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Sergei Eisenstein A Forma do Filme Apresentagao, notas e revisio técnica: José Carlos Avellar Traducao: Teresa Otroni Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Titulo original: Film Form Copyright © 1949 by Harcourt Brace Jovanovich, Inc. ‘Copyright renewed 1977 by Jay Leyda Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Copyright © 2002 da edicio em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Leda rua México, 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: jze@zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodugio nio-autorizada desta publicagao, no todo ‘ow em parte, constitui violacio de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capa: Sérgio Campante Primeira edigao em lingua portuguesa: 1990 Os editores agradecem & Fundacio do Cinema Brasileiro e, em especial, a sua Diretoria Técnica, representada por Ana Pessoa, pela reproducio fotogrifica das cenas dos filmes de Eisenstein utilizadas na edigdo brasileira de A forma do filme e O sentido do filme. Os editores agradecem também 4 Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro por ter cedido cépias dos filmes Alexander Nevsky, ‘A greve, O encouragado Potemkin ¢ Outubro para que as reprodusoes fossem feitas diretamente dos fotogramas desses filmes. Reprodugio dos fotogramas feita no Laboratério da Fundacéo do Cinema Brasileito por José de Almeida Mauro. CIP-Brasil, catalogagio-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Eisenstein, Sergei, 1898-1948 E37F —_A forma do filme / Sergei Fisenstein; apresentagio, notas ¢ revisio técnica, José Carlos Avelar; tradugao, Teresa Ottoni. — Rio de Janeito: Jorge Zahar Ed., 2002 ib; ‘Tradugio de: Film form Anexos ISBN 85-7110-112-4 1, Cinema — Estética. I. Avellar, José Carlos, 1936-, II. Titulo. CDD 791.4301 02-1643 CDU 791.43 Sumario INTRODUGAO: E = mc?, por José Carlos Avellar . . . Prefacio de Sergei Eisenstein Do teatro ao cinema . Uma inesperadajungdo ......-..-.--- Roradelquadro 2 Dramaturgia da forma do filme . . . bee Aquarta dimensao do cinema .........- Métodos de montagem.. 6.0.2.2... aes eee Eh! Sobre a pureza da linguagem cinematografica A forma do filme: novos problemas Sobre a estrutura das coisas we se Realizagao Dickens, Griffithenéds ......... " 15 27 x. 49 72 79 89 108 120 141 - 163 APENDICE: Declaragao. Sobre o futuro do cinema sonoro....... fNDICE DE NOMES EASSUNTOS .........-4- or 225 229 As notas ao final de cada capitulo assinaladas com as iniciais N.S.E. s4o originais de Sergei Eisenstein. INTRODUGAO E=mc José Carlos Avellar Para conseguir voar, o homem estudou atentamente o movimento das asas dos pdssaros, ¢ ao se dar conta das miiltiplas fungées que elas desempenham durante v6o, ao se dar conta de que as asas dos pdssaros funcionam as vezes como hélices € as vezes como superficies para planar, dividiu esas fungées em diferentes partes, ctiando para cada uma delas uma parte em separado; entao, através da montagem dessas partes numa outra ordem, inventou o avido. Para criar uma obra de arte, para conhecer e transformar a realidade através da arte, o homem trabalha assim como trabalhou para inventar o aviao. Foi em 1934, durante uma aula na VGIK, na Escola da Unido dos Institutos de Cinema da Unido Soviética, em Moscou. Eisenstein dizia a seus alunos que a arte nao se reduz ao registro ou imitagio da natureza; que arte é conflito; é a escritura dos sonhos sonhados pelo artista; que arte é 0 conflito entre a representagio de um fendmeno ¢ a compreensio ¢ o sentimento que temos do fendmeno representados é uma representagio que toma os elementos naturais do fendmeno representado € cria com eles a lei organica da construgio da obra; que arte é 0 conflito entre a légica da forma orginica e a égica da forma racional. Eisenstein dizia essas coisas, e para melhor representar sua idéia montou mais ou menos como aparece acima a histéria de como o homem conseguiu voar, lembrando que, primeiro, ele tentou reproduzir com exatidao a forma de um pdssaro, mas nao conseguiu voar com as asas construi- das iguais as asas dos passaros. pedago de conversa acima é um bom exemplo do que Eisenstein discute de como ele constrdi a discusséo nos ensaios que compéem este livro. Esta aula é citada na biografia do realizador escrita por Viktor Shklovski, publicada em Moscou em 1971 ¢ logo traduzida para o espanhol ¢ o italiano. As aulas de Eisenstein, especialmente as do curso de diregio cinematogréfica entre 1932 € 1936, foram todas registradas em anotag6es estenogréficas feitas pelos alunos. Parte dessas anotages foram reunidas em dois livros editados em Moscou em 1957 € em 1966. Shklovski selecionou esse fragmento de aula para ilustrar a afirmagao de que ao falar de montagem Eisenstein nao estava querendo se referir apenas ao trabalho de juntar pedagos de filmes numa certa ordem, nem mesmo, num sentido mais amplo, apenas a idéia que organiza a composigéo de cada um 8 A forma do filme desses pedagos ¢ a inter-relacao/coliséo entre eles para formar o sentido do filme. Para Eisenstein, diz Shklovski, 0 pensamento humano € montagem e a cultura humana ¢ resultado de um proceso de montagem onde o passado nao desaparece € sim se reincorpora, reinterpretado, no presente. O leitor que entrar nos textos de A forma do filme depois de passar os olhos, num véo rapido, pelo pedago de conversa que abre esta introdugao, e pela observa- gio de Shklovski acima, chegaré mais rapido a sensacéo que vai tomando conta da gente ao longo da leitura, sensagéo néo muito facil de se traduzir em palavras mas que talvez, exagerando um pouco, se possa sugerir dizendo que ler Eisenstein, tal como ver seus filmes, é algo assim como descobrir que para voar com 0 pensamento o homem inventou o cinema. E 0 cinema, para Eisenstein, comegow a ser inventado bem antes de comegar de fato a ser inventado. ‘A montagem jé existia na pintura, como podemos ver, Eisenstein nos lembra, nas vistas de Toledo feitas por El Greco, no retrato de Cissy Loftus feito por Lautrec, ou no retrato do ator Tomisaburo Nakayama feito por Toshusai Sharaku; jd existia no teatro, como podemos ver nas solugées de cena ¢ no jeito de interpretar dos atores do Kabuki; existia também na musica, como podemos ver nos experimentos de Debussy € Scriabin, compardveis a0 que num filme pode ser feito com o uso de grande-an- gulares bem abertas e teleobjetivas bem fechadas; € na prosa, como podemos ver em Gorki, Tolstoi ou Dickens; € na poesia, como podemos ver em Maiakovski ou em versos japoneses como, por exemplo, Corvo solitdrio Galho desfolhado Amanhecer de outono sinais de que 0 poeta escreve com planos de cinema e monta seu poema assim como um realizador monta seu filme, formando uma nova idéia a partir da fusio/colisio de planos independentes. Uma certa qualidade cinematogréfica jé existia em obras realizadas antes do invento do cinema, ¢ para falar do cinema que existiu antes do cinema ¢ que continua a existir fora dele, em textos, em desenhos, na mtisica ¢ no teatro, Eisenstein criou algumas palavras, como “cinematismo” e “imagicidade”. O cine- ma que existe dentro do préprio cinema — e para falar dele Eisenstein criow também algumas palavras, como “tipagem”, “mise-cn-cadre” ou “mise-en-short” —, 0 cinema depois da invengao do cinema permite pensar melhor as leis que governam a construgao da forma numa obra de arte. Para tanto, € preciso que observemos com atengio, ¢ usemos, como ponto de partida, as caracterfsticas Eo me? 9 particulares de seu processo de montagem — a fusio, a colisdo, a construgao de uma ordem nio igual 4 da natureza mas sim igual A da natureza dos homens: quando misturamos um tom azul com um tom vermelho chamamos o resultado de violeta, ¢ néo de uma dupla exposiggo de vermelho e azul; a ilusdo de movimento que recebemos durante a projecio de um filme nasce da percepgao dos fotogramas fixos nao um depois do outro mas sim um em cima do outro; 0 encadeamento das partes que formam o todo de uma obra de arte se faz em obediéncia & estrutura especial dos