. Minha busca desta abordagem esteve intimamente ligada & produgio de Alexander Nevsky. E este novo tipo de montagem, associado a este filme, eu chamei de: montagem vertical. Quais as origens deste termo — e por que este termo em particular? Todos estéo familiarizados com o aspecto de uma partitura orquestral. Hd virias pautas, cada uma contendo a parte de um instrumento ou de um grupo de instru- mentos afins, Cada parte é desenvolvida horizontalmente. Mas a estrutura vertical nao desempenha um papel menos importante, interligando todos os elementos da orquestra dentro de cada unidade de tempo determinado, Através da progressio da linha vertical, que permeia toda a orquestra, ¢ entrelagado horizontalmente, se desenvolve o movimento musical complexo ¢ harménico de toda a orquestra. Quando passamos desta imagem da partitura orquestral para a da partitura Audio-visual, verificamos ser necessdrio adicionar um novo item as partes instru- mentais: este novo item é uma “pauta” de imagens visuais, que se sucedem ¢ que correspondem, de acordo com suas préprias leis, 20 movimento da musica — ¢ vice-versa. Essa correspondéncia, ou relagio, poderia descrever de igual modo 0 que ocorre se substituirmos a imagem da partitura orquestral pela estrutura de monta- gem do cinema mudo. Sincronizagao dos sentidos 5S Para isso, teremos de extrair de nossa experiéncia do cinema mudo um exem- plo de montagem polifonica, na qual um plano ¢ ligado ao outro nao apenas através de uma indicagio — de movimento, valores de iluminagao, pausa na exposicao do enredo, ou algo semelhante —, mas através de um avango simultdneo de uma série miiltipla de linhas, cada qual mantendo um curso de composicéo independente ¢ cada qual contribuindo para o curso de composigao total da seqiiéncia, Um exemplo como este pode ser encontrado na estrutura de montagem da “seqtigncia da procissio” de O velho e 0 novo. Nesta seqiténcia, as varias linhas interdependentes virtualmente parecem uma bola de fios multicoloridos, com as linhas se interligando e ligando toda a seqiténcia de planos. Estas foram as linhas da seqiiéncia: 1. A linha do calor, crescendo de plano a plano. 2. A linha de primeiros planos variados, crescendo em intensidade plastica 3. Alinha do crescente éxtase, mostrada através do contetido dramatico dos primeiros planos. 4. Alinha das “vozes” das mulheres (rostos das cantoras). 5. A linha das “vozes” dos homens (rostos dos cantores). 6. A linha dos que se ajoclham diante dos icones que passam (aumentando o ritmo). Esta contracorrente deu movimento a uma corrente contréria maior, que foi tecida através do tema original — dos adoradores de fcones, cruzes ¢ bandeiras. 7.A linha do restejamento, unindo ambas as correntes ao movimento geral da seqiiéncia, “do céu a0 chao”. Dos radiantes pindculos das eruzes ¢ bandeiras contra 0 céu até as figuras prostradas batendo com a cabesa no chao. Este tema foi anunciado na abertura da seqiiéncia por um plano “chave”: uma répida panorimi- resplandecente no céu para a base da igreja de ca baixando da cruz do campandi onde a pro Jo se move. O curso geral da montagem foi um entrelacamento ininterrupto dos diversos temas com um movimento unificado. Cada unidade de montagem teve uma dupla responsabilidade — construir a linha total, assim como continuar 0 movimento dentro de cada um dos temas contribuintes Ocasionalmente uma unidade de montagem conteria todas as linhas, ¢ algu- mas vezes apenas uma ou duas, excluindo as outras linhas por um momento: algumas vezes um dos temas dava um passo para trds, necessdrio apenas para tornar mais efetivo seus dois passos para a frente, enquanto os outros temas prosseguiam em quantidades iguais, ¢ assim pot diante. Mas o valor de uma unidade de monta- gem era determinado nao apenas por um aspecto, mas sempre pela série total de aspectos, antes que seu lugar na seqiiéncia fosse fixado. Uma unidade satisfatéria em sua intensidade para a linha do calor ficaria deslocado no “coro” particular no qual caitia se medido apenas por sua intensidade. 56 O sentido do filme Enquanto as dimensies de um rosto em primeiro plano podem caber em um lugar, a expresséo do rosto ficaria melhor em outro lugar da seqiiéncia. A dificuldade deste trabalho nao deveria surpreender ninguém, porque o processo é exatamente idénti- co a preparacéo da mais despretensiosa orquestragio. Sua principal dificuldade foi, é claro, o fato de o trabalho estar sendo feito com o material do cinema, muito menos flexivel, e de a quantidade de variagio ser limitada pelas exigéncias desta segiléncia particular. Por outro lado, devemos ter em mente que esta estrutura polifénica feita de muitas linhas independentes adquire sua forma final nao apenas a partir do plano para o qual foi determinada previamente, Esta forma final depende em igual medida do carter da seqiiéncia do filme (ou filme completo) como um complexo — um complexo composto de tiras de filme contendo imagens fotogrificas. Foi exatamente este tipo de “colagem”, além de tudo complicada (ou talvez simplificada?) por outra linha — a trilha sonora —, que tentamos obter em ‘Alexander Nevsky, especialmente na seqiiéncia dos cavaleiros alemaes que atacavam avancando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do céu — nebuloso ou limpo, do ritmo acelerado dos cavaleitos, de sua diregifo, do corte para trds e para a frente dos russos para 0s cavaleiros, dos rostos em primeiro plano e dos planos de conjunto, a estrutura tonal da musica, seus femas, scus ritmos, seus tempi etc. — criaram uma tarefa nao menos dificil do que a da seqiiéncia muda acima. Muitas horas foram gastas para fundir estes elementos num todo organico. Naturalmente é titil 0 fato de, sem contar com os elementos individuais, a estrutura polifénica obter seu efeito total através da sensagio de combinagiao de todas as pesas como wm todo. Esta “fisionomia” da seqiiéncia acabada € uma soma dos aspectos individuais e da sensagdo geral produzidos pela seqiiéncia. Por ocasido da estréia de O velho e 0 novo escrevi sobre esta qualidade da montagem polifonica em relagéo ao “futuro” cinema sonoro. ‘Ao combinar a miisica com a seqiiéncia, esta sensasao geral é um fator decisivo, porque esté diretamente ligada & percepsdo da imagem da misica assim como dos quadros. Isto requer constantes corregées ¢ ajustamentos dos aspectos individuais para preservar 0 importante efeito geral. Por fazermos um diagrama do que ocorre na montagem vertical, devemos visualizé-la como duas linhas, tendo em mente que cada uma dessas linhas repre- senta todo um complexo de uma partitura de muitas vozes. A busca da correspondén- cia deve ocorrer a partir da intengao de combinar quadro e musica com a “imagem” geral, complexa, produrida pelo todo. © Diagrama 2 revela 0 novo fator “vertical” da surge no momento em que as unidades da montagem sonoro-visual so conectadas. ercorrespondéncia, que Sincronizagao dos sentidos 