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Copyright © 2004, Néstor Garcia Canclint zada segunda o Acorda Oxcogrfio da Lingua Portugussa de 1990, em 2009, que entrou em vigor no Bs Ficha catalogrfica elaborada pela Divisgo de Processamento Técnico — SIBLIUER) al. 3. Globalizagio. DD 3064 cedigso ~ 2007 3¥edigio 2009 Revisio Jofo Sexe Camara Josere Babo Capa Ana C Projet grifca Alice Brito Eelitanagd eletinice ‘Ana Carrer Universidade Federal do Rio de Janeiro Praia Vermelha e CCMN: (21) 2295-4095 spl wwrw.editorafi.br SUMARIO AGRADECIMENTOS inTRoDUGAO Teorias da interculturalidade ¢ fracassos politicos APRS ada nas suas definigoes Labirintos do sentido idades: camisa e pele Subscansivo ou adjetivo? 2. Diferentes, desiguais ¢ desconectados dda desigualdade A sociologia pé ‘Tiés modelos pi 3, Sobre como Clifford Geertz-e Pierre Bourdieu 20 ex de, 0 shopping ¢ os meios de comunicagio Cliford Geerez: do conhecimento local 20 intercultural Pierre Bourdicu: 0 socisiogo na celevisio HA um lugar pera estudar a interculturalidade? 4, A globalizagio da antropologia depois do pés-modernismo Trabalho de eampo ou reérica extual © antropélogo como ex Da andise textual erltica socioinsticucional © que significa “i a campo”, quando 0 temos aqui 15 2. DIFERENTES, DESIGUAIS E DESCONECTADOS Uma teoria consistente da interculeuralidade deve encontrar 2 forma de trabalhar conjuntamente os trés processos pelos quais esta se trama: as diferencas, as desigualdades e a desconexio. No entanto, a histdria das cigncias sociais nos acostumou a claborat separadamente esses t8s objetos de estudo. As teorias do étnico ¢ do nacional sio, em geral, teorias das diferengas. Por outro lado, 0 marxismo ¢ outras correntes macrossocic sas (tais como as que se ocupam do imperialismo ¢ da dependéncia) dedicam-se & desigualdade. Em alguns autores, encontram-se combinagées de ambos os enfoques, como certos enfoques do nacional em estudos sobre o imperialismo ou contrib & compreensio do capi mo em especialistas da questéo indigena. Quanto aos estudos s0- bre conectividade e desconexo, concentram-se nos campos comu- nicacional e informdtico, com escasso impacto nas teotias socio- culturais. ‘Vou deter-me, primeiro, numa das teorizagées da diferenga: 4 dos estudos éinicos. Em seguida, retomarei a articulago de dife- rengas ¢ desigualdades proposta por Pierre Bourdieu ¢ modifica- da por autores que trabalharam com ele e depois desenvolveram perspectivas distintas, como Claude Grignon, Jean-Claude Passeron € Luc Boltanski. Sinto-me atraido pela reformulagio que esses autores vieram a construir sobre os temas citados nas sociedades nacionais e pelas suas tentativas de abrir o horizonte nacional num 56 mapas tempo em que a interculturalidade se mundializa. A cont de Luc Boltanski e Eve Chiapello permite valor mente, a partir de uma teoria critica do ca que significam as formas atuais de conexio-desconexio. © patriménio intercultural dos diferentes Quero evitar trés maneiras frequentes de falar da diferenca. (O primeiro risco é comesar a andlise a partir de uma teoria da desi- gualdade, de modo que se ocultem os processos de diferenciagio que nio derivam da distribuicéo desigual dos recursos em cada so- ciedade, Outra tendéncia é legitimar unicamente aqueles enfoques surgidos de uma experiéncia particular, que costuma implicar que 36 0s chicanos podem estudar sua condigio, ou s6 0s indigenas a sua, ou sé as mulheres as questées de género, ou, entao, quem adere icamente a estas perspectivas e as suas reivindicacées. A terceira linha € a que propée explicagées teéricas da diferenga ou — 0 que cos- tuma ser equivalente—conceituagdes resultantes de uma experiéncia histérica que, ao nio se deixarem desafiar pelas mudangas ou por aqueles que veem a alteridade a partir do lado oposto, correm 0 tisco de dogmatizar-se. Naturalmente, nfo pretendo encontrar um observatéri vo, mas achar pontos de interse¢o nos quais os cruzamentos de perspectivas controlem as refragées de cada posicio. Por isso, parti- rei de duas reuniées internacionais em que interagiram variados modos de conccber o que é diferenca indigena na América Latina. 1, Fui convidado a par celebrado na Cidade do Mé ideres indigenas de 15 paises dirios com suas causas e dedicados a estudé-las, bem como repre- sentantes de organizag6es sociais nos reunimos para explorar “o que cém em comum ¢ as formas de se itmanarem’, “abrir um didlogo com outros sctores da sociedade ¢ povos ‘indios’ de outros conti- nentes”. 1 do coléquio América profienda, 0 de 6 a 9 de dezembro de 2003.. 1o-americanos, intelectuais soli- DIFERENTES, DESIGUAIS E DESCONECTADOS 87 “Quem somos?” — perguntou-se na primeira sessio, Em que pese a vontade de convergéncia, prevaleceram as dificuldades de achar um termo unificador. A cor da pele, a linguagem, o tertitério, a religiio, nada disso serve para se identificarem em conjunto, “So- ¥s celebragées ligadas aos calenditios agricolas*. Quando se buscou formular “uma matriz civilizatria” que abarque todo 0 nente, varios argumentaram a necessidade de Ihe dar uma am- ude capaz de incluir indios e mestigos. Alguns preferiram definir acondigio comum a partir da perspectiva gerada pela descolonizacio e pelos processos atuais de luta social ¢ cultural. Mas o que é mais decisivo: a desigualdade social ou as diferengas culturais? Defini- rem-se pelos referentes aos quais se opéem ou pelos “ambitos de ou movimentos éxnico-sociais? A resposta nfo éa mesma — disse-se ~ na Bolivia, on- dea indianidade é quase sindnimo de nagio, até mesmo nos meios urbanos, ou no México, sociedade com densa mestigagem. Existe uma problemética da desigualdade que se manifesta, sobretudo, como desigualdade socioecondmica. Eexiste uma proble- mitica da diferenga, visivel principalmente nas préticas culeurais. Os atores dos movimentos indigenas sabem que a desigualdade tem uma dimensio cultural, ¢ os mais informados sobre 2 cons das diferencas sabem que esta reside, mais do que nas caracteristicas genéticas ou culturais essencializadas (lingua, costumes herdados ¢ imutdveis), em processos histéricos de configuracio social, No en- ‘na medida em que a desigualdade socioecondmica se hes afi- tos étnicos tendem a concentrar-se nas diferengas culturais ou até mesmo genéticas. Desse modo, as diferengas culeurais perdem sua dimensio socio-histérica, deixam de ser vistas como caracteristicas formadas em tapas nas quais a desigualdade operou de maneiras distintas e, portanto, suscetiveis de mudar em processos fururos. Quem supée que sua maior for- taleza reside nas diferencas culturais tende a absolucizé-las. sa ‘A absolutizagéo apresenta-se em dois movimentos. Por uma parte, distinguem-se como exclusivos dos povos indigenas suas lin- aguas e certos “valores”: a reciprocidade das relacSes comunitérias, 6 trabalho néo remunerado, sistemas normativos préprios, relagdes sociais governadas por regimes de autoridade, costumes alimenta- res originados do enraizamento no territério tradicionalmente ocu- pado por cada grupo, Ao mesmo tempo, definem-se essas caracte- risticas como inalterdveis e se age para dar-lhes continuidade. Mas 2 indignagio com que séo defendidas essas caracteristicas revela que se enfrentam mudancas desfavoréveis para essa definigéo da diferenga. Os setores mais abertos as experiéncias de relativizagéo que a histéria Ihes vem mostrando reconhecem que nio é facil sustentar afirmagées como a de que “somos o povo do milho” ou a de que as relagdes sociais séo sempre comunitirias ¢ a totalidade dos seus costumes e crengas ¢ propria. Mas tendem a subtrair importancia 4s transformagbes produzidas pela colonizagao e pela modernizacio, izadores por interacio com outras assim como aos processos culturas, que ocorrem nas migragbes, no consumo de bens indus- trializados e na adogéo voluntéria de formas de produzir que ate- nuam suas diferengas tradicionais. Serd que, realmente, a chave da sua forca como povos indigenas reside nas celebradas caracteristicas tradicionais? A sessio da: “O que nos une, o que temos em comum?” veio a se concentrar na enumeragio das citadas caracteristicas distintivas, mas a manci- ra pela qual se desenvolveu o debate mostrava uma complexidade néo recolhida no discurso expl tradicionais” em culturas tdo distintas, como as mesoamericanas, as andinas ¢ tantas outras existentes nas Américas. As diferencas en- cados que tém em cada uma os elementos que se dizem comparti- Ihados, como a insergio no tertitério, as relagSes comuni pesconrerapos 59 concep¢ées do trabalho e da familia e os modos complexos de sim- bolizar esses