pensamentos, nao formulados através da constru¢ao légica em que se expressam os pensamentos elaborados, mas sim em obediéncia a processos sensuais e de fantasia do pensamento — como se fosse uma escrita do sonho. E por causa dessas coisas anotadas aqui, rapidamente, como uma espécie de indice dos ensaios reunidos a seguir, ¢ por tudo isso que bem no comeco desta introdugéo, antes mesmo do pedaco de aula de 1934, esta como t{tulo, para ser apanhado meio como imagem meio como trocadilho, a férmula (de Einstein) que se pode pegar como para orientar a leitura: E = mc’, onde E (de energia) correspon- dea Eisenstein, 0 m corresponde & montagem, ¢ - (a velocidade da luz) correspon- de ao cinema, o cinema que existe depois da invencao do cinema mais 0 que jé existia antes da invengio do cinema. Uma imagem meio de brincadeira, para marcar esta série de textos, que nos mostra o quanto, no cinema, espago e tempo séo grandezas inter-relativas. Sio 12 ensaios, a maior parte deles escrita em 1929. Eisenstein havia termina- do Outubro (Oktiabr, 1927-28), retomado ¢ finalizado O velho e 0 novo ou A linha geral (Staroie i novoie, ou Gueneralnaia liniia, 1926-29), ¢ tinha como projeto filmar O capital de Marx. Também se preparava para estudar o cinema sonoro, a partir de agosto, em companhia de Eduard Tisse e Grigori Alexandrov, numa viagem a Alemanha, Franga, Inglaterra e Estados Unidos. O livro, na verdade, é 0 resultado da montagem de textos escritos separadamente, mas todos basicamente preocupados com a questao que aparece no titulo de um deles, a dramaturgia da forma do filme. A idéia de reunir estes ensaios num livro surgiu primeiro em 1936, quando, depois da proibigao de O prado de Bejin (Bejin Lovii, 1935-37), Jay Leyda, aluno de Eisenstein e um de seus assistentes de direcao neste filme inacabado, deixou Moscou de volta para os Estados Unidos com 0 plano do livro para tentar edité-lo em Nova York. A forma do filme, no entanto, sé viria a ser publicado em 1949, um ano depois da morte do realizador. Antes, o mesmo Jay Leyda consegui- tia publicar, em Nova York e em Londres, em 1942, uma outra coletinea de textos de Eisenstein, O sentido do filme. A boa acolhida a este livro levou Eisenstein a rever aidéia de A forma do filme em 1946-47, ¢ a acrescentar trés novos ensaios escritos em 1939 € 1944, Durante longo tempo Eisenstein foi conhecido apenas por estes dois livros € pelos filmes que conseguiu finalizar: A greve (Statchka, 1924), O encouragado Potem- hin (Bronienosets Potemkin, 1925), 0s ja citados Outubro e O velho e 0 novo, Cavalei- 10 A forma do filme 10 de ferro (Alexander Nevsky, 1938) ¢ as duas partes de /van, o Terrtvel (Ivan Grozny, 1942-46, mas s6 liberado para exibigao integral a partir de 1958). S6 mesmo no comeso da década de 60 € que se pode perceber que o que se conhecia de Eisenstein era muito pouco. Primeiro, a publicagio de duas novas coletaneas de textos — Reflexes de um cineasta, que teve traducio brasileira em 1969 pela Zahar, e Lessons with Eisenstein de Vladimir Nizhny, publicado em inglés pela George Allen & Unwin em 1962; depois pela edigio em Moscou de seis volumes de textos selecio- nados, entre 1964 ¢ 1971; ¢, ao lado dos textos, a publicagio dos livros com os desenhos, feitos no México, para a preparacio de Alexander Nevsky ¢ de Ivan, 0 Terrtvel; ¢ finalmente, a0 lado dos livros, as diversas montagens feitas com 0 material de Que viva Méxicol, a montagem dos fotogramas fixos de O prado de Bejin, ¢ a divulgacao dos esbogos de roteiros ¢ anotagées para Uma tragédia ameri- cana, Ouro de Sutter, O capital, O amor do poctae a terceira parte de Ivan, 0 Terrivel, entre outros — tudo isto comesou a mostrar que o que se conhece é apenas uma pequenina parte de um amplo trabalho pratico e tedrico sobre cinema. ‘Ao morrer, aos cinqiienta anos, em feverciro de 1948 — vitima de um ataque cardfaco, enquanto preparava um ensaio sobre a cor no cinema encomendado por Lev Kulechov —, Sergei Mikhailovich Eisenstein deixou uma quantidade de textos muitas vezes superior ao que jé foi editado. Outros seis volumes de escritos se encontram prontos para edigao na Uniao Sovietica, textos inéditos feitos a partir de seu tiltimo trabalho tedrico, A natureza ndo indiferente, A publicasio de A forma do ‘filme, paralelamente a de O sentido do filme (com uma ficha bibliogréfica e filmo- grafica em apéndice), vai permitir entrar em contato com uma pontinha das reflexdes deste homem que, depois de estudar atentamente o movimento dos filmes, de um modo geral, ¢ dos filmes que cle mesmo realizou de um modo particular, dividiu as varias caracterfsticas da forma e do sentido do filme em partes, € montou uma teoria para ensinar o cinema a voar. PrefAcio' © cinema, sem diivida, € a mais internacional das artes. Nao apenas porque as platéias de todo o mundo véem filmes produzidos pelos mais diferentes paises ¢ pelos mais diferentes pontos de vista. Mas particularmente porque o filme, com suas ricas potencialidades técnicas ¢ sua abundante invengao criativa, permite estabelecer um contato internacional com as idéias contemporineas. Porém, no primeiro meio século de sua histéria, o cinema s6 explorou uma parte insignificante de suas infinitas possibilidades. Por favor, nao me interpretem mal. Nio se trata do que foi feito. Coisas magnificas foram feitas. S6 no que diz respeito a0 contetido houve um diltivio de novas idéias ¢ novos ideais que fizeram brotar da tela as novas idéias sociais e o novo ideal socialista da vitoriosa Revolugo de Outubro. ‘A questo é — 0 que pode ser feito no cinema, o que sé pode ser criado com os meios do cinema. Aquilo que ele possui de especifico, de tinico, aquilo que somente o cinema seria capaz de construir, de criar. Ainda nao encontraram a solugio definitiva para o problema da s{ntese das artes que tendem a uma fusio plena e organica no campo do cinema. Enquanto isto, problemas novos se acumulam diante de nés. Mal tinhamos acabado de dominar a técnica da cor ¢ novos problemas de volume ¢ de espago se colocaram diante de nés, culminando com o filme estereos- cépico. E entio, de repente, o imediatismo da televisio nos coloca diante da realidade viva e parece desmanchar as experiéncias ainda néo completamente assimiladas € analisadas do cinema mudo e sonoro. ‘A montagem nada mais era do que a marca, mais ou menos perfeita, da marcha real de uma percepsio de um acontecimento reconstitu(do através do prisma de uma consciéncia ¢ de uma sensibilidade de artista. De repente, a televisio puxa todo este processo para frente, para o momento da percepgio. " 2 A forma do filme Assiste-se assim & fusio incrivel de dois extremos. O clo inicial da cadeia de formas evolutivas do espeticulo, o ator-intéxprete, que transmite ao espectador o resultado de seus pensamentos e sentimentos no instante mesmo em que esta pensando e sentindo, pode agora estender a mao a0 mestre da forma mais elevada do teatro do futuro: 0 mago cineasta da televisao, que, répido como um piscar de olhos ou como o surgir de um pensamento, jogando com as lentes e com o visor da camera, imporé diretamente, instantaneamente, sua interpretacao estética do acontecimento durante a fragao de segundo em que ele se produz, no momento de nosso primeiro, tinico e fabuloso encontro com ele. Pouco provavel? Imposstvel? Ser4 isso realizével numa época que, por meio do radar, jé se pode captar em pleno véo 0 eco de sinais enviados para a lua e para além dela, ¢ jd se podem enviar avides na velocidade do som acima da cipula azul da atmosfera? Em meio a guerra sonhava-se que, vinda a paz, a humanidade vitoriosa aplicaria sua energia liberada para criar novos valores de cultura, para imprimir & civilizagao um novo desenvolvimento. ‘A tio esperada paz chegou. Eo que vemos? Inebriados pelo fato de possuir um brinquedo integrante do alucinante po- tencial destruidor, os enlouquecidos pelo dtomo cada vez mais se afastam do ideal de paz ¢ unio, sempre mais préximos de rematerializar a imagem do materialismo, sob formas ainda piores que o {dolo, hé pouco abatido, de um