7 Diagrama 1 Ay GQ By B A Diagrama 2 Do ponto de vista da estrutura da montagem, nao mais temos uma simples sucessio horizontal de quadros, mas uma nova “superestrututa” é erigida vertical- mente sobre a estrutura horizontal do quadro. Unidade a unidade, estas novas faixas da “superestrutura” diferem em comprimento das da estrutura do quadro, mas, desnecessdrio dizer, elas so iguais no comprimento total. As unidades sonoras nao se encaixam nas unidades em ordem seqiiencial, mas em ordem simultanea. E interessante notar que, quanto ao principio, essas relagdes sonoro-visuais nao diferem das relagdes dentro da musica, nem diferem das relagSes dentro da estrutu- ra da montagem do cinema mudo. Colocando de lado, no momento, nossa discussio sobre relagdes musicais, analisemos primeiro a solucao para a questo da correspondéncia na montagem do cinema mudo. Aqui o efcito vem nao da simples seqiiéncia das tiras de filme, mas de sua simultaneidade, que resulta da impressao derivada de uma tira mentalmente sobreposta & tira seguinte. A técnica da “dupla exposiga0” apenas materializou este fendmeno bisico da percepgao cinematogréfica. Este fendmeno existe nos mais altos niveis da estrutura cinematografica, assim como no limiar da iluso cinemato- grifica, porque a “persisténcia de visdo” de um fotograma sobre o fotograma seguinte da tira do filme é que cria a iluséo do movimento cinematografico. 58 O sentido do filme Veremos que uma superposigio semelhante ocorre até no estégio superior do desen- volvimento da montagem — a montagem audiovisual. A imagem em “dupla exposigéo” é uma caracterfstica tio inerente A montagem audiovisual quanto a todos os outros fendmenos cinematograficos. Muito antes de até mesmo sonharmos com o som, recorri a esta técnica particular quando quis criar 0 efeito de som e musica através de meios puramente plasticos: em A greve, hd experiéncias nesta direcdo. H4 uma seqiiéncia curta mostrando uma assembléia de grevistas com a aparéncia de um passeio casual com um acordeio. Esta seqiténcia termina com um plano onde tentamos criar um efeito sonoro através de meios puramente visuais. ‘As duas trithas do futuro — visual e sonora — eram, neste caso, trilhas visuais, uma dupla-exposig4o. Na primeira exposigao, um lago podia ser visto ao pé de uma montana, pela qual subia, em diregZo 4 cimera, uma fila de artistas ambulantes com seu acordeao, A segunda exposicio era o imenso acordeio em primeiro plano, en- chendo toda a tela com seu fole em movimento e suas teclas muito brilhantes. Este movimento, visto de diferentes angulos, sobre a outra exposigéo continua, criou a sensaco de um movimento melddico, que uniu toda a seqiiéncia.” Os diagramas 1 ¢ 2 mostram como a jungdo compositiva de um filme mudo (1) é diferente da de um filme sonoro (2). Parece o diagrama de uma jungdo porque a montagem € na realidade um amplo movimento temdrico em desenvolvimento, progredindo através de um diagrama continuo de jungées individuais. Aestrutura de composigéo dos movimentos relacionados como indicado pelo Diagrama 2 (Ay — B, — C)) é familiar na musica. Eas leis do movimento de composigao (A — cinema mudo. —C) evolufram na pritica do O novo problema frente ao cinema audiovisual ¢ encontrar um sistema para B— B,,C— C, etc. — um sistema que determinar: coordenar A — Aj, Ay By C os complexos movimentos plisticos ¢ sonoros de um tema através de todas as diferen- tes correspondéncias de A — A, — B, — B — C — Cet, (ver diagrama na pagina 57). Nosso atual problema ¢ encontrar a chave para estas recém-descobertas junt- (es verticais, A — Ay, B — By, aprendendo a reuni-las ¢ separé-las de modo tao ritmico como é agora possivel pelos altamente desenvolvidos meios da miisica, ou pelos alramente desenvolvidos meios da montagem visual. Ambos estes instrumen- tos da atividade cultural ha muito aprenderam a lidar com os comprimentos de A; B, etc., com total seguranga. Isto nos leva & questéo basica de encontrar os meios para se estabelecerem as proporgées entre imagens ¢ som, e para aperfeicoar os compassos, réguas, instrumen- Sincronizagao dos sentidos 39 tos ¢ métodos que tornario isso vidvel. Esta é na realidade uma questo de encon- trar wma sincronizagdo interna entre a imagem tangivel e os sons percebidos de modo diferente. Ji dominamos 0 problema da sincronizagio fisica, a0 ponto de detectar- mos a discrepancia, em um tinico quadro, entre lébios ¢ fala! Mas esta coordenagao vai muito além da sincronizagdo externa, que combina a bota com seu rangido — estamos falando de uma sincronizagao interna “oculta”, na qual os elementos plisticos ¢ tonais encontram total fusio. Para ligar tais elementos, encontramos uma linguagem natural comum a ambos — o movimento. Plekhanov disse que todos os fendmenos, na anilise final, podem ser reduzidos a movimento. O movimento revelard todos os substratos da sincronizagio interna que queremos estabelecer. O movimento nos mostrard de uma forma concreta 0 significado ¢ 0 método do processo de fusio. Passemos dos temas exteriores ¢ descritivos para temas de um cardter interior ¢ mais profundo. O papel do movimento neste problema da sincronizagao € auto-evidente. Examinemos varias abordagens diferentes da sincronizagao na ordem légica. E 0 ABC de todo técnico de som, mas seu exame € essencial. A primeira serd na esfera da sincronizagio propriamente dita, fora do campo da preocupagao artfstica — uma sincronizagio puramente factual: a filmagem sonora de coisas naturais (um sapo coaxando, os acordes lamentosos de uma harpa quebrada, o rangido de rodas de carroca no pavimento). Neste caso, a arte sé comega no momento da sincronizagio em que a conexio natural entre 0 objeto e seu som nao € apenas gravada, mas ditada pelas exigéncias da obra expressiva em desenvolvimento. Nas formas mais rudimentares de expresso, ambos os elementos (a imagem e seu som) serdo controlados por uma identidade de ritmo, de acordo com o conteti- do da cena. Este é 0 caso mais simples, mais facil e mais freqiiente de montagem audiovisual, que consiste em planos cortados e montados com o ritmo da musica da trilha sonora paralela. Se existe movimento nesse plano, nao tem conseqiiéncias sérias. Se o movimento est4 presente, a tinica exigéncia é que ele se adapte ao ritmo fixado pela trilha paralela. Porém, ¢ evidente que, mesmo neste nivel comparativamente baixo de sincro- nizagio, hd uma possibilidade de se criarem composigées interessantes ¢ expressivas. A partir destes casos mais simples — simples coincidéncia “métrica” de cadén- cia (“escansio” cinematogréfica) —, € poss{vel organizar uma ampla variedade de combinacao sincopadas e um “contraponto” puramente ritmico na execugao con- trolada de ritmos livres, planos de diversas distancias, temas repetidos ¢ repercuti- dos, e assim por diante. Que passo se segue a este segundo nivel de movimento superficial sincroniza- do? Possivelmente um que nos capacitard mostrar no apenas movimento ritmico, mas também movimento melédico. Lanz falou corretamente sobre a melodia quando disse: 60 O sentido do filme no sentido exaco da palavra, nao se “ouve” uma melodia. Somos capazes ou incapazes de segui-la, o que significa que temos ou nao a capacidade de organizar os tons numa unidade superior...