processos sociais. Por isso, resistem a ser chamados de Indios, denominacéo que julgam resultado de imposigdo externa, co- lonial ou moderna. Em que lingua se nomeiam ¢ argumentam as dificuldades de fazer coincidir os distintos significados da relagio com a terrae com 0 trabalho? Num espanhol com a insergio de frases em puré- pecha, em owzil, em aimaré. Empregam palavras néo coloquiais do espanhol, com alta compl como “agrocentrismo” ou “multiculturalidade”, mostrando seu do- io de discusses que transcendem suas culturas. Utilizam referéncias externas para afetir os costumes préprios, mocritico, que esta demonstrando seus vicis por toda parte, temos nossas préprias formas de governo.” “Numa época neoliberal, que ‘mercantiliza tudo, nosso modo de prover as nossas necessidades & © tequio ou a faena, ow seja, 0 trabalho néo remuncrado.” ‘Vistios investigadores e politicos criticam essa oposido taxativa 20 ocidental ou moderno. Observam que a possbilidade de unifica- io de linguas ou modos de vida produz-se a0 se comunicarem em ila que, por isso, nio é s6 “a dos dominadores”, Diz-se também que as relagbes dentro dos grupos indigenas sio de reci- procidade e de hierarquia, com dominagio dos homens sobre as mu- Iheres, dos anciaos sobre os igiosos, dos que se aproy preferenciais com os mestigos ou os brancos. Lembra-se que a domi- nagio trouxe pestes ¢ também ant rens, dos catélicos sobre outros grupos iaram de mais terras ou tém relacées icos e vacinas, que muitos ‘movimentos indfgenas buscam ser mais bem atendidos por hospi- tais modernos, juizes e politicos do “sistema democritico”, bem como pelas instituig6es internacionais de direitos humanos ¢ as ONGs. Em suma, as praticas dos povos origindrios revelam quantas srengas culturais, em vez de se afirmarem como abso- 60. lutas, inserem-se em sistemas nacionais ¢ transnacionais de tro- cas, para cortigir a desigualdade social. No meu modo de ver, demonstrar a falta de coincidéncia en- tre o pensamento indianisca ou etnicista e suas praticas efetivas néo 0 melhor ponto de partida para tratar desses desencontros entre a agenda da diferenga e a agenda da desigualdade. Prefiro concen- trar-me na demanda étnico-politica dos povos indigenas, que dese- jam ser reconhecidos nas suas diferencas e viver em condigdes me- nos desiguais. A pergunta, mais propriamente, é como converter em fortaleza esse desencontro entre afirmacio da diferenga ¢ impug- nagées & desigualdade. Os comportamentos ¢ 05 discursos dos povos indios levam a revisar a passagem da cultura ao cultural, examinada no capitulo an- icas, comprovamos 2 utilidade da terior. Nas confrontagées po cultura substantivada como recurso estratégico para sustentar rei- vindicagdes. A teconceituacio no sentido do cultural, como adjetivo, iramnente seu uso substantivado; continua a ter sen- aio sub: tido para os atores sociais falar da sua cultura, aimard ou zapoteca, em alguns casos para diferenciar-se da cultura nacional; brasileira ou mexicana, se for preciso efetuar a diferenciagto em face de es- s. Em distintas escalas, o adjetivo sofisti- a tensfio entre 0 trangeiros ou em outro ca ou entrecorta 0 sei proprio ¢ o alheio, néo o préprio isoladamente, configura os cené- tos de identificagio e atuagéo. Nesse sentido, proponho considerar também a interculturalidade como pacrim: Acolho a descrigéo daquilo que vi neste coléquio ¢ em outros semelhantes, Aceito a pergunta que condusiu as sess6es: 0 que te- mos em comum? Sem diivida, o territério, mas também redes co- municacionais, como a internet, por meio da qual se convocou essa reuniio, organizou-se uma série de aspectos priticos € conceituais entre grupos que vivem em distintos paises, a mil quilomettos de distancia. DIFERENTES, DESIGUAIS E DESCONEETADOS or ‘Tem também em comum o espanhol, ainda que entremeado com constantes expresses nas suas linguas. Ao fazer esse movimento volta, mostram que compartilham -além do espanhol - 0 bi- iguismo e também o trilinguismo, no caso daqueles que conhecem 6 inglés. Coincidem na experiéncia de circular entre as matrizes culeurais diversas que essas linguas representam, ‘Também compartilham relatos, mitos, dangas ¢ festas, mas no como repertérios embalsamados, Alguns desses elementos pro- ‘vém das suas culturas pré-coloniais e mostram semelhangas parciais porque claboram, de andlogas maneiras simbélicas, o modo de cul- tivar a terra, relacionar-se com a natureza e organizar-se como fami- lias e povos com esses fins. Outras crencas, dancas estas coincidem porque foram impostas durante a colonizago pelos espanhiis e di- ferem segundo os modos pelos quais cada povo se apropriow da ce- lebracio da Virgem ou da danga de mouros ¢ cristéos, para repre- sentar no mais essa luta (0 que os mouros tém a fazer aqui?), mas sim a dos nativos contra os espanhéis. Também diferem segundo as operagées de reinterpretacéo com que atualizaram esse legado 20 longo do século XX. Compartilham, também, a mescla de recursos tradicionais ¢ modernos para atender &s necessidades de satide, de comunicagio local, nacional e global, inclusive para as tarefas mais tradicionais de cultivar a terra 6u adaptar-se as cidades, fazer remessas de dinhei- ro ¢ mensagens de um pais a outro. ‘Ademais, compartilham o habito de dar importancia&srelagbes de reciprocidade e confianga, mesmo em sociedades — como a maio- ria das sociedades indigenas ~ intensamente articuladas com a eco- ta. Ou seja, ndo s6 coincidem nas relacdes de recipro- ria eem sistemas normativos que garantem ¢ regulam seu funcionamento, mas sobretudo na experiéncia de fazer coexistit interagdes comunitétias ¢ intercimbios mercantis. Consequente- mente, aproxima-os o fato de viver em dois sistemas de governo: o Aras 0 das “autoridades” (que nao expressam unicamente reciprocidade comunitéria) ¢ das relagdes nacionais ¢ internacionais de poder (que nio sio s6 democriticas ¢ abstratas). Poderia descrever varias situagées, na reunido, nas quais essas sridizando-se. Por exem- experiéncias compartilhadas apareceram plo, quando um lider quichua explicou que, “antes de tomar égua, temos de dar agua & nossa mie terra’: disse-o enquanto erguia uma (também havia garrafas de Coca-Cola e gua mine- inclinando-a para mostrar como se deveria fazer. Ao ipe Quispe, o lider aimard, tinha uma sacola plistica com damente em todos os cenatios. Explica Felipe Quispe, lider do mo- vimento indfgena Pachakutel: “Quando venho aqui, nfo posso usar nem o sombreiro nem a roupa que uso na minha comunidades néo ime permitem”, Pode-se ouvir isso como uma proibigéo ou uma ri- de hierarquizada e — por que nio? — como evidéncia de fle- lade, disposicéo de vestir-se de modos diversos, segundo se xi vvivam cenérios de pertencimento ou de intercimbio. ‘Onde reside, entio, a fortaleza? Nao vejo vantagem em bus- ch-la.e destacé-la 86 nas caracterfsticas diferenciais de oposigdo. Néo ia assim, como autossegregacio, a politica desq) iscriminatéria dos dominadores, que desvalorizam as se reprodt: cadorae ferencas? , Guillermo Bonfil ~ cujo lo deste encontro -, também O autor mais citado nesta reut livro México profiando inspirou formulou essas perguntas na sua tiltima conferéncia e no seu dlti- ‘mo attigo, pouco antes de morrer, em julho de 1991. Quando pro- ina, da Cidade do éxico, a conferéncia “Desafios & antropologia na sociedade con- comegou retomando a visio clissica segundo a qual ira tarefa dessa disciplina deveria ser “documentar o estado atual” das caracteristicas “que no correspondem a um modelo de sociedade moderna que esté se implantando”, “resgatar pelo menos © testemunho de formas de vida, de experiéncias humanas, de ros- tos culturais da humanidade, de projetos ger que sio dife- rentes do projeto que se tem tratado de propor como homogénco ¢ como hegeménico” (Bonfil, 1991, p. 80). A primeira reagio era semelhante & da maioria dos antropélogos, ou scja, exaltar 0 tradi- -lo do moderno, com o esquema binério, um tanto » que organizou seu tiltimo livro: a diviséo taxativa en- tre 0 México profundo ¢ 0 México imagindtio (ibid., p. 198). ‘Mas, cambém sensivel i variadas formas pelas quais os grupos se apropriam do moderno, evocou 0 uso de computadores pelos jovens mixes para recolher suas tradig6es orais ¢ recuperar sua sa- bedoria antiga com tecnologia avancada. Esse exemplo mostra — dizia-nos — que as inovagées modernas nio desvirtuam fatalmente as culturas tradicionais, mas podem reforcé-las. Se a antropologia se dedicasse mais, segundo Bonfil, a conhecer como os oromis do vale do Mezquital interpretam as mensagens da televisio, ou como grupos populares