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OQ ENIGMA DO DOM COPYRIGHT © Librairie Arthéme Fayard, 1996. Titulo original em francés: L’énigma du don CAPA Evelyn Grumach PROJETO GRAFICO Evelyn Grumach e Jodo de Souza Leite CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, RJ. Godelier, Maurice, 1934- G525e © enigma do dom / Maurice Godelier; tradugo Eliana Aguiar. ~ Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2001. Tradugao de: L’énigma du don ISBN 85-200-0545-4 1. Mauss, Marcel, 1872-1950. Essai sur le don. 2. Troca cetimonial. 3. Doagdes. 4. Antropologia econémica. I. Titulo. CDD 306.3 01-0996 CDU 316.334.2 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugio, armazenamento ou transmisséo de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagio por escrito. Direitos exclusives de publicagao’ em lingua portuguesa para o Brasil reservados pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA S.A. 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Para esclarecer este texto é necessdrio citar varios comentarios de Best sobre 0 mauri e sobre o hau, extraidos de sua obra Forest Lore of the Maori, publicada depois de sua morte, na qual reuniu-se uma série de escritos consagrados aos métodos de caca e de colheita dos maori e a seus saberes etnobotanicos, etnozool6gicos e cosmolégicos: Chegamos a uma instituigdo notavelmente interessante que ilustra uma fase particular da mentalidade maori e € conhecida pelo nome de mauri. Ja vimos que a prosperidade e a fecundidade da floresta, das drvores, das aves etc., so representadas pelo principio de vida, ou mauri, desta floresta. E uma qualidade imaterial, mas emprega-se também um signo material dessa qualidade, que é designada pelo mesmo nome. Esse mauri material era habitualmente uma pedra es- condida cuidadosamente na floresta. Ela atuava realmente como um altar ou como uma moradia permanente para os deuses-espiritos que cuidavam da floresta [...]. O mauri serve de médium entre as frmulas magicas que sdo recitadas € a floresta que devem afetar. O mauri, dizem, protege e preserva 0 mana da floresta [...]. Quando o mauri langa um apelo para que as aves sejam numerosas na floresta, entdo as aves tornam-se numerosas com certeza, pois essa pedra age como uma voz dirigida aos seres es- Pirituais (atua) que controlam todas as coisas [. "Elsdon Best, Forest Lore of the Maori (1909), Wellington, E. C. Keating Government Printer, 1977, p. 439. Logo depois desta passagem, Best cita Ranaipiri que precisava que havia dois fogos, um para os sacerdotes e o outro para a irma do chefe do cla possuidor daquele territ6rio de caga, sua presenga atestando estes direitos. Annette Weiner criticou Marshall Sahlins por ter cortado esta passagem, fazendo assim desaparecer da cena esta mulher e a importancia polftico-religiosa das mulheres nesta sociedade. (Cf. A. Weiner, “Inalienable Wealth”, American Ethnologist, 12 (2), 1985, p. 210-227.) B80 © ENIGMA DO DOM Seria necessdrio explicar que o princfpio de vida da floresta etc. cha- mado mauri € definido também pela palavra bau. Segundo o que pude entender, o hau e 0 mauri de uma floresta sao uma tinica e mesma coisa, mas certamente seria preciso distinguir para o homem entre o hau e 0 mauri*, Se compreendemos bem estes textos, os passarinheiros que foram afortunados na caca devem seu sucesso tanto ao espirito da floresta, quanto aos sacerdotes que colocaram a pedra sagrada na florestae atraf- ram com suas preces o seu hau, sua poténcia fecundante que nela veio se alojar. O mauri seria a presenca material do hau da floresta. Estamos, portanto, na presenga de trés categorias de atores: a floresta, que é uma entidade sobrenatural, fonte de vida e de abundancia; os sacerdotes, que possuem a pedra mauri e as formulas para invocar 0 espirito da floresta, e so os mediadores entre esta e os cagadores; os proprios cacadores, que, depois dos ritos realizados pelos sacerdotes, entraram na floresta, nela mataram numerosas aves e dispdem-se a partilha-las. E a partir desta situagado que deve ser entendida a comparacio feita por Ranaipiri com aquela outra que existe entre trés atores humanos, dos quais o primeiro, A, deu ao segundo, B, um objeto de valor, que B em seguida deu a um terceiro, C, que deu, mais tarde, um dom em retribuigao a B. Duas idéias estao associadas no exemplo da floresta, dos sacer- dotes e dos cagadores. A primeira é que a floresta é fonte de vida e de multiplicagao da vida. E ela que, finalmente, faz o dom da caga aos cacadores. A segunda é que esta caca capturada pelos cagadores nao deixou de pertencer & floresta e aos sacerdotes que possuem tanto 0 objeto sagrado quanto a formula que o acompanha e permite incitar a floresta a se mostrar generosa em relagdo aos humanos. Os dons de caga que os cagadores fazem entdo aos sacerdotes, que irio cozinha- los no fogo sagrado antes de consumi-los (deixando uma parte para a *Ibid., p. 6, 8 ¢ 9. Tradugio nossa, Bt MAURICE GODELIER floresta), sio oferendas inspiradas pelo reconhecimento ¢ pelo dese- jo de que a floresta e os sacerdotes continuem a agir en favor dos cagadores, a alimentd-los. Mas estes dons sio também, ao mesmo. tempo, o retorno de uma parte da caga dada pela florestaa seu doa- dor original. Transposto para o mundo das trocas de dons entre os humanos, 0 exemplo dos cacadores, dos sacerdotes e da floresta esclarece igual- mente duas outras coisas ao mesmo tempo. De um lado, sublinha o fato de que o objeto dado pelo primeiro doador, A, comega em segui- da a circular e nao deixa, enquanto circula, de permanecer ligadoa seu proprietario, de pertencer a ele. Por outro lado, esclarece Por que os contradons em série, induzidos pela circulagéo de um objeto dado, devem retornar a seu primeiro doador, que permanece serapre como nico proprietario. Em razio disso, ele também exerce direitos sobre as “coisas boas”, as benfeitorias geradas pela passagem de mio em mao do objeto que ele deu inicialmente. Se algum daqueles entre os quais 0 objeto circula, e que o possui depois de algum tempo, quisesse guarda- lo unicamente para si, desviar as “coisas boas” (em maori: hau whitia, 0 hau desviado) que o fato de, por sua vez, ter dado também acarre- tou, entao ele cairia doente (mate) ou, como escreve Best em outra parte, “os horrores terriveis do makutu, da feitigaria’”” cairiam sobre a sua cabega. Marshall Sahlins, que teve o mérito de confrontar estes textos a outros, conclui, como Firth muito antes dele, que Mauss pegou o caminho errado ao interpretar 0 retorno do dom como efeito do “espirito da coisa” que quer voltar para seu proprietério. Ele acres- centa, seguindo Firth, que a punic4o por feitigaria, que é proferida como uma ameaga, nao pode ser responsabilidade do hau da pré- pria coisa, mas de pessoas reais que, frustradas por nao terem rece- bido um dom em retribuigao, enfeitigam o culpado. Sahlins afasta, "Ibid., p. 197. 82 © ENIGMA DO DOM portanto, a hipétese da acdo do espfrito da coisa e o faz em razao do seguinte: Para ilustrar a agao de um tal espirito, sio necessdrias apenas duas pessoas: vocé me dé alguma coisa; seu espirito (0 hax), presente nesta coisa, me obriga a pagar-lhe em retribuicao, é simples. A introdugéo de um terceiro personagem interessado nao poderia sendo complicar e confundir indevidamente a hist6ria. Todavia, j4 que no se trata mais de algum tipo de reciprocidade “espiritual”, nem mesmo de reciproci- dade simplesmente, mas do simples fato de que o dom de um homem nao pode se transformar no capital de um outro € portanto os frutos do dom devem retornar ao dom inicial, segue-se a necessidade de in- troduzir um terceiro parceiro cuja intervengao é necesséria exatamen- te para colocar em evidéncia este beneficio liquido [grifado por _ Sahlins]: 0 dom produziu, 0 donatario fez dele um uso proveitoso™. Finalmente, depois de ter afastado a explicagio “animista, espiri- tual” de Mauss para o retorno da coisa dada, Sahlins ressalta as nogGes de “beneficio” e de direito do doador inicial sobre os beneficios susci- tados por seu dom. Mas ele nao analisa mais de perto 0 lago que per- mite ao doador reivindicar esses “beneficios”. Ele para no meio do caminho, contentando-se com férmulas que nao satisfazem nem a ele proprio. E diz: Sem divida o termo ‘lucro’ é impréprio, tanto econémica quanto his- toricamente. No entanto, aplicado aos maoris ele traduz melhor que i 50". ‘espirito’ o sentido do hau em questao”. Mais ainda porque Sahlins nos lembra que, no caso dos maoris, estamos tratando com uma sociedade em que “a liberdade de ganhar ‘Marshall Sahlins, Age de pierre, dge d’abondance, Paris, Gallimard, 1976, p. 211-212. *Jbid., p. 212. Grifo nosso. 83 MAURICE GODELIER a expensas de outrem nao estd inscrita nas relagdes e nas modalidades de troca®™.” De fato, é preciso recolocar no primeiro plano a idéia essencial men- cionada por Sahlins, mas sobre a qual ele nao se demora, ou seja, de que o doador original nao deixa de ter direitos sobre o objeto que deu, qualquer que seja o ntimero de pessoas entre as quais este objeto circu- la. Bem entendido, o fato de que ele circula significa que cada um da- queles que o recebem, que so seus donatdrios, torna-se por sua vez doador. Mas nenhum deles jamais tera sobre o objeto os mesmos di- reitos que o primeiro dos doadores. Este guarda a propriedade inalie- navel do objeto, todos os outros gozam de direitos de posse e de uso dele que sao, estes sim, aliendveis e tempordrios, e que s4o transferi- dos de um para o outro. E 0 fato essencial da permanéncia dos direitos do doador originario sobre a coisa dada que se traduz no plano ideal (ou, dito de outro modo, das representacGes-interpretages indigenas desta permanéncia) através da idéia de que a pessoa do doador original est4 presente na coisa dada, que ela esté ligada a ele e o acompanha depois em todas as trocas de mao e de lugar. Ora, esta presenca inextingufvel do doador no objeto dado s6 € realmente visivel quando o objeto circula além da simples troca de dons entre duas pessoas. Sao necessdrios pelo menos trés parceiros para que tudo fique claro. A Mauss, que se mostrou espantado quando Ranaipi fez intervir uma terceira pessoa, Sahlins respondeu que era precisamente a presenca de um terceiro que demonstrava estarmos “além de uma reci- procidade espiritual qualquer e mesmo da simples reciprocidade”. Mas sobre esse ponto Sahlins se engana. Nao estamos além da re- ciprocidade. E é bastante facil prov4-lo. Vamos partir do fato de que A € proprietério de um objeto, e que ele o dé a B. B nao se torna seu Pproprietario, mas nesse meio tempo ele o passa a C. E aqui a corrente poderia continuar, C daria para D, D para Eetc., e poderiamos ter um niimero indeterminado de pessoas ocupando uma posigao intermedia- *[bid., p. 214. © ENIGMA DO DOM ria equivalente A de B. Mas trés atores s4o suficientes para nosso exem- plo e, como Ranaipiri, paramos em C. Ora, o que faz C? Ele, por sua vez, d4aB um objeto, do qual é o proprietdrio, em troca do objeto que provinha de A e do qual A manteve-se proprietério. B nao pode sendo restituir a A, em relacio ao qual ele estd em divida, o objeto recebido de C, que vai tomar o lugar do objeto recebido de A. Ae C eram “pro- prietarios” do objeto que deram, mas B, como intermediario, nunca foi proprietario dos objetos que passaram por suas maos. Portanto, entre A e C, os dois extremos da corrente, estabeleceu- se certamente uma reciprocidade, pois a propriedade de um veio to- mar o lugar daquela do outro. Quanta a B, ele serviu de intermediario e, na passagem, beneficiou-se ele também com 0 objeto colocado em circulagao. O que significa que ele também est4 endividado entre os dois. E exatamente esta légica que encontraremos ilustrada pela circu- lacdo dos vaygu’a, os braceletes e os Golares de conchas que circulam no kula entre as populagées das ilhas do nordeste da Nova Guiné. Vejamos agora a interpretagao de Mauss para as formulagées de Ranaipiri: Este texto capital merece alguns comentdrios. Puramente maori, im- pregnado daquele espirito teolégico e jurfdico ainda impreciso, as doutrinas da ‘casa dos segredos’, mas espantosamente claro em certos momentos, ele apresenta apenas um ponto obscuro: a intervencao de uma terceira pessoa. Mas para bem compreender 0 jurista maori basta dizer: ‘Os taonga e rigorosamente todas as propriedades ditas pessoais tém um hau, um poder espiritual. Vocé me dé um taonga, eu 0 dou a um terceiro, este me restitui um outro, pois ele é levado atal pelo hau de meu presente e eu, eu sou obrigado a dar-lhe alguma coisa porque é preciso restituir aquilo que, na realidade, € um produto do hau do seu taonga...’ No fundo, € 0 hau que quer tornar a seu lugar de nas- cenga, ao santudrio da floresta e do cla e ao proprietério”. Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit. , p. 159-160. 85 MAURICE GODELIER Assim Mauss invoca e mistura duas raz6es para explicar 0 retorno do objeto para seu doador original. Primeira razdo: a coisa possui em si mesma um espirito, uma alma, e é este espirito que a leva a voltar para seu proprietario de origem. Segunda raz4o: aquele que deu tem poder sobre aquele que recebeu porque a coisa traz com ela alguma coisa dele, a qual leva quem a recebeu a restituf-la. Esta alguma coisa é a alma, é uma presenga espiritual. Mauss acentua sobretudo esta pre- senga espiritual e nao o fato de que o doador origindrio continua a exefcer, em permanéncia, direitos sobre a coisa que deu. Desta forma, Mauss mantém em segundo plano uma outra realidade, social desta vez: 0 fato de que nessas sociedades os doadores continuam a ser os proprietarios daquilo que dao. Ora, esta realidade social é uma forca presente no objeto, ela o controla e define de antem4o os seus usos e movimentos: Aquilo que obriga, no presente recebido, trocado, é que a coisa re- cebida nao é inerte. Mesmo abandonada [sic] pelo doador, ela ain- da é algo que lhe pertence. Através dela ele tem poder sobre 0 beneficiario [...]. Pois o taonga é animado pelo hau de sua floresta, de seu terreiro [...]. O hau segue qualquer detentor. Segue nao ape- nas 0 primeiro donatdrio, ou mesmo eventualmente um terceiro, mas qualquer individuo ao qual o taonga é simplesmente transmi- tido. No fundo, é 0 hau que quer retornar a seu lugar de nascenga, ao santudtio da floresta, ao cla e aos proprietarios. E 0 taonga ou seu hau, que alids é, ele mesmo, uma espécie de individuo, que se une a esta série de usudrios até que restituam [...] um equivalente ou um valor superior que, por sua vez, dario ao doador autoridade € poder sobre o primeiro doador transformado em dltimo do- natdrio™, E Mauss acrescenta em uma nota que “os taonga parecem ser dota- dos de individualidade mesmo fora do hau, que lhes confere a relagdo *Ibid. 59-160. 86 © ENIGMA DO DOM que tém com seu proprietdrio””. Este texto confirma nossa interpreta- Gao de que finalmente, para Mauss, coexistem em uma sé coisa dois princfpios espirituais: um que é a presenga do proprietdrio na coisa, € © outro que é a presenga do espirito proprio desta coisa, independen- temente do proprietario. E seria este espirito, antes de tudo, o que le- varia a coisa a retornar para seu proprietdrio de origem, igualmente presente na coisa através de uma parte de seu espirito. Portanto, a ex- plicagdo de Mauss destaca sobretudo as crengas ¢ as razées “espirituais”, ideolégicas. Mas com este exemplo j4 n4o estamos mais no universo dos dons e contradons equivalentes, atravessamos a fronteira que leva ao potlatch™*. O potlatch, esse dom que fascinava Mauss O que fascinava Mauss eram os dons em que predominavam a rivali- dade, a competi¢ao e o antagonismo. O potlatch dos indios kwakiutls e de seus vizinhos da costa noroeste da América do Norte representa- va, a seu ver, um exemplo extremo. Porém, depois da descrigao que Malinowski acabara de fazer do kula, praticado pelas sociedades do nordeste da Nova Guiné (1922), descrigdo esta posterior 4 de Turnwald, que narrava fatos andlogos em Buin, nas ilhas Salomdo, e de outros autores, ele concluiu tratar-se de um fenémeno humano largamente difundido no tempo e no espaco. Portanto, ele fez do potlatch uma categoria socioldgica geral e é sob este selo que os dons agonisticos tornaram-se conhecidos e foram popularizados. *bid., p. 160, nota 2. 56 preciso lembrar que os discfpulos de Mauss, inclusive os mais préximos, nao retomaram a hipétese do mestre sobre a existéncia na coisa de um espfrito que a levaria em diregdo a seu ponto de partida, René Maunier, por exemplo, que estu- dou, a conselho do préprio Mauss, a taoussa da Cabflia, isto é, a competigao de dons feitos por ocasido dos diferentes momentos criticos da vida — nascimento, circuncisio, noivado, casamento, funeral etc. —, ndo seguiu o mestre neste pon- to. Ver “Recherches sur les échanges rituels en Afrique du Nord”, L’Année sociologique, 1927, p. 12-87. 87 MAURICE GODELIER O principio do potlatch parece se opor termo a termo Aquele que animava os dons que acabamos de analisar. No potlatch se dé alguma coisa para “esmagar’” o outro com este dom. Por isso se da mais (do que se pensa) que ele poder restituir ou se restitui muito mais do que aquilo que ele deu. Como com os dons e contradons nao-agonisticos, 0 dom- potlatch endivida e obriga aquele que o recebe, mas 0 objetivo visado € explicitamente tornar muito dificil, se nao impossivel, o retorno de um dom equivalente: trata-se de colocar o outro em divida de modo quase permanente, de fazer com que perca seu prestigio publicamente, de afir- mar assim, pelo m4ximo de tempo possivel, a propria superioridade. Apoiando-se em uma literatura abundante e que nao se reduz ape- nas, como se diz com muita freqiiéncia, aos escritos de Boas’, Mauss sublinha que o potlatch é antes de tudo “uma luta dos nobres para ga- rantir uma hierarquia entre eles, da qual seu cla tirard proveito mais tarde”*”. A rivalidade chega até mesmo A “destruigéo puramente suntudria das riquezas acumuladas (pelo cla) para eclipsar o chefe rival € ao mesmo tempo associado”””. Para Mauss, o potlatch, por seu cara- ter de “rivalidade exasperada” que chega mesmo & destruicao osten- tatoria de riquezas, € uma forma evoluida, mas relativamente rara, de prestacio total: “E uma prestacdo total”, diz ele, “no sentido em que € justamente o cla como um todo que contrata por todos, por tudo o que possui e por tudo o que faz por intermédio de seu chefe®*.” Mas entre esta forma exasperada e as formas de “emulagao mais modera- da” encontrdveis na Melanésia, existe, segundo ele, um nimero consi- deravel de formas intermedidrias na Polinésia, na Malasia, na América do Sul etc., na Antiguidade entre os tracios e mais largamente no mun- do indo-europeu. Atendo-nos ao potlatch dos kwakiutl, eis como Mauss reconstruiu seu funcionamento. *Marcel Mauss tinha conhecimento de autores do século XIX, como Krause € Jacobsen, ¢ dos trabalhos de contemporaneos de Boas, Sapir, Hill Tont etc. *Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 153. Ibid, p. 152. "Ibid. p. 152. 