® Entre todos os meios plisticos & nossa disposigio, certamente podemos en- contrar aquele cujo movimento se harmoniza nao apenas com © movimento do padrao ritmico, mas também com o movimento da linha melédica. Jé temos alguma idéia sobre o que estes meios devem ser, mas, como estamos a ponto de lidar com esta questo em detalhe, mencionaremos neste momento que podemos assu- mir que estes elementos provavelmente serao retirados basicamente de um elemen- to “linear” das artes plasticas. “A unidade superior” na qual somos capazes de organizar os tons independentes da escala de sons, pode ser visualizada como uma linha que 0s une através do movimento. As mudangas tonais nesta linha também podem ser caracterizadas como movimento, no mais como um movimento entremesclado, mas como um movimento gue vibra, cujas caracter{sticas podemos perceber como sons de diapa- so € tom variados. Qual 0 elemento visual que ecoa este novo tipo de “movimento” introduzido em nossa discussio pelos tons? Obviamente seré um clemento que também se movimenta por vibragées (apesar de ter uma formagio fisica diferente), e que ¢ também caracterizado pelos tons. Este equivalente visual é a cor. (Numa analogia rdpida, diapasio pode corresponder ao jogo de /uz; e tonalidade, & cor) Fazendo uma pausa para recapitular, demonstramos que a sincronizacao pode ser “natural”, métrica, rftmica, melédica e tonal. ‘Ao se combinar imagem e som, pode-se chegar & sincronizago que preenche todas essas potencialidades (apesar de isto muito raramente ocorrer), ou ela pode ser construfda com base numa combinagao de elementos nao afins, sem tentar ignorar a dissonancia resultante entre os sons ¢ as imagens. Isto ocorre freqiiente- mente. Quando ocorrer, costuma-se explicar que as imagens “existem por si mes- mas”, que a musica “existe por si mesma”: som ¢ imagem, cada um corre inde- pendentemente, sem se unirem num todo orginico. E importante ter em mente que nossa concepgio de sincronizagao nao presume coincidéncia. Nessa concepgao existem plenas possibilidades para a execugio de ambos, “movimentos” correspon- dentes e nao-correspondentes, mas em qualquer dos casos a relacao deve ser contro- lada composicionalmente. E. evidente que qualquer uma dessas abordagens de sin- cronizagio pode servir como o fator “principal”, determinante da estrutura, de- pendendo da necessidade. Algumas cenas requerem ritmo como um fator determi- nante, outras sio controladas pelo tom, e assim por diante. Mas voltemos as varias formas ou, mais precisamente, aos vrios campos da sincronizagio. Sincronizacao dos sentidos 61 Observamos que essas varias formas coincidem com as varias formas da montagem do cinema mudo estabelecidas em 1928-29, e que mais tarde incluimos no programa de ensino de diregao cinematografica.? Na época, estes “termos” devem ter parecido, a alguns de meus colegas, desnecessariamente pedantes ou analogias jocosas com outros meios. Mas mesmo entio salientamos a importincia de uma abordagem como esta para os “futuros” problemas do cinema sonoro. Agora isto é dbvia ¢ concretamente uma parte sensivel de nossa experiéncia com relagées audiovisuais. Estas formas inclufam a montagem “atonal””. Este tipo de sincronizagao foi mencionado acima com relagao a O velho e 0 novo. Por este termo, talvez nao totalmente exato, queremos dizer uma complexa polifonia, e uma percepgao das partes (tanto da misica quanto da imagem) como um todo. Esta totalidade torna-se 0 fator de percepgao que sintetiza a imagem original para cuja revelagio final toda a nossa atividade foi dirigida. Isto nos traz a questao bisica e primaria que diz respeito @ definitiva sincroni- 2agito interna — aquela entre a imagem e o significado dos fragmentos. O circuito foi completado. Pela mesma formula que une o significado de todo © fragmento (seja todo o filme ou uma tinica seqiiéncia) ea selegdo meticulosa, hdbil dos fragmentos, surge a imagem do tema, fiel a seu contetido. Através desta fusio, ¢ através da fusio da légica do tema do filme com a forma superior na qual distribui este tema, aparece a total revelagdo do significado do filme. Uma premissa como esta naturalmente serve como uma fonte e um ponto de partida para toda a série de variadas abordagens da sincronizacio. Porque cada tipo “diferente” de sincronizagio é englobado pelo todo orginico, e personifica a ima- gem bisica através de seus préprios limites especificamente definidos Comecemos nossa investigaco no campo da cor, nao apenas porque a cor é0 problema mais imediato e estimulante do cinema hoje, mas principalmente porque acor foi muito (e ainda é) usada para decidir a questio da correspondéncia pictérica € sonora, seja absoluta ou relativa — ¢ como uma indicagao de emogées humanas especificas. Isto certamente sera de extrema importéncia para os problemas e prin- cfpios da imagem audiovisual. O desenvolvimento mais grafico e eficaz de um método de investigagao estaria no campo da sincronizagdo melédica devido 4 conve- niéncia da andlise gréfica e ao nosso campo bdsico de reprodugao em preto ¢ branco. Assim, primeiro passamos para a questo de associar a musica a cor, o que nos levard, por seu turno, a considerar a forma de montagem que pode ser chamada de cromofénica, ou montagem colorida-sonora + Ver *Métodos de montagem’ em A forma do filme: ver também a nota que explica a tradugio da expressio usada por Eisenstein em inglés, “overtonal”, por atonal i 62 O sentido do filme Remover as barreiras entre a visio ¢ 0 som, entre o mundo visto € o mundo ouvido! Realizar uma unidade ¢ uma relagéo harmoniosa entre estas duas esferas opostas. Que tarefa absorvente! Os gregos, Diderot, Wagner e Scriabin — quem nao sonhou com este ideal? H alguém que nao tenha feito nenhuma tentativa de concretizar este sonho? Nossa pesquisa sobre sonhos no pode comesar aqui, porém. Nossa pesquisa deve nos levar a algum meétodo de fusio do som & visio, a alguma investigacao das indicagdes preliminares que nos levem em diregao a esta fusao. Comecaremos observando as formas, tomadas por estes sonhos, de uma fusio de imagem ¢ som que perturbaram a humanidade por tanto tempo. A cor sempre recebeu mais do que uma parte média desses sonhos. O primeiro exemplo, nao tao antigo, é tirado de uma época nao mais longin- qua do que a fronteira entre os séculos XVIII ¢ XIX. Mas é um exemplo muito gréfico. Primeiro damos vez a Karl von Eckartshausen, autor de Revelagées da magica a partir de experiéncias testadas das ciéncias filoséficas ocultas e segredos escon- didos da natureza:'” Hé muito tento determinar a harmonia de todas as impresses