urbanos decodificam a informagéo estrangei- ra que recebem diariamente, poderiamos ter uma visio menos este- reotipada e alarmada da globalizagio. Desse modo, depois de adver- -nos contra as tendéncias homogeneizadoras, prevenia sobre 0 que a modernidade s6 uniformiza. ivro México profindo, Bonfil pedia que se ctiassem novas ferramentas “para fazer antropol iado transnacional, nao se- undo os resultados que o transnacional produz nas comunidades {que estamos acostumados a estudar, mas como fenémeno em si mes- ‘mo. Por isso, no seu iiltimo artigo, dedicado a0 Tratado de Livre Comércio (TLC) entre 0 México, os Estados Unidos ¢ o Canada, que comecava a ser negociado, sustentou que 0 México é muito oa mais do que suas questées indigenas ¢ que no mundo existem outros movimentos, além das culturas locais, que merecem atengio. Demonstrava que a antropologia pode dizer sobre esses campos, {que alguns supdem estranho a sua tradicio, algo que nao cabe em outras disciplinas. Naquele artigo, que antecipou as consequéncias da maior integragio com os Estados Unidos que o TLC, vigente a partir de 1994, trouxe para o México, jzava a passagem da modernida- de pés-revoluciondtia, na qual se podia ser diferente, a uma trama Deide a década de 1920, definiu-se uma ideolo- gia nacionalista que foi bandeira dos governos da Revolugio. Muitas geragées de mexicanos aprende- ia nacional era um valor que me- recia qualquer sacrificio; por exemplo, que as na-- cionalizagées do petréleo, das ferrovias, da energia clétrica e, depois, dos bancos eram marcos histéricos ‘que reafirmavam nossa soberania nacional; que 0 rio Fundamental para distribuir a terra era dé-laa quem trabalhasse, nfo a quem a fizesse produzir com ‘maior ganho econémico. Também aprendemos uma certa visio, uma imagem do pals aque se resumia na fr mos que a sober: falar em Deus, também nos quiseram laicos, par- tidérios da separasdo absoluta entre Igrejae Estado, daqucla nos assuntos que sio compecéncia deste, ¢ que sio muitos. Aprendemos a ver a fronteira norte como uma linha que nos separa, porque éramos ¢ (querfamos continuar a ser diferentes. De um modo ou de o ‘que ponto esses pi sio compativeis com 0 projeto para dar rumo o pais? (Bonfil, 1991) aprendemos tudo isérico escolhido Naquele texto de 1991, ao registrar as mudangas tadicais em relagio ao territério, Bonfil colocava a alternativa nfo tanto na opo- sigéo frontal globalizacéo, a partir de uma vida comunitétia orga- nizada sobre o amor terra, mas na democratizagio das relag6es so- ciais de desigualdade. aurossuficiéncia, Obedece, pois, a uma légica da pro- dusio que é radicalmente oposta & légica que privi- legia 0 mercado. A contradigéo nio é nova (veja-se ara 0 campo, empe- smerciais” em detri- essa contradicéo se acentua e se toma mais ¢ irredutivel. E néo é sé um problema de orienta- fo do crédito: atinge diretamente assuntos como a forma de posse da terra (0 gjido € as terras co- munais frente & propriedade privada), a organiza- 0 do trabalho ¢, afinal de contas, as préprias ba- ses da vida rural, Nao ha razdo para escandalizar-se com a mudanga; 2 questio reside em quem decide a mudanga ¢ com que razdes: qual é 0 peso da opi- nio real dos camponeses acerca das mudangas que se exigitio deles? Quais deles, « como, vio decidir se a opgio favorivel & a especializagio da produgio agricola em cultivos comerciais ou, pelo contrétio, 4 diversificagio orientada para a aurossufci alimentar? (Ibi Para retomar outro autor, Miguel Bartolomé — que num livro ‘mais recente sistematiza os estudos sobre os povos indigenas-, con- cordo com ele sobre o fato de que as teorias do desenvolvimento, desde aquelas que formaram as nagées modernas até os desenvol- vimentismos, equivocaram-se ao subordinar a diferenca & desigual- dade ¢ ao acreditar que, cancelando a primeira, podia superar-se 65 a segunda, £ 0 que também pensam muitos indigenas, que es- condem sua diferenga como tética contra a discriminagéo. Mas no se cortige o erro unicamente afirmando a diferensa. Bartolomé, tal como outros autores atualizados sobre o carter imaginado, construi- do ¢ varidvel das identidades, aceita que as formas culeurais, assim como as nogbes idesis que as refletem, transformam-se com o tempo; 0 que pet rmanece sio os campos socias alternativos que cons- troem, Entio, o processo de configuragéo da diver- sidade néo nos remete a identidades essenciais que A vigncia de espagos s0- ites tendem a se manter. devam ser preservac ciais diferenciados (Bartolomé, 1997, p. 191-195) Isto vale para virios milhées de indigenas ainda situados nos seus ica a outros milhdes, que tiveram de migrar ou desejaram novos horizontes (urbanos, em ou- «ros paises) e mudaram suas maneitas de pertences identificar-se ¢ enfrentar a opressio ou a adversidade. E um processo amplo, mas aque agora se acirra e eseende devido a0 fracasso social das politicas de desenvolvimento e & radical desnacionalizagéo das economias latino-americanas — mais do que como consequéncia das politicas nacionalistas ou desenvolvimentistas. Os indigenas nao sio diferen- tes apenas pela sua condigao étnica, mas também porque a reestrutu- ragio neoliberal dos mercados agrava sua desigualdade e exclusio. Sabemos em quantos casos sua discriminagéo érnica adota formas comuns a outras condigées de vulnerabilidade: sio desempregados, pobres, migrantes sem documentos, homeles, desconectados. Para milhées, 0 problema no é manter “campos socias aternativos”, mas ser incluidos, chegar a se conectarem, sem que isto atropele sua diferenga nem os condene & desigualdade, Em suma, ser cidadéos em sentido intercultural. Os estudos recentes sobre as condigées socioculturais ¢ as demandas politicas dos povos indigenas mostram que muitos representantes da chamada América profunda estéo interessados na modernizagio. Nao s6 enfrentam algumas das suas injusticas para afirmar sua diferenca; também querem aproptiar-se de bens modernos ¢ reutilizé-los a fim de corrigir a desigualdade. 2. O segundo encontro ao qual quero me refetir foi o progra- mado pela Organizagéo de Estados Ibero-Americanos, com um se- mindrio na Cidade do México, em janeiro de 2002, ¢ outro no Rio de Janeiro, em margo do mesmo ano, a fim de formular um diagnés- tico e propostas para o desenvolvimento cultural da regido. Duas ‘mesas de trabalho, formadas por lideres de movimentos sociais, cientistas egestores culturais, dedicaram-se is “raizes’, uma tratando de estabelecer as perspectivas das culeuras indigenas, a outra das culturas afto-americanas na América Ibética, Nao foram os tinicos lugares em que se tratou da situacio desses grupos, porque suas di- ferencas e desigualdades também emergiram nas mesas dedicadas a “migragéo, cultura ¢ cidadania’, “patriménio cultural, turismo e desenvolvimento”, € cultura’. ‘Também nesse caso, houve tentativas essencialistas de definir ‘ indigena a partir da sua cosmovisio, acompanhadas por uma con- cepsio cética sobre qualquer modelo de Estado pluricultural. Ao ido das politicas integradoras e discriminadoras em virios paises (Brasil, Bolivia, Guatemala e México), observou-se que os avangos dos povos indigenas haviam ocor camente em éreas culturais (educagéo bilingue, legitimagio de com- portamentos simbélicos), mas, quanto a territérios ¢ bens mate- tials, o que mais se acumulou foram perdas. Diante da pergunta de como acabar com esse processo dual, registrou-se 0 fracasso das lutas armadas destinadas a destruir os Estados nacionais, como aconteceu na Guatemala, ¢, por outra parte, as dificuldades de obter conquistas por vias priticas, constatével nos demais com alta populacio indigena. Apesar desses resultados desalenta- dores, sustentou-se que é dificil conceber solugées unicamente a lo quase uni- 67 partir da afirmagio antiocidental das diferengas ¢ da construgéo de Estados {ndios auténomos. As saidas situam-se, também, em aliangas com os grupos mesticos ou “ocidentais” que estio dis- cutindo a democratizagio dos Estados nacionais. Uma visio tade uma oposigio taxativa de cosmovis6es indigenas que pudessem se afirmar sozinhas frente a territérios ¢a recursos materiais controla- dos de forma heternoma. As cosmovisbes se realizar e reinterpretam em meio & “légica descontinua” que rege a administragao dos espa- os. Existem “territérios continuos, descontinuos ¢ compartilha- dos’. A necessidade dos Estados e dos préprios povos indios de circu- lar por essas diversas modulagées do espago torna impossivel pensar cesses povos como “camponeses pobres habituados a viver em regi6es indspitas, que se comprazem com 0 isolamento ea nfo