88 0 ENIGMA DO DOM O objetivo dessas competigées é, de um certo ponto de vista, so- bretudo “politico”: O status politico dos individuos nas confrarias e clas, as categorias de toda espécie se obtém pela guerra de propriedade, como através da guerra [...]. Tudo € concebido como se fosse uma luta de riquezas, o casamento dos filhos ¢ as cdtedras nas confrarias s6 so obtidas no curso de potlatchs trocados e restitufdos”’. E mais adiante: O potlatch, a distribuigéo de bei, é 0 ato fundamental do reconheci- mento militar, juridico, econémico, religioso, em todos os sentidos da palavra. O chefe ou seu filho € ‘reconhecido’ e todos lhe s&o ‘reco- nhecidos’*, 7 Mauss viu claramente que a competicao entre os clas e entre os chefes € associada ao desejo seja de validar a transmissao de um titu- lo ou de uma categoria ja adquiridos, seja de adquirir ou de conquis- tar um novo. Ea escalada de dons culmina em atos ostentatérios de destruigdo de riquezas, de objetos preciosos, diante de um piblico amplo: Em um determinado ntimero de casos no se trata sequer de dar ou de restituir, mas de destruir [...] quebram-se os cobres mais caros, que sao jogados na 4gua para esmagar, para ‘abater o rival’. Assim progride-se nao apenas pessoalmente, mas faz-se progredir a prépria familia na escala social. Eis portanto um sistema de direito e de eco- nomia em que riquezas considerdveis sio constantemente gastas € transferidas''. *Ibid., p. 201. woqpid., p. 209-210. ‘IPbid,, p. 202. 89 MAURICE GODELIER / Mauss insiste no fato de que nessas sociedades existe uma relagio direta entre a riqueza e 0 poder, a autoridade: O homem rico é um homem que tem mana na Polinésia, autorictas em Roma ¢ que, nas tribos americanas, é um homem ‘grande’. Estri- tamente, temos apenas que indicar a relagdo entre a nogdo de rique- za, a de autoridade, de direito de comandar aqueles que recebem presentes, € o potlatch. Esta relacao € muito clara [...]. Do chefe, diz- se que ‘engole as tribos’ as quais distribui suas riquezas. Ele ‘vomita’ propriedade etc. etc.!2, A obrigagao de dar € a esséncia do potlatch. Um chefe deve dar potlatchs a si mesmo, seu filho, seu genro, sua filha, a seus mortos. Ele s6 conserva sua autoridade sobre a tribo [...], 86 mantém sua posigao entre os chefes, nacional e internacionalmente, se provar que € visitado ¢ favorecido pelos espfritos e pela fortuna, que é possuido por ela € a possui. Mas ele s6 pode provar esta fortuna gastando-a, distribuindo-a, humilhando os outros, colocando-os ‘a sombra de seu nome’!3, E compreende-se que, nesse universo, abster-se de dar, assim como de receber, € derrogar, assim como abs- ter-se de retribuir. A obrigagio de retribuir € todo o potlatch, na me- dida em que ele ndo consiste em pura destruigao [...]. Perde-se 0 Prestigio para sempre ao nao retribuir ou ao nao destruir valores equi- valentes!™, Retribuir com certeza, mas, como afirma o préprio Mauss um pouco mais adiante, se o potlatch é uma estratégia obrigat6ria para conquistar ‘™Ibid,, p. 203. Ibid, p. 205-206. Grifo nosso. ‘ibid. p. 211-212. Grifo nosso. 90 © ENIGMA DO DOM uma posigao ou validar um titulo, € precisamente 0 ato de dare de dar mais do que os outros que conta (sendo é o fracasso): Entre chefes e vassalos, entre vassalos e cavaleiros, a hierarquia se es- tabelece por seus dons. Dar é manifestar sua superioridade, ser mais, mais alto, magister, aceitar sem retribuir ou sem retribuir mais € su- bordinar-se, tornar-se cliente e servidor, apequenar-se, cair mais bai- xo, minister", Bem entendido, como varios chefes aspiram ao mesmo tempo ao mesmo titulo ou A mesma posigao e como nenhum deles quer nem pode confessar-se imediatamente vencidd, cada um tem que se esforcgar para dar mais do que os outros se ndo quiser “perder seu prestigio”, sua honra, sua fama. Em toda esta luta, a obrigac4o que se apresenta sem- pre em primeiro plano é aquela desdar, mas, paradoxalmente, de dar com a intengao de romper a reciprocidade dos dons, de quebré-la em proveito proprio — pelo menos é o que cada um espera. Mauss cita em uma nota, aliés sem insistir, embora esta afirmagao enfraquega a idéia de que a obrigacio de retribuir € todo o potlatch: “O ideal seria dar um potlatch e que ele nao fosse retribuido'’.” A légica do potlatch é, portanto, totalmente diferente daquela dos dons e contradons n4o-agonisticos, pois, ao fim destes, cada um, cada linhagem por exemplo, ter4 dado uma parte de seus recursos aos ou- tros, mas ter recebido o equivalente, uma mulher por uma mulher, por exemplo. Vimos como Mauss reconstitui o contexto sociolégico da pratica do potlatch, Ainda nao examinamos a natureza das riquezas trocadas que alimentam esta guerra de propriedade. No essencial, so objetos preciosos, conchas, cobres, objetos esculpidos etc., mas também dangas, ritos etc, Estes bens eram dados publicamente no curso de ceriménias [ faba 2sea70 sospbid,, p. 212, nota 2, 91 MAURICE GODELIER acompanhadas de festins, nos quais enormes quantidades de comida eram distribufdas, Mas para os kwakiutls, observa Mauss depois de Boas, es- sas “provisdes” nao eram contadas como realmente constituintes da ri- queza. O que sio esses objetos preciosos, entres os quais figuram na primeira linha os famosos cobres blasonados? Mauss insiste de novo na esséncia espiritual dos objetos preciosos que circulam nas trocas: Podemos levar mais longe a andlise e provar que nas coisas trocadas no potlatch ha uma virtude que forga os dons a circular, a ser dados, a ser restituidos'™”, Os cobres blasonados que figuram na primeira linha dos potlatch so objeto de crengas importantes e mesmo de um culto. Em todas essas tribos ha um culto e um mito do cobre, ser vivente. O cobre, pelo menos entre os haidas ¢ os kwakiutls, é identificado ao salmao, ele também um objeto de culto [...J. [Entre os tlingits] o cobre, por ser vermelho, é identificado ao sol, ao fogo caido do céu [...]'"*. HA um ponto essencial (pelo menos a nossos olhos) no texto de Mauss sobre 0 qual ele mesmo achou que nao deveria demorar-se € que, em seguida, nao mereceu comentério particular nem da parte de Firth, nem de Lévi-Strauss ou de Sahlins. E esse siléncio perdurou até as publicagées de Annette Weiner. Eis do que se trata. Em uma nota, fazendo referéncia a Boas, Mauss assinala a existéncia de duas catego- rias de cobres entre os kwakiutls: Os mais importantes, que ndo saem da familia, que nao se podem quebrar para refundir, e os outros, que circulam intactos, de menor valor e que parecem servir de satélites para os primeiros. A posse des- ses cobres secundérios entre os kwakiutls corresponde sem divida 4 wbid., p. 214. ‘¥pbid,, p. 222. 92 0 ENIGMA DO DOM posse dos titulos nobilidrios ¢ das categorias de segunda ordem com as quais eles viajam, de chefe em chefe, de familia em familia, entre as geragGes € os sexos. Parece que os grandes titulos e os grandes cobres permanecem fixos no interior dos clas ¢ das tribos, pelo menos. Alids, seria dificil que fosse diferente”. ‘Além dos cobres, existiam outras coisas preciosas que nao safam das famflias. “Grandes conchas de madrepérola, os escudos cobertos com elas [...] as cobertas, elas prdprias blasonadas, revestidas de faces, de olhos e de figuras animais e humanas tecidas, bordadas!”.” Cada uma dessas coisas preciosas “tem, como nas Trobriand, sua individua- lidade, seu nome, suas qualidades, seu poder'™”, Entre as coisas precio- sas que tém um nome figuram igualmente os titulos dos nobres, homens e mulheres, e seus privilégios, suas dangas etc. Estas coisas sagradas s4o transmitidas de gerac4o em geracéo pelo casamento e por heranga. Elas deixam o cla para retornar a ele, pois os “privilégios” sio cedidos por um sogro a seu genro, que deve transmiti-los a seu filho. Por isso, 0 privilégio cedido ao genro retorna com oneto ao cla de origem. Donde a observacdo de Mauss: £ inexato falar, no caso deles, de alienagdo, eles so objeto de emprés- timo, mais que de venda ou de verdadeira cessao. Entre os kwakiutls, um certo ntimero dentre eles, embora aparecam no potlatch, nao po- dem ser cedidos. No fundo, estas ‘propriedades’ sao sagradas, das quais a familia s6 se desfaz com grande pena e, as vezes, jamais" O conjunto destas coisas sagradas, preciosas, constitui uma espé- cie de “dote mdgico'” para cada familia. Sao estes préprios objetos Wpid,, p. 224, nota 1. uoppid,, p. 220. unppid., p. 219. inppid,, p. 216. appid,, p. 217. 93 MAURICE GODELIER que parecem estar na origem direta das riquezas do cla. Nao apenas as produzem e em abundancia, mas atraem outras. Eles tém uma virtude atrativa, que chama os outros cobres, assim como a riqueza atrai a riqueza, como as dignidades atraem as honras, a pos- se dos espiritos e as belas aliangas, e inversamente!"*, De onde vem entao este poder, esta capacidade de produzir rique- 7 e de Nahanni Aresposta é simples: do fato de que estas coisas so vinas”, dons que espiritos ou deuses fizeram aos humanos, e do fato de que os espiritos ou deuses continuam presentes nelas, atuando so- bre os humanos que as possuem hoje por té-las recebido de seus ances- trais ou do heréi fundador do cla, ao qual fora dada por um espfrito. E nos mitos que se afirmam a continuidade ea identidade de uma presenga, de uma esséncia espiritual entre os deuses ou os espiritos que foram os doadores originarios dos bens sagrados, os préprios bens e os humanos que hoje os possuem por té-los recebido de ancestrais mais ou menos legendérios, que teriam sido os primeiros recipiendarios, os primeiros donatdrios. Os grandes cobres 840 as coisas planas divinas da casa. Muitas vezes o mito os identifica a todos: os espiritos doadores dos cobres, os proprietdrios dos cobres € 0s préprios cobres. E imposstvel discernir 0 que faz a forca de um do espirito € da riqueza de outro: 0 cobre fala, grunhe, pede para ser dado, destruido, é ele que é envolvido com cobertas que o protegem do frio etc. etc. "5, Eevidente que o préprio Mauss no acredita que os cobres tenham sido fabricados pelos deuses. Ele faz referéncia aos trabalhos de Rivet sobre a ourivesaria pré-colombiana (publicados em 1923 no Journal des américanistes), lamentando que ele nao tenha tratado af da indiistria ory USTbid. 224. 225. 94 © ENIGMA DO DOM do cobre no Nordeste americano, que permanece muito mal conheci- da"'®, © cobre nativo vinha da Copper River e era fundido em outro lugar. Mauss sugere que a aristocracia tsimshian e kwakiut! certamen- te tinha algo a ver com o segredo da fundicao e com 0 controle do comércio do cobre. Mas ele nao levou mais longe sua andlise das con- digdes reais da producdo ¢ do comércio dos cobres. Alids, de uma maneira geral, Mauss nao se preocupa com as relag6es que os homens estabelecem na produgio das coisas, mas apenas com aquelas que eles mantém entre si em virtude de sua circulagdo. Ele se limita a nos dizer que os mais preciosos dos cobres eram muito raros, considerados como dons dos deuses e entesourados. Qs outros, os mais numerosos, circu- lavam nos potlatchs e eram considerados, segundo a férmula muito feliz de Mauss, como “satélites dos primeiros”. Finalmente, o mundo que Mauss nos descreve é um mundo encanta- do (ele empregaa palavra “feérico"’””) em que circulavam sem cessar, atra- vés de miltiplos potlatchs que se respondem e se encadeiam, coisas preciosas que gravitam em torno de coisas ainda mais preciosas, coisas sagradas que, estas, permanecem iméveis no interior dos clas, 14 onde os deuses as teriam deixado, dados. E estes objetos iméveis sao espiritos en- carnados, espfritos que sao coisas, coisas que sao espiritos. “Eles vivem. Eles tém um movimento auténomo ¢ eles arrastam os outros cobres'"*.” Aqui vemos claramente 0 efeito das crengas e das representacdes religiosas. Elas propdem uma interpretacao do mundo e das instituigdes humanas tal que, ao fim de nossas explicagées das causas € das ori- gens, as coisas tomaram o lugar dos homens, os objetos tornaram-se sujeitos, objetos fabricados e trocados por seres humanos transforma- ram-se em objetos fabricados pelos deuses e dados graciosa e genero- samente a alguns ancestrais distantes, memorizados e heroificados, dos humanos que vivem hoje. Uspbid,, p. 221, nota 6. umbid., p. 221. wippid, p. 224. 95 MAURICE GODELIER Sabemos que as crengas religiosas nao s6 fazem parte do mundo, mas, em parte, fazem este mundo. E o fazem de maneira tal que apa- gam uma outra parte, substituindo os homens reais por duplos imagi- narios que vém tomar seus lugares e agir em seu lugar. Mas sobre isso Mauss nada diz. Assim como nao se deteve na distincio proposta por ele mesmo entre os tesouros familiares, os sacra iméveis € 0 resto das coisas preciosas que, elas, se movem nos potlatchs. Uns, diz ele, sao propriedades comuns de clas, familias e, a este titulo, ele considera evidente que devem permanecer iméveis, inalienaveis. “Inaliendvel” quer dizer, portanto, “ndo-trocdvel”. Mas depois de ter oposto estas duas categorias de bens, Mauss, algumas pAginas adiante, parece apa- gar esta oposigdo sem nos dar suas razées: No fundo, quando se consideram ao mesmo tempo os cobres e as ou- tras formas permanentes de riqueza, que também sdo objeto de entesou- ramento e de potlatchs alternados, mascaras, talismas etc., sao todos confundidos com seu uso e com seu efeito [...]. Tado é mantido, se confunde, as coisas tém uma personalidade e as personalidades sao de alguma maneira coisas permanentes do cla. Titulos, talismas, cobres e espfritos de chefes sio homénimos e sinénimos, da mesma natureza e com a mesma fungao"?, As férmulas sao belas, soberbas mesmo, mas 0 fato de que os obje- tos preciosos, entesourados ou circulando nos potlatchs tenham uma personalidade, uma alma, em nada autoriza a confundi-los ou, sobretu- do, a confundir as funges que assumem em cada caso. O problema de explicar por que certas coisas s4o ainda mais preciosas do que outras, Por que sao sagradas e por que, por serem sagradas, sao subtraidas ao potlatch permanece, alids, intocado. E mesmo se um objeto pode, no curso de sua existéncia, passar de uma categoria a outra, ser de inicio entesourado e depois figurar no potlatch (ou ao contrdrio), sempre falta WIbid,, p. 227. 96 © ENIGMA DO DOM explicar, além do destino desse objeto, a existéncia permanente, na pro dugdo-reprodugio destas sociedades, da sociedade, de duas fungées dis- tintas, inconfundiveis, a serem assumidas. Duas fungdes que acarretam a aparigio de duas categorias de objetos preciosos que, enquanto cate- gorias, so igualmente distintas e 0 s4o em permanéncia. Que um mes- mo objeto passe, no curso de sua existéncia, de uma categoria a outra é um ponto muito interessante que analisaremos mais adiante. Mas 0 fato de que fique imével ou imobilizado por um tempo quando est4 em uma delas e sempre mudando de lugar, movendo-se, quando penetra em outra éamelhor prova de que as fungées que ele assume nos diversos momen- tos de sua existéncia nao podem ser confundidas. Parece, portanto, que chegamos dqui ao limite das possibilidades de Mauss explicar teoricamente os fatos que analisava. Um pouco de- pois, e a propésito do mesmo problema, a interpretacéo da natureza dos vaygu’a, estes objetos preciosos Que circulam no kula, o grande ciclo de trocas intertribais descrito por Malinowski, veremos surgirem estes mesmos limites. Mas antes de esclarecer sua natureza e suas ra- z6es, podemos afirmar j4 de infcio que tais limites em Mauss nao so explicdveis, como criticaram certos autores “marxistas”, pelo fato de que ele teria retomado as descrigdes de Boas sem perceber que este filtimo descrevia a sociedade kwakiutl “A imagem de sua prépria socie- dade, na época em que a ética capitalista encorajava a especulagio fi- nanceira, uma sociedade animada pelo individualismo e pelo lucro?™”. Ainda mais recentemente, convidado a comentar um texto de Marie Mauzé que é uma tentativa bastante sélida e equilibrada de reavaliar a obra de Boas, recolocando-a claramente em seu contexto histérico’', 129Claude Meillassoux, “Potlatch”, Encyclopaedia universalis, Paris, t. 13, 1980, p. 424. Marie Mauzé, “Boas, les Kwakiutl e le potlatch: élements pour une réévaluation”, LHomme, XXVI, n. 4, outubro-dezembro de 1986, p. 21-63. Depois da publica- gio deste artigo, um livro veio completar nossos conhecimentos sobre o potlatch: Serguei Kan, Symbolic Immortality: The Tlingit Potlatch of the Nineteenth Century, ‘Washington DC, Smithsonian Institution Press, 1989. 97 MAURICE GODELIER Meillassoux reincide e volta a atacar Mauss por ter “caucionado Boas sem prudéncia” e por ter, com isso, caucionado também “a ideologia do liberalismo econémico” que o animava e que 0 teria levado a “en- ganar-se tio profundamente sobre a interpretacao do potlatch”. Por sua falta de rigor e seus preconceitos, Mauss teria contribuido para “de- sorientar por muito tempo a pesquisa econdmica em antropologia”!2, Essa representagao de um Mauss iludido pela ideologia capitalista liberal é profundamente inexata e constitui uma caricatura daquilo que deveria ser a andlise critica de uma obra complexa e pujante, que nao pode ser reduzida a algumas citagdes que confortam a baixos custos os pressupostos doutrindrios do critico. Com efeito, a atitude de Mauss é na verdade totalmente contraria aquela que seu critico Ihe empresta. Apesar da admiracao que sente por Boas, e mais ainda por Malinowski, porque sio homens dedicados ao trabalho de campo cujas obras de- monstram por sua riqueza a superioridade da “sociologia descritiva”, Mauss acolheu com grande prudéncia critica as interpretagdes que es- tes dois autores propunham dos fatos que haviam observado direta- mente. Daremos alguns exemplos. Se o sistema capitalista € complexo em suas estruturas, ele é sim- ples em seus principios que, evidentemente, se distinguem daqueles que reinam nos sistemas sociais analisados por Mauss (e até mesmo se opdem). O sistema capitalista se apresenta como o sistema de produ- ¢4o de mercadorias historicamente mais desenvolvido entre todos os que existiram. Ele repousa no principio da propriedade privada dos meios de produgao, dos meios de consumo, do dinheiro, e na compra e venda da forga de trabalho intelectual e/ou manual que intervém no processo de produgo ¢ circulagao das mercadorias. Seu estimulo é simples, é o desejo de fazer dinheiro com dinheiro’, 0 que implica ™Claude Meillassoux, “Commentaire a I’article de Marie Mauzé”, L’Homme, XXVI, n° 4, p. 54-55. 