sensoriais, para tornécla evidente e perceptivel. Até agora desenvolvi a miisica ocular inventada por Pere Castel Construf esta maquina com toda a perfeigio, de modo que todos os acordes de cor possam ser produzidos exatamente como acordes tonais. Eis a descrigao deste instru- ya mento. Peguei vidros cilindricos, com cerca de uma polegada de didmetro, de tamanhos iguais, e os enchi com cores quimicas diluidas. Dispus estes vidros como as teclas de um cravo, colocando os tons da cor como as notas. Atras desses vidros coloquei pequenos lébulos de bronze, que cobrem os vidros de modo que nenhuma cor possa ser vista. Esses lébulos foram ligados por fios ao teclado do cravo, de modo que 0 Idbulo ¢ levantado quando uma tecla é batida, tornando a cor visivel. Exaramente como uma nota se esvai quando 0 dedo ¢ retirado de uma tecla, do mesmo modo a cor desaparece quando 0 Idbulo de metal cai rapidamente por causa de seu peso, cobrindo a cor. O cravo ¢ iluminado por trés com velas de cera. A beleza das cores é indescritivel, superando as mais espléndidas jéias. Nem se pode expressar a impressio visual despertada pelos varios acordes de cor. UMA TEORIA DE MUSICA OCULAR Exatamente como os tons da miisica devem se harmonizar com as palavras do dramatur- go.em um drama musical, do mesmo modo as cores devem corresponder as palavras. Dou um exemplo para tornar isto mais compreensivel. Escrevi um pequeno poema, que acompanho com minha miisica colorida. Ele diz: PALAVRAS: Tristemente ela vagava, a mais adordvel das donzelas. MUSICA: As notas de uma flauta, plangentes. Sincronizagao dos sentidos 63 COR: Oliva, misturado com rosa e branco. PALAVRAS: ... em planicies floridas — MUSICA: Alegre, rons crescentes. COR: Verde, misturado com violeta e amarelo-bonino PALAVRAS: Cantando uma cangio, feliz como uma cotovia. MUSICA: Notas suaves, crescendo e gentilmente decrescendo em rapida sucessio. COR: Azul marinho liscrado com escarlate e verd PALAVRAS: E Deus, no templo da criagio, a ouve. MUSICA: Majestosa, grandiosa. COR: Uma mistura das cores mais espléndidas — azul, vermelho e verde —, glorificada pelo amarelo do amanhecer e purpura — dissolvendo-se em verde claro ¢ amarelo pilido. PALAVRAS: O sol nasce sobre as montanhas... MUSICA: Um baixo majestoso, cujos tons médios elevam-se imperceptivelmente! solvendo-se marelado. COR: Amarelos brilhantes, misturados com a cor do amanhecer — dis em verde e amarelo esbranquigado. PALAVRAS: E brilha sobre a violeta no vale ... MUSICA: rons decrescendo suavemente. COR: Violeta, alternando com verdes variados. Isto deveria ser suficiente para provar que as cores também tém o poder de expressar as emogées da alma Se esta citagao soa muito pouco familiar, escolhamos em seguida um dos mais conhecidos exemplos — 0 famoso soneto “colorido” de Rimbaud, Voyelles, cujo esquema de correspondéncia cor-som perturbou muitos cérebros: Voyelles Annoir, E blanc. [ rouge, U vert, O bleu: voyelles, Je dirai quelque jour vos naissances latentes: A, noir corset velit des mouiches éclatantes Qui bombinent aurour des puanteuts cruelles, Golfes d’ombre: E, candeur des vapeurs et des rentes, Lances des glaciers fiers, rois blancs, frisson d’ombelles: 1, pourpres, sang craché, rire des lévres belles ns la colére ou les ivresses pénitentes; U, cycles, vibrements divins des mers virides, Paix des patis semés d’'animaux, paix des rides Que lalchimie imprime aux grands fronts studieux; O, supréme Clairon plein des strideurs étranges, Silences traversés des Mondes et des Anges: Ol'Omeéga, rayon violet de Ses Yeux!” 64 O sentido do filme © esquema de Rimbaud ocasionalmente se aproxima do de René Ghil,? apesar de na maior parte os dois divergirem claramente: 04, ou, oui, iou, oui Bruns, noirs 8 roux 6,0, io, io Rouges aya, ai, ai Vermillons €@, eu, ieu, eui, eui Orangés a ors, verts 4, u, iu, ui, ui Jaunes, ors, verts £8 6 ¢i, ef Blanes, & azurs piles je, i, 18, fi, i, ii Bleus, & azurs noirs™ Foi depois que Helmholtz publicou os resultados de suas experiéncias com a correlago dos timbres das vozes ¢ instrumentos', que Ghil “aperfeigoou” seu proprio gréfico, introduzindo nao apenas consoantes ¢ timbres instrumentais, mas também todo um catélogo de emogées, premissas ¢ hipéteses que deveriam manter uma correspondéncia absoluta. Numa anélise do romantismo, Max Deutschbein concluiu que “a sintese das vatias sensagées” € um dos indicios fundamentais de uma obra de arte romantica."4 Em total harmonia com esta definicao estd o gréfico de correspondéncia entre vogais ¢ cores determinado por A.W. Schlegel (1767-1845): A representa o vermelho claro, luminoso (das rove lichthelle A), ¢ significa Juventude, Amizade e Esplendor. J ¢ azul-celeste, simbolizando 0 Amor e a Sinceridade. O é purpura; U¢ violeta, ¢ OO € enfeitado de azul-marinho."® + Em francés no original. Texto do autégrafo dado a Emile Blémont, conservado na Maison de la Poésie vo da Bibliotheque Municipale de Charleville: ce atualmente parte do 2 Vogais Annegro, E branco, I vermelho, U verde, © azul, vogais: Qualquer dia ainda digo de que fontes brotais: A, negro corpete felpudo de moscas refulgentes Que esvoagam em torno de fedores crucis, Golfos de sombra; E, alvura das névoas difusas e dos dosséis, Langas das geleiras altivas, brancas rainhas, medusas frementes; J, pirpuras, sangue escarrado, riso daqueles labios Belos na célera, ou nos éxtases penitentes; U, ciclos, vibragées divinas dos mates virentes, Paz dos pastos pontilhados de animais, ¢ paz, nos sibios, Das rugas que a alquimia imprime as frondes tamanhas; , supremo clatim, cheio de estridéncias estranhas, Siléncios trespassados de Anjos e de Mundos: © — 0 Omega, luz violera de seus olhos profundos! (Tradugio de Eduardo Francisco Alves) ++ Em francés no original: Marrons, pretos até vinhos/vermelhos/vermelhdes/Alaranjados até dourados, verdes/Amarelos, dourados, verdes/Brancos, até azuis claros/Azuis, até azuis escuros. Sincronizagao dos sentidos 65 Posteriormente, neste século, outro romantico deu muita atengio a este pro- blema. Lafcadio Hearn, porém, nao tenta fazer qualquer “classificagao”, e até critica © abandono de uma abordagem espontanea no que se refere a um sistema como este, como podemos ver em sua carta de 14 de junho de 1893,'%na qual desaprova © recentemente publicado Jn the Key of Blue, de Addington Symonds. Mas nessa mesma carta, escrita a seu amigo, Basil Hall Chamberlain, ele diz: . vocé imediatamente ilustrou os valores para mim. Quando escreveu sobre “o profundo baixo” daquele verde, pude ver, sentir, cheirar, provar, mastigar a folha; era bastante amarga, e densa, fracamente perfumada... Tenho pensado sobre cores sopranos, altos, contraltos, tenores e baritonos, Alguns dias antes ele explodira num acesso apaixonado por causa disso: Reconhecendo a feitira das palavras, porém, vocé também deve reconhecer sua beleza fisiondmica... Para mim as palavras tém cor, forma, cardter; elas