comunicagio, cespecializados na agricultura de subsisténcia, produtores de artesana- to” (Del Val, 2002, p. 69). Se néo nos situarmos numa diferenga ontolégica dos indigenas, mas no campo dinémico ¢ cambiante -05, dos interesses dos Estados nacionais ¢ dos seus avangos pol ddas empresas transnacionais de incorporar seus te cados globalizados, ¢ se também levarmos em conta a atengio mun- dial que varias lutas indigenas atraem, torna-se evidente a impor- cancia de contar com leis ¢ politicas que garantam o exercicio da diferenga nos espagos urbanos, nas cionais, no reconhecimento universal de Essa necessidade de que o exercicio da diferenga cultural trans- cenda os espacos rurais associados com a pobreza nio reduz a im- portincia de defender e garantir a reproducéo aurénoma daqui que em cada etnia & inegocidvel e inassimildvel. Essas duas nodes foram desenvolvidas por José Jorge de Carvalho na mesa sobre © universo simbélico afro-norte-americano, na qual se destacou que — apesar do valor de alguns processos de mestigagem € zagio ~ as culeuras tém niicleos ou estruturas incomensuraveis, no redutiveis a configuragées interculturais sem ameacar a continuida- igrages nacionais ¢ interna- tos. O reconhecimento ¢ a protegio dessas diferencas liveis tem importancia cultural e também esquecer que hé uma infinidade de processos hist6ricos e situages de interagio cotidiana em que marcar a diferenga é 0 gesto bésico de dignidade e o primeiro recurso para que a diferenga continue a existir. Nesse sentido, em sociedades dualistas, cindidas, que conti- suam a sepregar of indios, as poiticas da diferenga sdo indi pensiveis, ‘Ao mesmo tempo, 2 intensa ej ampla interagio entre povos € sociedades nacionais, entre culturas locaise globalizadas (incluidas as globalizagdes das lutas indigenas), faz pensar que a in- serculturalidade também deve ser um niicleo da compreenséo das préticase da elaboragio de politicas. Como dizfamos, os povos indi- genas tém em comum, simultancamente, 0 tertitétio ¢ as redes co- ris, o espanol e, sobretudo, a experién- ‘ma épocaem que a expansio global do ca © design de tantos produtos ¢ subordinar os diferentes a padrées internacionais; quando, por exemplo, a maioria dos estaduniden- ses nfo sente necessidade de saber nada além d sua prépria histéria e s6 imaginar com seu cinema e sua televisio. Os povos indigenas téi a vantagem de conhecer pelo menos duas fnguas, articular recursos tradicionais e modemnos, combinar o tra- a reciprocidade com a concor- conhecer dos costumes como referén- ja tém contribuido. Mas como deixar de levar em conta que uma parte decisiva desta contribuicgo consiste no sentido que 70 os indigenas encontram ao viver 2 interculturalidade? Os indige- nas, com sua complexa articulagio de modos de sociabilidade co- ajudam a imaginar uma América em que a pluie nfo se empobrega. No entanto, ndo podemos super- cestimar a importincia dessa contribuigio diante da forga desigual ddas empresas ¢ poderes politicos que os ignoram ou promovem ou- tras vias de desenvolvimento. Plerre Bourdieu: a diferonga lida a partir da desigualdade ‘Vou analisar esse autor como um dos mais influentes no tra- tamento desse tema. E significativo como Bourdieu construiu a for- ‘caexpansiva da sua teoria sociolégica. Comegou trabalhando como antropélogo na Argélia e participou do auge da antropologia estru- tural nas décadas de 1960 ¢ 1970. Mas viu 0 método estrucural pela qual se deve passar para a ¢ mais complexas” dos processos sociais (Bourdieu, 1980, p. 441). Encontrou na teoria marxista essa interpretagéo mais abrangente, ‘mas, nos mesmos anos em que quase todo o marxismo francés ~ boa parte do europeu — concebia sua renovaséo intelectual como depois gramsciano, Bourdieu buscou informagéo ¢ o estimulo para reformular 0 materialismo histérico. Néo tentow essa fenovasso nas dreas declaradas estratégicas pelo marxismo clissico, mas naquilo que a ortodoxia economicista cexcluira ou subestimara: a arte, a educacio, a cultura. Dentro des- 1s, analisou, mais do que as relagbes de produgio, os processos s0- bre 05 quais 0 marxismo menos se pronunciou: a construgio das diferengas socioculturais no consumo. CChamou a atengio, no comeco dos seus estudos sobre socie- dades modernas, o fato de que Bourdieu escolhesse partir da pritica dda fotografia ou da frequéncia a museus. Néo existem na vida social pela qual se ‘questées mais propicias para compreender a mani consticuem as diferencas de classe? Ele percebeu que aqui grupo social escolhe como fotografivel revela o que esse gru sidera digno de ser solenizado, como estabelece as condutas social- mente aprovadas, a partir de quais esquemas percebe e aprecia o real, Os objetos, lugares ¢ personagens selecionados, as ocasiées para forografar mostram 0 modo pelo qual cada setor se distingue dos ‘outros. Tais descobertas tornam patente que, para 0 socidlogo, néo hd temas insignificantes ou indignos. ‘O modo pelo qual Bourdieu investigou c expds essas questbes também se afastava dos habitos académicos dominantes. Quando jou scu trabalho, néo era comum que se combinassem reflexes extético-floséficas com pesquisas, estatisticas ¢ andlises etnogréficas, ‘menos ainda na Franga, Nao era frequente que um socidlogo dedi- casse centenas de paginas a discutir as condigées de cientificidade dda sua disciplina e, ao mesmo tempo, procurasse incorporat, no cen- tro do discurso, descrigées quase fenomenoldgicas do mundo vi agregasse fotos, entrevistas,fragmentos de didrios ¢ revistas. Apre- sentava-se a nés quase com a ambiglo filos6fica de construir o sis- tema total, mas com o rigor minucioso do cientista. Passou a apro- ptiar-se de teorias divergentes — Marx, Durkheim, Weber — para explicar conjuntamente o sentido social de Proust de Lévi-Strauss, de Ravel ¢ Petula Clark, do uisque e dos méveis Knoll, até as variantes pelas quais as diferentes classes exercem 0 gosto gastro- és ferinina, Tal como muitos estudos baseados em pesquisas, os que Bourdieu conduziu sobre a educagio francesa e sobre o ptiblico de ‘museus comecam registrando com rigor estatistico o que todos jé sabem: a frequéncia aos museus aumenta & medida que se sobe de nivel econémico ¢ escolar, as possibilidades de acesso e de éxito na escola crescem segundo a posigdo de classe que se ocupa e as precon- digdes recebidas da formacao familiar. A conclusio desses dados era Sbvias “O acesso as obras culeurais€ privilégio da classe cultivads” (Bourdieu, 1980, p. 69). Esse autor usou as pesquisas para elabo- n n rar uma problemética que néo surge dos ntimeros. Desde suas primeiras investigagées na Argélia, desde os estudos sobre a escola 0 museu, tratou de construir uma teoria multideterminada das diferengas e desigualdades sociais. Buscou informacéo empirica pa- ra nfo reincidir nas especulagGes estético-filoséficas sobre o gosto ou nas afirmagées meramente doutrindrias com que quase todo 0 marxismo vinculava 0 econdmico ¢ 0 simbélico, mas, a0 mesmo: tempo, submeteu os dados a um tratamento epistemolégico capaz de levé-los a conclus6es menos superficiais do que aquelas a que os estudos da opiniéo publica e do mercado costumam chegar. ‘Ainda que a obra de Bourdieu, durante um amplo periodo, tenha sido uma sociologia da cultura, seus problemas basicos néo séo “culturais”. As perguntas que dao origem as suas investigagoes, nfo sio: como € 0 piblico dos museus? Ou: como funcionam as relagdes pedagdgicas dencro da escola? Quando estuda esses assun- tos, esté tratando de explicar outros, aqueles que tornam a cultura fundamental para entender as diferengas sociais. Cabe a Bourdieu o que ele afirma da sociologia da religiéo de Weber: seu _mérito consiste em tet compreendido que sociologia da cultura “era uum capitulo, ¢ nao o menos importante, da sociologia do poder”, ¢ em ter visto as estruturas simbélicas, mais do que como uma forma particular de poder, como “uma dimensio de todo poder, ou seja, outro nome da legitimidade, produto do reconhecimento, do des- conhecimento, da crenga em virtude da qual os personagens cxer- cem a autoridade e so dotados de prestigio” (Bourdieu, 1980, p. 243-244). ‘As perguntas fundadoras de quase todos 0s seus trabalhos, mesmo que nao as enuncie expressamente assim, so duas: 1) como estéo estruturadas — econémica e simbolicamente—a reprodugio ea diferenciag4o social?; 2) como se articulam o econdmico e o simbé- lico nos processos de reprodugéo, desigualdade ¢ construgéo do poder? Para respondé-las, Bourdieu retoma duas ‘marxismo: a sociedade est estruturada em classes sociais ¢ as telagSes as centrais do SIGUAIS © Descomecrapos cy