23Apenas 0 dinheiro investido no capital financeiro dé a ilusdo de que o dinheiro engendra dinheiro por si s6. Em qualquer outra esfera preciso que ele seja tro- cado por meios de producéo, meios de consumo, forga de trabalho ou servigos antes de comegar a render dinheiro. 98 © ENIGMA DO DOM transformar o dinheiro em capital e investi-lo no processo de produ- g4o e circulagéo de mercadorias. O valor de uso de uma mercadoria, seja ela um bem material ou imaterial, sua utilidade, em outras pala- vras, s6 importa na medida em que € o suporte indispensavel de seu valor de troca e na medida em que se torna por isso o meio, o instru- mento da valorizacgao de um capital. Ora, qual é a atitude de Mauss em relagao ao capitalismo? Nao vamos esquecer que o “Essai sur le don” foi escrito apenas alguns anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial e da vitéria da re- volugao bolchevique na Riissia. Nao esquegamos também que Mauss é socialista, engajado politicamente em uma reforma da sociedade capitalista e que escrevia regularmente para 0 jornal L’-Humanité, antes que este passasse para as maos dos comunistas. Ora, a refor- ma que ele propde — voltaremos a isso na conclusio deste livro — é, bem antes de seu tempo, um programa social-democrata que com- bina economia de mercado e socialismo de Estado. Ele critica 0 comunismo como “téo nocivo & sociedade quanto o egoismo de nossos contemporaneos e 0 individualismo de nossas leis”. Ele condena o bolchevismo porque recorre a violéncia para fazer evo- 125: luir a sociedade”*. Nem é preciso dizer que nao preconizamos nenhuma destruigao. Os princfpios de direito que regem o mercado, a compra e a venda, que sao a condigao indispensavel da formagao do capital, devem e podem subsistir ao lado de principios novos ¢ de principios mais antigos!6, . : 5 « Os princfpios antigos aos quais retornarfamos so os dons e as “des- pesas nobres”, aquelas que fazem os ricos e poderosos em outras socie- 4Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 263. 225Marcel Fournier, Marcel Mauss, Paris, Fayard, 1994, p. 417 ss. "2Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 261. 99 MAURICE GODELIER dades que nao as nossas. Pois “so as sociedades do Ocidente que, muito recentemente, fizeram do homem um ‘animal econ6mico [...] pormuito tempo o homem foi outra coisa; ndo faz muito tempo que ele é uma médquina, complicada por uma mdquina de calcular’””.” Chega-se a uma situacéo em que toda uma parte do direito, direito dos industriais e dos comerciantes, estd, nestes tempos, em conflito com a moral. Os preconceitos econé- micos do povo, aqueles dos produtores so provenientes de sua firme vontade de seguir a coisa que produziram e da sensago aguda de que seu trabalho é revendido sem que participem do lucro”8, A volta ao antigo principio da partilha nobre de suas riquezas pelos ricos, Mauss propée acrescentar e desenvolver o principio novo de um “socialismo de Estado” que se impée se admitirmos que a comunidade nao pode se sentir desobrigada s6 porque os traba- Ihadores sdo pagos por seus servicos. Ela Ihes “deve uma certa se- guranga na vida, contra o desemprego, contra a doenga, contra a velhice, a morte!*”, Dificil de qualquer forma acusar Mauss de ter sido, no comego deste século, um adepto cego do “liberalismo eco- némico’ Voltemos, portanto, ao essencial, que nao é apontar apenas as dis- tGncias que Mauss soube tomar em relagdo a Boas, mas sobretudo mostrar que, em seu esforco para interpretar os fatos relatados, ele chegou mesmo a recolocar em questo os conceitos ocidentais de eco- nomia € a visdo sumdria que o Ocidente tem da historia econémica da humanidade. Basta ler Mauss para constatar que ele tinha uma visao lucida dos limites dos materiais acumulados tanto por Boas quanto por seus 2Mbid., p. 272. “)bid., p. 260. "1bid., p. 260-261. 100 © ENIGMA DO DOM predecessores e sucessores. “Foi para a civilizagao material [i.e., os objetos, as técnicas], para a lingiifstica e a literatura mitolégica que se voltou a atengao de Boas e de seus colaboradores da Jesup Expedition... Aanélise juridica, econ6mica, ea demografia ainda precisam ser, se nao feitas, pelo menos completadas'.” Ele considera que, em matéria de economia e de direito, os antigos autores russos, alemaes, franceses e ingleses que ele leu e cujas obras remontam a antes de 1870 “ainda sao os melhores e seu tempo lhes confere uma autoridade definitiva’®””. Ele lamenta que se saiba tio pouco sobre a “morfologia social” (nés dirfamos hoje sobre a organizacio social das sociedades), sobre a natu- reza dos grupos que a compdem (clas, sociedades secretas etc.) € afir- ma que seria necessdrio investigar “enquanto ainda é tempo”!”. Ele alias utiliza o termo “classes feudais” para descrever essas aristocracias tribais, termo eurocentrista que se pode encontrar na pena de quase todos os autores (antes de Marc Bloch), sejam eles liberais ou marxis- tas, ocidentais ou orientais, que descreveram sociedades governadas por diversas formas de aristocracia. Todas eram alegremente batizadas de “feudais” ou “quase feudais”™*, Mauss acrescenta em nota uma “ob- servacio geral” de grande importAncia a nosso ver, na medida em que nos mostra um Mauss consciente do fato de que ele préprio nao sabia © suficiente para compreender as relagGes entre a coisa dada em um Loppid,, p. 195. Grifo nosso. Alids, Mauss acrescenta que “também os trabalhos de emégrafos profissionais mais antigos (Krause, Jacobsen) ou mais recentes (Sapir, Hill Tont etc.) tomam a mesma diregio”. Bipid., p. 195. »2Ibid. »5Ibid,, p. 20, nota 3. No entanto, ele aproxima os chefes kwakiutls de seus homélogos celtas, germAnicos etc., tais como deveriam ser antes do desenvolvi- mento do feudalismo no Ocidente. “A civilizagio germanica”, escreve ele, “res- tou essencialmente feudal e camponesa. Nela, anogdo e mesmo as expressées prego de compra e de venda parecem ser de origem recente, Anteriormente, ela havia desenvolvido o sistema do potlatch, mas sobretudo todo o sistema de dons [de prestagées nao-agon{sticas)” (ibid., p. 251). Mauss cita Técito como se deve. Depois de Grimm, nao mais se parou de fazé-lo na Europa. 101 MAURICE GODELIER potlatch e seu proprietario; ora, este € 0 ponto nodal de seu trabalho, © lugar em que se medem sua fora e seus limites. Observagao geral: sabemos muito bem como e por que € no curso de quais cerim6nias, despesas e destruig6es os bens sAo transmitidos no Nordeste americano. No entanto, ainda estamos mal informados sobre as formas com as quais se reveste 0 ato mesmo da tradigéo [cessio] das coisas, em particular dos cobres. Esta questo deveria ser objeto de uma pesquisa. O pouco que conhecemos € extrema- mente interessante e marca certamente a ligagdo entre a propriedade € os proprietarios™, Todas essas citagdes nos mostram o quanto Mauss estava consciente daquilo que faltava a obra de Boas e as outras fontes que havia utiliza- do, mas elas nao tinham atingido ainda o ponto principal de sua pro- posta, a saber, a critica da interpretagio de Boas para os fatos que reportava. Ora, € justamente ai que se medem no apenas a prudéncia critica de Mauss, mas seu esforco para construir uma teoria alternati- va, uma outra interpretagao teérica dos fatos reportados por Boas. JA sobre a propria palavra potlatch, ele observa que “nem a idéia nem a nomenclatura que presumem o emprego deste termo tém, nas linguas do Nordeste, o tipo de precisdo que lhe é emprestada pelo sabir anglo-indiano a base de chinook” (ou seja, a lingua utilizada no co- mércio entre indios e europeus). Ele observa em seguida, depois de ter examinado os glossdrios de Boas, que “parece que mesmo as palavras “troca” e “venda” sAo estranhas a lingua kwakiutl3™”. Mas a critica maior no esta af. Paradoxalmente, ela acontece na conclusio de uma longa nota, na qual Mauss teve o trabalho de recopiar a famosa pagina em que Boas escreveu: “O sistema econémico dos indios da colénia britanica é fortemente baseado no crédito, assim como o dos povos BAbid.,, p. 225, nota 6. BSIbid, p. 213. SeIbid,, p. 202, nota 3, 102 © ENIGMA DO DOM civilizados [...]'3”.” E Mauss comenta: “Sobre o potlatch, Boas nada escreveu de melhor.” Mas logo acrescenta: Corrigindo os termos ‘divida, pagamento, reembolso, empréstimo’ € substituindo-os por termos como ‘presentes dados e presentes retri- buidos’, termos que o sr. Boas acabou, alids, por empregar, tem-se uma idéia bastante exata da nogio de crédito no potlatch"*. Mauss dedica-se, portanto, corrigindo e sobretudo substituindo os termos empregados por Boas, a um verdadeiro trabalho de recentralizac4o tedrica que vai leva-lo nao apenas a questionar os conceitos dos econo- mistas e suas visdes simplificadoras da histéria econ6mica da humanida- de, mas também a tomar consciéncia dos limites que ele préprio nao conseguia transpor, do ponto no qual seu préprio movimento se detém, em que seu proprio pensamento malogra, ou imobiliza-se, por assim dizer: Vimos varias vezes 0 quanto toda esta economia de troca-dom estava longe de encaixar-se nos quadros da economia dita natural [sem troca e/ou sem mercado], do utilitarismo [ou seja, limitando-se a trocar coi- sas materialmente tteis]. Todos estes fenémenos tao considerdveis da vida econémica de todos estes povos [...] e a consideravel sobrevivéncia de todas estas tradigdes nas sociedades préximas de nds ou nos usos dos nossos escapam aos esquemas dados, de ordinirio, pelos raros eco- nomistas que tentaram comparar as diversas economias conhecidas"*, U7Ibid., p. 198, nota 2. Bifbid. Grifo nosso. Que nés saibamos, Jean Lojkine, em seu artigo “Mauss et L'Essai sur le don’: portée contemporaine d’une étude anthropologique sur une économie non marchande” (in Cahiers internationaux de sociologie, LKXXVI, n° 1, 1989, p. 141-158), é um dos raros comentaristas a colocar em evidéncia o es- forco de descentralizagao ¢ de recentralizagfo tedricas que Mauss realizou em relagdo aos conceitos da economia politica. Ele mesmo um marxista, 0 autor con- sidera a critica de Mauss por Meillassoux infundada e deslocada (p. 143). 'Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 266. Grifo nosso. Mauss faz alu- so aqui ao artigo publicado por Malinowski no Economic Journal, sob o titulo de “The Primitive Economy of the Trobriand Islanders”, vol. 31, n° 121, margo de 1921, p. 1-16. 103 MAURICE GODELIER E Mauss precisa que une seus esforgos aos de Malinowski, que con- sagrou “todo um trabalho para derrubar as doutrinas correntes sobre a economia ‘primitiva’*””. Mas Mauss n4o considerava suficiente o tra- balho de demoligao critica dessas doutrinas, nem verdadeiramente satisfat6ria a andlise teérica que ele mesmo desenvolveu como alternativa: No entanto, pode-se ir ainda mais longe do que nés chegamos até aqui: pode-se dissolver, mesclar, colorir e definir as nogGes principais das quais nos servimos: brinde, presente, dom ndo sdo, elas mesmas, per- feitamente exatas. Nao pudemos encontrar outras, eis tudo. Os con- ceitos de direito e de economia, cuja oposigao tanto nos apraz: liberdade e obrigacao, liberalidade, generosidade, luxo — poupanga, interesse, utilidade [...] seria interessante revé-los'', : E Mauss dé como exemplo a interpretacao dos vaygu’a, os objetos preciosos que circulam no kula, entre as ilhas Trobriand e as outras ilhas do nordeste da Nova Guiné, que analisaremos em um instante. Finalmente, nao é por acaso que todas as dificuldades teéricas se concentram ao redor da interpretagdo da natureza dos objetos precio- sos que circulam nos dons, e cujo modo de circulago, as vezes estra- nhos aos nossos olhos, deveria ser esclarecido. Estes objetos so, em sua maioria, coisas materiais cujo valor nao reside apenas na raridade de sua matéria, seja ela o ndcar, cobre, ossos, jade ou plumas, nem no trabalho despendido para fabric4-lo ou embelezé-lo. Pois a escolha da matéria, o trabalho investido, tudo isto certamente conta bastante, mas menos do que uma realidade imaterial nele presente. Esta realidade € imaginéria. Tem por contetido idéias e simbolos que conferem ao ob- jeto uma forga social, uma forga utilizada pelos individuos e pelos gru- Pos para agirem uns sobre os outros, quer para estabelecer novas relagées sociais, quer para reproduzir as mais antigas. O contetido imaginério, imaterial das coisas dadas nao se reduz em hipdtese nenhuma a simples presenga do doador na coisa dada. E, bem MOIbid., p. 266. “lIbid., p. 267. Grifo nosso. 104 © ENIGMA DO DOM entendido, porque as coisas dadas “nunca estao completamente desliga- das” de seu proprietario, que elas levam consigo alguma coisa de seu ser, que através delas as pessoas se ligam, se comprometem. Sao relagdes “pessoais” que se estabelecem, pessoas que se comprometem. Eacoisa dada é a garantia de seus compromissos. Entretanto, nao podemos nos contentar em ficar neste nivel, no qual aquilo que obriga a dar é 0 fato de que dar obriga ¢ isto abre imediatamente um circulo de obrigagées mituas, pois aceitar receber € obrigar a retribuir, a “restituir” etc. Pois se cada um pode escolher dar a um endo a outro ou receber de um ¢ nao de outro, ninguém nestas sociedades — se deseja continuar a existir, isto é, reproduzir-se reproduzindo suas relagdes com outros — pode deixar de dar e de receber. Por tras das pessoas ¢ de suas relagées existe portan- to uma outra realidade, social, impessoal, objetiva, que se afirma sobre todos em todos os momentos e sem jamais se interromper. Isto foi visto por Mauss, reconhecido e expresso em um de seus ra- ros textos em que ele busca remontat, mais além dos aspectos imaginé- rios e simbélicos das coisas dadas, até uma realidade objetiva que nao se reduziria a estas realidades imagindrias, até uma necessidade que nao poderia ser reduzida aos dados da consciéncia subjetiva e intersubjetiva e que seria sua fonte, explicaria sua existéncia. Falando do “regime do dom” nas sociedades melanésias e polinésias, ele escreve: ‘A vida material e moral, a troca, funcionam nestas sociedades sob uma forma desinteressada e ao mesmo tempo obrigatéria, Além do mais, esta obrigaco se exprime de modo mitico, imagindrio ou, se assim preferirmos, simbélico e coletivo: ela assume © aspecto do interesse ligado as coisas trocadas — estas nunca ficam completamente desliga- das daqueles que as trocaram; a comunhio e a alianga que estabele- cem sio relativamente indissoliiveis. Na realidade, este simbolo da vida social — a permanéncia da influéncia das coisas trocadas — nao faz sendo traduzir bastante diretamente a maneira como os subgrupos destas sociedades segmentadas, de tipo arcaico, est4o permanentemente imbricados uns nos outros e sentem tudo dever uns aos outros", 1W]bid., p. 194. Grifo nosso. 105 MAURICE GODELIER A obrigagao objetiva, que estes grupos componentes das sociedades arcaicas teriam, de trocar entre si para poder subsistir encontraria, por- tanto, sua expressao “bastante direta”, mas imagindria ou simbélica (o que, a nosso ver, nao é a mesma coisa), no fato de que “as coisas trocadas nunca ficam completamente separadas” de seus proprietarios. Mauss, porém, nada nos diz sobre as razées pelas quais esta obrigacao teria de assumir uma forma mitica, a nao ser afirmar que € 0 que as pessoas acre- ditam. Ali4s, a obrigagdo, para os individuos e os grupos, de “trocar” para existir socialmente nao é certamente uma caracteristica apenas das sociedades segmentarias ou, de maneira mais geral, “arcaicas”. E sobre- tudo, se as coisas trocadas nos dons tém uma alma, elas nao s4o as tini cas a possui-la. Os objetos sagrados também tém uma, e ainda “mais forte”, pois neles esto presentes, agem pessoas maiores que os huma- nos: deuses, espiritos, ancestrais ilustres. Ora, estas coisas sagradas, que se beneficiam de um suplemento de alma em relagdo aos objetos precio- sos que se podem dar, nao sao, em geral, nem dadas nem trocadas. Mauss deveria, portanto, ter colocado a seguinte questdo: por que, entre todos os objetos que tem uma alma, alguns, os mais numerosos, podem ser dados e circular entre os individuos e os grupos “sem que nunca, todavia, sejam completamente separaveis” de seus proprietarios de origem, sem que sejam completamente aliendveis, enquanto os ou- tros, os mais preciosos, os mais sagrados, nao circulam e permanecem iméveis nos tesouros dos clas e das familias? E como estas duas catego- rias de objetos existem nas sociedades “segmentdrias” que ele exami- nou, devemos concluir que a segmentagio, a divisao da sociedade em subgrupos “imbricados uns nos outros” e que “se devem tudo”, ndo supée, de forma alguma, que eles se déem tudo. Ele considera evidente que as coisas sagradas nao sao aliendveis e reserva todas as suas quest6es, todos os seus esforgos, para tentar com- preender por que as coisas dadas, trocadas, nao o eram completamen- te. Focalizando sua andlise em uma tinica categoria de objetos (e de fatos), ele nao viu que ela nao era independente da outra, que lhe era complementar e cuja existéncia mesma lhe era necessdria, pressuposta. 106 © ENIGMA DO DOM ‘Ao deixar fora de seu campo de andlise os objetos sagrados, Mauss acabou criando, sem o desejar, a ilusao de que a troca era 0 todo da vida social. Ele abria caminho para Lévi-Strauss que, ele sim, simplifi- cou mais ainda as coisas na célebre frmula em que reduzia a socieda- de a uma triplice troca, de mulheres, de bens e de palavras. De fato, conforme tentaremos demonstrar mais adiante, as trocas, quaisquer que sejam, nao esgotam 0 funcionamento de uma socieda- de, nao bastam para explicar a totalidade do social. Ao lado das “coi- sas”, dos bens, dos servicos, das pessoas que se trocam, hd tudo aquilo que nao se d4 ou que nao se vende e que é objeto, igualmente, de ins- tituigdes e de praticas especificas que sio um componente irredutivel da sociedade como totalidade, contribuindo também para explicar seu funcionamento como um todo. Isto nos leva a tomar uma certa distancia em relagéo a descrigao de Mauss para o potlatch como fendmend social total. Em nada contesta- mos a importancia desta nog4o que Mauss foi o primeiro a introduzir no campo das ciéncias sociais e que Ihe valeu, a justo titulo, a celebri- dade. Mauss distingue dois graus, duas classes de fatos sociais totais na medida em que “movimentam, em certos casos, a totalidade da socie- dade e de suas instituigdes [potlatch, clas afrontados, tribos se visitan- do" etc.] e, em outros casos, apenas um ntimero muito grande de instituicdes, em particular quando tais trocas € contratos envolvem, antes, os individuos'**”. Que o potlatch possa envolver todos os grupos da sociedade & neste sentido, arrastar em seu movimento toda a sociedade, é prova- vel. Que o potlatch ou o kula sejam, “mais até do que sistemas i instituigées divididos, por exemplo, em religido, direito, economia etc., ‘marcas’, sistemas sociais inteiros”, é certo, pois a aplicagéo a estes fendmenos de tais categorias analiticas as “disseca em regras de Exemplo de “prestagoes totais” néio-agontsticas. | Majbid., p. 274. Grifo nosso. Sobre a nocao de fenémeno social total, ver também p. 141 ¢ 204. 