tém rostos, partes, modos, gestos; elas tém temperamentos, humores, excentricidades — elas tém mati- zes, tons, personalidades...!7 Mais tarde, num ataque aos editores de revistas que nfo concordam com um estilo como este, diz. que eles afirmam: “Os leitores no sentem como vocés no que diz respeito As palavras. Nao se pode supor que eles saibam que vocés pensam que a letra A é rosa-carmesim, ¢ a letra E azul-céu palido. Nao se pode supor que cles saibam que vocés acham que KH usa uma barba e um turbante, que a inicial X é um grego velho com rugas...” Aqui Hearn dé sua resposta a estas criticas: Porque as pessoas ndo podem ver a cor das palavras, os matizes das palavras, os secretos movimentos fantasmagéricos das palavras: Porque elas nao podem ouvir o sussurro das palavras, o murmtirio da procissio de letras, as flautas sonhadoras ¢ os tambores sonhadores que sio suave ¢ estranhamente tocados pelas palavras: — Porque elas no podem perceber © amuo das palavras, o franzir das sobrance- Ihas das palavras e a irritagao das palavras, o lamento, a raiva, o clamor ea revolta das palavras: — Porque clas sio insensiveis & fosforescéncia das palavras, & fragrancia das palavras, ao fedor das palavras, & ternura ou 3 aspereza, & secura ou A dogura das palavras — o intercimbio de valores do ouro, prata, latéo e cobre das palavras: — E esta uma razio pela qual néo devemos tentar fazé-las ouvir, ver ¢ sentir?... Em outra parte ele fala da variabilidade das palavras: 66 O sentido do filme Hi muito tempo disse que as palavras so como camaledes, com seu poder de mudar de cor de acordo com a posigio.'* Este requinte de Hearn nao é acidental. Pode ser parcialmente explicado por sua miopia, que intensificou sua percepgao destas questdes. Uma explicagao mais satisfatria esta no longo tempo cm que morou no Japao, onde sua faculdade de encontrar correspondéncias audiovisuais foi desenvolvida com especial intensidade. Lafcadio Hearn nos levou ao Oriente, onde relagdes audiovisuais nao sao apenas parte do sistema educacional chinés, mas na realidade esto incorporadas a0 cddigo legal. Elas derivam dos princfpios de yang e yin, sobre os quais se bascia todo 9 sistema filoséfico e de visio do mundo dos chineses.'? De acordo com a tradigao Sung, esta lei (Ho ru) foi entregue 20 mundo na forma de um diagrama (logo adiante reproduzido), trazido encharcado do rio pela boca de um cavalo-dragio.”> Sul Verao Propriedade Vermelho Fogo Sol oe KB 9 welt hl 7 9° = 5 Vids 24 By 8 bc He wet 5 2 £ Amarel Bo E § marelo ° E i & = fk ¢ Fidelidade 4 g aR ay Agua 4 ° Norte Inverno Sabedoria Preto kA F FR Sincronizagao dos sentidos 67 Ainda mais interessante do que a correspondéncia entre determinados sons ¢ cores € 0 reflexo andlogo das rendéncias artisticas de certas “épocas” na estrutura tanto da musica quanto da pintura. Da crescente e interessante literatura neste campo, mapeada pela p por Wolfflin, escolhemos um artigo de René Guilleré sobre “a era do jazz”, IT ny plus de perspective (Nao hé mais perspectiva): eira vez Outrora a ciéncia da estética encontrava contetido no principio dos elementos fundi- dos. Na misica — na linha melédica continua costurada através dos acordes harmé- nicos; na literatura — na fusao dos elementos de uma sentenga através de conjungdes ¢ transicdes; na arte — numa continuidade de formas plisticas ¢ estruturas de combinagées dessas formas. A estética moderna € construida tendo como base ¢ desuniio dos elementos, aumentando 0 contraste de cada um deles: repetigio de elementos idénticos, que serve para fortalecer a intensidade do contraste...”! Um comentario necessério sobre esta opiniao ¢ 0 de que a repetigdo pode muito bem desempenhar duas fungies. Uma fungio € facilitar a criagéo de um todo orginico. Outra funsio da repetigio ¢ servir como um meio para desenvolver a crescente intensidade que Guilleré menciona. Nao precisamos procurar longe por exemplos de ambas as fungées. Ambos podem ser encontrados em filmes. A primeira fungao & encontrada em agio em Potemkin — na repeticao de “Irmaos!”, que ocorre pela primeira vez no tombadilho antes de os fuzileiros se recusarem a atirars em seguida, nao como um letreiro, mas como a seqiiéncia dos barcos a vela que fundem cais ¢ navio, e, finalmente, de novo em forma de letreiro, “[rmaos!”, quando a esquadra permite que o Potemkin passe sem ser atacado. Alexander Nevsky contém um exemplo da segunda fungio da repetiggo — crescente intensidade. Em vez de repetir um mesmo compasso da mtisica quatro veves, como escrito na partitura, multipliquei isto por trés, conseguindo doze repetigdes exatas. Isto ocorre na seqiiéncia em que a milicia camponesa corta a retaguarda da cunha alema. O efeito resultante, de crescente excitagao, nunca deixa de conquistar a aprovacao do espectador. Continuando com o artigo de Guilleré: na forma do jazz, se olharmos para set elemento musical e para seu método de composigo — encontramos uma tipica expressio desta nova estética. Seus componentes bisicos: 0 sincopado ¢ o dominio do ritmo. Isto elimina linhas suavemente curvas — rabiscos, frases na forma de um tufo de cabelo encaracolado, caracteristicos de Massenet, e todos os arabescos lentos. O ritmo é afirmado pelo Angulo — extremidade saliente, perfil afiado. Tem uma estrutura rigida — firme- 68 O sentido do filme mente construida. Esforca-se em diregao a plasticidade. O jazz procura volume de ¢ em planos (nao em volumes) — planos ordenados em camadas, planos colocados um em cima do outro, planos hotizontais e verticais, criando uma arquitetura de proporgées verdadeiramente no- bres: palicios com sacadas, colunatas, escadarias com degraus monumentais — todos fo levados para o som, volume de frase. A muisica classica baseou com uma profunda perspectiva. No jazz, todos os elementos s primeiro plano. Esta é uma lei importante que pode ser encontrada na pintura, no desenho de cenirios, em filmes, ¢ na poesia deste periodo. A perspectiva convencio- nal, com seu foco fixo e seu ponto de fuga gradual, foi abandonada ‘Tanto na arte quanto na literatura, a criagio ocorre através de virias perspectivas, usadas simultaneamente, A ordem do dia é uma sintese complexa — reunindo visdes de um mesmo objeto, romadas tanto de baixo quanto de cima. A antiga perspectiva nos apresentava conceitos geométricos de objetos — como eles s6 podiam ser vistos por um olho ideal. Nossa perspectiva nos mostra objetos como os vemos ambos os olhos — andando despreocupados, Nao mais construimos © mundo visual com um Angulo agudo, convergindo no horizonte. Abrimos este Angulo, colocando a representagao contra nés, sobre nés, em direcio a nés... Fazemos parte deste mundo. Bis por que nao temos medo de usar primeiros planos nos filmes: para retratar um homem como ele algumas vezes é para nés, fora das proporgées naturais, de repente cingiienta centimetros afastado de nés; néo temos medo de usar metiforas, que escapam dos