fascismo de trevas e de desumanidade. ‘A Unido Soviética ¢ a parte avangada ¢ melhor da humanidade pensante apelam a uma cooperacio verdadeiramente democrdtica entre as nagbes mundiais. A vontade avessa dos adversdrios da paz pée-se a trabalhar para impor humanidade uma nova hecatombe, novas guerras, novo massacre homicida, fratri- cida, E por isso os povos, mais do que nunca, devem aplicar suas forsas para a compreensio reciproca e a uniao. © cinema tem 50 anos. Um mundo imenso ¢ complexo de possibilidades abre-se diante dele. A humanidade dedica-se a dominé-las, nao menos do que a dominar o aspecto fecundo das descobertas da fisica de hoje, da era atémica. Quéo pouco tem sido aplicado nas pesquisas estéticas em todo o mundo para permitir a0 homem tornar-se senhor dos meios ¢ possibilidades que o cinema oferece! Nio nos falta nem capacidade nem impeto. O que espanta aqui € 0 imobilismo, a rotina, a fuga diante de problemas absolutamente novos que se superpdem enquanto o desenvolvimento técnico do cinema corre na frente. Prefacio 13 Nao devemos temer nada. Nossa tarefa ¢ reunir e resumir as experiéncias do passado € do presente, armando-nos com esta experiéncia para enfrentar novos problemas e dominé-los, permanecendo conscientes, ao fazer isso, de que a base genuina da estttica e 0 material mais valioso de uma nova técnica é serd sempre a profundidade ideolégica do tema e do conteitdo, pata os quais os meios de expressao cada dia mais aperfeigoados serio somente meios de dar corpo as formas mais elevadas de concepgio do univer- so, as idéias do comunismo. Como trabalhadores do cinema soviético, nés nos sentimos obrigados, desde 08 primeiros dias de nossa nova atividade, a conservar cada um dos pequenos grios de nossa experiéncia coletiva, a fim de que cada fagulha de pensamento no campo da criaao cinematogréfica se tornasse propriedade de todos os que trabalham com cinema. Fizemos isto nao apenas nos filmes, mas também nos ensaios e pesquisas, para compor um quadro do que buscamos, do que encontramos ¢ daquilo a que aspiramos. Assim nasceram meus ensaios. E hoje, resolvido a reunir num volume o que escrevi em diferentes épocas sobre assuntos diversos, sinto-me impulsionado novamente por estes mesmos sen- timentos: contribuir para o dominio das amplas possibilidades do cinema. Sao os sentimentos que devem animar todo aquele que teve a oportunidade de criar neste meio de incompardvel beleza e cujo fascinio nao tem precedente. Em contraste com os que guardam sob sete chaves os “segredos” atémicos, nés, cineastas soviéticos, cooperando com todos os nossos amigos democratas, contribuiremos para a causa comum com tudo aquilo que os anos de prética nos ensinaram sobre essa arte fabulosa. A idéia de paz universal nao pode ser sufocada pelo amor-prdprio egofsta de nagées ¢ paises prontos a abrirem mio da felicidade universal em nome de sua avidez individual. O cinema, a mais avangada das artes, deve estar em posi¢ao avangada nesta luta. Que ele indique aos povos o caminho da solidariedade e da unanimidade no qual devemos nos mover. Foi com tal pensamento que preparei a presente selecio de textos, escritos em diferentes datas ¢ locais. E possfvel que muitos tenham envelhecido. E possivel que muitos tenham sido superados. E que muitos estejam ultrapassados. Talvez parte deles tenha apenas um interesse histérico, como ponto de partida na luta comum dos anos em que eram mais fervorosas as pesquisas cinematogréfi- cas. O todo, espero, poderé encontrar algum lugar num dos degraus da escada da experiéncia coletiva do cinema, que, a despeito dos que gostariam de langar a 14 A forma do filme humanidade no caos da discérdia e da escravidio muitua, sobe passo a passo ¢ onde a cinematografia soviética continuaré subindo, como encarnacao dos mais nobres ideais da humanidade. SERGEI EISENSTEIN Nota 1. Escrito em 1946— o original vem datado Moscou-Kratovo, agosto de 1946 — e publicado pela primeira vez.dez anos mais tarde na abercura da coletinea Reflexies de um cineasta. Do teatro ao cinema’ E interessante rememorar os diferentes caminhos seguidos pelos profissionais do cinema de hoje desde seus pontos de partida criativos, que compéem o multiface- tado pano de fundo do cinema soviético. No inicio dos anos 20, todos viemos para © cinema soviético como para algo ainda inexistente. Nao chegamos a uma cidade jd construida; nao havia pragas nem ruas tragadas; nem mesmo pequenas alamedas tortuosas ¢ becos sem saida, como os que podemos encontrar nas metrépoles cinematogréficas de hoje. Chegamos como beduinos ou cacadores de ouro a um lugar de possibilidades inimagindveis, das quais apenas uma pequena parte foi explorada até hoje. ‘Armamos nossas tendas ¢ iniciamos nossas experiéncias em varias éreas. Ativi dades particulares, ocasionais profissdes passadas, habilidades impensdveis, insus- peitadas erudigées — tudo foi reunido ¢ usado na construgio de algo que nao tinha, até entio, tradigdes escritas, requisitos estilfsticos exatos, nem mesmo neces- sidades formuladas. Sem mergulhar muito fundo nos fragmentos teéricos das especificidades cinemato- graficas, quero discutir aqui dois de seus aspectos. Séo aspectos também de outras artes, mas o cinema é particularmente responsével por eles. Primo: fotofragmentos da natureza séo gravados; secundo: esses fragmentos sio combinados de varios modos. Temos, assim, o plano (ou quadro) ¢ a montagem. ‘A fotografia é um sistema de reprodugao que fixa eventos reais e elementos da realidade. Essas reprodugées, ou fotorreflexos, podem ser combinados de varias maneiras. Tanto como reflexos, quanto pela maneira de suas combinagées, elas permitem qualquer grau de distorgéo — que pode ser tecnicamente inevitavel ou deliberadamente calculada. Os resultados variam desde a realidade exata das combinagoes de experiéncias visuais inter-relacionadas, até as alteragbes totais, composigées imprevistas pela natureza, ¢ até mesmo o formalismo abstrato, com remanescentes da realidade. A aparente arbitrariedade do tema, em sua relagio com o status quo da natureza, é muito menos arbitréria do que parece. A ordem final é inevitavelmente 15 16 A forma do filme determinada, consciente ou inconscientemente, pelas premissas sociais do realiza- dor da composicao cinematogréfica. Sua tendéncia de classe é a base do que parece ser uma relagdo cinematogréfica arbitraria com 0 objeto que se coloca, ou se encontra, diante da camera. Gostarfamos de encontrar neste processo duplo (o fragmento e suas relagées) uma indicagéo das especificidades cinematograficas. Mas nao podemos negar que este processo pode ser encontrado em outros meios artisticos, sejam ou nao préxi- mos do cinema (¢ que arte nao esta préxima do cinema?). Porém, é poss{vel insistir em que estes aspectos so especificos do cinema, porque o especifico do cinema reside no no processo em si, mas no grau em que estes aspectos sio intensificados. O mitisico usa uma escala de sons; 0 pintor, uma escala de tons; o escritor, uma lista de sons ¢ palavras — e estes so todos tirados, em grau semelhante, da natureza. Mas o imutével fragmento da realidade factual, nesses casos, € mais estreito e mais neutro no significado e, em conseqiiéncia, mais flextvel 8 combina- g40. De modo que, quando colocados juntos, os fragmentos perdem todos os sinais visiveis da combinagio, aparecendo como uma unidade orginica, Um acorde ~ ou mesmo trés notas sucessivas — parece uma unidade orginica. Por que deveria a combinagao de trés pedagos de filme, na montagem, ser considerada uma colisio tripla, impulsos de trés imagens sucessivas? Um tom azul é misturado a um tom vermelho e 0 resultado se chama de violeta, € nao de uma “dupla exposicao” de vermelho azul. A mesma unidade de fragmentos de palavras permite todo tipo de variacdo expressiva posstvel. E muito facil distinguir trés gradagGes de significado na linguagem — por exemplo: “uma janela sem luz”, “uma janela escura” ¢ “uma janela apagada”. Agora, tente expressar estas varias nuangas na composigao do plano. E possi- vel? Se for, entéo que