entre as classes so relagdes de luta. No entanto, sua teoria social incorpora outras correntes dedicadas a estudar os sistemas simbd cos € as relagées de poder. Por isso, pelo seu préptio trabalho de investigagio empitica ¢ reelaboragio tebrica, sua relagio com © marxismo é polémica pelo menos em quatro pontos: Os vinculos entre producto, cireulagéo e consumo. Ainda que alguns textos tedricos do marxismo, comegando pela Intraducao geral 4 critica da economia politica, proponham uma interacéo dialética entre os termos, suas andlises do capitalismo concentraram-se na produséo. A partir da década de 1960, alguns sociélogos marxistas, «especialmente os dedicados & questio urbana, teotizaram o consumo ¢ investigaram suas estruturas, mas seus trabalhos continuaram a subordiné-lo & produgio: viram-no quase sempre como um lugar necessitio para a reptoducéo da forga de trabalho e a expansio do capital. Ao no reconhecer que o consumo é também um espago decisivo para a constituicéo das classes'e a organizacao das suas dife- rengas, e que no capitalismo contemporineo adquire uma autono- iia relativa, sé conseguem oferecer verses remodeladas do econo- 0 produtivista tradicional no mate tal como no marxismo, pela sua relagio com a producso, pela pro- Priedade de certos bens, mas também pelo aspecto simbilico do ‘consumo, ou seja, pela maneira de usar os bens, transformando-os em signos. Sua sociologia da cultura alimenta a semidtica do cultural iniciada na Franga durante aqueles anos. A eoria do valor-trabatho. Uma grande parte das andlises de Bourdieu sobre a constituigso social do valor se ocupa de processos que ocorrem no mercado e no consumo: a escassez dos bens, sua apropriagéo diferencial por parte das distintas classes e as estra- tégias de distingZo que elaboram ao usé-los. Quando desenvolve a concepsao mais estrutural sobre a formagio do valor no “processo de produgio” da arte, diz que nao deve ser entendido como a so- ma do custo de producio, da matéria-prima e do tempo de traba- Iho do pintor: a fonte do valor no res no que faz 0 artista, 4 em como 0 faz, na decisio do marchand ou na influéncia de tal cou qual galeria; “é no campo de produgéo, como sistema de rela- ‘ges objetivas entre esses agentes ou essas instituigdes ¢ lugar de Iutas pelo monopélio do poder de consagracao, que se engendram continuamente o valor das obras ea crenca neste valor” (Bourdieu, 1977, p. 5-7) ‘A imbricagdo do econimico e do simbélico, As diferencas ¢ de- sigualdades econdmicas entre a classes sao significativas em relagio as outras formas de poder (simbélico) que contribuem para a repro- ducfo e a diferenciacio social. A classe dominante pode impor-se no plano econémico, ¢ reproduzir essa dominaglo, se ao mesmo tempo consegue hegemonizar o campo cultural. Em A reprodugio, cle definiu a formagéo social como “um sistema de relagdes de for- ga e de sentido entre os grupos ¢ as classes” (Bourdieu e Passeron, 1970, p. 20). A determinagio em itltima insténcia eo conceito de clase social. Como sio indissocidyeis 0 econdmico ¢ 0 simbélico, a fora e 0 sentido, é impossivel que um desses elementos se subtraia & unida- de social ¢ determine privilegiadamente, por si sé, toda a socieda- de, Diante dessa concepgéo catalista (uma causa, 0 econdmico, de- terminatia 0 efeito, 0 simbélico), Bourdieu propée uma definigéo estrutural das classes nas suas relagdes. E em A distingdo que melhor formula e discute as implicagées metodologicas. A classe social néo pode ser definida por uma s6 varidvel ou propriedade (sequer a mais determinante: “o volume ¢ a estrutura do capital”) nem por “uma soma de propriedade; (origem social + rendimentos + nivel deinstru- fo), “mas pela estrutura das relagbes entre todas as propriedades pertinentes que confere a cada uma delas, ¢ 20s efeitos que exerce sobre as préticas, seu valor préprio” (Bourdieu, 19792, p. 117-118). E necessério “tomper com 0 pensamento linear, que s6 conhece ples de determinacio di as estruturas de order “causalidade estrutural de uma rede de fatores” éirredutivel Aeficién- mples de um ou varios deles néo implica negar que os fatos so- nados:se, “através de cada um dos fatores, exerce-se a eficiéncia de todos os outros, a multiplicidade de determinagées conduz nao a indeterminagio, mas, a0 contrétio, & sobredetermina- Que consequéncias teve essa reformulagéo para o estudo das classes sociais? Bourdieu mostrou que, para conhecé-las, nio & suficiente estabelecer como participam das relagbes de producéo; também constituem 0 modo de ser de uma classe ou fracéo de classe 0 baitro em que seus membros vivem, a escola para a qual enviam seus filhos, os lugares em que passam férias, 0 que e como ‘comem, se preferem Bruegel ou Renoir, 0 Crave bem temperado ou 0 Damiibio azul, Essas préticas culeurais séo mais do que carac- icas complementares ou consequéncias sccunditias da sua po- 5 compdem um conjunto de “caracte- cionar como ptincipios de selego ou de exclusdo reais, sem jamais serem formalmente enunc cimento étnico ou sexual)” (ii lém de conceber a sociedade como uma estructura de classes de luta entre elas, Bourdieu reconhece a especificidade dos modos de diferenciagéo ¢ desigualdade cultural ao construit esse novo e5- quema ordenador, que é sua teoria dos campos. O conceito de cam- po permite andlises sociolégicas da arte e da literatura. Com efeito, néo é possi- vel deduzit do cariver geral do modo de produgéo o sentido de uma obra particular: t&m pouco como a de que a arte € mercadot sistema capitalista, enquanto nio precisemos as formas especificas que essas leis assumem na produgio de romances ou filmes, de acordo com os meios ¢ as relagées de producéo de cada campo. Por omitir essas mediagées, os socidlogos da cultura as vezes s40 75 a maras .capazes de perceber a peculiaridade da arte. Re- cordemos a ironia sartriana: 0 marxismo demonstra que Valéry cera um intelectual pequeno-burgués, mas nao pode nos explicar por que nem todos os intelectuais pequeno-burgueses séo Valéry (Sartre, 1963, p. 57). ‘A teoria dos campos permitiu sair desse sociologismo gros- seiro, sem retornat ao idealismo do “cardter tinico de cada obra ou ait jtural. No seu texto “Campo intelectual ¢ processo criados”, Bourdieu observa que, “para dar seu objeto préprio a sociologia da criacio intelectual”, € preciso situar o artista e sua obra no sistema de relagées cons- tituido pelos agentes sociais diretamente vinculados & producéo e comunicagio da obra (1967, p. 135). Esse sistema de relagbes, que inclui artistas, editores, marchands, criticos e pablico, ¢ que determina as condigées especificas de producto ¢ circulagto dos seus produtos, é 0 campo cul ‘O que é que constitui um campo? Dois elementos: a existéncia de um capital comurn e a luta pela sua apropriacéo. Ao longo da histéria, o campo cientifico ou o artistico acumularam um capital (de conhecimento, habilidades, crencas) em relacio ao qual se for- mam duas posig6es: a daqueles que detém o capital e a daqueles que aspiram a deté-lo. Um campo existe na medida em que néo se consegue compreender uma obra (um livro de economia, uma escultura) sem conhecer a hiseéria do campo de produgao da obra. Quem dele participa tem um conjunto de interesses comuns, uma linguagem, uma “cumplicidade objeriva subjacente a todos os anta- gonismos” e, por isso, o fato de intervir na lua contribui para a re- produgio do jogo mediante a crenca no valor desse jogo (Bourdieu, 1984, p. 115). Sobre essa cumplicidade bisica constroem-se as posicées em confronto, Quem domina capital acumulado, fan- damento do poder ou da autoridade de um campo, tende a ado- tar estratégias de conservagio e ortodoxia, enquanto os mais des- providos de capital, ou recém-chegados, preferem as estratégias de subversio ou heresia. Assim funcionam os campos mais autonomos, os habitual- ‘mente chamados culturais (a ciéncia, a flosofia ou a arte), e também outros em aparéncia mais dependentes da estrutura socioecondmi- ca geral. Bourdieu estendeu a teoria, entre outros, a0 “campo da alta costura” (Bourdieu e Desaut, 1975). Domina-o quem exerce 0 poder de conscruir o valor dos objetos pela sua raridade ou escas- sez, mediante o procedimento da marca. Embora reconhesa as de- terminagées mercantis sobre a moda, bem como sua relacio com 0s estilos de vida que se formam em outras éreas da orga coloca frente a frente os estilistas consagrados e aqueles que disputam seu lugar. Dior e Balmain estabeleceram durante décadas os estilos de vida capazes de distinguir as classes altas: suas inovacées no se produziram por adaptacées funcionais destinadas