versos de um poema, ou de permitir que o som penetran- te de um trombone se sobressaia na orquestra agressivamente. Na antiga perspectiva, os planos se comportavam muito como os bastidores de um palco — recuando num funil em diresio & profundidade, onde a vista se firma numa colunata ou numa monumental escadaria, De modo semelhante, na mtisica, os bastidores teatrais formados pelos duplos baixos, os violoncelos ¢ os violinos sio modelados como planos, um apés 0 outro, como as escadas de uma grande avenida, com 0 olho sendo levado para as sacadas em diregio a0 triunfante irromper dos metais. Na literatura, a mesma estrutura dominou o miliew — construido com clegantes alamedas de uma drvore para a seguinte; cada personagem descrito minu- ciosamente — da cor do seu cabelo... Em nossa nova perspectiva, nao ha degraus, nem alamedas. O homem entra em seu meio ambiente — 0 meio ambiente € visto através do homem. Ambos funcionam um através do outro. Em outras palavras, em nossa nova perspectiva — nfo hé perspectiva. Os volumes nao mais sio criados através da perspectivas intensidades diferentes, variadas satura- gdes de cor agora criam os volumes. O volume musical nao mais € criado através de planos recuados, com um evidente primeiro plano ¢ recessos apropriados. Seu volu- me agora é criado pelo volume do som. Nao hé mais grandes telas pintadas com som & maneira dos panos de fundo dos cendrios teatrais. O jazz é volume. Nao usa vozes como acompanhamento, semelhantes a figuras contra um fundo. Tudo crabalha. Cada instrumento faz seu solo enquanto participa do todo. A orquestra perdeu até suas divisdes impressionistas — com todos os violinos, por exemplo, tocando 0 mesmo tema com notas harménicas para criar maior riqueza de sons. Sincronizagao dos sentidos 69 No jazz, cada homem toca para si mesmo num conjunto geral. A mesma lei se aplica & arte: o fundo é em si mesmo um volume. O trecho acima é interessante por causa da imagem que proporciona de estruturas equivalentes nas artes musical e grafica, particularmente na arquitetura, apesar de as questées levantadas aqui dizerem respeito principalmente aos conceitos espacial e proporcional. Porém, temos apenas de dar uma olhada num grupo de pinturas cubistas para nos convencermos de que o que ocorre nessas pinturas jé foi ouvido na misica jazzistica. Esta relagao é igualmente evidente na paisagem arquiteténica — a arquitetura classica tinha a mesma relacio com os classicos da composigao musical que a moderna paisagem urbana com 0 jaz Na realidade, pracas ¢ cidades romanas, os parques e sacadas de Versailles podem ser “prototipos” da estrutura da miisica cldssica ‘A moderna cena urbana, especialmente a de uma grande cidade & noite, € claramente o equivalente plistico do jazz, Particularmente evidente é a caracteristi- ca apontada por Guilleré, isto é, a auséncia de perspectiva. Todo o senso de perspectiva e de profundidade realista € apagado pelo mar noturno de antincios luminosos. Perto e longe, pequenas (no primeiro plano) € grandes (no segundo plano), voando nas alturas ¢ apagando-se: correndo e andan- do em circulos, iluminando-se ¢ desaparecendo — estas luzes tendem a abolir todo © senso de espaco real, que finalmente se dissolve num tinico plano de pontos luminosos coloridos ¢ em linhas de neon movendo-se sobre a superficie do céu preto, de veludo. Era deste modo que as pessoas costumavam pintar estrelas — como pregos resplandecentes pregados no céu! Fardis dos cartos velozes, pontos mais luminosos dos trilhos que somem da vista, reflexos tremeluzentes nas ruas molhadas — todos espelhados em pogas que destroem nosso senso de diresao (onde fica 0 topo? onde fica a base?), complemen- tando a miragem acima com uma miragem abaixo de nés, ¢, correndo entre esses dois mundos de sinais luminosos, no mais os vemos como um simples plano, mas como um sistema de bastidores de teatro, suspensos no ar, através dos quais 0 fluxo noturno das luzes do trafego flui. Isto nos lembra tm outro céu estrelado acima e abaixo, porque os personagens de um conto de Gogol, Uma terrivel vinganga, achavam que 0 mundo flutuava a0 longo do Rio Dnieper entre 0 céu estrelado real acima deles e seu reflexo na dgua. Essas foram as impresses de pelo menos um visitante das ruas de Nova York durante a tarde e a noite.?* O artigo de Guilleré causa mais interesse devido & sua descrigéo nao apenas da correspondéncia entre as artes musical e grifica, mas também devido 3 sua apresen- 70 O sentido do filme taco da idéia de que essas artes, fundidas, correspondem A propria imagem de uma época et imagem do processo de raciocinio daqueles vinculados & época. Este quadro nao nos soa familiar? — com esta “auséncia de perspectiva’, que reflete a falta de perspectiva histérica na maior parte do mundo de hoje, ou a imagem de uma orquestra onde cada muisico esté por sua prdpria conta, esforgando-se para quebrar este todo inorgénico de muitas unidades tomando um curso independente — mas ligados num conjunto apenas pela necessidade férrea de um ritmo comum? E interessante notar que todos os tragos mencionados por Guilleré foram encontrados antes no curso da histéria da arte. Toda vez que estes tragos reaparecem na histéria, considera-se que cles aspiram a um todo unificado, uma unidade supe- rior. E apenas em épocas de decadéncia das artes que este movimento centripeto muda para um movimento centrifiego, separando todas as tendéncias unificadoras — tendéncias incompativeis com uma época que coloca uma énfase exagerada no individualismo. Lembramos de Nietzsche: ..O que € caracteristico, em qualquer decadéncia literdria? E.que a vida nio esté mais no todo. A palavra levanta e salta para fora da sentenga, a sentenca se alonga muito € obscurece o significado da pagina, a pagina adquire vida A custa do conjunto — 0 conjunto nao mais é um todo... © todo deixou de viver completamente; é composto, somade, artificial, um produto nio-natural. > O aspecto fundamental e caracterfstico reside principalmente nisto ¢ nao nas particularidades isoladas. Nao sio os baixos-relevos egipcios obras vilidas, apesar de terem sido feitos sem um conhecimento de perspectiva linear? Diirer ¢ Leonardo nao usam simultinea ¢ deliberadamente varias perspectivas e virios pontos de fuga quando convém a seus propésitos?