contexto complicado ser necessério para arrumar os peda- gos de filme num rolo de modo que a forma preta na parede comece a mostrar uma janela “escura’, ou uma “apagada”? Quanta capacidade ¢ engenhosidade serio gastas para se conseguir um efeito que as palavras obtém de modo tao simples? O plano é muito menos elaboravel de modo independente do que a palavra ou 0 som. Assim, 0 trabalho miituo do plano e da montagem ¢, na realidade, uma ampliagéo de um processo microscopicamente inerente a todas as artes. Porém, no cinema este processo é elevado a um tal grau que parece adquirir uma nova qualidade. O plano, considerado como material para a composigio, é mais resistente do que o granito, Esta resisténcia ¢ especifica dele. A tendéncia do plano a completa imutabilidade factual esté entaizada em sua propria natureza. Esta resistencia deter- minou amplamente a riqueza ¢ variedade de formas ¢ estilos da montagem — porque a montagem se torna o principal meio para uma transformacio criativa realmente importante da natureza. Do teatro ao cinema 7 Assim, 0 cinema € capaz, mais do que qualquer outra arte, de revelar 0 processo que ocorre microscopicamente em todas as outras artes. O menor fragmento “distorcivel” da natureza é 0 plano; engenhosidade em suas combinagées é montagem. A anilise deste problema recebeu cuidadosa atengao durante a segunda meia década do cinema soviético (1925-30), uma atengao freqiientemente levada ao excesso. Qualquer alteragio infinitesimal de um fato ou evento diante da camera se transformou, ultrapassando todos os limites legitimos, em teorias completas de documentalismo. A necessidade legitima de combinar esses fragmentos da realida- de se transformou em concepgées de montagem que pretendiam suplantar todos os outros elementos de expresso do cinema. Dentro de limites normais, estes aspectos fazem parte, como elementos, de qualquer estilo de cinematografia. Mas nio se opéem, nem podem substituir outros problemas — por exemplo, o problema do argumento. Voltando ao duplo processo indicado no inicio destas notas: se este proceso é caracteristico do cinema, tendo encontrado sua plena expressio durante o segundo estdgio do cinema soviético, valeré a pena investigar as biografias criativas dos diretores daquele perfodo, vendo como estes aspectos emergiram, como se desen- volveram no trabalho pré-filmico. Todos os caminhos daquele perfodo levaram a uma sé Roma. Tentarei descrever 0 caminho que me levou aos principios do cinema. Em geral diz-se que minha carreira no cinema comegou com minha encenagio da pega de Ostrovsky Mesmo 0 mais sabio se deixa enganar’ no Teatro do Proletkult (Moscou, margo de 1923). Isto é verdadeiro e nao é verdadeiro. Nao é verdadeiro se se baseia apenas no fato de que esta encenacéo continha um filme de curta metragem cémico? feito especialmente para ela (néo separado, mas inclufdo no plano de montagem do espeticulo). Est4 mais perto da verdade se se baseia no cardter da producao, porque jé nessa ocasido os elementos da especificidade men- cionada acima podiam ser detectados. Concordamos que o primeiro sinal de uma tendéncia do cinema ¢ mostrar eventos com 0 minimo de distorcao, objetivando a realidade factual dos fragmen- tos. Uma busca nesta direcdo mostra 0 comeco de minhas tendéncias cinemato- graficas trés anos antes, na produgio de O mexicano (da histéria de Jack London). Aqui, minha participagao levou para o teatro os proprios “eventos” — um elemento puramente cinematogréfico, porque diferente das “reagées aos eventos”, um ele- mento puramente teatral. Este é 0 enredo: um grupo revoluciondrio mexicano precisa de dinheiro para suas atividades. Um rapaz, um mexicano, se oferece para conseguir o dinheiro. Ele 18, A forma do filme treina boxe combina deixar o campedo derroté-lo em troca de parte do prémio. Em vez disso, ele derrota o campeio, ganhando o prémio inteiro. Agora que estou mais a par das peculiaridades da luta revoluciondria mexicana, sem mencionar a técnica do boxe, nao pensaria em interpretar este material como o fizemos em 1920, quanto mais em usar um enredo to pouco convincente. O climax da pega é a luta pelo prémio. De acordo com as mais elogiadas tradigées do teatro de arte, isto deveria ocorrer atr4s do palco (como a tourada em Carmen), enquanto os atores no palco deveriam mostrar excitagéo com a luta, que sé eles podem ver, e retratar as varias emogdes das pessoas envolvidas no final. Meu primeiro movimento (passando por cima do trabalho do diretor, j4 que eu estava Id apenas com a tarefa oficial de desenhista) foi propor que a luta fosse vista. Ao mesmo tempo, sugeri que a cena fosse encenada no centro da platéia, para recriar as mesmas circunstancias nas quais uma real luta de boxe ocorre. Assim, ousamos a concretude de fatos reais. A luta deveria ser cuidadosamente planejada com antecedéncia, mas deveria ser totalmente realista. O desempenho de nossos jovens atores na cena da luta diferiu radicalmente de sua atuagdo em toda a produgio. Em todas as outras cenas, uma emogao dava origem a outra emogio (eles estavam trabalhando com o método Stanislavsky), 0 que por sua vez era usado como um meio de atingir a platéia; mas na cena da lutaa platéia foi estimulada diretamente. Enquanto as outras cenas influenciavam a platéia através da entonagio, gestos e mimica, nossa cena usou meios realistas, até estruturais — luta real, corpos caindo no chao do ringue, respiragées arquejantes, o brilho do suor nos corpos ¢, finalmen- te, 0 inesquectvel choque das luvas contra a pele esticada ¢ os misculos tensos. Cenérios ficticios deram lugar a um ringue realista (apesar de nao no centro da sala, gracas a essa praga de qualquer atividade teatral, 0 bombeiro) ¢ extras fecharam o circulo em redor do ringue. Assim, percebi que descobrira uma nova mina, um elemento materialista-fac- tual do teatro. Em O sdbio, este elemento apareceu num nivel novo e mais claro. O excentrismo® da encenagio mostrou esta mesma linha, através de contrastes fantds- ticos. A tendéncia desenvolveu-se nao apenas a partir dos movimentos de encena- io ilusérios, mas do fato fisico da acrobatica. Um gesto se expande em gindstica, a violéncia se expressa através de uma cambalhota, a exaltagio através de um salto mortale, 0 lirismo no “mastro da morte”. O grotesco deste estilo permitiu pulos de um tipo de expresso para outro, assim como entrelagamentos inesperados de duas expressées. Numa produgao posterior, Moscou, estd ouvindo® (verao de 1923), essas duas linhas separadas de “aco real” e “imaginacéo pictérica” passaram por uma sintese expressada por uma técnica especifica de encenacio. Estes dois principios apareceram novamente em Méscaras de gds de Tretiakov (1923-24), com uma irreconciliabilidade ainda mais acentuada, numa ruptura tio Do teatro ao cinema 19 clara que, se tivesse sido um filme, teria permanecido, como se costuma dizer, “na prateleira’. Qual era o problema? O conflito entre princ{pios materiais-priticos e descri- tivos-ficticios foi de algum modo remendado no melodrama, mas eles acabaram se fragmentando e fracassamos completamente. O carto caiu aos pedagos, € 0 moto- rista caiu no cinema. Tudo isto aconteceu porque um dia o diretor teve a maravilhosa idéia de produzir uma pega sobre uma fabrica de gés — numa verdadeira fabrica de gis. Como percebemos mais tarde, os verdadeiros interiores da fabrica nada ti- nham a ver com nossa ficsao teatral. Ao mesmo tempo, o charme plistico da realidade da fabrica se tornou téo forte que o elemento de realidade despontou com forca nova — tomou as coisas em suas préprias maos —¢ finalmente este elemento teve de sair de uma arte em que ele nao podia dominat. Em conseqiténcia, fomos levados ao limiar do cinema. Mas este nao foi o fim de nossas aventuras no trabalho teatral. Indo para o cinema, esta outra tendéncia floresceu, ¢ se tornou conhecida como “tipagem”. Esta “cipagem” & um aspecto tao tipico deste perfodo do cinema quanto a “montagem”. E preciso deixar claro que nao quero limitar 0 conceito de “tipagem” ou “monta- gem” s minhas préprias