107 MAURICE GODELIER direito, em mitos, em valores [...]” € corre-se 0 risco de perder a unidade, “o movimento do todo”"’, Mas nem as sociedades da costa noroeste da América e menos ainda as sociedades do nordeste da Nova Guin é se resumem ou se exprimem por inteiro no potlatch ou no kula, embora eles marquem em profundidade “sua economia e sua moral”. No entanto, o que Mauss percebeu muito bem é que, uma vez acio- nada 4 logica do potlatch, uma vez estabelecido um sistema de dons e contradons agonisticos que integre a maioria dos grupos que compéem uma determinada sociedade, nada parece poder deté-lo. Pouco a pou- co, tudo se transforma em pretexto para o potlatch: a vida, o casamen- to, a Morte etc. Cada dom supée e pressup6e outros dons e estes se sucedem e se encadeiam em um movimento que parece ter um motor em si Mesmo, sem comego nem fim. E ento que, aos olhos dos membros destas sociedades, tanto dos indivéduos quanto dos grupos que as compéem, colhidos por este moto perpétuo, sem poder escapar, sair (com excegao, e isto é significativo, de alguns individuos e grupos, cujas fungGes e cujo status os situam além de qualquer competico, como por exemplo as familias dos che- fes que reclamam para si uma origem divina), tudo se passa como se as. coisas Pteciosas dadas e recebidas no potlatch (e os proprios potlatchs) tivessem uma existéncia auténoma, que faria com que se deslocassem num movimento sem fim, arrastando com elas os seres humanos que de sujéitos se transformariam em objetos e se veriam submetidos, do- minados Por esta ronda de riquezas que eles mesmos acionaram. ‘Tais processos nada tém de excepcional. O mesmo acontece em nossa$ SOociedades mercantis, capitalistas, nas quais a riqueza consiste principalmente em signos monetarios e nas quais o dinheiro acumula- do é sempre produto, em tiltima anilise, da producio, seguida da venda eda compra de todos os tipos de mercadorias. Sejam estas mercadorias materiais ou imateriais, digam respeito aos meios de produgio, de con- sumo ou de destruicao, a subsisténcia ou a forca de trabalho das pessoas, os servigos de um sacerdote ou aqueles de uma prostituta, a realidade usIbid., p. 275, 108 © ENIGMA DO DOM concreta, particular, de cada mercadoria s6 tém importancia na medi- da em que seu uso é 0 suporte de um valor de troca e este valor se transforme em dinheiro que produz dinheiro, em capital. Em nossas sociedades também se podem observar, a cada dia, fen6- menos do mesmo tipo. Na histéria, uma vez posta em marcha a engre- nagem que torna possfvel e necessdria a acumulagéo do-capital, a transformagdo permanente das mercadorias e do dinheiro em capital € vice-versa, nao é mais possfvel interromper-se por muito tempo, e ainda menos definitivamente, a circulagéo de mercadorias e de dinheiro. O sistema se reproduz “sozinho”. Tudo se passa, portanto, como se 0 di- nheiro circulasse por si s6 e gerasse capitais e mercadorias que, por sua vez, produziriam mercadorias e capitais. Estamos, com diz Sraffa, “em um mundo no qual as mercadorias produzem mercadorias por intermé- dio de mercadorias'**”. Marx escreve coisas definitivas sobre o “tudo se passa como se”. Mas os dois mundés, aquele dos dons e aquele das mercadorias, so realmente compardveis. Ao fetichismo dos objetos dos dons corresponde o fetichismo das mercadorias, ¢ ao fetichismo dos objetos sagrados corresponde aquele do dinheiro funcionando como capital, como valor dotado do poder de gerar valor por si mesmo, como dinheiro capaz de gerar dinheiro. Eis a mitologia do capital. Mas devemos levar mais longe a comparacio e examinar as diferen- tes formas de consciéncia que existem numa economia dominada pela troca de dons e numa economia dominada pelo mercado, em que a forga de trabalho intelectual e manual é, ela mesma, uma mercadoria"’. Nas sociedades dominadas pela obrigagao de dar (e, no caso das sociedades “Pietro Sraffa, Production of Commodities by Means of Commodities: Prelude to a Critique of Economic Theory, Cambridge, Cambridge University Press, 1960. ‘Diversamente de Marilyn Strathern (The Gender of the Gift, Berkeley, University of California Press, 1988), pensamos que as relagdes comerciais coexistem hé séculos com as trocas de dons nas sociedades analisadas por Mauss e que, inversamente, 0 dom continua a ser largamente praticado nas economias de mercado, Nao transfor- mamos as sociedades melanésias, que seriam as sociedades de “dom”, ¢ a sociedade ocidental, que seria uma sociedade de “mercadorias”, em uma oposigio de “esséncia”. 109 MAURICE GODELIER com potlatch, pela obrigagdo de entregar-se a uma competigao de dons), sao as coisas que, finalmente, parecem ocupar o lugar das pessoas, sio os objetos que se comportam como sujeitos. Nas sociedades domina- das pela obrigacao de vender e de fazer dinheiro, lucro, fazendo con- corréncia na venda de bens e de servigos, s4o as pessoas que, até um certo ponto, so tratadas como coisas. Mas nos dois casos ocorreu um processo idéntico: em cada um deles as relagdes reais dos homens com os objetos que eles produzem, que eles trocam (ou guardam para si), apagaram-se, desapareceram de suas consciéncias e outras forgas, ou- tros atores — estes imagindrios — tomaram seus lugares e substitui- Tam-se aos homens, que s4o sua origem. Mesmo se as coisas sagradas, que nao podem ser dadas, e os obje- tos preciosos, que o podem, parecem habitados por um espirito que faz com que se movam, mesmo se as mercadorias tém um valor de tro- ca, um pre¢o cujas flutuagdes escapam A consciéncia e ao controle da- queles que as produzem ou consomem, estamos, nos dois casos, diante de universos produzidos pelo homem, mas que se afastaram dele e se povoaram de duplos fantasmaticos dele mesmo, duplos estes que mui- tas vezes sdo benevolentes e vém em sua ajuda, e muitas vezes também © esmagam, mas em qualquer caso o dominam. Mostramos em outra ocasido™*, e voltaremos a isto na conclusio, que esta producio de seres fantasmaticos dominando os humanos est na origem distante das classes e das castas, e que é ela que explica por que as pessoas concordam em trabalhar ou em partilhar os produtos de seu trabalho com aqueles dentre eles que parecem mais pr6ximos dos deuses, dos espfritos que trazem abundancia ou desgraca, dos sa- cerdotes, dos chefes amigos ou parentes dos deuses. Nas sociedades em que dominam as relagGes pessoais, estas relag6es n4o s4o mais trans- parentes do que as relagdes impessoais nas sociedades de mercado ou burocrAtico-estatais descritas por Max Weber. Sua opacidade é dife- rente, pois entre os individuos e os grupos se interpdem sem cessar os “#Maurice Godelier, L'Idéel et le Matériel, Paris, Fayard, 1984. 110 © ENIGMA DO DOM seres que povoam suas crengas, os deuses, os espiritos, os ancestrais, benevolentes ou agressivos, nutridores ou canibais, aos quais preci- so, sem cessar, oferecer preces, fazer oferendas, qui¢4 realizar sacrifi- cios. £ dificil para um antropélogo acreditar que, nas sociedades em que as relag6es entre os individuos ¢ entre os grupos sao de pessoa a pessoa e em que uma grande parte das trocas nao sao comerciais, estas relacdes sejam menos mistificadoras e mais “transparentes” porque s40 pessoais. £, no entanto, 0 que Marx sugeriu varias vezes em O capi- tal’, Nés nao concordamos com ele neste ponto. Voltaremos ainda uma vez ao contetido imagindrio e simbélico das coisas dadas, dos objetos de dom ¢ de contradom. Para que “funcio- ne”, € preciso que haja na coisa dada mais que um dom de um ao ou- tro. E preciso que ela contenha algo que apareca para 0 doador, assim como para o donatério e para todos agueles que a receberao em segui- da, é preciso, entao, que ela apareca para todos os membros da socie- dade — que, portanto, devem partilhar de antemfo esta representa¢ao — como um meio cuja posse, mesmo temporaria, € necessaria para continuar a existir, a produzir ou reproduzir relagées sociais que per- mitam que os individuos, assim como os grupos, clas, familias, confra- rias, sociedades secretas etc. continuem a fazer parte de sua sociedade. Logo, é necessdrio — e Mauss 0 havia pressentido, sugerido sem ana- lisar mais de perto — que a coisa dada contenha mais que a “perma- néncia de influéncia”, que a presenca daquele que a ofertou. E preciso que ela contenha a mais algo que pareca, para todos os membros da Jean Lojkine (“Mauss et I"Essai sur le don”, art. cit, p. 153-154) foi também tum dos poucos a sublinhar que a reciprocidade “no comercial” nao significava transparéncia e que existia um “fetichismo nao comercial”, do qual o potlatch um exemplo perfeito, Jean Lojkine mostra claramente que Marx néo viu isso quando escreveu: “Cada servo sob corvéia sabe muito bem, sem precisar recorrer a um Adam Smith, que é uma quantidade determinada de sua forga de trabalho pessoal que ele despende a servico de seu senhor. O dfzimo a fornecer ao padre € mais claro que abéngdo do padre.” E cabe a Lojkine acrescentar: “Como explicar entio a forca da religido [..] assim como o carter sagrado do poder real?” 111 MAURICE GODELIER sociedade, indispensdvel para sua existéncia, algo que deve circular entre eles para que todos e cada um possam continuar a existir. Ora, este algo mais que os objetos dados devem ter, eles o parti- Iham com os objetos sagrados que, estes, nao circulam. Este algo mais, Mauss 0 chamou de alma, espirito, fonte de riqueza e de abundancia, de vida. £ aqui, portanto, que o problema se complica. Como inter- pretar os dons preciosos que circulam reconhecendo, ao mesmo tempo, seu parentesco com os objetos sagrados que nao circulam? Desenvol- veremos mais longamente este ponto na segunda parte da obra; aqui nos contentaremos em apresentar nossa hipétese. Os objetos preciosos que circulam nas trocas de dons s6 podem fazé-lo porque so duplos substitutos: substitutos dos objetos sagrados e substitutos dos seres humanos. Como os primeiros, eles sao inalie- ndveis, mas, a diferenga dos objetos sagrados que nao circulam, eles circulam. Nao apenas nos potlatchs, nas trocas (competitivas) de ri- quezas contra riquezas, mas igualmente por ocasiao dos casamentos, dos falecimentos, das iniciagdes, em que funcionam como substitutos dos seres humanos, dos quais “compensam” a vida (casamento) ou a morte (de um guerreiro ou mesmo de um inimigo morto no campo de batalha). Substitutos das coisas sagradas e dos seres sobrenaturais que nelas vivem, nelas esto presentes, eles também sao substitutos dos seres humanos, de sua substancia, de seus ossos, de sua carne, de seus atri- butos, de seus titulos, de sua categoria, de suas posses materiais e imateriais. E por isso que podem tomar o lugar dos homens e das coi- sas em todas as circunstancias em que for necessdrio deslocd-los ou substitui-los para produzir novas relagées sociais de poder, de paren- tesco, de iniciagao etc. entre os individuos e entre os grupos ou, mais simplesmente, para reproduzir as antigas, prolongd-las, conserva-las. E esta dupla natureza dos objetos preciosos que os torna dificeis de definir, e logo de pensar, em um mundo em que as coisas so separa- das das pessoas. E ela também que nos permite compreender por que esses objetos funcionam como moeda sem sé-lo plenamente e perceber 4112 © ENIGMA DO DOM que jd o fizeram muitas vezes despojando-se de uma grande parte de suas fungGes e transformando-se em instrumento impessoal do desen- volvimento de relagées comerciais impessoais, instrumento que 86 cir- cula estampilhado, marcado pelo selo da instituigao que representa a comunidade como um todo, que é fonte do poder e da lei, 0 Estado’. O leitor j4 deve ter compreendido por que teve de aceitar alguns desvios para compreender as andlises que Mauss dedicou ao potlatch. Para nés, nao se tratava simplesmente de fazer emergir a riqueza pro- fusa de um texto complexo, carregado de fatos importantes dissimula- dos em notas e abrindo-se incessantemente para novas quest6es, mas, antes, de deixar claro que o potlatch é 0 fato etnogrfico que Mauss empurrou para o primeiro plano, mais que o kula, outro fato etnografico que ele também privilegiou. Foi porque o potlatch pareceu-lhe ser a forma ao mesmo tempo extrema e syprema de prestagdo total que Mauss fez dele o ponto de partida de seu exame do kula e de outros fatos semelhantes, e que se voltou em seguida para a hist6ria antiga, tentando reinterpretar os direitos e as economias antigos da Europa, 150A moeda 6, de certa maneira, um substituto tanto dos objetos sagrados quanto dos objetos preciosos que originalmente sao, eles mesmos, os primeiros, os subs- titutos dos deuses e os segundos, dos homens. O jogo dos substitutos pode seguir até bem mais longe. Um exemplo notével € 0 das moedas de oferenda da religido chinesa, papéis impressos como moedas e que se queimam em recipientes rituais no interior da casa, em oferenda as divindades protetoras. As moedas de oferenda so divididas em moedas de ouro (queimadas para as divindades celestes) e moe- das de prata (queimadas para os espiritos nefastos e os manes residentes no infer- no). Estas moedas sao utilizadas pelos simples crentes por iniciativa prépria. Além disso, existem as “moedas de tesouraria” e as “moedas para solucionar as crises”. Seu uso requer especialistas. Estas moedas foram objeto de um notavel estudo de How (Ching-Lang) (Monnaies d’offrande et la notion de trésorerie dans la religion chinoise, Paris, PUF-Maisonneuve, 1975). Por trés dessas praticas, esté a idéia de tum capital de vida e de felicidade, pelo qual 0 individuo fica em divida, desde o seu nascimento, para com a tesouraria, espécie de banco com duas contas — uma celeste, outra infernal — que gerencia as relacdes dos humanos com os espiritos ¢ 08 deuses. Voltaremos a este tema na conclusio desta obra, quando aludiremos ao Rig Veda e nogdo de divida de vida na india. 113 MAURICE GODELIER esforgando-se entao para remontar até o “antiqiifssimo direito roma- no's’, antes que nele aparecesse 0 princfpio da distingao entre direi- tos pessoais e direitos reais'S. E é pela mesma razao que ele interroga o direito celta e o direito germanico que, este ultimo, teria permanecido vivo no seio do cam- pesinato ao longo de toda a época feudal, pois, para Mauss, “a civiliza- ¢4o germanica [...] havia desenvolvido, bem anteriormente, todo o sistema do potlatch e sobretudo todo o sistema dos dons'5>”, Assim também, ele voltou-se para o antigo direito hindu porque, a seus olhos, “a India antiga, imediatamente apés a colonizacdo ariana, era dupla- mente um pais de potlatch'*”, Duplamente, na medida em que os aria- nos, segundo Mauss, conheciam o potlatch antes de chegarem & India, onde os dois grandes grupos de tribos que formavam o substrato da populagdo autéctone (as tribos tibeto-birmanesas e as tribos mundas) também o conheciam. O potlatch é assim o paradigma central da obra, embora seja tam- bém o lugar onde se concentraram as dificuldades tedricas. Por conse- guinte, é af que poderiam ser mais bem percebidos, trazidos 4 luz, a forga e os limites da abordagem de Mauss e de seus conceitos. Ora, pareceu-nos que tudo girava em torno da interpretagdo da natureza dos objetos preciosos que circulam nos dons, e 0 bloqueio deveu-se ao fato de que Mauss nao procurou aproximar os objetos sagrados que n4o circulam dos objetos preciosos que circulam para pens4-los em um mesmo quadro teérico. Esta critica nao tem como objetivo negar uma obra imensa. Busca apenas desconstruf-la, sem dissolvé-la sob as criti- cas, para reconstruf-la e completd-la, seja prosseguindo nas mesmas diregdes, quando for possfvel, seja deslocando os problemas para abrir novas vias e continuar avangando, 'S'Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 238, ‘Ibid, p. 229. ‘Ibid,, p. 251. “bid, p. 241. 114 © ENIGMA DO DOM No entanto, nio podemos deixar o potlatch sem mencionar duas criticas que foram dirigidas a Mauss. Uma nos parece fundada, a outra um pouco menos. A primeira reprova ao sabio nao ter dado atengao a existéncia de elementos de exploragao nas relagées entre a aristocra- cia, a nobreza dos clas e a massa das pessoas comuns. Ele emprega 0 termo “feudal” para designar este tipo de sociedade. Fala de “princi- pes”, de “vassalos”, de “paladinos”!’’. Em outra ocasiao, ele chega a evocar “classes feudais”, precisando (o que pouco corresponde ao feu- dalismo ocidental) que elas eram, no entanto, “recortadas pelos clas e fratrias”'5*, Ele fala mesmo de potlatch “de classe a classe”, mas nao diz mais nada. Mauss nao era oxinico a recorrer ao vocabuldrio da feudalidade ocidental para descrever sociedades exéticas onde aristo- cracias reinam. Este eurocentrismo era partilhado por todos os tipos de autores, tanto os que invocavam 0 marxismo quanto os que tinham uma visio mais cldssica da hist6ria. Mas nao € uma questao de vocabu- lario que se reprova em Mauss, é 0 fato de que ele nada disse sobre as antecipagées pagas em trabalho, em bens de subsisténcia e em bens preciosos praticadas pelos chefes de cla contra os membros de linha- gens nao-nobres que eram sua base. Mas de onde vinham estes chefes € esta aristocracia? Parece que se era chefe ou se era nobre em raz3o da posigdo genealdgica da prépria linhagem no cla. O chefe pertencia, por exemplo, a linhagem dos descendentes diretos do filho mais velho do ancestral fundador do cla. As outras linhagens, apesar de seus lagos de parentesco com a do chefe, compunham a massa das pessoas do povo. Era o chefe quem dominava o potlatch em nome do cle quem arreca- dava tanto os alimentos para os festins, quanto os bens preciosos que dava aos chefes dos outros clas convidados. Mas nestas sociedades, ao lado da massa das pessoas do povo ha- via também os escravos, dos quais Mauss praticamente nao fala. Ele simplesmente faz varias alusées ao fato de que entre os tlingits 0 va- ‘SIbid,, p. 26: elbid., p. 208, nota 3. 