™ E em seu quadro de Giovanni Arnolfini ¢ sua muther, Jan van Eyck usou claramente érés pontos de fuga. Em seu caso, este deve ter sido um método inconsciente, mas que maravilhosa intensidade de profundidade este quadro ganhou com isso! Nao € toralmente legitimo para as pinturas de paisagem chinesas evitar levar o olho a uma tinica profundidade, ampliando a visio a0 longo de todo o panorama, de modo que todas as suas montanhas ¢ cascatas parecem estar se movendo em nossa diresio? ‘As gravuras japonesas nao usaram o primeiro plano em primeirissimo plano, ¢ caracteristicas efetivamente desproporcionais dos rostos em primeirissimo plano? Pode-se objetar que nossa tarefa nao consiste em revelar as tendéncias de épocas anteriores em diregio & unidade, mas apenas em demonstrar um diapa menos importante ¢ unicamente suplementar de nossa comparagio com uma época decadente. Onde, por exemplo, podemos encontrar também no passado um tal grau de simultancidade de visées de cima ¢ de baixo, de planos verticais ¢ horizontais io Sincronizagao dos sentidos n misturados, como encontramos quando analisamos os exemplos de “sintese com- plexa” acima? Os modernos cendrios teatrais “simultaneos” tém seus ancestrais, também, tal como os desenhados por Yakulov,2> na “tradigao cubista’, que junta locais de agio totalmente dispares, insere interiores sem exteriores. Seus protétipos idénticos podem ser encontrados na técnica teatral dos séculos XVI ¢ XVII, onde podemos ver desenhos de cendrios tinicos contendo um deserto, um paldcio, a caverna de um eremita, a sala do trono de um rei, 0 quarto de vestir de uma rainha, um timulo e varios céus — tudo pelo prego de um! Tal ingenuidade imediatamente lembra algumas obras de Picasso, tanto em seu perfodo cubista quanto nos perfodos mais recentes, onde um rosto ou uma figura sio apresentados de muiltiplos pontos de vista, ¢ em varios estégios de uma agio. A gravura em cobre no frontispicio da biografia espanhola, do século XVI, de San Juan de la Cruz, mostra 0 santo no momento em que contempla o milagroso aparecimento do crucifix. Com efeito, surpreendente, consta da mesma gravura uma segunda visio em perspectiva do mesmo crucifixo — como visto pelo santo. le nos Se esses exemplos sao especiais demais, entao passemos para El Greco, proporciona um exemplo do ponto de vista do artista saltando furiosamente para frente ¢ para tras, fixando na mesma tela detalhes de uma cidade vistos no apenas a partir de varios pontos fora da cidade, mas até de varias ruas, alamedas € pragas! Tudo isto ¢ feito com a plena consciéncia de seu direito de trabalhar deste modo, e cle até registrou, num mapa inserido na paisagem com este propésito, uma descrigio deste procedimento. Provavelmente tomou essa providéncia para evitar qualquer incompreensio por parte das pessoas que conheciam a cidade de Toledo muito bem e podiam considerar sua obra apenas como uma forma de “esquerdis- mo” excéntrico. O quadro é Vista e planta de Toledo, terminado em algum momento entre 1604 ¢ 1614 ¢ atualmente no Museu El Greco de Toledo. Contém uma vista geral de Toledo feita a uma distancia de aproximadamente um quilémetro a leste. A direita um jovem mostra 0 mapa da cidade. Neste mapa, El Greco instruiu o filho a escrever estas palavras: Foi necessério colocar o Hospital de Don Juan Tavera na forma de uma maquete faquela na nuvem) porque nao apenas chegava a cobrir 0 portio Visagra, mas seu domo ou cipula subia de tal modo que sobrepujava a cidade; uma ver colocado como maquete, e mudado de lugar, achei que assim se via a fachada antes de qualquer outra parte; como o resto dele se relaciona com a cidade, ser visto no mapa...”° Que diferenga isto fez? Proporgées realistas foram alteradas, ¢ enquanto parte da cidade é mostrada de uma diresio, um detalhe é mostrado exatamente da diregiio opostal 72 O sentido do filme Eis por que insisto em incluir El Greco entre os antepassados da montagem cinematogréfica. Neste caso particular ele aparece como um precursor do cinejor- nal, porque sua “remontagem’” é mais informativa do que seu outro quadro Vista de Toledo (pintado no mesmo perfodo). Neste tiltimo trabalho, ele realizou uma revolugdo de montagem da paisagem realista nao mesmo radical, mas o fez através de uma tempestade emocional, que imortalizou o quadro.” El Greco nos leva de volta a0 nosso tema principal, porque sua pintura tem um equivalente musical preciso em uma parte da variada musica folclérica da Espanha. El Greco refletiu sobre nosso problema da montagem colorido-sonora, porque teria sido impossivel para ele nao ter conhecido esta harmonia — jé que sa pintura esta tio prdxima, em espitito, das caracteristicas do chamado cante jondo.™* A afinidade espiritual (naturalmente sem referéncia a cinematografia!) é le- vantada por Legendre e Hartmann na introdugao de seu monumental catdlogo das obras de El Greco. Eles comecam citando o testemunho de Jusepe Martinez sobre o fato de El Greco freqiientemente convidar musicos & sua casa. (Martinez criticava tal compor- tamento como um “Luxo desnecessirio”.) Nao podemos deixar de imaginar que uma afinidade da musica com a pintura seria natural na obra de um artista que tinha um amor tao pessoal pela musica. Legendre e Hartmann declararam abertamente: » acteditamos realmente que El Greco amava o cante jondo, ¢ tentaremos explicar como sua obra representa, na pintura, a contraparte que 0 cante jondo representa na musica.” Ao procurar uma descrigao ¢ andlise do cante jondo, encontramos a espléndida brochura sobre 0 assunto, publicada anonimamente por Manuel de Falla por ocasido do festival de cante jondo organizado em Granada pelo compositor ¢ Federico Garcia Lorca.” Esta brochura foi resumida ¢ reproduzida na obra de J.B. Trend sobre Falla. Depois de descobrir os elementos do canto bizantino, da cangio drabe e da musica cigana no cante jondo... ..Falla encontra analogias com alguns tipos de melodia encontrados na India e em outros lugares do Oriente. As posig&es dos intervalos menores na escala nao so invaridveis; sua produgio depende do levantamento ou abaixamento da voz devido & expressio dada a letra que est4 sendo cantada...; além isto, cada uma das notas suscetiveis de alteragao é dividida ¢ subdividida, resultando, em certos casos, na alteragio das notas de ataque e na resolusio de alguns fragmentos da frase. A isto deve-se actescentar 0 portamento da voz — a maneira de cantar que produz as Sincronizagio dos sentidos a infinitas gradagdes de diapasio que existem entre duas notas, estejam elas préximas ou distantes. “Resumindo 0 que foi dito, devemos afirmar, em primeiro lugar, que no cante hondo (como nas melodias primitivas do Oriente) a escala musical é a conse- qiiéncia direta do que poderia ser chamado de escala oral... Nossa escala temperada 86 nos permite mudar as fungdes de uma nota; enquanto na “modulagéo enarméni- ca’, assim apropriadamente chamada, este tom é modificado de acordo com as necessidades naturais de suas fungées...” Outra peculiaridade do cante hondo € 0 uso de compassos que raramente excedem os limites de uma sexta. “A sexta, ¢ claro, nao € composta apenas de nove semitons, como no caso de nossa escala temperada. Pelo uso da ordem enarménica, hd um consideravel aumento do niimero de tons que o cantor pode produzir.” Em terceiro lugar, cante hondo proporciona exemplos de repetigao da mesma nota — ao ponto da obsessio — freqiientemente acompanhada de uma appoggiatura acima ou abaixo. ‘Apesar de a melodia cigana ser rica em ornamentagées, estas (como na musica oriental primitiva) s6 sio empregadas em determinados momentos como expansio lirica ou como explosdes apaixonadas sugeridas pelas fortes emogdes descritas no texto, “Elas podem ser consideradas, por isso, inflexdes vocais ampliadas, em vez de ornamentagoes, apesar de assumirem estas tiltimas, ao serem traduzidas nos interva- los geométricos da escala temperada.”