obras. Quero salientar que esta “tipagem” deve ser entendida de modo mais amplo ¢ nao reduzida ao uso de um rosto sem maquiagem, ou 4 utilizagao de tipos “natural- mente expressivos” em lugar de atores. Em minha opiniao, “tipagem” significa uma abordagem especifica dos eventos abrangidos pelo contetido do filme. Aqui tam- bém 0 método é 0 do minimo de interferéncia no curso natural ¢ nas combinagdes dos eventos. Conceitualmente, do in{cio ao fim, Outubro € pura “tipagem”. Uma tendéncia a tipagem pode ter raizes no teatro; desenvolvendo-se do teatro para o cinema, apresenta possibilidades de excelente crescimento estilistico, num sentido amplo — como um indicador de afinidade com a vida real através da camera. E agora vamos examinar o segundo aspecto de especificidade cinematogrifica, 0s principios de montagem. Como isto foi expresso ¢ moldado em meu trabalho antes de me engajar no cinema? No meio do fluxo de excentrismo de O sdbio, que inclufa um curta-metragem cémico, podemos encontrar as primeiras indicagGes de uma montagem nitidamen- te expressa. A agio se desenvolve através de uma elaborada trama de intriga. Mamayev envia seu sobrinho, Glumoy, para tomar conta de sua mulher. Glumov toma liberdades além das instrugées do tio ¢ a tia leva a corte a sério. Ao mesmo tempo, Glumoy comega a negociar um casamento com a sobrinha de Mamayey, Turussina, mas esconde essas intengées da tia, Mamayeva. Cortejando a tia, Glumov engana o tio; bajulando 0 tio, Glumov combina com ele enganar a tia. 20 A forma do filme Glumoy, num plano cémico, ecoa as situagdes, as paixdes arrebatadoras, 0 frenesi das finangas vividos por seu protétipo francés, Rastignac, de Balzac. A figura de Rastignac, na Riissia, ainda estava no bergo. Ganhar dinheiro ainda era uma espécie de jogo infantil entre tios e sobrinhos, tias e seus cortejadores. Permanece na familia, permanece trivial. Dai a comédia. Mas a intriga e as confusdes jé esto presentes, atuando em duas frentes a0 mesmo tempo — em mio dupla — com personalidades duplas... e mostramos tudo isto com uma montagem que intercala duas cenas diferentes (de Mamayev dando suas instrugées e Glumov colocando-as em execucéo). As surpreendentes intersegdes dos dois didlogos explicam os perso- nagens ¢ a pega, aceleram o ritmo ¢ multiplicam as possibilidades cémicas. Para a producio de O sdbio, 0 cenério foi montado como uma arena de circo, limitada por uma grade vermelha, cercada em trés quartos pela platéia, Na outra quarta parte havia uma cortina listrada, e & frente dela uma pequena plataforma elevada, com a altura de varios degraus. A cena com Mamayev (Shtrauch) se passava no cenério inferior, enquanto os fragmentos com Mamayeva (Yanukova) ocorriam na plataforma. Em vez de mudanga de cenas, Glumov (Yezikanov) corria de uma cena para a outra— pegando um fragmento de didlogo de uma cena, interrompen- do-o com um fragmento da outra cena —, com o didlogo assim colidindo, criando novos significados e algumas vezes jogos de palavras. Os saltos de Glumov agiam como caesurae entre os fragmentos do didlogo. Eo “corte” acelera o ritmo. O mais interessante era que a extrema agudeza da excentricidade nao era retirada do contexto desta parte da pega; nunca se tornou cémica apenas pela comédia, mas atinha-se ao tema, intensificada pela expresso cénica. Outro aspecto claro do cinema em acio aqui foi o novo significado adquirido por frases comuns em um novo ambiente. Qualquer um que tem em mios um fragmento de filme a ser montado sabe por experiéncia como ele continuaré neutro, apesar de ser parte de uma seqiténcia planejada, até que seja associado a um outro fragmento quando de repente adquire ¢ exprime um significado mais intenso bastante diferente do que o planejado para ele na época da filmagem. Este foi o fundamento da inteligente e perversa arte de remontar o trabalho de terceiros, cujos exemplos mais profundos podem ser encontrados durante o alvore- cet de nossa cinematografia, quando todos os principais montadores de filmes — Esther Schub, os irmaos Vassiliev,” Benjamin Boitler e Birrois — estavam ocupados em retrabalhar criativamente os filmes importados apés a revolusio. Nio posso resistir ao prazer de citar aqui uma montagem tour de force deste tipo, executada por Boitler. Um filme comprado da Alemanha foi Danton/Tudo por uma mulher com Emil Jannings. Foi mostrada, em nossas telas, a seguinte cena: Camille Desmoulins € condenada a guilhotina. Muito agitado, Danton corre a Robespierre, que lhe dé as costas e vagarosamente enxuga uma légrima. A legenda Do teatro ao cinema 2 dizia, aproximadamente, “Em nome da liberdade, tive de sacrificar um amigo, Fim. Mas quem poderia imaginar que, no original alemao, Danton, apresentado como indolente, mulherengo, excelente camarada e nica figura positiva no meio de personagens cruéis, correu para o diabélico Robespierte e... cuspiu em seu rosto? E que foi este cuspe que Robespierre enxugou com um lengo? E que a legenda indicava o édio de Robespierre a Danton, um ddio que no final do filme motiva a condenacio de Jannings-Danton a guilhotina?! Dois pequenos cortes reverteram todo o significado desta cena! De onde veio minha experiéncia de montagem nessas cenas de O sdbio? Jé havia um “aroma” de montagem do novo cinema “de esquerda”, particular- mente entre os documentaristas. Nossa substituicao do diario de Glumoy, no texto de Ostrovsky, por um curto “didrio cinematogréfico” foi uma parédia das primeiras experiéncias com cinejornais. Acho que, antes de qualquer coisa, devemos dar crédito aos princ{pios bisicos do citco e do musie-hall — pelos quais senti um amor apaixonado desde a infancia. Sob a influéncia de comediantes franceses, e de Chaplin (de quem sé ouviramos falar), ¢ as primeiras noticias sobre o fox-trot e o jazz, este amor precoce floresceu. O elemento de music-hall foi obviamente necessdrio na época para a emergén- cia de uma forma de pensamento na “montagem”. A roupa bicolor de Arlequim cresceu ¢ se espalhou, primeiro sobre a estrutura do programa, ¢ finalmente sobre 0 método de toda a producio. Mas 03 alicerces se cravaram mais profundamente na tradicao. E estranho, mas foi Flaubert quem nos deu um dos melhores exemplos de montagem-cruzada de didlogos, usada com a mesma intenco de dar énfase expressiva 3 idéia. E 0 caso da cena, em Madame Bovary, em que Ema e Rodolfo se tornam mais intimos. Duas linhas da fala séo interligadas: a fala do orador na praga embaixo, e a conversa dos faturos amantes: O senhor Derozerays levantou-se, iniciando outro discurso... nele, 0 elogio do Go- verno ocupou menos espago; na religiéo ¢ na agricultura deteve-se mais. Mostrou a relacéo entre uma € outra, e como ambas haviam contribuido para a civilizacao. Rodolfo e« Madame Bovary falavam sobre sonhos, pressentimentos, magnetismo. Remontando as origens da sociedade, o orador descreveu os tempos birbaros, quan- do os homens viviam em cavernas no coragio das florestas. Depois os homens despiram as peles de animais, vestiram-se de panos, abriram os sulcos, plantaram a vinha. Isto fora um bem, mas nio haveria em tal descobrimento mais inconvenientes do que vantagens? O senhor Derozerays colocou 0 problema. Do magnetismo, pouco a pouco Rodolfo passou as afinidades, e enquanto o presidente citava Cincina- 22 A forma do filme to ¢ seu arado, Diocleciano plantando sua horta, ¢ os imperadores da China inaugu- rando 0 ano com a semeadura do campo, 0 rapaz explicava & jovem senhora que aquelas atragées irresistiveis tinham sua causa numa existéncia anterior. “Veja nds’, disse ele, “por que nos conhecemos? Por que o acaso assim o quis? Foi porque através da distancia, como dois rios que correm para se unir, nossas inclina- ges particulares nos impeliram um em direcio ao outro.” E Rodolfo pegou-lhe a mio; ela nao a retirou. “Para uma boa lavoura em geral!”, gritou o presidente. “Hi pouco, por exemplo, quando fui & sua casa.” “Ao senhor Bizet de Quincampoix.” “Podia eu saber que a acompanharia?” “Setenta francos.” “Cem veres pensei em partir; mas a segui — e fiquei. “Adubos!” “Como ficarei esta noite, amanhi, todos os demais dias, toda a minha vida.”