115 MAURICE GODELIER lor dos cobres se contava em némero de escravos's”, que As vezes eram levados 4 morte nos potlatchs'* ou, enfim, que se organizavam potlatchs para readquirir um parente prisioneiro, evitando sua escravi- zagio e restabelecendo o “nome” da familia's®. Em suma, nestas socie- dades realmente existiam relacGes de dominagao e de exploragao que foram sublinhadas por varios autores!®, Parece-nos que 0 siléncio de Mauss ficaria explicado se nos reportdssemos a conclusdo geral de seu ensaio. Mauss, por um lado, confessa que nao teve tempo para “tentar per- ceber o amago morfolégico de todos os fatos indicados'*™”, o que signi- fica que ele nao conseguiu captar o funcionamento interno dos grupos que se dedicavam ao potlatch. Mas, por outro lado, ele insiste na idéia de que a sociedade ocidental do século XX, embora tenha sido obrigada a adotar principios novos para se desenvolver, volta a principios antigos e, sobretudo, volta aos “costumes das despesas nobres'”. O que signifi- ca para Mauss a nobreza de uma despesa? E uma despesa feita por no- bres obedecendo, porém, a uma nogao de interesse e utilidade que no se apresenta do modo como funciona em nosso espirito. Se algum motivo equivalente anima chefes das Trobriand ou americanos {...] ou animava outrora generais hindus, nobres germanos ou celtas em seus dons e gastos, este nao era a fria razao do comerciante, do banqueiro ou do capitalista [...] entesoura-se sim, mas para gastar, para ‘obrigar’, para ter ‘homens avassalados’. Troca-se, mas sobretudo coisas de luxo [...] ou coisas imediatamente consumiveis, de festins'®, '7bid., p. 223, nota 3, ‘ssppid., ESD, p. 167. ‘bid, p. 207, nota 3. ‘©Por exemplo, Alain Testart, Les Chasseurs-Cueilleurs ou Porigine des inégalités, Paris, Société d’ethnographie, 1982. \IMarcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 277. '@Ibid., p. 262. Grifo de Mauss. 1Ipid,, p. 270. 116 © ENIGMA DO DOM E compreende-se a intengdo de Mauss quando se lé esta sua des- crigao do homem rico ocidental: Seus gastos em luxo, em arte, em loucuras, em servidores, nao fazem com que se pateca com os nobres de outrora ou com os chefes birba- ros, dos quais descrevemos os costumes'*4? Para nés, foi o desejo de ver “de novo os ricos voltarem, livre e também forcgosamente, a se considerar como espécies de tesoureiros de seus concidadaos'®” que impediu um exame mais preciso das rela- Ges que existiam entre as “classes feudais” das sociedades do Noroes- te americano e a massa das pessoas do povo. Asegunda critica que foi feitaa Mauss foi de nao ter tido consciéncia clara do carter anormal do potlatch que Boas havia observado no comego do século, um potlatch “enlouquecido”, cada vez mais agres- sivo depois dos abalos que a presenga e as pressdes dos europeus ti- nham gerado na sociedade india da costa noroeste. A hipétese de que o potlatch observado por Boas tenha sido com- pletamente alterado foi avangada ha muito tempo por etndélogos como Barnett’, antes dele por Curtis, e parece, hoje em dia, confirmada em todos os pontos. Vamos resumir brevemente os abalos conhecidos por estas socie- dades, em particular os kwakiutls. Seus primeiros contatos com os europeus remontam ao fim do século XVIII, por volta de 1780. Na época, os kwakiutls eram uma vintena de tribos que viviam da pesca, da caca e da colheita. Sua economia e sua tecnologia eram caracteriza- das por um alto grau de produtividade. Cada tribo reunia-se no inver- no em uma aldeia dividida em bairros, habitados cada um por um numaym, grupo de parentesco que Boas chamou, com reservas, de “cla” ‘ibid, p. 272. WIbid., p. 262. ‘6s}Jomer G. Barnett, “The Nature of the Potlatch”, American Anthropologist, n° 40, 1938, p. 349-358. MAURICE GODELIER mas que se assemelha mais ao que Lévy-Strauss chamou em seguida de “casas”"*”, Cada numaym era ao mesmo tempo uma unidade resi- dencial, econémica e politica, pois o grupo possufa em comum os di- reitos sobre os locais de pesca, caca e colheita, e possuia riquezas imateriais, brasGes, categorias etc. No interior do numaym, um certo niimero de linhagens eram consideradas nobres e eram elas que repre- sentavam seu cla nos potlatchs. No curso do século XIX, trés séries de fatos abalaram a estrutura destas sociedades. A populacio caiu em 75% depois da introdugdo de novas doengas e de epidemias. Passou-se de uma economia de caca e pesca (que permitia a acumulag’o de excedentes muito importantes) a uma economia colonial, de comércio, que levou a importagao de gran- des quantidades de bens manufaturados. Sobre esta base, formou-se uma classe de novos-ricos que contestaram a posig’o e o poder dos chefes tradicionais. Enfim, os europeus impuseram o término das guer- ras tribais, fizeram cessar as capturas e vendas de escravos, e a socieda- de viu-se diante de numerosos titulos e posigdes desocupados e de uma multiplicagao dos novos-ricos que puderam, gragas As suas riquezas, apresentar-se na arena do potlatch, do qual eram tradicionalmente excluidos. Antes desses abalos, o potlatch parecia ter como objetivo sobretu- do a validagao da transmissao ptiblica de posigdes e de privilégios j4 adquiridos. Um chefe que quisesse transmitir sua posicdo a seu filho convidava os chefes de outros numaym da tribo e procedia a uma dis- tribui¢do pablica de bens preciosos e de bens de subsisténcia, cuja acei- tag4o pelos outros chefes equivalia ao reconhecimento publico da transmissao do titulo. Com certeza acontecia as vezes uma competigao entre dois ou trés candidatos a um mesmo titulo ou a uma mesma "De fato, um autor como Kirchoff j& havia esbogado um modelo deste tipo de organizagao social, aproximando-o dos grupos de parentesco dos reinos polinésios, os kainga. O artigo de Marie Mauzé “Boas, les Kwakiutl et le potlatch: éléments pour une réévaluation”, L’-Homme, XXVI, n° 4, outubro-dezembro de 1986, re- sume com clareza 0 que sabemos sobre sua organizacio social. 118 © ENIGMA DO DOM fungdo, e os potlatchs de dons e contradons tornavam-se entao o meio para escolher entre os candidatos. Mas o potlatch tinha um carater bem menos antagonista, e parece mesmo que as posigdes de maior presti- gio da época pré-colonial eram transmitidas fora do potlatch (0 que Mauss, alids, observou). Foi no fim do século XIX que estas estruturas se abalaram e os potlatchs, em lugar de servirem principalmente para validar posigdes adquiridas, transformaram-se em um modo sistematico de acesso a novas posigées. Isto em um contexto de grande nimero de posigdes vagas e de aumento do poderio dos novos-ricos. Segundo Marie Mauzé, estas alteragdes do potlatch tomaram duas direges. Primeiro uma individualizagao cada vez mais marcada, com os novos-ricos, ajudados por sua familias e por alguns devedores, langando-se no potlatch, 20 passo que outrora isto cabia a um chefe apoiado por todo o seu cla, nobres e gente do povo. E, por outro lado, uma radicalizagéo da com- petigio, envolvendo tribos inteiras num contexto em que as guerras eram proibidas. Imp6s-se entre as tribos uma nova hierarquia baseada na riqueza, a0 mesmo tempo em que era criada uma nova sociedade, dita “da ordem das 4guias”, que reunia “aqueles que seriam servidos em primeiro lugar” e onde se encontraram, juntos, os antigos chefes e os novos-ricos. Foi neste contexto que o potlatch se exaltou, enlouqueceu (alias, foi justamente esta loucura que tanto fascinou Georges Bataille no potlatch'*). Os europeus, missiondrios, agentes do governo, logo sentiram-se constrangidos por estas competigdes de dons, que con- sideravam excessivas, dilapidagées descontroladas. Em 1884, 0 potlatch foi proibido por uma lei que fora apresentada como emen- da ao Indian Act de 1876", E foi neste contexto de criticas e acu- sages contra o potlatch trazidas pelos europeus que Boas, para Georges Bataille, La Part maudite, Paris, Ed. de Minuit, 1967, ‘Marie Mauzé, “La loi anti-potlatch chez les Kwagul”, Buletin de l’Amérique indienne, n® 29, 1983, p. 3-5, 9-11, 30-31. 119 MAURICE GODELIER convencé-los de que o potlatch nao era um costume irracional, es- creveu seu célebre texto, citado e emendado por Mauss para expli- car que os indios faziam como os brancos e investiam seu capital para que frutificasse, assegurando assim o futuro de seus filhos. Tratava-se de travestir, por bons motivos, o funcionamento do potlatch, Na lingua kwakiutl havia, parece, dois termos diferentes para designar os dons. O termo yaqwa designava as trocas de dons praticamente equivalentes e o termo p’asa significava algo como “dar, mas achatando, esmagando 0 nome de um rival, do donatdrio”. Os abalos do século XIX teriam levado progressivamente 4 multi- plicagaéo dos dons p’asa em relacdo aos yaqwa. Em suas andlises do potlatch, Mauss no teria considerado todo este contexto histérico. E destacando o carAter agonistico do potlatch, teria privilegiado uma forma historicamente tardia e patolégica desta instituigao. Entretanto, Mauss nao ignorava a irrup¢4o macica de bens europeus nos potlatchs. Podemos vé-lo dando-se ao trabalho de copiar meticulosamente o valor do famoso cobre lesaxalayo, pertencente a0 “principe” Laqwagila, e de acrescentar simplesmente como comenté- rio que Boas havia “percebido bem o modo como cada cobre aumenta seu valor coma série de potlatchs”, mas sem espantar-se com a enorme quantidade de bens manufaturados europeus (fonégrafos, maquinas de costura, cobertores de 14) que figuram nestas listas e, conseqiientemente, com o valor que representam em délares!”, Parece, com efeito, que Mauss mostrou-se sensivel nio as trans- formagées brutais acumuladas no século XIX, mas antes 4 continuida- de do potlatch, com o fato de que depois de dois séculos de contato com os europeus as transferéncias de riquezas entre os indios nao passa- "Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit. p. 223, nota 3: “O sr. Boas estudou bem o modo como cada cobre aumenta seu valor com a série de potlatchs; assim, © valor atual do cobre lesaxalayo era, por volta de 1906-1910, de 9.000 coberto- res de 14, valor de 4 délares cada um, 50 canoas, 6.000 mantas com botdes, 260 braceletes de prata, 60 braceletes de ouro, 70 brincos de ouro, 40 maquinas de costura, 25 fondgrafos, 50 méscaras.” 120 © ENIGMA DO DOM vam pelo mercado, mas continuavam a dar-se “nas formas solenes do potlatch'’”. Alids, Mauss insiste repetidas vezes no fato de que os documentos mais antigos ainda s4o os mais preciosos para reconstituir a légica do potlatch, 0 que significa plena concordancia com os co- mentaristas de hoje. E ele chegou mesmo a sugerir que o potlatch, em suas formas antigas, era provavelmente menos agonistico e mais pré- ximo da légica das prestacées totais, isto é, de uma troca de dons equi- yalentes, que no tempo de Boas'”*. Esta nota escapou, evidentemente, A maioria dos analistas que, ao contrdrio, criticam Mauss por ter aceitado com muita facilidade a interpretagao de Boas para o potlatch. $40 os mesmos problemas que iremos encontrar na andlise do se- gundo exemplo etnografico de potlatch privilegiado por Mauss, 0 kula praticado nas sociedades do nordeste de Papua-Nova Guiné. O kula (um exemplo melanésio de potlatch, segundo Mauss) Examinemos agora, bem mais rapidamente porém, o segundo grande exemplo etnografico sobre o qual Mauss construiu sua teoria: 0 kula melanésio. “O kula”, escreveu Mauss, “é uma espécie de grande potlatch'””, um “sistema de comércio intertribal e intratribal!” que associa um grande numero de sociedades das ilhas do nordeste da Nova Wifpid., p. 194: “Mesmo depois de um longo contato com os europeus — com os russos desde o século XVIII e com os cagadores canadenses franceses desde o sé- culo XIX —, nao me parece que nenhuma das consideraveis transferéncias de ri- quezas que af se operam constantemente se faga de maneira diversa das formas solenes do potlatch.” = 7Ipid,, p. 213: “Pelo menos em regides de fratrias [...] entre os haidas e tlingits, restam importantes vest{gios da antiga prestagéo total [...] presentes s40 trocados a propésito de tudo, de cada servigo, e tudo é retribufdo ulteriormente ou mesmo na hora, para ser redistribufdo imediatamente [...] 0s velhos autores ndo descre- vem o potlatch em outros termos, de tal forma que podemos nos perguntar se ele constitui uma instituigdo distinta.” rabid, p. 176. MIbid., p. 175. MAURICE GODELIER Guiné. Em 1925, Mauss tinha conhecimento ha varios anos das pri- meiras publicagGes de Malinowski, mas ele se apoiava sobretudo na primeira grande obra deste tiltimo, Argonauts of the Western Pacific, que fora publicada em 1922, em Londres. Mauss a tinha lido imedia- tamente e nao disfarca, no “Essai”, a sua admiracao pelo autor. Este livro, indiscutivelmente “um dos melhores de sociologia descritiva”, trata “precisamente do tema que o interessa”!”5, Mauss nao hesitaem escrever que “no estado atual da observaco, de nossos conhecimen- tos hist6ricos, jurfdicos e econdmicos, seria dificil encontrar uma pré- tica de dom-troca mais clara, mais completa, mais consciente e, por outro lado, mais bem compreendida pelo observador que a registra do que aquela que o sr. Malinowski encontrou nas Trobriand’”. Seu livro “mostra a superioridade da observagao de um verdadeiro sociélogo"””. Esta admiragao pelo trabalho de campo de Malinowski e por seus esforgos no plano teérico mais geral para “derrubar as doutrinas cor- rentes sobre a economia ‘primitiva’ ‘supostamente natural’”!”, isto é, sem troca comercial, sem moeda etc., nao impede Mauss, que hd anos acumulava e comparava dados sobre as trocas de dom em dezenas de sociedades, ex6ticas ou antigas, de escrever: “No entanto, o sr. Mali- nowski exagera a novidade dos fatos que descreve. O kula, no fundo, nao € sendo um potlatch intertribal de um tipo bastante comum na Melanésia'”.” Como Mauss interpretou, entao, os dados recolhidos e analisados por Malinowski durante uma permanéncia de varios anos em Kiriwina, na ilhas Trobriand? “Os habitantes das Trobriand”, diz Mauss, “hoje ricos pescadores de pérolas e, antes da chegada dos europeus, ricos fabricantes de "Tbid. "bid, p. 185. ""Ibid., p. 185, nota 2, Mauss presta, aliés, a mesma homenagem a Tarnwald, que havia trabalhado com os banaros da Nova Guiné e com os buins das ilhas Salomio, "Ebid,, p. 266. ™Ibid., p. 175. 122 © ENIGMA DO DOM ceramicas, moedas de conchas, machados de pedrae de colsss ee sas [...] sempre foram bons comerciantes e ousados th a : Mauss tem consciéncia da antiguidade da instituigao do u la, se ie transformagées a que foi submetida pela introdugao da indis- Ele também tem consciéncia de que as trocas norar as tria perlifera dos europeus. é kula coexistem com todo um conjunto de trocas ligadas ao ee iniciag6 ja“ ig inowski”, as festas dos mortos, as iniciagoes, cuja ‘descrigdo falta em Ma ial o que faz com que, diz ele, sua prpria sintese “nao onforme constata, ua PP : 7 , 181, Veremos mais adiante que nas ilhas is que proviséria’ ; possa ser mais ql : $ ‘ _ Trobriand o kula funcionava (e ainda funciona) de maneira muito pi ‘ocas de dons e contradons ligadas ao ca- i das tri culiar, separada de fato sana samento, aos funerais e as iniciagdes. Portanto, 0 kula que Malinowski v é tt re- descreve, e que inspirou Mauss, € antes uma excegao do que uma 2 gra entre as sociedades do kula-ring, do circulo do kula. Eis como Mauss descreve o kula: “O comércio kula é de ordem “é exercido de forma nobre, nobre. Parece ser reservado aos chefes” € nen em aparéncia puramente desinteressada e modesta”™?. Se i imen- mos nossa andlise do potlatch, podemos compreender - ind ua 2 tr te Mauss percebeu semelhangas entre 0 kula e o potlate! : i: S praticadas pelos chefes, trocas aparentemente te mai i ivali tre servico do renome dos doadores, trocas em que reina a rivalidade ent j recio- individuos sequiosos de receber como dom o mesmo objeto p! como no potlatch, “ostentam formas bastan- so, atos de doagao que, te solenes'**”. a Mauss ressalta em seguida que 0 potlatch faz parte de um ves contraprestagoes, do qual ele talvez seja tao- i le prestagdes € : : See are o mais solene™”. Ele somente “o ponto culminante, um momento, “oppid,, p.176. wippid, p. 175. injpid., p. 176. wypid,, p. 177. Wa[bid., p. 185. 123 MAURICE GODELIER cita, seguindo Malinowski, as trocas de mercadorias (gimwali), as permutas entre as tribos que s4o objeto de “pechincha [...] indigna do kula'*s”. Menciona também os sagali, grandes distribuigdes de alimentos por ocasiao do langamento de uma nova embarcag4o ou da construgao de uma nova casa. Mas ele nao se demora muito tempo no assunto. Apenas o kula o interessa, e nele, mesmo sabendo que esta forma de troca faz circular varios tipos de objetos, Mauss li- gou-se particularmente aos movimentos dos vaygu’a, os braceletes e colares de conchas, porque, a seus olhos, é “o objeto essencial dessas trocas-doacgées'*™. Ele resume o principio que os rege. Os braceletes (mwali) circulam de oeste para leste e os colares (soulava) de leste para oeste™’. A originalidade do jogo é que um bracelete nunca pode ser trocado por um bracelete, e um colar por um colar. Um bracelete € trocado por um colar, um colar por um bracelete, com a condigdo de que os dois sejam da mesma categoria e de valor equivalente. Mauss nfo utiliza o termo “categoria”, mas sim “valor”. Ora, os dois termos sao necessdrios para descrever a natureza desses objetos. Pois — e isso foi deixado 4 margem tanto da andlise de Malinowski quanto da de Mauss —, no infcio, o vaygu’a era fabricado e em se- guida trocado por outros bens (porcos etc.), hoje por dinheiro. Um bracelete ou um colar tem, no inicio, um valor de troca. Quando penetra no kula, ele toma lugar em uma certa categoria na hierarquia dos bens kula. No seio dessa hierarquia, os braceletes e os colares, objetos feitos de conchas, séo em geral de uma categoria superior a dos porcos e das espatulas em bétele esculpidas e os proprios objetos de conchas sao hierarquizados em categorias distintas. Nao se podem trocar dez conchas pequenas por uma grande, e sobretudo por uma "SIbid, p. 177. "6d, p. 178. 1?Pelo menos na época de Malinowski, parece, pois hoje € o inverso, sem que se saiba bem quando e por que se produziu tal mudanga. 