>! Legendre ¢ Hartmann nio deixam duvida no leitor quanto a sua analogia entre cante jondo e El Greco. quando contemplamos os sutis “intervalos” subdivididos de cor, onde as modula- Ses dos elementos essenciais se prolongam infinitamente, esses violentos pontos de vista, estes gestos explosivos, estas violentas contorgdes que tanto chocam as mentes mediocres e sem vivacidade — ouvimos o cante jondo da pintura — uma expressio da Espanha e do Leste — do Ocidente ¢ do Oriente...” Outros especialistas em El Greco, com Maurice Barrés, Meier-Graefe, Kehrer, Wilhumsen ¢ outros, sem na realidade se referirem 4 miisica, descreveram porém quase que com estas mesmas palavras este efeito das pinturas de El Greco. Quio afortunados aqueles que podem confirmar estas impresses com os préprios olhos! Uma evidéncia nao-sistematizada e muito curiosa desta questdo é proporcio- nada pelas memérias de Yastrebtzev sobre Rimsky-Korsakov. No registro de 8 de abril de 1893 lemos: Durante a noite a conversa passou para a questio da tonalidade e Rimsky contou como as harmonias em sustenidos funcionavam pessoalmente nele como cores, en- quanto harmonias em bemdis criavam nele estados de espirito de “maiores ou meno- res graus de entusiasmo”, O dé sustenido menor seguido do ré bemo! maior da cena “egipcia” de Mlada foram deliberadamente introduzidos para criar uma sensagdo de 74 O sentido do filme entusiasmo, assim como a cor vermelha gera sensagées de calor, enquanto azul € puirpura sugerem frio e escuriddo. “Possivelmente é por isso”, disse ele, “que a estranha tonalidade (mi menor) do inspirado Prelidio de Das Rheingold (O ouro do Reno) sempre teve um efeito tio depressivo sobre mim, Eu teria transcrito este Preliidio na chave de mi maior.”3 Rapidamente, devemos lembrar as “sinfonias coloridas” de James McNeil Whistler — Harmonia em verde e azul, Noturno em azul e prata, Noturno em azul e ouro € suas Sinfonias em branco. Associagées dudio-coloridas preocuparam até uma figura tio pouco respeita- da como Backlin: Para ele, que sempre refletiu 0 segredo das cores, todas as cores falavam — como relata Floerke — ¢, por sua vez, tudo que ele percebe, tanto internamente quanto externamente, é traduzido por cor. Estou convencido de que, para ele, 0 toque de uma trombeta, por exemplo, é vermelho-canela.* Considerando 0 predominio deste fenémeno, a reivindicagao de Novalis € bastante relevant ‘Obras de artes plasticas nunca deveriam ser vistas sem miisica; obras musicais, por sua vez, deveriam ser ouvidas apenas em sales magnificamente decorados.?* Quanto a um “alfabeto da cor” absoluto, infelizmente devemos concordar com Frangois Coppeée, filisteu que desprezo completamente, quando escreve: Rimbaud, fumiste réussi, — Dans un sonnet, que je déplore — Veut que les letres O.E.1. Forment le drapeau tricolore. En vain le Décadent pérore..2° A questéo porém deve ser estudada, porque o problema de se obter uma cortespondéncia tao absoluta ainda preocupa muitas mentes, mesmo as dos produ- tores cinematogréficos norte-americanos. H4 apenas alguns anos passei os olhos, numa revista norte-americana, em especulagSes bastante sérias quanto absoluta correspondéncia do tom da flauta piccolo com — o amarelo! + Em francés no original: “Rimbaud, mistificador bem-sucedido, / — Num soneto que eu deploro — 1 Quer que as letras ©.E.1. / Formem a bandeira tricolor. / Em vio 0 Decadente perora...” Sincronizagao dos sentidos 78° Mais deixemos esta cor amarela, supostamente produzida pelo piccolo, servit para nés de ponte para os problemas, nao de “abstragées nao objetivas", mas dos problemas encontrados pelo artista em seu trabalho criativo com a cor. Notas 1. Escrito em 1940 e publicado na revista Jskusstvo Kino de setembro deste mesmo ano com titulo de Montagem vertical. Primeiro de trés ensaios — as duas partes seguintes foram publicadas nas edigdes de dezembro de 1940 e janeiro de 1941 da mesma revista. 2. NSE: E.M. Forster, Aspects of the Novel, Nova York, 1927. 3. N.S.E: Richard Hugues, A Moment of Time, Londres, 1926. 4, NSE: Thomas Medwin, Journal of the Conversations of Lord Byron: Noted during a residence swith his Lordship at Pisa, in the years 1821 and 1822. Baltimore, 1825. 5. NS.E.: Journal des Goncourt, vol.3, Paris, 1888. 6. “O Futuro do Filme Sonoro”, declaragio assinada por Eisenstein, Pudovkin ¢ Alexandrov, publicada em agosto de 1928 nas revistas Zhian Iskusstua (Vidas das arte) de Leningrado e Sovietski Ekran (Tela sovidtica) de Moscou. Ver apéndice de A forma do filme. 7. “Nao Colorido, mas em Cores”, texto escrito em 1940 para revista Kino de maio do mesmo ano. Publicado com o titulo de “A Cor no Cinema ou 0 Cinema em Cores?”, na coletinea Reflexdes de um cineasta, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1969, p.132. 8. NSE: Henry Lanz, The Physical Basis of Rime, Stanford University Press, 1931 9. Em abril de 1936 Eisenstein publicou na revista Iskusstvo Kino (A Arte do Cinema) um texto com o titulo “Programa para o Ensino da Teoria e da Pritica da Diregio de Filmes", versio ampliada do projeto de programa publicado em 1933, em trés partes, nos ntimeros 5/6, 7 ¢ 8 da revista Sovietskoie Kino, pouco antes do autor iniciar 0 seu curso de diregao no Instituto Superior de Cinema de Moscou, 0 VGIK. Este primeiro projeto intitulava-se “O Granito da Ciéncia do Filme”. No livro Ligées com Eisenstein, de Vladimir Nizhny, transcrigao das anotagbes estenograficas do curso de Eisenstein em 1934, editado em Moscou em 1957, editado em Londres em 1962, em tradugio de Ivor Montagu e Jay Leyda, 0 “Programa” est publicado em apéndice, paginas 143 2 177. (Lessons with Eisenstein, George Allen & Unwin Ltd, 1962). Outras aulas de Eisenstein encontram-se transcritas no Volume IV dos textos selecionados publicados em Moscou em 1966. 10. N.E: Karl von Ekartshausen, Aufichlisse zur Magie aus gepriifien Enfahrungen iiber verboge- ne philosophische Wissenschafien und verdeckte Gebeimnisie der Natur, Munique,1791. 11. NS.E: Louis-Bertrand Castel, Esprit, saillies et singularités du P Castel, Amsterda, 1763. 12, NSE: René Ghil, “En methode a 'oeuvre”, in Ocwores completes, Pais, Albert Messein, 1938, 13. NSE: Hermann LE Helmholtz, Physiological Optics, Rochester, 1924. 14, NSE: Max Deutschbein, Das Wesen des Romantischen, 1921. 15. NSE: Citado em Henry Lanz, op. cit., p. 167. 16. NSE: The Japanese Letters of Lafcadio Hearn, organizacio de Elizabeth Bisland, Nova York, 1910. 17. NSE. Ibid., carta de 5 de junho de 1893, 18. NSE: Ibid,, carta de 14 de junho de 1893.

Você também pode gostar