? E assim por diante, com os “ftagmentos” desenvolvendo crescente tensio. Como podemos ver, este € um entrelagamento de duas linhas tematicamente idénticas, igualmente triviais. O assunto é sublimado por uma trivialidade monu- mental, cujo climax é atingido através de uma continuagao desta intersegéo ¢ do jogo de palavras, com o significado sempre dependendo da justaposigao das duas linhas. A literatura est cheia de tais exemplos. Este método é usado com crescente popularidade pelos herdeiros artisticos de Flaubert. Nossas brincadeiras com relagio a Ostrovsky ficaram num nivel de “vanguar- 2” de uma indubitavel pobreza. Mas a semente das tendéncias de montagem cresceu répida esplendidamente em Patatra, que permaneceu apenas como proje- to devido & falta de uma sala adequada ¢ de possibilidades técnicas. A produgio foi planejada com “chase tempos” (ritmos de perseguisio), rapidas mudangas de agio, intersegdes de cenas ¢ representagio simultinea de varias cenas num palco que cercava uma platéia de cadeiras méveis. Um outro projeto anterior até tentou incluir todo 0 edificio do teatro em sua composigio. A experiéncia nao deu resulta- do durante os ensaios e mais tarde a pega foi produzida por outras maos com a concep¢ao puramente teatral. Foi na pega de Pletney, Precipicio,"° em que Smish- layev ¢ eu trabalhamos, apés O mexicano, até que discordamos quanto aos princt- pios ¢ dissolvemos nossa sociedade. (Quando voltei ao Proletkult, um ano depois, para fazer O sdbio, foi como diretor, apesar de continuar a desenhar minhas pré- prias encenagdes.) Precipicio contém uma cena na qual um inventor, empolgado com sua nova invengio, corre, como Arquimedes, pela cidade (ou talvez estivesse sendo persegui- do por gingsteres — no me lembro exatamente). A tarefa era resolver a dinamica das ruas da cidade, assim como mostrar a condigo de um individuo indefeso & Do teatro ao cinema 23 mercé da “grande cidade”. (Nossas concepgdes erradas sobre a Europa nos levaram, naturalmente, ao falso conceito de “urbanismo”.) Uma divertida combinagao me ocorreu, nao apenas de usar cendrio mével — pedacos de edificios ¢ detalhes (Meyerhold ainda nao criara, para seu Trust D.E., os biombos neutros e¢ lustrosos, murs mobiles, para unificar varios lugares de aga0) — mas também, possivelmente ante a necessidade de mudangas de censrios, de vincu- lar estas decoragdes méveis &s pessoas. Os atores em patins carregavam nao apenas a si mesmos pelo palco, mas também seus “pedagos da cidade”. Nossa solucio do problema — a intersecéo do homem ¢ do meio — foi sem dtivida influenciada pelos principios dos cubistas. Mas as pinturas “urban{sticas” de Picasso tiveram menos importancia aqui do que a necessidade de expressar a dinamica da cidade — relances de fachadas, maos, pernas, pilares, cabecas, cipulas, Tudo isto pode ser encontrado no trabalho de Gogol, mas nao o percebemos até que Andrei Belyi nos esclareceu sobre o cubismo especial de Gogol." Ainda me lembro das quatro pernas de dois banqueiros, carregando a fachada da bolsa de valores, com duas cartolas coroando 0 conjunto. Havia também um policial, cortado e esquartejado pelo tréfego. Trajes resplandecentes com perspectivas de luzes girando, tendo apenas grandes labios pintados visfveis no alto. Tudo isto permaneceu no papel — e agora que até o papel se foi, podemos nos tornar bem pateticamente Ifricos em nossas reminiscéncias. Esses primeiros planos cortados em visdes de uma cidade se tornam outro elo de nossa andlise, um elemento do cinema que tentou adequar-se ao refratério palco. Aqui estéo também elementos de dupla e miltipla exposigdo — “superposigio” de imagens do homem sobre imagens de edificios — tudo uma tentativa de inter-rela- cionar o homem ¢ seu meio numa tinica e complexa exposigao. (O fato de que o filme A greve era cheio deste tipo de complexidade prova a “doenga infantil do esquerdismo” existente nesses primeiros passos do cinema.) Tendo partido da fusio mecanica, a tentativa evolui da sintese pldstica para a sintese temética. Em A greve, hd mais do que uma transformacio na técnica da camera. A composigio e estrutura do filme como um conjunto adquire 0 efeito ea sensagio de unidade ininterrupta entre o coletivo ¢ o meio que cria o coletivo. Ea unidade organica dos marinhciros, navios de guerra ¢ 0 mar, que € mostrada em intersegao plastica ¢ temética em O encouragado Potemkin, nao é obtida através de truques, dupla-exposigao, ou intersegio mecdnica, mas pela estrutura geral da composicao. Mas, no teatro, a impossibilidade da mise-en-scdne se desenrolar pela platéia, fundindo palco e platéia em um padrio em desenvolvimento, foi a razio para a absorgio concentrada dos problemas de mise-en-scene dentro da ago cénica. ‘A mise-en-scone quase geometricamente convencional de O sdbio e sua conse- giiéncia formal, Moscou, estd ouvindo?, se torna um dos elementos bésicos de expressio. A intersego de montagem eventualmente se tornou muito enfaticamen- te exata. A composigao fez sobressair grupos, fez com que a atengao do espectador 24 Aforma do filme mudasse de um ponto para 0 outro, apresentou primeiros planos, uma mio segu- rando uma carta, o jogo das sobrancelhas, um olhar. A técnica da genuina compo- sigdo de mise-en-scéne estava sendo dominada — e se aproximando de seus limites. J4 estava ameagada de se transformar no movimento do cavalo no xadrez, o deslo- camento de contornos puramente plisticos nos tragos j4 ndo-teatrais de desenhos detalhados. Detalhes esculturais vistos através da estrutura do cadre, ou plano, transigdes de plano para plano, pareciam ser a saida Idgica para a ameaga de hipertrofia da mise-en-scene. Teoricamente, isso estabeleceu nossa dependéncia da mise-en-scéne € da montagem. Pedagogicamente, determinou, para o futuro, a passagem A monta- gem e ao cinema, aos quais se chegou através do dominio da construgao teatral ¢ através da arte da mise-en-scéne. Assim nasceu 0 conceito de mise-en-cadre. Como a mise-en-scene é a inter-relagao de pessoas em agao, do mesmo modo a mise-en-cadre &a composigao pictérica de cadres (planos) mutuamente dependentes na seqiiéncia da montagem. Em Mascaras de gds vemos 0 encontro de todos os elementos das tendéncias cinematogréficas. As turbinas, o segundo plano da fabrica, negavam os tiltimos remanescentes da maquiagem ¢ trajes teatrais, ¢ todos os elementos pareciam fundidos independentemente. Os acessérios teatrais no meio da plastica real da fabrica pareciam ridiculos. © elemento de “encenacio” era incompativel com 0 cheiro acre do gas. O praticavel insignificante ficou perdido entre as plataformas reais da atividade de trabalho. Em resumo, a produgao foi um fracasso. E nés nos vimos no cinema. Nosso primeiro opus cinematografico, A greve, refletiu ao inverso, como num espelho, nossa encenasao de Mascaras de gds. Mas o filme patinhava nos restos de uma rangosa teatralidade que se tornava estranha a ele. ‘Ao mesmo tempo, a ruptura com o teatro, a principio, foi tao forte que em minha “revolta contra o teatro” me afastei de um elemento muito vital do teatro — © argumento. Na época isto pareceu natural. Levamos a agio coletiva e de massa para a tela, em contraste com 0 individualismo e o drama do “triangulo” do cinema burgués. Eliminando a concepsao individualista do heréi burgués, nossos filmes daqueles perfodos fizeram um desvio abrupto — insistindo em uma compreenséo da massa como herdi. Nenhum cinema refletira antes uma imagem da aco coletiva. Agora a con- cepgao de “coletividade” deveria ser retratada. Mas nosso entusiasmo produziu uma representagio unilateral da massa e do coletivo; unilateral porque coletivismo significa o desenvolvimento maximo do individuo dentro do coletivo, uma concep- gio irreconciliavelmente oposta ao individualismo burgués. Nossos primeiros fil- mes de massa omitiram este significado mais profundo. Do teatro ao cinema 2s Porém, tenho certeza de que, com relacéo aquele periodo, este desvio foi nio apenas natural, mas necessdrio. Era