124 © ENIGMA DO DOM grande concha que j4 circulou durante uma geracio pelas rotas do hula, que tem um nome e est carregada de todas as identidades da- queles que a possufram. Feita esta observacio, como Mauss descreve os vaygu ’a? Outra vez, a sombra do potlatch esta presente. “Os vaygu’a nao sao coisas indiferentes, simples pecas de moeda. Cada um, pelo menos os mais , tem um nome, uma personalidade, caros e os mais cobigados uma histéria, mesmo um romance,” Em outro trecho, Mauss de- fine que, além disso, tais objetos tém um sexo, sendo os braceletes do sexo feminino, os colares do sexo masculino. Todo o movimen- to do kula se apresenta como a busca, por parte de um objeto sexuado, de um parceiro do sexo oposto, e seu encontro é repre- sentado no imagindrio dos habitantes das Trobriand como equiva- lente a um casamento. “Uma expressao simbélica [do kula] € a do casamento dos muwali, braceletes, simbolos femininos, com os soulava, colares, simbolos masculinos, que tendem um para o outro, como o macho para a fémea™*’.” Espera-se, portanto, que os vaygu’a tenham, como os cobres do potlatch, um espirito, uma alma. “Nao apenas os braceletes e colares, mas todos os bens [...] tudo aquilo que pertence aos parceiros € tao animado, pelo menos por sentimentos, senao por uma alma pessoal, que eles préprios participam do contrato!°.” Mas Mauss nao ousa ir mais longe e concede que “nao é possivel dizer que eles sdo realmente objeto de um culto, pois a gente das Trobriand é positivista a seu modo. No entanto, ndo é possivel deixar de reconhecer sua natureza eminen- te e sagrada’”™, Adivinha-se que Mauss bem gostaria que os objetos Uilbid,, p. 180. ; ; Wbid., p. 183. Em outra ocasiéio, Mauss cita Malinowski, que se referia aos co- mentérios sobre o kula feitos pelos habitantes de Dobu, comparando os bracele- tes e os colares a c4es que “vinham se cheirar” e “brincar, nariz contra nari2”. vuppid., p. 181. "Ibid. 125 MAURICE GODELIER do kula fossem habitados por um espirito (tal como o hau maori) que faria com que se movessem para a prépria origem. Mas ele con- fessa: O sr. Malinowski nao encontrou razées miticas ou outras no sentido dessa circulagao [dos vaygu’a]. Seria muito importante estabelecé-las, Pois, se a razdo estava em uma orientagdo qualquer destes objetos tendendo a voltar a um ponto de origem € seguindo uma via de ori- gem mitica, tal fato seria entéo prodigiosamente idéntico ao fato polinésio, a0 hax maori”, Mauss talvez nao tenha encontrado o hau nos objetos do kula, mas soube colocar em evidéncia a existéncia de varios pontos co- muns entre a pratica do kula e a do potlatch. Antes de mais nada, 0 fato de que o objetivo principal dessas trocas de dons nao é a acumulagao de riquezas, mas 0 aumento da reputacio, do presti- gio, o engrandecimento do nome do doador. Mas ele viu também que esses dons traziam um suplemento de riqueza Aqueles cuja estratégia fosse coroada de sucesso, pois, para ter sucesso, é preciso solicitar parceiros e ser solicitado por outros parceiros. E preciso saber convencer, seduzir, esperar, fazer esperar, agradecer, e tudo isso se faz acompanhar de presentes suplementares que se juntam ao dom do vaygy’a principal langado nas trocas. Nisso, 0 kula se parece com uma espécie de potlatch. Mas também em razdo da “extraordindria competic4o'’>” que reina entre os parceiros que cobigam o mesmo objeto. E esta rivalidade pela reputagio ultrapassa © circulo estreito da aldeia ou da tribo daqueles que se langam no kula. “Todo kula intertribal € apenas 0 caso exagerado, o mais sole- ne, o mais dramAtico, de um sistema mais geral. Ele tira a propria tribo, por inteiro, do circulo estreito de suas fronteiras, mas no 126 © ENIGMA DO DOM interior, normalmente os clas, as aldeias sao ligados por lagos de mesmo tipo!4.” Mauss sublinhou igualmente o fato de que a circulagao dos vaygu’a no circulo do kula nao pode nunca se interromper: Em principio, a circulacdo desses signos de riqueza € incessante € infa- livel. Nao se deve guard4-los por muito tempo, nem ser lento, nao se pode ser duro ao desfazer-se deles, nao se deve gratificar outra pessoa que nao os parceiros determinados em um sentido determinado, sen- tido bracelete, sentido colar". E finalmente, Mauss viu-se de novo confrontado com a necessida- de de definir que tipo de propriedade quem recebe um vaygu’a tem sobre 0 objeto que lhe foi dado. Questao crucial que ele j4 havia en- frentado ao analisar os objetos do potlatch. Ainda desta vez, ele multi- plica as {6rmulas aproximativas: E certamente uma propriedade o que se tem sobre o presente rece- bido. Mas é uma propriedade de um certo tipo. Poderfamos dizer que ela participa de todos os tipos de princfpios de direito que nés, modernos, mantemos cuidadosamente isolados uns dos outros. E uma propriedade e uma posse, uma garantia e uma coisa alugada, uma coisa vendida e comprada e ao mesmo tempo depositada, mandatada e fideicometida; pois ela sé Ihe é dada com a condigéo de que vai us4-la para um outro ou transmiti-la a um terceiro, parceiro dis- tante!™, As pesquisas ulteriores, em particular as descobertas de Annette Weiner e de Frederick Damon, permitiram responder a esta questao, o "*Ibid., p. 187. '‘Ibid., p. 180. 4Ibid., p. 180. 127 MAURICE GODELIER que no era possfvel com os dados fornecidos por Malinowski. E Mauss teve consciéncia disso, o que € notavel: Sociologicamente, o que se expressa é mais uma vez a mistura de coisas, valores, contratos e homens. Infelizmente, conhecemos mal a regra de direito que domina tais transagdes. Ou bem ela é incons- ciente e mal formulada pelas pessoas de Kiriwina, informantes do sr. teen ou entao, sendo ela clara para os habitantes das Tro- — aioe ser objeto de uma nova pesquisa. Nés s6 dispomos Palavras proféticas, pois foi precisamente 0 que se passou meio sé- culo depois: novas pesquisas foram efetivamente realizadas a partir de 1970¢! tiveram seqiiéncia depois nas outras sociedades do kula-ring. Elas permitiram descobrir esta regra tao clara para os habitantes das Trobriand, mas obscura para o entendimento de Malinowski e de Mauss. ; ) Parece, no entanto, que Mauss aceitou, sem acreditar muito, a hipotése de que as coisas deveriam ser claras para os habitantes das Trobriand. Ele os censura por empregarem “uma linguagem juridica um pouco pueril [...]. E dificil discernir em que grau todo este vocabu- lario € complicado por uma estranha inaptiddo para dividir e definir e por estranhos refinamentos de nomenclatura!*”. Ora, é a mesma cri- tica que ele fara ao direito germanico, e que ja tinha feito ao direito dos ewakiutls, criticado pela “incapacidade de abstrair e de dividir seus conceitos econémicos”, Certamente, ha nesta apreciagdo negativa das capacidades intelectuais dos melanésios 0 efeito de uma certa visio da evolugao da humanidade que coloca os povos ocidentais, pelo menos suas elites, mais adiante na estrada do progresso. De fato, é necessério Precisar que esta visdo da superioridade do Ocidente nao parece refe- rir-se aos campesinatos tradicionais da Europa que, aos olhos de Mauss, levavam, ainda no século XIX, uma vida mais estritamente local, de VTbi 184, “Ibid., p. 191. 128 0 ENIGMA DO DOM trocas econdmicas e sociais mais limitadas do que aquelas que se po- dem observar nas tribos melanésias ou do sul da Asia’. Mas Mauss, depois de ter posto em divida a capacidade de abstrair dos melanésios, acrescenta esta estranha formula, que atenua (quid contradiz) seu preconceito: “Eles, alids, ndo precisavam disso”. En- tGo, por que critic-los por nao se terem dotado de conceitos que lhes seriam intiteis? Mauss justifica-se avancando uma razao bastante ge- ral, que demonstra uma viséo especulativa e contestavel da sociedade: Nessas sociedades, nem o cla nem a familia sabem se dissociar ou dissociar seus atos; nem os proprios individuos, por mais influentes € conscientes que sejam, conseguem cémpreender que € necessdrio que se oponham uns aos outros € que é preciso que saibam dissociar seus atos uns dos outros. O chefe se confunde com seu cla e este com ele: 0s individuos s6 conseguem agir de ym tinico modo. O fato de que nessas sociedades 0 individuo seja, por toda a vida, membro de um grupo de parentesco e que possua em comum com os outros membros de seu grupo a terra ou outros recursos nao significa necessariamente que ele se confunda com os outros ¢ nao consiga 19m suma, todo o mundo das ilhas, ¢ provavelmente uma parte do mundo da Asia meridional que lhe é aparentada, conhece um mesmo [2] sistema de direito e de economia. A idéia que se deve fazer dessas tribos melanésias, ainda mais ricas e comerciantes que os polinésios, € portanto muito diferente daquela que se faz de ordinario. Essa gente tem uma economia extradoméstica e um sistema de tro- as muito desenvolvido, com ritmos mais intensos e precipitados, quem sabe, do que aquele que nossos camponeses e que as aldeias de pescadores em nossas C= tas conheciam hé talvez menos de cem anos. Eles tém uma extensa vida econdmi- ca que ultrapassa as fronteiras das illas ¢ dos dialetos e um comércio considerdvel. Ora, eles substituem rigorosamente o sistema de compras e vendas por dons da- dose restitufdos.” Ibid. p. 192-193, grifo nosso. O que € muito interessante nes- te texto 6 0 modo como Mauss avanga a idéia de que, nessas sociedades, as trocas de dons s4o economicamente mais importantes e dindmicas que as relagGes co- merciais, que existem também. 2mppid., p. 165. 129 MAURICE GODELIER dissociar-se ou opor-se, mas deixemos passar. Enfim, h4 um dltimo oe do kula que Mauss percebeu mas, como jé havia feito a propé- sito dos grandes cobres dos kwakiutls, nado deu maior importanci A Poe ae ele escreve que certos vaygu’a sao retirados do kula e ofereci- los aos deuses, aos espiritos””. Existiriam, portanto, > > dois tipos de vaygu’a, os do kula e aqueles que Malinowski foi o pri- meiro a chamar de vaygu’a permanentes, aqueles que nao so objeto de trocas obrigatérias, [e que] so expostos ¢ oferecidos aos espfritos sobre uma plataforma idéntica 4 do chefe?, Mauss, mais uma vez, se vé confrontado com a existéncia de duas categorias de objetos que, mesmo sendo de igual natureza (conchas) sao, alguns, sagrados, propriedades inaliendveis do cla, da familia, : nao circulam; outros, preciosos, sao propriedade pessoal de um indi- viduo e circulam nas trocas cerimoniais. E como jé tinha feito com os cobres dos kwakiutls, Mauss volta a precisar, a propésito das con- chas que circulam, que a palavra “troca”, assim como a expressio “pa- gamento em retribuigdo”, foi utilizada por Malinowski, conforme confissao deste ultimo, “de forma puramente didaticae park se fazer entender pelos europeus®*”. Mauss nao pode, portanto, fazer a Mali- nowski a mesma critica de etnocentrismo que havia feito a Boas. De bil maneira, mais uma vez o fato de que existiam dois sos di- oe para os mesmos objetos nao parece colocar problemas para Antes de apresentar os resultados das pesquisas mais recentes sobre © funcionamento do kula, pesquisas que se sucederam, j4 0 dissemos desde 1970, tentaremos fazer um breve balanco da andlise feita por Mauss ™bid., p. 180. 22Ibid., p. 168. Mauss faz alusio aqui i it +p. 168. aqui ao artigo de Malinowski publicado em 1917 no Journal of the Royal Anthropological Institute (n° 45): “Baloma, the Spirits of the Dead in the Trobriand Islands”. ‘L 2MIbid., p. 176, nota 4. 130 © ENIGMA DO DOM a partir dos dados de Malinowski. Em relag’o a este tiltimo, Mauss trouxe uma visio mais ampla. Comparou, com efeito, numerosas socie- dades separadas no espago (da América, da Africa, da Asia) e no tempo (Antiguidade greco-latina, civilizagdes germAnicas, {ndia védica etc.). E foi com raz4o, parece-nos, que ele aproximou 0 kula do potlatch. Ele percebeu no kala uma forma de dom e contradom animada por um espirito de rivalidade semelhante ao do potlatch’™, cujo objetivo é aexaltacao do individuo ou de um grupo através deste individuo. Gran- deza e interesse so, nos dois casos, as duas motivagées misturadas dessas trocas. Mauss também recolocou o kula e suas rivalidades em um conjun- to muito mais vasto de trocas, de prestagdes, no qual nao reinava ne- cessariamente o principio da rivalidade*. Ainda sobre esse ponto, 0 paralelo com o potlatch (que se articula também em dons e contradons ndo-antagonistas) era justificado. Mauss constata, alids, que os vaygu’a, como os cobres, tém um nome, uma personalidade, uma hist6ria. Por certo ele forga um pouco 0s fatos para dar-lhes um espirito que os levaria, como 0 hau dos taonga maoris, de volta 4 origem. Ele os vé animados, nao propriamente por uma alma pessoal, mas por “sentimentos”, o que é uma forma menor de alma, sentimentos que ele descreve como a projegao na propria coisa Do"Mauss cta uma férmula do kula da ilha de Sinaketa que sublinha este espirito de rivalidade: “Eu vou roubar meu kula, eu vou pilhar meu hula, eu vou fazer ula até que meu barco afunde {...] minha fama € um trovdo, Meu passo, um tre- mor de terra.” B Mauss acrescenta: “A conclusdo da férmula é interessante, mas somente do ponto de vista do potlatch, A cléusula tem aparéncias estranhamente americanas” (ibid., p. 182). 25Mauss destaca a famosa citagdo de Malinowski que Lévi-Strauss também reto- mou: “Toda a vida tribal nao é sendo um constante “dar e receber’; toda cerimd- nia, todo ato legal e de costumes s6 se realiza com um dom material e um contradom que o acompanha; a riqueza dada e recebida é um dos principais instrumentos da organizagio social, do poder do chefe, dos lagos de parentesco de sangue ¢ dos lagos de parentesco por casamento” (Malinowski, Argonauts... Op. cit P. 1675 Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 188). 131 MAURICE GODELIER das emogoes e da personalidade daquele que a possui2?”, Ese Mali- nowski nunca deixou de achar estranha uma instituigéo comp o kula, em que objetos iniiteis para a vida cotidiana eram trocados -om pai- x40, Mauss pensava justamente o contrario. E também nao seguiu Malinowski quando este recusou-se explicitamente a consderar os vaygu’a como moeda, pois nao serviam como padr4o para medr o valor das coisas trocadas. Foi para responder a Malinowski sobre ete ponto que Mauss escreveu, no “Essai sur le don”, duas p4ginas notiveis so- bre o emprego da nogao de “moeda” para falar de objetos freciosos circulantes nas sociedades primitivas e esbogou em alguns perdgrafos uma histéria das pré-moedas e da moeda”. Ele também nao esquece que os europeus, na época de Mali- nowski, estavam nas ilhas Trobriand e tinham desenvolvidoa indis- tria perlifera local. Com os europeus tinham chegado tambémgrandes quantidades de bens manufaturados e a moeda européia?”’. Mas a di- ferenca do potlatch na época de Boas, o kula observado por Mali- nowski nao tinha sofrido mudangas tao radicais. Foi apenas nos dois Ultimos decénios que seu funcionamento comegou a se alterar pro- fundamente. E isto porque, paradoxalmente, alguns europeus tinham se metido no mecanismo do kula e obtiveram com isso beneiicios fi- nanceiros... 2Possut-los traz alegria, € reconfortante, trangiilizante em si. Os proprietérios tocam-nos ¢ olham para eles durante horas, um simples contato transmite suas virtudes. Os vaygu’a s4o colocados sobre a fronte, sobre o peito do moribundo [...]. Eles so sen supremo conforto” (ibid., p. 181). *Ibid., p. 178-179. 2¥Mauss assinala, sem no entanto insistir, a existéncia do trabalho assalariado nas ilhas Trobriand, onde os europeus recrutavam méo-de-obra para a inddstria perlifera. Mas esses trabalhadores tinham que continuar a honrat seus compro- missos com as tribos e a pescar para trocar os produtos de sua pesca pelos produ- tos agricolas dos grupos do interior. Mauss observa: “A obrigag4o permanece até hoje, apesar dos inconvenientes e das perdas softidas pelos trabalhadores na in- diistria perlifera, obrigados a pescar e perdendo salérios importantes por causa de uma obrigagao puramente social” (ibid., p. 189, nota 2). 132 © ENIGMA DO DOM De qualquer forma, Mauss e Malinowski devem ser confrontados hoje aos resultados das pesquisas realizadas depois da Segunda Guerra Mundial. Vimos surgir, por um lado, uma nova série de pesquisas rea- lizadas nas ilhas Trobriand (entre as quais a de Annette Weiner”) e, por outro lado, pesquisas iniciadas em praticamente cada uma das ilhas associadas no kula, as ilhas de Woodlark (Frederick Damon), Gawa (Nancy Munn), Vakuta (Shirley Campbell), Kitawa (Giancarlo Scoditti, Jerry Leach), Normanby (Carl Thune), Tubetube (Martha MacIntyre), Louisiade (Maria Lepowski), Rossel Island (John Liep)*””. A nosso ver, os resultados dessas pesquisas transformaram em qua- tro pontos a visio do kula herdada dé Malinowski (e que também & largamente, a de Mauss). Vamos resumi-los ¢ propor nossa propria interpretag4o. ; Em primeiro lugar, o que despontou muito rapidamente foi Oca- rdter muito particular do funcionamento do kula em Kiriwina, a ilha em que Malinowski fez suas observagées. Em Kiriwina, apenas os che- fes e os homens de posi¢gio (guyau) dedicam-se ao kula, enquanto em todos os outros lugares participam tanto os Big Men quanto os homens mais comuns, assim como as mulheres”"". E, associado a este fato, em Kiriwina, os vaygu’a nao podem ser utilizados fora do kula, embora 0 possam no resto da regio massim. Nela, de fato, os braceletes eos colares podem ser retirados do kula e utilizados em outros tipos de troca e para outros fins, sobretudo para assegurar a reproducao das relacGes sociais que mantém a existéncia dos grupos locais, relagdes de parentesco, iniciagdesetc., mas também nos rituais destinados a subs- tituir pessoas desaparecidas ou falecidas por dons de riqueza. Por 2*Annette Weiner, Women of Value, Men of Renown: New Perspectives in Trobriand Exchange, Austin, University of Texas Press, 1976. 