a adequar os obje- tos a0 seu uso, mas foram alteracées no caréter social dos o| dizia que se propunha vestir a mulher moderna, a que quer ser pritica e ativa, que necessita mostrar seu corpo. Mas essa polémica, para Bourdicu, encobre a maneira encontrada para disputar a he- gemonia do campo. ‘Ao queter explicar a estrutura de todos os campos segundo a légica da sua luta interna pelo poder, entre a distingdo dos que tm ©. pretenséo dos que aspiram, Bourdieu deixou dois problemas de lado. O primeito: o que sucede especificamente em cada campo. Nio haveria diferencas essenciais entre 0 campo cientifico eo art 0, devido ao fato de que, em um, os competidores buscam produ- \entos €, no outro, experiéncias estéticas? Perdemos a ficado social do fato de que certos grupos prefiram um modo mais abstrato ou mais concteto, uma prética mais intelectual ou mais sen- sivel, para sua diferenciago simbélica. A outra questio tem a ver com a relagio entre os campos ea Nio parece possivel explicar Courréges s6 pela busca 7” aa Maras lade dentro do campo. Seu uso de exigéncias sociais (a ceativa” da mulher atual, a necessidade de mostrar 0 corpo) sugere inter-relagées entre moda e trabalho, relagées entre neros, que evidentemente contribuiram para 0 éxito desse esti- lista e para a reformulagio do seu papel no campo da moda. No curso da sua obra, Bourdieu foi passando de um enfoque dos grupos. ceserutural para outro mais atento as priticas diferenc Em “O mercado dos bens simbélicos”, texto cuja primeira edigéo data de 1970, prevalece uma andlise estrutural baseada na oposi¢éo abjeciva entre “o campo da producéo restrita’ 0 “campo da grande produgio”.A distingdo, no entanto, concentra-se nas ‘priticas culeu- ais’; descreve a estrutura dos campos, mas mostra as classes ¢ 03 grupos, os sujeitossociais, operand a correlacgo ea complementagdo entre os campos. Além de ampliar para trés os'nfveis culeurais, de- nomina-os “gostos”, ou seja, usa uma expresséo que inclui o aspec- to subjetivo dos comportamentos: distingue 0 “gosto legitimo”, © “gosto médio” e o “gosto popula:” (Bourdieu, 1979a, p. 14). ‘A diferenca entre os niveis culturais se estabelece pela com- posigio dos seus piiblicos (burguesia/classes médias/ populates), pela natureza das obras produzidas (obras de arte/bens e mensagens de consumo de massas) ¢ pelas ideologias politico-cstéticas que os expressam (aristocratismo esteticsta/ascetismo © pretensio/prag- rmatismo funcional). Os trés sistemas coexistem dentro da mesma sociedade capitalista, porque esta organiza. distribuigio (desigual) de todos os bens materiais ¢ simbélicos. Tal unidade ou convergéncia se manifesta no fato, entre outros, de que os mesmos bens séo, em muitos casos, consumidos por distintas classes sociais. Entio, a di- ferenca se estabelece, mais do que nos bens de que cada classe se apropria, no modo de usé-los. ‘A estética dominanse, Bourdieu realizou a primeira grande in- vvestgagio sobre 0 gosto da elite com o piblico dos museus, ¢ fot ai que mais exacerbou a autonomizagéo do campo cultural. Nos museus, 0 gozo da arte requer deixar de lado a vida A “dlisposigao estética’ ¢ a “competéncia artistica” cxigidas pela arte moderna ¢ contemporanea supéem 0 conhecimento dos prineipios internos de divisio do campo artistico. As obras se ordenam por cendéncias segundo suas caracre icas estilisticas, sem importar as classificagées que regem os objetos representados no universo coti- diano: por exemplo, a capacidade de distinguir exés quadros que representem macis, um impress outro surreaista e outro ainda hiper-tealista, néo depende do conhecimento comum da fru- ta, mas da informacao estética que permite captar os trés modos de tratamento plistico, a organizacio sensivel dos signos. Acestrutura do museu ea disposigo das mostras correspondem ante, “O caréter intocivel dos objetos, o silencio religioso que se imp6e aos visitantes, o ascetismo puritano do equi- pamento, sempre escasso e pouco confortével, a recusa sistemdtica de toda didética, a solenidade grand contribuem para fazer dessa insti a da decoragio e do decoro” igdo um recurso diferencial de «quem nela ingressa e compreende suas mensagens (Bourdieu, 1971b, tamento nesses “templos civicos” demonstram que o interesse pelos objetos artisticos ¢ resultado da capacidade de relacioné-los com um conjunto de obras de que participam pelo seu significado estético. Assim 0 revela a maior proporcio de visicantes de classe alta e edu- cagéo superior, mas também a forma pela qual usam 0 museu: 0 tempo destinado & visita, 2 dedicagio a cada obra aumencam com aqueles que sio capazes, pelo seu nivel de instrucio, de captar maior variedade de significados. Quem faz. uso mais intenso do museui so 08 que jé posstem um amplo treinamento sensivel, informagéo sobre as épocas, os estilos e até as fases de cada artista que dio sentidos peculiares as obras, Nos séculos XIX ¢ XX, as vanguardas acentuaram a autono- ‘mia do campo artistico, o primado da forma sobre a fungzo, da ma- neira de dizer sobre o que se diz. Ao reduzir as referéncias seménti- «as das obras, seu contetido episédico ou narrativo, ¢ ao acentuar 79 citico com as cores, as formas ¢ os sons, as vanguardas, igfo cada vex mais apurada para 0 jogo si exigem do espectador uma ter acesso a0 sentido da produgio artistica. A fugacidade das van- guardas, o experimentalismo que renova incessantemente suas b as afastam ainda mais os setozes populares da pritica artistica. Re- formula-se assim tanto 0 lugar do piblico quanto o papel dos pro- dutores, toda a estrutura do campo cultural. Os artistas que inscre- ‘yern na prOpria obra a interrogacéo sobre sua linguagem, que néo s6 climinam a ilusio naturalista do real ¢ 0 hedonismo perceptivo mas fazem da destruigio ou parodizagao das convengdes representati- vas seu modo de referir-se ao real, asseguram, por um lado, 0 dot nio do seu campo, mas excluem o espectador que nao se disponha a fazer da sua participagéo no campo uma experiéncia igualmente inovadora. A atte moderna propée uma “leitura paradoxal”, pois “supde 0 dominio do cédigo de uma comunicagio que tende a questionar 0 cédigo da comunicagio” (Bourdieu, 1971a). Estética incestuosa: a arte pela arte ¢ uma arte para os artis- A fim de participar do seu saber e do seu gozo, o piiblico deve Icangat a mesma capacidade dos artistas de perceber e decifrar as caracteristicas propriamente estilisticas, deve cultivar um interesse puro pela forma, essa capacidade de apreciar as obras independen- temente do seu contetido e da sua fungio. Quem consegue isto exi- be, por meio do gosto “desinteressado”, sua relacéo distante com as necessidades econdmicas, com as urgéncias priticas. Compartilhar essa disposigéo estética é uma maneira de manifestar uma posigéo iada no espago social, estabclecer claramente “a distancia ce subjetiva em relagio aos grupos submetidos a esses deter- minismos” (Bourdieu, 1979a, p. 56). ‘Ao estabelecer um modo “correto” ¢ hermético de apreciar 0 artistico, supostamente desvinculado da existéncia material, 0 mo- do dominante de produzice consumir a arte organiza simbolicamen- teas diferencas entre as classes, Do mesmo modo que as divisées do processo eduicativo, as do campo artistico consagram, reproduzem ¢ dissimulam a separagio entre os grupos sociais. As concepgées de- mocréticas da cultura ~ entre elas, as liberais da educagao ~ supdem que as diversas agdes pedag colaboram harmonio- samente para reproduzir um capital cultural que se imagina como dade comum, No entanto, os bens culturais acumulados na histéria de cada sociedade néo pertencem realmente a todos (ainda que formalmente sejam oferecidos a todos). Néo basta que os mu- seus sejam gratuitos ¢ as escolas se proponham eransmitir a cada nova geragdo a cultura herdada. Sé ters acesso a esse caf fico quem contar com os meios, econdmicos e simbélicos, para dele se apropriar. Compreender um texto de filosofia, desfrucar uma sinfonia de Beethoven ou um quadro de Bacon, tudo isso re- quer possuir os cédigos, o treinamento intelectual e sensivel necessé- rio para decifré-los. Os estudos sobre a escola e os museus demons- tram que esse treinamento aumenta & medida que cresce o capital econdmico, o capital escolar ¢, especialmente na apropriagio da ar- te, 0 tempo de familiarizacéo com 0 capital artistico. ‘As classes nio se distinguem u seu diferente capital econémico. Ao contritio: tratam de simular que seus pt algo mais nobre do que a acumulagéo mate quéncias de ter diss amente pel jo a forma e a fungio, 0 belo € 0 ti signos ¢ os bens, 0 estilo e a eficdcia, A burguesia