importante que o cinema fosse primeiro pene- trado pela imagem geral, o coletivo unido ¢ impulsionado por uma tinica vontade. “A individualidade dentro do coletivo”, o significado mais profundo, exigido do cinema hoje, dificilmente tetia aceitagao se o caminho nao tivesse sido aberto pelo conceito geral. Em 1924, escrevi com grande entusiasmo: “Fora com a histéria e 0 enredo!” Hoje, a histéria, que entio parecia quase “um ataque de individualismo” contra nosso cinema revoluciondrio, volta de uma forma nova a seu lugar apropriado. Nesta virada em direcao a hist6ria reside a importancia histérica da terceira meia década da cinematografia soviética (1930-35). E aqui, ao iniciarmos nosso quarto periodo de cinco anos de cinema, quando as discusses abstratas sobre os epigonos do filme de “argumento” ¢ os embrides do filme “sem enredo” estéo se acalmando, é hora de fazer um inventério de nossas perdas e ganhos. ‘Acho que além de dominar os elementos da dicgéo cinematogréfica, a técnica do plano e a teoria de montagem, temos outro ganho a citar — 0 valor dos lacos profundos com as tradig6es e metodologias da literatura. Nao em vao, durante este perfodo, nasceu 0 novo conceito de linguagem do filme, linguagem do filme no como a linguagem do critico de filmes, mas como uma expresso do pensamento cinematogréfico, quando o cinema foi chamado a incorporar a filosofia e a ideolo- gia do proletariado vitorioso. Estendendo a mao para a nova qualidade da literatura — a dramaticidade do assunto —, 0 cinema nao pode esquecer a tremenda experiéncia de seus perfodos iniciais. O caminho, porém, nao é voltar a eles, mas ir em frente, em diregéo & sintese de tudo 0 que de melhor foi feito por nosso cinema mudo, em dirego a uma sintese disto com as exigéncias de hoje, seguindo as linhas do argumento e da andlise ideolégica marxista-leninista. A fase de sintese monumental nas imagens do povo da era do socialismo — a fase do realismo socialista, Notas 1, Escrito em 1934 e publicado na revista Sovietskoie Kino n® 11/12, de dezembro desse mesmo ano. O titulo original, Srednaia iz trekb, 1924/29 (O segundo dos trés, 1924/29), se refere ao segundo gilinqiiénio do cinema soviético. 2. Na vsiakove moudrets dvol'no prototi, esctita em 1868 por Alexander Nikolaievich Ostrovsky (1823-86). O texto encenado por Eisenstein ¢ uma livre adaptagao do original feita por Serguei Tretiakov (1892-1939, poeta, ensafsta e teatrélogo). A versio ganhou um titulo menor, Osdbio, ¢ um subtitulo, Em todo sdbio existe um pouco de ingenuidade, 26 A forma do filme 3. Trata-se de Dnieunik Glumova (O didrio de Glumov), filme de mais ou menos cinco minutos de durasio, todo realizado em um 36 dia, uma quinta-feira, porque o espetdculo tinha estréia marcada para o sibado seguinte, como conta Eisenstein num texto de 1928, Meu primeiro filme, inclu{do mais tarde em sua autobiografia. Neste mesmo texto ele conta ainda que a Goskino enviou Dziga Vertov para acompanhar os trabalhos na qualidade de instrutor, e que depois de ver as filmagens dos dois ou trés planos iniciais Vertov se retirou. Dois meses depois, no cinejornal Kino Pravda 02 16, edigio especial de primavera, Vertov incluiria O didrio de Glumov precedido de um letreiro que anunciava: Sorrisos primaveris do Proletkult (Vesennie ulibki proletkulta). 4, The Mexican Felipe Rivena. A adaptagio para teatro foi de Boris Arvatov e a diregio foi de Valentin Sergeievitch Smishlaiev (1891-1936), com a colaboragio de Eisenstein. O espetdculo estreou em Moscou em maio de 1921. Entre os intérpretes estavam Gregori Alexandrov, Ivan Pyriev ¢ Maxim Shtrauch. . 5. Referéncia ao estilo de encenagio do FEKS (Fabrica do Ator Exeéntrico), 0 Excentrismo, movimento criado em dezembro de 1921 por Gregori Kozintzev (1905-73), Sergei Yutkevich (1904-85), Georgi Krizhitski (1899-1940) ¢ Leonid Trauberg (*1902). Eisenstein colaborou com 0 grupo durante algum tempo, ¢ em maio de 1922 montou um espeticulo com a colaboracio de Yutkevich, A fita da colombina. 6. Slichich Moskua?, de Sergei Teetiakoy, Esta pega, ¢ logo depois Gas Masks, também de Tretiakoy, foram as primeiras montadas pelo grupo dirigido por Eisenstein dentro do Teatro do Proletkult, o Pereéru. O nome do grupo — conta Viktor Shklovski na biografia de Eisenstein que publicou em Moscou em 1972 — é uma abreviatura de Peredvitsnaia truppa (Companhia ambulan- te), que forma um jogo de palavras com triturar ou perturbar, 7. Esther Schub (Esfir linitchina, 1894-1959) entrou para o cinema em 1922, remontando filmes estrangeiros para exibigio na Unio Soviética, Eisenstein acompanhou 0 seu trabalho de remontagem de dois filmes de Fritz Lang, Dr. Mabuse, der Spieler ¢ Inferno, ambos de 1922, reduzidos a um sé filme. Schub, depois de ver O encouragado Potemkin, decidiu passar & realizagio de filmes documentirios remontando trechos de cinejornais, como ela mesma conta na autobiografia que publicou em 1959 em Moscou, Krupnym planom (Primeiro plano). Entre seus filmes encontram- se Podenie dinastii Romanovich (A queda da dinastia Romanov, de 1927) e Russia Nikolaia 1 i Lev Tolstoi (A Riissia de Nicolau 11 ¢ Leon Tolstoi, de 1928). Os irmaos Vassiliev nao eram de fato irmaos, apesar do sobrenome idéntico, mas sempre trabalharam juntos desde 1924: Georgi Vassiliev (1899- 1946) e Sergei Vassiliev (1900-59) comegaram como montadores e dirigiram uma dezena de filmes, entre 0s quais 0 mais conhecido ¢ Tehapaiev (1934). 8. Produgio alema realizada em 1921 por Dmitri Buchowetzki (1895-1932), ator e diretor russo que migrou para a Alemanha em 1919 e daf para os Estados Unidos em 1924. 9. N.S.E.: Gustave Flaubert, Madame Bovary. 10, Com diregio de M. Altman, a pega estreou em outubro de 1922 no Teatro do Proletkult em Moscou, mantendo apenas parte dos cendrios de Eisenstein. Patatna é também um texto de Valentin Pletnev (1886-1942). 11. N.s.£ Andrei Belyi (Boris Nikolaievich Bugayev), Masterseuo Gogolya (A arte de Gogol). Uma inesperada jungao' Ougal A voz de um faiséo Engoliu o campo aberto Deum sé golpe YAMEL 0 famoso comediante do Teatro Mali, cer- ta ver foi obrigado a substituir, no iltimo momento, 0 popular baixo moscovita Lavrov em uma épera. Mas Givochini nao tinha voz de cantor. Seus amigos balan- garam a cabeca complacentemente. “Como poder cantar 0 papel, Vasili Ignatievich?” Givochini no se ofendeu. Disse, alegremente: “Qualguer nota que ndo ‘possa emitir com minha voz, mostrarei com minhas méos.” Fomos visitados pelo teatro Kabuki — uma maravilhosa manifestago de cultura teatral. “Todas as vozes criticas derramam elogios a esta espléndida arte. Mas nfo houve nenhum elogio 20 que constitui seu prodigio. Seus elementos “de museu”, apesar de indispensdveis na avaliagao de seu valor, nio podem sozinhos garantir uma avaliagao satisfatéria deste fenémeno, deste prodigio. Um “prodigio” deve promover progresso cultural, alimentando ¢ estimulando as quest6es intelectuais dos nossos dias. O Kabuki dispensa os chavées: “Como é musical!” “Que tratamen- to dos objetos!” “Que plasticidade!” E chegamos & conclusio de que nada temos a aprender, de que (como um de nossos mais respeitados criticos anunciou) nio ha nada de novo: Meyerhold jé pingou tudo de util do teatro japonés! Atrds das generalidades intiteis, hd a revelacao de algumas posigées reais. O Kabuki é convencional! Como podem tais convengées emocionar os europeus! Sua arte é meramente a fria perfeicao da forma! E as pesas que eles encenam sao feudais! — Que pesadelo! 