20Cf, a obra de sintese The Kula, New Perspectives on Massim Exchange, Jerry € Edmund Leach (eds.), Cambridge University Press, 1983. ; 2 gtas, ndo podendo estar embarcadas por varias semanas em expedig&0 nos mares, em geral confiam a seus irméos a geréncia de seu hula. 133 MAURICE GODELIER exemplo, com a morte de sua esposa, um homem de Woodlark deve dar um Aitoum a seus aliados. Um kitoum, conforme veremos, € um objeto precioso, propriedade pessoal de um individuo (ou de um gru- po) e que, segundo as circunstancias, seguird os rumos do kula, trans- formando-se, se for um bracelete, em mali e, se for um colar, em soulava, podendo, entretanto, servir para outros usos. Constatou-se assim que em todas as sociedades do kula, com exce- Gao de Kiriwina, a esfera do kula € diretamente articulada 4 produgao das relagées de parentesco e ao acesso ao poder. Em Woodlark, por exemplo, as pessoas se esforcam para fazer o kula com os aliados pelo casamento ou para aliar-se aos parceiros kula. Esta inser¢4o das rela- goes de hula nas relagées de alianca tem efeitos igualmente deter- minantes sobre a identidade dos individuos, inclusive seu sexo “social”. Em Woodlark, um casal recém-casado comega residindo com os pa- rentes da mulher, mas o marido s6 € considerado completamente um homem, e seus filhos como seus, se sua familia instituir uma relagao de kula com os parentes da mulher. Caso contrério, a esposa € considera- da como “o homem” e o marido como “a mulher”. A instituigao de uma relagio de kula entre linhagens aliadas permite que um homem leve sua esposa para residir em sua terra e se aproprie dos préprios filhos. Mas quando morre a esposa, ele deve dar a seus aliados, para substituf-la, um kitoum. Em Woodlark, também a hierarquia politica nao € fixa. E possivel tornar-se um Big Man acumulando riquezas e redistribuindo-as ou fazendo com que circulem no kula. Em Kiriwina, ao contrario, as posig6es politicas sao fixas e herda- das. Elas se apresentam como uma hierarquia de posigGes entre os clas e os subclas. Os individuos ocupam essas posi¢6es em virtude de seu nascimento, de sua posicdo genealdgica nos grupos de descendéncia matrilinear. Por isso, a reputagdo que este ou aquele “nobre” pode adquirir praticando o kula nao modifica seu lugar na hierarquia politi- ca local. E possfvel nao nascer, mas tornar-se um Big Man, ao passo que chefe se nasce, sendo impossivel tornar-se um. Em Kiriwina, por- tanto, o kula serve “puramente” para engrandecer o individuo que o 134 © ENIGMA DO DOM pratica, para exaltar seu “eu”, para aumentar sua reputagao bem além dos limites de sua aldeia, de sua ilha. E como ele é praticado por uma minoria de homens que j4 detém o poder em sua sociedade e que exer- cem o kula como um privilégio de sua posi¢4o, em Kiriwina o kula é voltado exclusivamente para o exterior, para outras terras, para 0 além- mar. Por isso os objetos do kula nao so utilizados, como acontece em outras partes, nas trocas internas necessarias 4 reprodugio da socieda- de local. / Ora, em Kiriwina, como em outros lugares, essas trocas existem € marcam 0 nascimento, 0 casamento e a morte dos individuos. Elas as- sumem uma dimensio excepcional por ocasiao das trocas cerimoniais (sagali) que se seguem ao falecimento de um homem e se repetem hua rante varios anos. As trocas de dons tém por objetivo “substituir” o defunto, consolidar as relages de alianga fragilizadas pelo falecimen- to e, sobretudo, providenciar o retorfio do corpo do defunto para seu dala (subcla) de origem, junto com as terras, os nomes € aS outras Pro- priedades” do dala que ele havia cedido ainda vivo, “dando-as’ (mapulay*” a seus filhos (sobretudo a terra dada aos filhos). £ o chefe do dala do defunto e suas irmas que, em nome do dala, reclamam a volta dessas propriedades (inclusive os ossos do morto) para seu pro- prietario original. Mas o retorno s6 acontece se, por sua eZ, os mem- bros do dala derem, aqueles que haviam recebido tais propriedades para seu uso, riquezas que compensem suas perdas. Tudo isso exige muitos anos e intimeras trocas cerimoniais funerdrias nas quais, para compensar 2Mapula 6 0 dom que Malinowski havia classificado, no Argonauts, na categoria dos “dons puros”, nocdo que ele mesmo acabaré por abandonar mais tarde em Crime and Custom in Savage Society (1926), explicando que nao tinha examina- do suficientemente de perto 0 contexto desses dons e que eles faziam parte de tuma longa cadeia de transagdes de interesses entre as familias aliadas. Mauss, desde a leitura de Argonauts, havia criticado a expressio pure gift, utilizada por Malinowski Gbid., p. 267-268), dizendo que era “inaplicdvel” assim também Firth, em Elements of Social Organization (1951). Sablins retomar4, embora sob outra etiqueta— “reciprocidade generalizada” —, a nogao de “puro dom”, Cf. Marshall Sahlins, Age de pierre, age d’abondance, op. cit., cap. Ss. 135 MAURICE GODELIER as perdas, o dala do defunto oferece os beku: laminas de pedra polida e inhames, bens masculinos; saias de fibras e buqués de folhas de bana- na, bens femininos. Ea Annette Weiner?! que devemos esta descoberta, assim como a nogio de kitomu (ou de kitoum, como sao chamados em Woodlark). Em Kiriwina, portanto, bens masculinos e bens femininos servem para substituir os humanos e para reproduzir suas relag6es. Os objetos kula ficam afastados desse processo. Em todos os outros lugares eles pene- tram, associam-se ao processo. LA eles funcionam como 0 que nés cha- mamos de “substitutos dos seres humanos”, como equivalentes da vida de uma mulher ou de um homem. Mas mesmo se em Kiriwina os ob- jetos kula sao dissociados do processo de reprodugdo das relagdes de Parentesco e de regeneracdo dos grupos de parentesco, dos dala ¢ de seu patriménio em terras, titulos, nomes, eles nao esto desligados dele. Eles também prolongam as pessoas, unindo-as através de Jagos pessoais. Podemos ter uma prova disso no fato de que, no plano que nés europeus chamamos de simbélico, os mwali e os soulava sao sexuados, machos ou fémeas. Mais ainda, na fabricacao, eles sao montados sobre um suporte que € chamado de “rosto” do muwali ou do soulava", Logo, os objetos tém um sexo e um rosto. Esta identificag4o do objeto a pes- soa humana esté presente também nas cangGes e nos poemas épicos que foram recolhidos nesta regiao. Um desses poemas, Yaulabuta, conta a historia de Kailaga, chefe de uma aldeia da ilha de Kitava que costumava praticar o kula coma ilha de Vakuta?'s, Um dia, Kailaga foi convencido por um boato de que io Annette Wein, op. cit., caps. 3 © 4; “Plus précieux que l’or: relations et ‘changes entre hommes et femmes dans les sociétés d’Océanie”, An ° 1992, p. 222-245, Tt ?“Frederick Damon, “The Kula and Generalized Exchange: Considering some Peeper Aspects of the Elementary Structures of Kinship”, Man, n. 15, 1980, hae. » 1980, 2SJohn Kasaipwalova e Ulli Beier, Yaulabuta; An Historical Poem from the Trobriand Island, Port Moresby, Institute of Papua New Guinea Studies, 1978. 136 © ENIGMA DO DOM um chefe de Kiriwina queria trocar o seu mwali por um magnifico soulava. Ora, ir a Kiriwina significava desviar de sua rota um bem kula que deveria circular em outra direcao. De fato, o tal boato havia sido fomentado por inimigos de uma outra aldeia de sua pr6pria ilha. Kailaga cedeu mesmo assim a seu desejo partiu ent4o para Kiriwina. No ca- minho, seu barco foi atacado pelo inimigo e ele foi capturado, amarra- do ao barco e queimado vivo como um porco. Antes de mata-lo, seus assassinos despojaram-no de um colar de presas de porco que ele tra- zia no peito e levaram-no como troféu a seu chefe; quando entrega- ram o presente, disseram que era um dos muali mais raros que poderia existir. Como Andrew Strathern sublinhou, tratar o chefe Kailaga como um mwali € afirmar explicitamente 4 equivaléncia entre uma vitima humana e um objeto kula?"*, Mas a equivaléncia neste caso era dupla- mente metaférica, pois o colar nao era um mali, um bracelete de conchas, mas um colar de presas de porco. A segunda grande descoberta destes ultimos anos foi feita por Annette Weiner em Kiriwina e quase ao mesmo tempo por Frederick Damon em Muyuw (Woodlark Island)*”. Trata-se da nogao de kitoum. Para compreendé-la, € preciso recomegar pelo fato de que todos os objetos que circulam no kula (braceletes, colares) sio objetos fabrica- dos. Primeiro é preciso pescar as varias conchas para poder fabricé-los. Apenas as conchas de um certo tamanho sao escolhidas para serem polidas, recortadas e montadas sobre um suporte. Tornam-se entao um objeto de valor, propriedade pessoal daquele que o fabricou: é seu kitoum. E s6 depois que alguns desses kitoum vao penetrar nas trocas kula. Portanto, observa-se que todos os objetos do kula incorporam uma certa quantidade de trabalho inicial. Seu tamanho, a qualidade do nacar sio “valorizados” por este trabalho. E seu tamanho e seu brilho que garantem sua classificagéo em uma determinada categoria. Todos 2Andrew Strathern, “The Kula in Comparative Perspective”, in Jerry e Edmund Leach, The Kula, op. cit., cap. 2, p. 84-85. 27Frederick Damon, “The Problem of the Kula on Woodlark Island: Expansion, Accumulation and Over-Production”, Ethnos, n. 3-4, 1995, p. 176-201. 137 MAURICE GODELIER os objetos kula, efetivamente, sdo clasificados em trés Pposigdes que constituem uma hierarquia de trés categorias aceita em todas as ilhas. Mas vejamos mais de perto o que se pode fazer com um kitoum. Pode-se troca-lo por uma embarcacio, por exemplo. Em Muyuw, por uma canoa a remo fabricada em Gawa, uma ilha do Oeste, so dados cinco kitoum de primeira categoria. As pessoas de Kiriwina se abaste- cem de braceletes (mwali) “comprando-os” (gimwali) nas ilhas vizi- nhas de Kaleuna, onde os “manufaturam”; por eles dio em troca seja um beku, seja um ou varios porcos, seja uma grande quantidade de inhame. Um kitoum pode servir também para “substituir’ um ser hu- mano quando € preciso, por exemplo, compensar o assassinato de um inimigo. Hoje pode-se também vendé-los, de preferéncia a um turista. Enfim, ele pode ser langado no kula, onde abre ou junta-se a uma “rota”. E seu deslocamento de dom em dom, sua circulagéo de mao em mio, que itd criar dividas ou anulé-las, atrair outros dons, animando assim uma rota do kula. A terceira grande descoberta depois de Malinowski foi precisamente esta nogdo de “rota do kula”, de keda. Suponhamos que o proprietario de um kitoum, no caso um bracelete de alta categoria que ele mesmo fabricou ou que trocou por um ou varios porcos, queira se langar no kula. Como se trata de um bracelete, ele deve se langar em uma deter- minada direcao em busca de um parceiro que possua um colar de igual categoria e que aceite troca-lo pelo tal bracelete. Nao é certo que tal parceiro exista, havendo, portanto, um risco a correr. Ele é assumido a partir do momento em que 0 proprietdrio do kitoum escolhe um par- ceiro para dar 0 seu objeto, enquanto objeto kul e, no caso, enquanto mwali. Logo, 0 objeto é langado em uma rota e passa de mao em mao até chegar a alguém que possua um colar de categoria equivalente, um soulava, e que esteja disposto a troc4-lo por este mwali. O soulava via- ja ent4o em sentido inverso até que, depois de um certo nimero de meses ou anos, chega aquele que tinha dado o primeiro mwali. Nesse dia, um soulava que era o kitoum de alguém veio ocupar 0 lugar, en- 138 © ENIGMA DO DOM quanto kitoum, do mwali que era propriedade do primeiro doador. Nesse dia, a rota (keda) do kula aberta pelo kitoum/muwali fecha-se e desaparece. O antigo proprietario do bracelete, transformado em as prietario de um colar, pode dispor deste tiltimo como bem sani colar tornou-se o seu kitoum. Pode vendé-lo, troc4-lo por uma em| fl cagao ou langé-lo outra vez no kula, mas em outra rota e no sentido i rimeira. : mies 7 passou, portanto? Suponhamos que a rota eee sociou quatro parceiros: A, que possui 0 bracelete como re . que o recebeu de A ¢ passou para C, que 0 deu aD, proprietario de ee colar, como kitoum. Ha, portanto, uma grande diferenga de status: ent : Ae D de um lado, Be C de outro. Ae'D sao, os dois, proprietirios le um kitoum, B e C nao o sio. Quando A dé a Bo seu kitoum, este - torna um objeto kula, um mwali para ele e para B, mas continua ie lo ao mesmo tempo, para ele e somente para ele, um kitoum, um i‘ — sobre o qual ele continua a manter seu direito de eae ae beu 0 objeto como muwali e como tal o dé aC, que o da aD. i 5 ; e Deste objeto nao é um kitoum. Eles nao tem nenhum direito ‘ pro- priedade sobre ele, mas tém o direito de dé-lo para criar ou honrar fen entanto, D, a diferenga de Be C, quando recebe ° rer de- cide dar em troca, a C, um soulava do qual € proprietario. E 0 i kitoum. Ele guarda entio o bracelete que, para ele, se transforma de muwali em kitoum. mw mw mw kmw A ——> B— > C — > dD A <— <— <— D ks s s s A possui 0 objeto ao mesmo tempo como kitoum e —_ D possui 0 objeto ao mesmo tempo como kitoum © sou lava. Be Crecebem e utilizam esses objetos como muali e soulava. 139 MAURICE GODELIER O conceito “indigena” de kitoum parece ser, portanto, a resposta a0 problema que Mauss enfrentou sem cessar, a saber, a definigao do “tipo de propriedade” que as pessoas tém sobre as coisas que dao e sobre aque- las que recebem, um “género” que lhe parecia “participar de todos os tipos de princfpios que nés, modernos, mantemos cuidadosamente iso- lados uns dos outros [,..]”. A resposta de Mauss é aproximativa. Mais do que definir princfpios que operem nesses dons e se articulem sem confu- so, ela mistura fatos. No entanto, a resposta dos habitantes das Trobriand é clara sobre esses pontos, embora nio seja “simples”. A logica dessas trocas repousa na aco combinada de dois princfpios: um direito de propriedade inalienavel sobre um objeto — inaliendvel pelo menos até o momento em que for substituido por um objeto equi- valente que se torna, por sua vez, uma propriedade inaliendvel — e um direito de posse e uso, que é alienavel sob a condigao de que 0 objeto possufdo nao saia do quadro do kula, nao sirva para outro uso senio 0 de dom e contradom. A agao combinada e permanente desses dois prin- cipios explica a maneira como os objetos circulam ao longo de uma rota de trocas e a natureza das relagdes que se estabelecem entre as Pessoas que entram voluntariamente nesse tipo de troca, as taticas e estratégias que devem empregar, os riscos envolvidos, 0 sucesso, os lucros obtidos, as perdas, os fracassos. Pode-se ver que nem todos os parceiros desta cadeia de dons e contradons tém os mesmos direitos sobre as coisas dadas. Nas duas extremidades da cadeia hd duas “pessoas” (podem ser dois individuos ou duas pessoas morais, dois grupos) que entram no jogo acumulando dois direitos, um direito de propriedade inaliendvel sobre 0 objeto dado, pois este é seu kitoum e nao deixard de sé-lo durante todo o tempo em que estiver circulando como objeto de dons e contradons, e um direito de uso deste objeto como objeto de dom, direito que lhe é cedido, alie- nado... Assim, para os dois parceiros que se encontram nas extremidades da rota, duas coisas se produzem simultaneamente quando eles lan- gam seus objetos nesta rota: 0 objeto é ao mesmo tempo dado e manti- do. O que é mantido é a propriedade do objeto; o que é dado é a posse (submetida 4 condi¢ao de que o objeto seja utilizado apenas para ou- 140 © ENIGMA DO DOM tros dons). Portanto, nos dois extremos da cadeia temos realmente a presenga e a intervencao, conjuntas, acumuladas, de dois principios. Mas entre esses extremos, os dois princfpios, apesar de agirem, se se- param sem cessar. A posse do objeto é transferida de parceiro interme- diario a parceiro intermediario. Cada um o cede como dom e para uso como dom, sabendo ou esperando que um objeto venha ocupar o seu lugar. E nenhuma dessas pessoas intermedirias pode desviar 0 objeto para outros usos, trat4-lo como se fosse para ela um kitoum. E esta presenga indelével do proprietario da coisa na coisa que ele dé que é pensada nessas sociedades como a presenga permanente da pessoa na coisa, Em uma sociedade em que todas as relagoes so, em tiltima anilise, relagdes pessoais, em qug nao ha contratos escritos € em que todos os compromissos so publicos, a propriedade se apresenta necessariamente como um atributo das proprias pessoas e as relagoes de propriedade como relagées diretas ou indiretas de pessoa a pessoa. Voltando a férmula de Mauss, ela fealmente contém a solucéo do problema, mas esta nao € expressa de maneira clara, limpa, pois Mauss ainda nao havia compreendido completamente o modo como os dois prin- cipios se articulam. De nada lhe serve empilhar palavras, convocar e fazer desfilar sob os nossos olhos toda uma série de princfpios juridicos: 0 me- canismo do kula e 0 “género de propriedade” do objeto permanecem sem- pre parcialmente escondidos. Vamos reler a passagem em que Mauss se esforga para delimitar a relagao das pessoas com os objetos que trocam, e iremos perceber como a maior parte das palavras que af desfilam, das te lagGes jurfdicas sugeridas, é imprdpria e nao mostra claramente a solugao: E, portanto, realmente uma propriedade o que se tem sobre 0 presen- te recebido, mas é uma propriedade de um certo género [...] £ uma propriedade e uma posse, um penhor e uma coisa alugada, uma coisa vendida ¢ comprada e ao mesmo tempo registrada, mandatada € fideicometida. Pois ela s6 the é dada com a condigao de que vai usé-la : aaa me para um outro ou transmiti-la a um terceiro ‘parceiro distante’.’ 28Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 180. 141 MAURICE GODELIER Ora, a coisa dada no kula nao é nem vendida nem comprada, nem penhorada, nem alugada. Ela é a0 mesmo tempo “propriedade ¢ pos- se”, mas apenas para os dois parceiros “distantes” situados nos dois extremos da cadeia e que tém todas as chances de nunca se conhece- tem pessoalmente. Eles conhecem um do outro apenas o nome. Quan- to aos Parceiros intermediérios, a coisa s6 € recebida com a condigéo de que seja transmitida a um terceiro, e todos no kula sabem que a qualquer momento 0 doador inicial do objeto poder reclamé-lo, que- brando assim uma das rotas do kula. Claro, na opiniao dos observado- tes, ninguém o faz e nem tem interesse em fazé-lo. O que interessa as Pessoas nao € recuperar rapidamente o seu proprio kitoum, exceto em circunstancias excepcionais. Também nao é substituf-lo rapidamente porum kitoum da mesma categoria. E lancé-lo 0 mais longe possivel e deixé-lo circular 0 maior tempo possivel para que leve com ele o nome de seu doador original, para que o engrandeca e para que 0 objeto se carregue cada vez mais de vida, de “valor”, enriquecendo-se de todos os dons e de todas as dividas que sua circulagao engendra ou anula. Isso explica varios aspectos paradoxais, aos olhos de um europeu, dessas trocas. Frederick Damon mostrou que quando o proprietatio de um kitoum o oferece a seu primeiro parceiro, € o nome do parceiro que “sobe” e o seu que “desce”. Mas em seguida, quanto mais 0 objeto € oferecido e reoferecido, mais ele se afasta de seu proprietério de ori- gem e mais o nome deste tiltimo “cresce”, Finalmente, vemos que Mauss tinha raz4o ao aproximar 0 pot- latch, o kula e a circulagdo dos taonga entre os maoris. Sao realida- des sociolégicas muito diferentes, mas que, todavia, se assemelham em varios aspectos. No kula, com certeza (e por princfpio), nao exis- te retorno do objeto 4 origem, pois o objetivo desses dons é que um objeto de igual categoria, mas diferente, venha ocupar o seu lugar. Aqui, se 0 objeto nao volta a origem, nao € porque um espirito, seu ou de seu proprietério, 0 impede. O objeto kula nao é um taonga maori. No entanto, como este tiltimo, ele permanece ligado a seu proprietario de origem durante todo o tempo em que circula no hula. 142 © ENIGMA DO DOM £ por esta razao, alias, que o kula exige a presenca de pelo menos trés parceiros e que sua natureza sé se revela a partir do momento em que uma “terceira pessoa” intervém como intermedidria. Com efeito, assim que se introduz um terceiro, a dualidade das relagdes de propriedade e de posse que se exercem sobre um objeto kula torna- se manifesta. E por isso que Ranaipiri escolheu bem 0 seu exemplo. Mauss pressentiu que havia uma raz4o para fazé-lo, mas ela perma- neceu obscura para ele. Pois se houvesse apenas dois interessados na troca, face a face, ambos proprietarios de um kitoum que cada um desejaria trocar pelo kitoum do outro, estarfamos simplesthente diante de uma troca nao- agonfstica de dons equivalentes. Um kitoum de igual categoria viria ocupar o lugar de um outro kitoum, assim como uma mulher vem ocu- par o lugar de uma outra mulher nas trocas de irmas praticadas entre os baruyas. Sahlins j4 havia feito esta ‘observacio a propésito do hau. De fato, o que interessa as pessoas da regiaio massim quando praticam © kula nao € se encontrarem frente a frente para trocar bens equiva- lentes. O que elas querem é criar dividas, e dividas que durem o maior tempo possivel, a fim de acumular prestigio engrandecer um nome. Neste sentido, o kula € compardvel ao potlatch. Isto nos permite destacar a grande diferenca que existe entre a prtica de dons e contradons no-agonisticos e 0 kula ou 0 potlatch. No kula, quando um objeto de igual categoria e de valor equivalente vem ocupar o lugar do dom inicial, a divida é anulada. O contradom apaga a divida. Isso € completamente diferente, como vimos, com os dons n4o-agonisticos. Nesse caso, os contradons nao anulam os dons. O objeto nao é “devolvido”, ele € dado de novo. Os dons criam dfvi- das de longo prazo que, muitas vezes, ultrapassam a durago da vida dos doadores, e os contradons tém como motivo primeiro restaurar 0 equilibrio entre os parceiros, a equivaléncia de seus status — nao a anulacgio da divida. Por outro lado, no potlatch ou no kula, as dividas, mesmo que a circulagao dos objetos dure varios anos, s40 relativamen- te de curta duragdo. E os contradons equivalentes anulam as dividas. 