desloca para um sistema conceicual de diferenciagio eclasificaglo a origem da distin- cia entre as classes. Coloca o motivo da diferenciagio social fora do cotidiano, no simbélico © néo no econémico, no consumo ¢ néo na produgio. Cria a ilusio de que as desigualdades néo se devem lo que se tem, mas aquilo que se é. A cultura, a arte ¢ a capaci- dade de desfruté-las aparecem como “dons” ou qualidades natu- is 10 resultado de uma aprendizagem desigual devido & ica entre as classes, A estévica das setores médios, Constitui-se de duas maneitas: pela indtiscria cultural ¢ por certas préticas, como a forografia, que 92, so caracteristicas do “gosto médio”. O sistema da “grande produ- Gao” de massas diferencia-se do campo artistico de elite pela sua falta de autonomia, por submerer-se 2 demandas externas, prin- cipalmente a competicio pela conquista do mercado. Produto da busca da maior rentabilidade e da méxima amplitude de puiblico, de negociagées e compromissos entre os donos das empresas ¢ 0s criadores culturais, as obras de arte média distinguem-se por usar procedimentos técnicos ¢ efeitos estéticos imediatamente acessiveis. Com frequéncia, Bourdieu descreve as priticas culturais dos setores médios recorrendo a metéforas. Para explicar a atraco do centro comercial, diz que “é a galeria de arte do pobre"; observa que a revista Nowvel Observateur, em camadas mais pretensiosas, é como “o Club Mediterranée da cultura” (Bourdieu, 1979, p. 597). ‘As classes médias bem como as populares, na medida em que tm como referéncia e aspitagio 0 gosto dominante, praticam a cul- tura por meio de atos metaféricos, deslocados. Um género tipico da estética média é a adaptacéo: filmes inspirados em obras tea- trais, “‘arranjos’ populares de miisica erudita ou, a0 contratio, ‘atranjos’ pretensamente eruditos de ‘temas populares” (Bourdieu, 1973, p. 90). A adesio a esses produtos é prépria da relaci ¢ ansiosa” que a pequena burguesia tem com a cultura, uma rela- cio de “boa vontade pura, mas vazia e desprovida de referéncias ou dos prinefpios indispenséveis para sua aplicagéo oportuna’. Em poucas ocasiées sublinha to cabalmente a dependéncia da cultura média, seu carter heterénomo, como quando afirma que a pelas “obras menores das artes maiores" (Rapsidia , Buffer), pelas “obras maiores das artes menores” Gacques Brel, Gilbert Bécaud) ¢ pelos espericulos “caracteri cos da ‘cultura médi’ (0 circo, a opereta e as cortidas de touros)” (Bourdieu, 1979a, p. 14-16, 62-65). Talvez encontre o mais espe- cifico dessa tendéncia ao estudar a fotografia, art mayen no duplo sentido de arce dos setores médios de arte que esté numa posigéo intermedidtia entre as arces “legitimas" e as populares. esta consti em blue, Ut ria, oferta erética ou fetichista, simbolo politico ou religioso. E estranho que a fotografia alcance tanta aceitagio, dado que néo é ¢ obter lucros répidos e néo esté tural que a frequéncia a museus ou Poder-se-ia pensar que essa atividade na qual as decis6es parecem aban- iprovisacio individual, sefa um objeto pouco adequado pata a investigagéo sociolégica. Precisamente por essa suposta arbi- tariedade subjetiva, é uma das préticas que melhor deixam trans- a criagio artistica supéei donadas & parecer as convenes que regem a representacio do real em cada classe. Existe um sistema bem codificado de normas que estabele- cem quais objetos séo considerados fotografiveis, as ocasiées © 0s lugares em que devem ser retratados, a composigio das imagens, Essas regras, muitas veres inconscientes para o fordgrafo ¢ 0 especta- dor, denunciam as estruturas ideolégicas do gosto, sm da maior parte das fotografias estio a familia ¢ © turismo. Pela sua capacidade de consagrar e solenizat, as fotos servem para que a familia fixe seus eventos fundadores ¢ reafirme periodicamente sua unidade. As estaisticas revelam que os casados possuem maior ntimero de maquinas fotograficas do que os solteiros, 0s casados com filhos superam os casados que nao os tém. O uso da camara também é maior na época em que a familia tem filhos e menor na idade madura. Hi uma correspondéncia entre a pritica forogrifica, a integracio grupal e a necessidade de registrar os mo- ‘mentos mais intensos da vida conjunta: as criangas fortalecem a coe- so fam fF, auumentam o tempo de convivéncia e estimulam seus pais a conservar tudo isso e a comunicé-lo mediante foros. Outro modo de comprovi-lo é comparando a fotografia do cotidiano, feta sem intengbes estéticas, com a fotografia artistica ¢ a participago cem clubes de fotografia: a primeira corresponde a pessoas adapta- 24 mAwas das 3s pautas predominantes da sociedade, a outra corresponde Aqueles que estio menos integrados socialmente, por idade, estado civil ou situacéo profissional. Os perfodos de fé a paixio por forografar s € de turismo s4o aqueles em que cresce s0 porque, nessas épocas, incrementa-se a vida conjunta da familia, mas também porque as fétias ¢ a ativi- dade forogréfica tém em comum a disponibilidade de recursos eco- némicos, Prética extracotidiana, a fotografia soleniza 0 cotidiano, realca a superagio da rotina, 0 afastamento do habitual. Ninguém fotografa sua propria casa, a néo ser que a tenha reformado e quei- ra comprovar uma mudanga; pela mesma razio, espanta-nos 0 tutista que se detém para tirar uma fotografia daquilo que vemos todos os dias. A fotografia € uma atividade familiar destinada a consagrar © néo familiar Desse modo, a pritica forogréfica ¢ tipica dos setores médios. ‘Ademais, é possivel para tais setores, porque requer certo poder eco- némico. E é necessdria, como prova da visita a centros turfsticos e a lugares de lazer. Signo de uum instrumento privilegia- do para investigar a légica da diferenciagio social, 0 modo pelo qual os fatos culturais séo consumidos em dois niveis: pelo pra- zer que proporcionam em si mesmos e pela sua capacidade de dis- tinguit-nos simbolicamente de outros setores. Nem elitista nem plenamente popular, a fotografia serve as camadas médias para diferenciarem-se da classe operitia, exibindo-se junto a paisagens € monumentos aos quais esta néo chega, consagrando 0 encontro exclusive com os lugares consagrados. E também para substituir, mediante esse registro do excepcional, 0 gozo frequente de viagens ccustosas, para ter um substituto de priticas de maior nivel que thes sio alheias. icas culturais A estética popular, Enquanto a estética da burguesia, baseada no poder econdmico, catacteriza-se pelo “poder de manter &distincia a necessidade econdmica’, segundo Bourdieu as classes populares guiam-se por uma “eseética pragmética e funcionalista’. Recusariam a gratuidade e a futilidade dos exercicios formais, de toda arte pela ar- te, Tanto suas preferéncias artisticas quanto as escolhas estéticas de roupa, méveis ou maquiagem se submeteriam ao prinefpio da “es- colha do necessério”, no duplo sentido daquilo que é tecnicamente necessitio, “prético”, e daquilo que “é imposto por uma necessidade ial que condena as pessoas ‘simples’ e ‘modestas’ a gostos ‘simples’ ‘modestos™. Sua recusa a ostentacio correspon- deria & escassez dos seus recursos econémicos, mas também & distri- buigéo desigual de recursos simbélicos: uma formagio que os exclui da “sofisticagao” nos hébitos de consumo leva-os a reconhecer, com resignagéo, que carecem daquilo que torna os outros “superiores". Observemos o interior da casa: nio existe nas clases populares, segundo Bourdieu, a ideia, tipicamente burguesa, de tomar cada objeto a ocasio de uma escolha estética, de fazer com que a intengéo de harmonia ou “beleza” intervenha para arrumar a cozinha ou 0 banheito, na compra de uma panela ou um mével. A estética po- pular ver-se-ia organizada pela divisio entre atividades e lugares téc- nicos, funcionais, e outros espe propicios& arrumacio pomposa. Os alimentos ou as roupas de festa se opéem & roupas ¢ 20s alimentos de todos os dias pela a trariedade de um corte convencional ~ “fazer 0 que se deve", “fazer bem as coisas” , assim como os lugares socialmente designados para serem “deco- rados’, a sala, a sala de jantar ou o living, opéern-se aos lugares cotidianos, segundo uma antitese que 4 aproximadamente, aquela entre 0 “decorativo” ¢ (Bourdieu, 1979, p. 441) o "pr Pertencer 8s classes populares equivaleria “a renunciar aos ganhos simbélicos” e reduzir as priticas ¢ os objetos & sua fungio corte de cabelo deve ser “limpo”, a roupa “simples”, os méveis “sélidos”. Mesmo as escolhas aparentemente luxuosas tém como regra o gosto da necessidade. Afirma Bourdieu sobre a estéti- ca aristocrdtica e a estética popular, ironizando