7 28 A forma do filme Mais do que qualquer outro obstéculo, é este convencionalismo que impede nosso aproveitamento total de tudo 0 que pode ser tomado emprestado do Kabuki. Mas 0 convencionalismo que aprendemos “nos livros” mostra-se, de fato, como um convencionalismo de relagées extremamente interessantes. O convencio- nalismo do Kabuki nao é, de forma alguma, 0 maneirismo estilizado ¢ premeditado que conhecemos em nosso préprio teatro, artificialmente elaborado fora dos requi- sitos técnicos desse dito teatro. No Kabuki este convencionalismo é profundamente Iégico — como em qualquer teatro oriental; por exemplo, no teatro chinés. Entre os personagens do teatro chinés esté “o espirito da ostra”! Observem a maquiagem do ator que desempenha este papel, como sua série de patéticos circu- los concéntricos espalhando-se da dircita para a esquerda de seu nariz, reproduzin- do graficamente as fissuras de uma concha de ostra. Aparentemente, isto é bastante “justificado”. Nao é mais nem menos convengio do que as dragonas de um general. Desde suas origens escassamente utilitdrias, de servir para aparar golpes de macha- do no ombro, até serem guarnecidas com pequenas estrelas hierérquicas, as drago- nas nao podem ser distinguidas, em princtpio, do sapo azul inscrito na testa do ator que estd desempenhando 0 papel do “espftito” do sapo. Outra convensio ¢ tirada diretamente da vida. Na primeira cena de Chushin- gura, Shocho, desempenhando o papel de uma mulher casada, aparece sem sobran- celhas e com dentes enegrecidos. Este convencionalismo nao é mais irreal do que o costume das mulheres judias de raspar a cabega de modo que as orelhas fiquem expostas, nem do costume entre as mogas que se filiam ao Komsomol de usar lengos vermelhos, como algum tipo de “forma”, Diferente da pratica européia, onde 0 casamento foi transformado numa protegéo contra os riscos do amor mais livre, no antigo Japao (da época da pega) a mulher casada, passada a necessidade de ser atraente, destruia seus atrativos! Retirava suas sobrancelhas e escurecia (algumas veres arrancava) seus dentes. Desloquemos a discussio para a questio mais importante, 0 convencionalis- mo, que € explicado pela visio de mundo especifica japonesa, que aparece com particular clareza durante a percepedo direta do espetéculo, num grau peculiar que nenhuma descricio foi capaz de nos explicar. E aqui encontramos algo totalmente inesperado — uma jungio do teatro Kabuki com as investigagées extremas do teatro, onde o teatro é transformado em cinema.? E onde o cinema sobe esse mais recente degrau de seu desenvolvimento sonoro. A distingao mais clara entre o Kabuki e nosso teatro reside — se tal expressio é permitida — em um monismo de conjunto. Estamos familiarizados com 0 conjunto emocional do teatro de arte de Mos- cou — 0 conjunto de uma “te-experiéncia” coletiva unificada; 0 paralelismo de conjunto usado na épera (por orquestra, coro e solistas); quando os cenérios também dao sua contribuigéo a este paralclismo, o teatro é designado pela conspur- Uma inesperada jungao 29 cada palavra “sintético”; 0 conjunto “animal” finalmente tem sua vinganga — aquela forma ultrapassada na qual todo o palco cacareja, ladra e muge numa imitagéo naturalista da vida levada pelos seres humanos “que assistem”. Os japoneses nos mostraram uma outra forma, extremamente interessante, de conjunto — 0 conjunto monistico. Som — movimento — espago — voz, aqui, nao acompanham (nem mesmo sio paralelos) um ao outro, mas funcionam como ele- mentos de igual significancia. A primeira associagao que ocorte a alguém que esté passando pela experiéncia do Kabuki € © futebol, 0 esporte mais “conjunto”, mais coletivo. Vozes, palmas, movimento mimico, os gritos do narrador, biombos — tudo tao parecido com zagueiros, meios-de-campo, goleiros, atacantes, passando um para o outro a drama- tica bola ¢ indo em direcao ao gol, diante do espectador fascinado. E impossivel falar de “acompanhamentos” no Kabuki — exatamente como nao se diria que, ao andarmos ou corrermos, a perna direita “acompanha” a perna esquerda, ou que ambas acompanham o diafragma! Aqui, ocorre uma tinica sensa¢io monistica de “provocagio” teatral. Os japo- neses consideram cada elemento teatral nio como uma unidade incomensuravel entre as varias categorias de sensagdes (dos varios érgios sensoriais), mas uma unidade tinica de teatro. ... 0 sapateado de Ostuzhey, nao mais do que o collant rosa da prima-dona, um rufar dos timbales tanto quanto 0 soliléquio de Romeu, o grilo no coragéo néo menos do que o canhio disparado por cima das cabegas da platéia.? Assim escrevi em 1923, colocando um sinal de igualdade entre os elementos de cada categoria, estabelecendo teoricamente a unidade bésica do teatro que entio chamei de “atragoes”. E claro que os japoneses, com sua prética instintiva, atingem todos os sentidos com seu teatro, exatamente como eu, entao, tinha em mente. Dirigindo-se aos varios érgios dos sentidos, eles constroem sua soma em diresdo a uma grandiosa provocacao total do cérebro humano, sem prestar atencdo em qual desses varios caminhos estdo seguindo. Em lugar do acompanhamento, é 0 método sem subterfigios de transféréncia que chama a atengao no teatro Kabuki. Transferindo o objetivo afetivo basico de um material para outro, de uma categoria de “provocacao” para outra. Passando pela experiéncia do Kabuki, lembramo-nos involuntariamente de um romance norte-americano sobre um homem no qual os nervos da audigao visio sio trocados, de modo que ele percebe as vibragdes da luz como sons, os tremores do ar como cores: ele ouve luz e vé som. Isto é também 0 que acontece no Kabuki! Na realidade “ouvimos movimento” e “vemos som”. 30 Aforma do filme Um exemplo: Yarunosuke abandona o castelo rendido. E se desloca do fundo do palco em direcao ao proscénio. De repente o telao em segundo plano, com seu porto pintado em dimensées naturais (primeiro plano), é retirado. Em seu lugar se vé um segundo telao com um pequeno portio pintado (plano geral). Isto significa que ele se deslocou para ainda mais Jonge. Yarunosuke continua. No fundo é colocada uma cortina matrom-verde-preta indicando: o castelo agora esté fora de sua visdo. Mais passos. Yarunosuke entao se desloca para o “caminho florido”. Esta Ultima mudanga é enfatizada pelo... samsisen,4 isto é, pelo som!! Primeira mudanga — passos, isto é, uma mudanca espacial do ator. Segunda mudanga — uma pintura plana: a mudanga de segundos planos. Terceira mudanga — uma indicagao intelectualmente explicada: entendemos que a cortina “apaga” algo vistvel. Quarta mudanga — som! Eis um exemplo de método puramente cinematogréfico do ultimo fragmento de Chushingura: Depois de uma curta luta (“para varios pés”) temos uma “pausa” — um palco vazio, uma paisagem. Entao, mais luta, Exatamente como se, em um filme, tivésse- mos feito um corte para um pedaco de paisagem, a fim de criar um clima em uma cena, aqui é feito um corte para uma paisagem de neve noturna ¢ vazia (em um palco vazio). E depois de varios pés, dois dos “fiéis quarenta e sete” observam um abrigo onde o vilao se escondeu (do que o espectador jé estd consciente). Exatamen- te como no cinema, num momento dramitico to acentuado, alguma pausa tem de ser usada. Em Potemkin, depois da preparacao para a ordem de “Fogo!” contra os marinheitos cobertos pelo impermedvel, hé varios planos de partes “indiferentes” do navio antes que a ordem final seja dada: a proa, a boca dos canhées, um salva-vidas etc, Faz-se uma pausa na aco, ea tensdo é acentuada. O momento do descobrimento do esconderijo deve ser enfatizado. Para encontrar a solugao certa para este momento, esta énfase deve ser dada pelo mesmo material ritmico — uma volta & mesma paisagem noturna, vazia, nevada... Mas agora hé pessoas no palco! Apesar disso, os japoneses realmente encon- tram a solugéo certa — ¢ é uma flauta que entra triunfantemente! E vocé vé os mesmos campos nevados, a mesma solidao ecoante, e a mesma noite que voce ouvix um pouco antes, quando olhou para o palco vazio... Ocasionalmente (e geralmente no momento em que os nervos parecem pres- tes a explodir de tensio), os japoneses duplicam seus efeitos. Com seu dominio dos equivalentes de imagens visuais e auditivas, de repente usam ambos, “ajustando-os”, ¢calculando brilhantemente a tacada de seu taco de bilhar sensorial, visando 0 alvo cerebral do espectador. Nao sei descrever melhor a combinacao da mio se movi- mentando de Ichikawa Ennosuke quando ele comete haraquiri — com 0 som solugante fora do palco, graficamente correspondente ao movimento da faca.

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