143 MAURICE GODELIER Por isso é preciso recomegar e dar ou devolver mais para criar novas dividas, o que é 0 objetivo dessas trocas. Compreendemos agora por que dons e contradons ndo-agonisticos podem se produzir simultaneamente ou praticamente ao mesmo tem- po. E porque a divida nao é anulada pelo contradom. Ao contrério, no potlatch e no kula, porque um contradom equivalente anularia imedia- tamente a divida, as trocas s4o sempre separadas no tempo. Logo, é necessario deixar o tempo passar para acumular um contradom que possa criar novas dividas. Isso explica por que as pessoas das ilhas do Massim partem em expedigao de maos vazias. Elas sabem que coisas Ihes sero dadas 14 aonde esto indo. Mas elas também no levam nada para dar de volta imediatamente. Um ano mais tarde, voltario de maos cheias para, por sua vez, darem também. Mas hd um quarto aspecto do funcionamento do kula que foi muito bem destacado por Annette Weiner. O kala € um jogo que implica uma contradi¢éo entre o individuo ¢ o sistema global do kula na qual pene- tra e que € por ele animado. Para que um individuo “ganhe” nesse jogo, € preciso, como vimos, que ele possua um kitoum de grande valor : que receba um outro equivalente. Mas seu “ganho” nao esté af. Estd, antes de tudo, na reputago que ele ganha, mas também nos “presen. tes”, os “dons” suplementares que sua habilidade ao negociar angaria. Portanto, ele est também nos suplementos de objetos kula que seu sucesso lhe garante. Esse suplemento “material” nada mais é que o “saldo” de todos os dons suplementares que ele teve de fazer para se- duzir e de todos aqueles que the foram presenteados para seduzi-lo, o que significa que o sucesso de um individuo implica 0 insucesso de outro. Bem entendido, cada um daqueles que se langam na empresa estd animado pelo desejo e pela ilusao de que ser4 ele o ganhador. Mas ganhe ou fracasse um individuo, interrompa-se rapidamente ou dure Por muito tempo uma rota do kula, aos olhos dos protagonistas, tudo se passa como se 0 kula-ring nao fosse afetado por tais acidentes, pois ele continua a girar por si mesmo, sobre si mesmo, parecendo repro- duzir-se por si s6, como o mercado. 144 © ENIGMA DO DOM Podemos precisar agora o que representa a propriedade de um kitoum nessa sociedade. Trata-se de uma propriedade individual plena einteira, que se parece muito com aquilo que, em nosso sistema, cha- mamos de “propriedade privada”, pois, como vimos, 0 individuo pode dispor dela livremente. Ele pode vender tal objeto, trocd-lo por ou- tros, compensar uma morte, langd-lo no kula. Age-se sempre, porém, em um universo em que a sociedade se apresenta como a realidade primordial, uma totalidade que preexiste a cada um e orienta todos os gestos do individuo, pois ele se reproduz reproduzindo-a, Se o indivi- duo pode dispor de seu kitoum porque ele € sua propriedade pessoal, ele ndo pode dispor da terra do mesmo modo. Esta faz parte de uma outra categoria de bens inaliendveis, adueles que so comuns a todos os membros de um grupo — de parentesco, por exemplo — e sao, portanto, controlados por outros, além dele. A terra faz parte dos bens comuns inaliendveis que se deve guardane que nao se pode dar. O objeto kula € um bem pessoal inalienavel, do qual se guarda a propriedade até que um objeto equivalente venha substitui-lo, mas € um bem inaliendvel que se pode, ao mesmo tempo, guardar e dar. Em outras sociedades, a terra é, ela mesma, como objeto kula, um bem inaliendvel, do qual se guarda a propriedade (seja o proprietario um cla, uma comunidade aldea, uma tribo, o farad, o Estado...), mas do qual se pode ceder 0 uso. Mauss conhecia bem esta “regra de direi- toe de interesse” que distingue entre propriedade e posse de um bem endo ignorava que ela pode ser encontrada nos quatro cantos do mun- do e que permaneceu viva em muitas regides da Europa ocidental ou oriental até o fim do século XIX. Mauss, no entanto, descartou-a como solugdo demasiado facil para o enigma do dom dos objetos preciosos, porque nao dava conta das significagdes religiosas, das forgas escondi- das presentes nos objetos dados, em poucas palavras, do halo das cren- Gas que os penetram e Ihes dao sentido. Mauss tinha e nao tinha raz4o sobre este ponto. Nao tinha pois a distincao entre direito de propriedade e direito de uso basta para explicar que o proprietdrio de um objeto precioso esta sempre pre- 145 MAURICE GODELIER sente na coisa que dé e que esta, ou um equivalente, deve um dia voltar a ele para tornar-se outra vez propriedade sua, para reprodu- zi-la. Tinha raz4o porque uma regra de direito, qualquer que seja, nao pode explicar a natureza profunda das realidades sobre as quais se exerce. Ela pressup6e sua existéncia, nao a explica. E nao expli- ca, ela sozinha, por que se exerce aqui sobre a terra e 14 sobre con- chas que circulam, mas nio se exerce sobre outras conchas escondidas nos tesouros dos clas. Por que sobre os objetos preciosos, mas nao sobre os objetos sagrados e também nio sobre os objetos de valor que sdo vendidos, alienados definitivamente. Isso 0 direito nao é capaz de explicar. Os objetos de dom, os objetos preciosos encontram-se, portan- to, entre dois princfpios: a inalienabilidade dos objetos sagrados e a alienabilidade dos objetos comerciais. SAo ao mesmo tempo inalie- ndveis como os primeiros e aliendveis como os segundos. E isso, como veremos, porque eles funcionam ao mesmo tempo como subs- titutos dos objetos sagrados e como substitutos das pessoas huma- nas. S40 ao mesmo tempo objetos de poder como os primeiros e riquezas como os segundos. Nao é apenas, como disse Mauss, par- tindo de uma observac4o de bom senso, porque “nos damos quan- do os damos”. De fato, o que esta presente no objeto, com 0 proprietério, € todo o imagindrio de uma sociedade, de sua socie- dade. S40 todos os duplos imagindrios dos seres humanos, aos quais estas sociedades atribuiram (nado se pode dizer que emprestaram, pois estes duplos nunca podem tomar nada) os poderes de reprodu- zir a vida, de trazer sate, prosperidade ou os seus contrarios, mor- te, fome, extingao do grupo. Se o direito nao explica tudo, pois ainda falta explicar por que ele se exerce sobre aquilo em que se exerce, Mauss de certa forma acertou ao colocar suas duas questdes. Mas para respondé-las, con- forme vimos, ele produziu duas explicac6es, duas teorias que, jun- tas, nao formam exatamente um todo. Entre as duas subsiste um vazio que a palavra de Tamati Ranaipiri, o velho sdbio maori, nao preenchera. 146 © ENIGMA DO DOM Encerramos aqui com os dois grandes exemplos etnograficos de Mauss. Acrescentaremos, no entanto, um outro exemplo de trocas competitivas no interior da Nova Guiné, descobertas e analisadas por ‘Andrew Strathern mais de meio século depois de Malinowski e Mauss, com 0 objetivo de mostrar o quanto Mauss tinha raz4o ao supor que 0 trabalho dos etnélogos permitiria descobrir muitos outros fatos andlo- gos ao potlatch e ao kula, Trata-se do moka, um vasto sistema de tro- cas cerimoniais praticadas por um grande nimero de tribos da regiao de Hagen, no coragéo das terras altas da Nova Guiné. , Mas antes de deixar o kula, precisemos que a pessoa que, hoje em dia, controla esta instituigao na regiao do Massim no €é mais um homem da Nova Guiné, mas um europeu, Billy. Ha varios anos, Billy domina e ao mesmo tempo subverte o kula. De fato, este europeu compra conchas macigamente no sul da regiao do Massim, em Rossel Island, transporta-as de barco até sew! atelié para poli-las, usando mao- de-obra assalariada, e transformd-las em kitoum. Uma parte desses kitoum ele vende aos habitantes da ilha e aos turistas, mas alguns ele langa no kula, beneficiando-se de todos os dons suplementares que tradicionalmente acompanham a circulagao dos braceletes e colares. Seu objetivo nao é de modo algum aquele do kula tradicional, a bus- ca do renome, mas simplesmente a acumulagao de lucro, a obtengio de riqueza””... O moka O moka € um sistema de trocas cerimoniais, competitivas, que as- socia e opde um conjunto de tribos cujos territérios cercam ° mon- te Hagen. A populagéo desses grupos eleva-se a mais de cem mil pessoas que falam linguas muito préximas. A andlise do moka deve- Frederick Damon, “Representation and Experience in Kula and Western Exchange Spheres (Or, Billy)”, Research in Economic Anthropology, n° 14, 1993, p. 235-254. 147 MAURICE GODELIER se a Andrew Strathern, que, desde 1960, observou-o e seguiu seus desenvolvimentos recentes. Suas pesquisas foram conduzidas no seio de trés tribos, Kawelka, Kipuka e Minembi, de lingua melpa, es- treitamente ligadas por casamentos reciprocos e por trocas moka. Uma tribo é, 14, um conjunto de clas que partilham a idéia (0 mito) de que todos tm a mesma origem. Trata-se de uma unidade social que age em comum na guerra e na organizago das trocas moka e das gran- des distribuicdes cerimoniais de carne de porco. O efetivo de uma tribo € de oitocentas a mil pessoas. Os clas s40 grupos territoriais submeti- dos a autoridade dos Big Men, individuos importantes que desempe- nham um papel eminente nas trocas moka, nas aliangas matrimoniais, no comércio e, outrora, também nas guerras. A economia repousa na produgio de batatas-doces e de porcos, aos quais junta-se, depois da chegada dos europeus, toda uma série de culturas comerciais, entre as quais o café. Antes da chegada dos europeus, 0 moka consistia em dons de por- cos vivos e grandes conchas (gold-lip pearl-shells) que eram trocadas Por porcos ou outros artigos de troca junto as tribos que viviam ao sul, na diregao da costa do golfo de Papua. Havia alguns moka que utiliza- vam apenas conchas e outros que combinavam as duas formas de ri- queza, porcos e conchas. A diferenga entre os porcos e as conchas era que os primeiros eram produzidos nas unidades domésticas, e as con- chas era preciso consegui-las trocando por um equivalente, que pode- ria ser um porco. Antes da chegada dos europeus, um porco valia duas conchas, em média. Pode-se distinguir varios tipos de moka, desde os dons e con- tradons entre dois parceiros até as prestacdes em grande escala opondo um cla a outro. Mas existem formas intermedidrias”°. Por exemplo, um Big Man convida, sozinho, um grande nimero de seus parceiros e oferece-lhes, publicamente, alguns dons. Ou entao varios homens de B0Andrew Strathern, The Rope of Moka: Big Men and Cerimonial Exchange in Mount-Hagen, New Guinea, Cambridge University Press, 1971, cap. 5. 148 © ENIGMA DO DOM um mesmo cla convidam, ao mesmo tempo, todos os parceiros que tém em um determinado numero de clas com os quais fazem moka. Qu, ainda, todos os homens de um cla fazem moka com todos os homens de um outro cla. Muitas vezes, esse tipo de moka tinha lugar entre grupos relativamente hostis, isto é, cujas relagdes se alternavam entre a alianca e a guerra. Mas nao havia moka com os inimigos irredutiveis. Todas essas formas de moka, feitas por um individuo ou por um grupo, implicavam também dons feitos para “ajudé-lo” a se langar no moka. Em geral, um homem fazia apelo a seus aliados e a seus parentes maternais. Mas podia contar também com os homens do proprio cla e com os amigos que tivesse em outros clas. Assim, cada parceiro reunia em suas maos (antes de d4-los) dois tipos de rique- za: porcos que sua prépria “familia”, havia produzido e porcos da- dos para ajudé-lo e que, um dia, ele teria de repor. Andrew Strathern batizou esses dois métodos “producao” e “finanga”, sem dar a pala- vra “finanga” uma conotagao capitalista”'. Aqui, para acumular 0 necessdrio para se lancar no moka, conta-se com os outros, jaquea produgo propria nao seria suficiente. Os Big Men, no entanto, es- forcam-se sempre para aumentar sua produgio, para acumular so- zinhos uma grande parte de seus dons. Eles o fazem tendo varias esposas e atraindo homens de status inferior, por exemplo, érfaos ou refugiados acolhidos por um cla ao fim de uma guerra infeliz que os expulsou de seu territério. Toda esta m4o-de-obra é neces- sria porque a multiplicagio dos porcos sé é possivel aumentando a produgao de batata-doce. Os porcos e os homens estao, assim, em concorréncia pelos mesmos recursos, cuja produg’o exige um gran- de dispéndio de trabalho. Portanto, existe nessas sociedades a 2ifd,, “Finance and Production: Two Strategies in New Guinea Highlands Exchange Systems”, Oceania, n. 40, 1969, p. 42-67; “Finance and Production Revisited”, in G. Dalton (ed.), Research in Economic Anthropology, JAI Press, 1978. 149 MAURICE GODELIER possibilidade de exploracdo das mulheres pelos homens e dos ho- mens dependentes pelos Big Men”? Mas trés coisas s4o garantidas a um individuo (um homem) pelo fato de pertencer a um cla. Ele receberé uma ajuda para se casar, ou seja, os elementos de um bridewealth; sera protegido e vingado por seu cl em caso de agressio por membros de outros clas; enfim e sobretudo, tem direito a terra de seu cla para alimentar a familia e de- senvolver suas iniciativas no moka e na venda de culturas comerciais etc. Esses sistemas seriam evidentemente ameagados por uma expan- so demogrdfica demasiado intensa ou um alargamento desmesurado das culturas comerciais etc. Mas em que consiste precisamente uma troca moka”? Tomemos oexemplo mais simples, uma transagao entre dois parceiros apenas, X e Y, em que as conchas so 0 principal objeto do dom. Em um primeiro momento, X d4 a Y duas conchas e um porco, este tiltimo equivalente a duas pearl-shells. As duas primeiras pearl-shells sao chamadas “pata dianteira” e “pata traseira”, o que exprime sua equivaléncia com um porco. E o préprio porco é chamado “porco-passaro”, pois espera-se que este dom va pro- vocar um outro dom em retorno, quando os parceiros dangarao no terreno cerimonial, paramentados com todas as suas plumas de aves- do-parafso. Tal dom (que equivale, portanto, a quatro pearl-shells) é, como se diz, o dom “que da inicio” ao moka. O dom em retorno constitui o moka, com a condig&o de que ultra- passe o dom inicial. Vamos supor que Y, depois do tempo necessdrio para juntar oito pearl-shells, envia-as para X em retribui¢ao. Ele pode mandar também apenas quatro pearl-shells, mas nesse caso diz-se que ele s6 pagou suas dividas e que nao houve moka. O que se passa quando 2214., “Tambu and Kina; “Profit”, Exploitation and Reciprocity in Two New Guinea Exchange Systems”, Mankind, n. 11, 1978, p. 253-264. 231d, “By Toil or by Guile? The Use of Coils and Crescent by Tolai and Hagen Big Men”, Journal de la Société des océanistes, XXXI (49), 1975, p. 363-378. 150 © ENIGMA DO DOM acontece o moka? O primeiro parceiro, X, fica “mais rico” de quatro conchas, mas Y fica “maior” por ter dado oito pearl-shells. Logo, nao se pode ficar por af. Uma nova seqiiéncia deve comegar, na qual Y deve tomar a iniciativa. Por sua vez, ele envia quatro pearl-shells a X, que mais tarde lhe fara dom de oito delas. Se considerarmos estas duas se- qiiéncias em seu termo, Xe Y deram e receberam doze pearl-shells. O que significa que, com o tempo € alternando o sentido a cada presta- Go, as trocas tenderiam ao equilfbrio. Primeira seqiiéncia xX ——> 4shells —~> Y Y ——> 8shells _—~> xX Segunda sequéncia Y — > 4 shells —> x xX ——~> 8 shells — > Y Mas isso no interessa as pessoas, pois o que elas buscam é demons- trar sua generosidade, ganhar prestigio e ter parceiros, manté-los pelo maior tempo possivel, de sorte que o sistema encerra uma tendéncia interna a expansdo. O crescimento dos dons, no entanto, nao € expo- nencial. Pois se a diferenga dos dons na primeira seqiiéncia entre Xe Y de quatro unidades, recomega-se a partir dessa diferenga, isto é, qua- tro unidades, as quais acrescenta-se um certo ntimero de outras. Logo, ha freios para a expans4o. De fato, o 4pice para um Big Man é dar o maximo possivel sem exigir retorno. Desse Angulo, o moka é muito semelhante ao potlatch: © motivo dos parceiros do moka nao é fazer “lucro”, mas aumentar os dons e criar dividas. Assim, os porcos passam de mao em mo, ctiando dividas e reencontrando outras, que eles anulam. Mas esses porcos que circulam tém duas origens, como vimos: ou provém “da familia” ou foram dados para ajudar. De maneira que, sobre este ponto, € facil para nds comparar 0 moka e 0 kula porque, embora n4o se possa identificar um porco da familia com um kitoum, é claro 151 MAURICE GODELIER que tanto um como 0 outro sdo originalmente uma propriedade que nao est sujeita a nenhuma divida, mas que vai crid-las em sua circu- laga0”4, 1 porco da familia 1 porco moka 1 porco moka A _—_ B —~+ c —> oD A << B

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