simultaneamente os economicistas, que o gosto por migalhas de fantasia eacessbrios im- pactantes, que povoam as salas das casas modestas, “inspira-se numa intengio desconhecida pelos economicistas ¢ estetas comuns, a de obter o méximo de efeito ao menor custo (isso impressionaré to), formula que, para o gosto burgués, ¢ a prépria definigéo da idade (ja que uma das intengSes da distingio & sugerir com imo efeito possivel o maior gasto de tempo, dinheiro ¢ enge- nhosidade)" (Bourdieu, 1979, p. 442). Quem fr pbliidade ob serva esse sentido puritano do necessério quando trata de conven- cet os consumidores de que é desperdicio comprar a poltrona fora de moda, cuja cor deve ser esquecida, porque 0 prego o just porque é exatamente aquela com que se sonhava hd tempos “para por na frente da televisio”, A distingdo acumula exemplos semelhantes para argumentar que o consumo popular opée-se ao burgués pela sua incapacidade de separar 0 estético do pritico. Opée-se, mas néo deixa de estar su- bordinado. A estética popular é definida, todo 0 tempo, com re- feréncia & hegeménica, seja porque trata de imitar os habitos e os ja porque admite sua superioridade, ainda que . Incapaz de ser como a dominante e incapaz a cultura popular nfo teria uma 0, Bourdieu afirma que “o lugar por icas € a propria classe dominante”. Como a estructura simbélica da sociedade est deserminada por essa estabelecida pela burguesia, entre “a liberdade, o desinte- esse, a ‘purera’ dos gostos sublimes” e 0 ambito da “necessidade, do interesse, da mesquinher das satisfagSes materiais”, as classes po- pulares ~ que nfo controlam e &s vezes nem compreendem essa dis- \sio — estéo condenadas a uma posicio subalterna, sgostos burgueses, Em poucas paginas, admite que os setores populares contam. com algumas formas de protorresisténcia, manifestagdes germinais de consciéncia auténoma. “A arte de beber ¢ de comer resta, sem_ duvida, como um dos poucos tetrenos nos quais as classes populares jaarte de viver” (Bourdieu, 1979a, se opéem explicitamente a legi p. 200). Essas formas préprias dos sctores dominados, devido ao faro de se basearem nas antitesesforte/fraco, gordo/magro, sugerem que 2 configuragio dos hébitos populares na alimentaglo ¢ nas be- bidas fortes (o salgado frente ao doce, a carne frente 20 ponderia a um modo de valorizar a forga musculas, a tinica coisa em que as classes trabalhadoras podem ser ricas e que podem opor aos domi € desse outro poder que é sua s A sociologia pés-bourdieana Propée-se a muitos investigadores esta pergunta: serio a teo- ria de Bourdieu sobre a modernidade e os campos culeurais, sua visio sobre a hegemonia da cultura “legftima” ea subordinagio da Popular, um modelo apropriado para as sociedades europeias ou do Primeiro Mundo, enquanto em paises subdesenvolvidos, com defi- ciente integraéo nacional, as culeuras dominadas seréo sempre dife- rentes, inassimildveis pelos dominadores? Sérgio Miceli quis tornar mais complexo 0 modelo bourdieano, a0 estudara inckstria cultural brasileira. Sugere que tal subordinagéo corresponde, até certo ponto, aos paises curopeus, em que hé um ‘mercado simbélico mais unificado, No Brasil, ecm geral na América Latina, o capitalismo inclui divetsos tipos de produgao econémica ¢ simbélica, Nao existe “uma estrutura de classes unificada e menos ainda uma classe hegeménica em condigbes de impot a todo o siste- ma sua propria matriz de significago contramos, antes, um “campo simbilico fragmentado”. Convémn re- cordar que a maior heterogeneidade cultural deve-se & ampla mul- tictnicidade, como se aprecia na prépria sociedade brasil ‘mesoamericanas ¢ andinas. Embora a “modernizagio” econdmica, escolar e comunicacional tenha conseguido aumentar a homoge- neidade, coexistem capitais culturais diversos: os pré-colombianos, o colonial espanhol e portugués, em alguns a presenca afto-norte- -americana e as modalidades contemporaneas de desenvolvimento capitalista, 87 Voltamos & pergunta: seria, entio, 0 modelo de desigualdade entre as classes, devido & apropriacio desigual de um patriménio comum, 0 mais pertinente para a Europa, enquanto as sociedades latino-americanas se mostrariam mais compreensfveis a partir do mo- delo da diferenga, que implica reconhecer a autonomia irredutivel dos indigenas e outros grupos subordinados? Ja vimos as inconsisténcias do segundo modelo ao descrever sua apresentacéo em reunigo que tratava de justifici-lo. Quanto a0 ‘modelo bourdieano da desigualdade, julgo que o questionamento mais severo ¢ 0 trabalho em que Claude Grignon ¢ Jean-Claude Passeron, a partir das suas investigagées empiticas, revelam os li- mites do autor de A distingéo. Osestudos de Grignon sobre o consumo gastronémico popu- Jar evidenciaram que néo se podem opor “gostos de liberdade” das classes hegemdnicas a “gostos de necessidade” das populares. Ainda que os setores subalternos nio disponham do tempo nem dos recur- 505 econdmicos da burguesia para se entregarem a uma “es da sua vida, nao vivem uma vida sem estilo. Assim como na 1s comidas populares se encontra enorme variedade, pratos tradicionais muito diversos e uma apropriagio dis- sidente dos produtos ou alimentos em conserva que podem com- prar nos supermercados ¢ no comércio de rua. Nao se entende a complexa capacidade de classificacéo dos alimentos e das ocasiGes de comer (na casa, na rua, em festas, as comidas dos dias comuns da semana diferentes das comidas de domingo) quando se consideram ‘os habitos populares s6 pela dtica da privagio, da infracdo, da torpeza cou da “consciéncia culposa ou desgragada dessa distincia ou dessas feitos, nio consegue ver a estiliza¢io que se imprime a diferentes partes da casa, tudo aquilo que os adolescentes populares cul- tivam nos enfeites do seu corpo, na roupa e na cosmética, nos seus automéveis e motocicletas, no ambiente de seus quartos ot lugares de diversio. O conhecimento das relacées interculturais, segundo Grignon « Passeron, no deve considerar aculeura popular como um de significacio autdnomo, esquecendo os efeitos da dominacéo, nem «ait no tisco oposto ~ mas simétrico ~ de crer que a dominacio cons- titua a cultura dominada sempre como heterénoma, Por um lado, © relativismo cultural que imagina os subal diferentes, num estado de “inocéncia ss centrismo das classes hegeménicas ou “dos grupos cultos associa- dos ou aspirantes a0 poder”, que, erendo monopolizat a definigao cultural do humano, consideram o diferente como “barb cultura” (Grignon ¢ Passeron, 1991, p. 17 ¢ 28). Quando vestiga — dizem ~, isso produs. certo “conforto metodolégico”, por- quelevaa observar todas as caracteristicas como resultado da autono- mia ou da dominagio, sem ter de perguncar pelas ambivaléncias, © elativismo cultural realiza “um primeito ato de descritiva, que confere as culturas populares o préprio sentido”, leva-as a sério como culturas a0 “aprender em que estas dizem o que tém para dizer, quando conseguimos esquecer 0 que delas se diz em outra lingua’. Mas hé uma segunda ruptura, de “tealismo sociolégico”, que consiste em considerar “as relagbes de forga e as leis de interacéo desigual que vinculam entre si as classes de uma mesma sociedade”. “Néo podemos deixar a0 relativismo cultural o cuidado de dizer tudo acerca das culturas sus- tentadas por classes que nao o praticam e que nutrem suas operages verso de conhecimento conduz a uma avaliacéo politica menos ‘maniqueista. “As culturas populares nio estio evidentemente defi nidas em inércia perpétua diante da legitimidade culeural, mas tam- tatério. Também descansam” (Grignon e Passeron, 1991, p. 75). Para compreender as relagdes interculeu ica dos setores populares, é preci entre o discurso etnocéntrico elitis fica a produggo subalterna, ¢ a atragéo populista diante das riquezas da cultura popular, que deixa de lado aquilo que, nos gostos ¢ con- sumos populares, hd de escassez ¢ resignacio. ‘Uma andlise atenta &s ambivaléncias dos setores hegeménicos populares, ou dos “ocidentais” e dos “indigenas”, deixa ver que os diversos capitais culeurais nao constituem desenvolvimentos alter- nativos sé pela inércia da sua reprodugio, As vezes, o desenvolvimen- to das culturas subordinadas dé o suporte para movimentos p cos regionais, étnicos ou classistas que enfrentam o poder hegem6ni- co ¢ buscam outro modo de organizagio E impossivel redu- zit os variados sistemas linguisticos, artisticos e artesanais, as crencas, as prdticas médicas, as formas préprias de sobrevivéncia das classes populares a vers6es empobrecidas da cultura dominante ou subordi- nadas a ela. A concep¢io de Bourdieu, iil para entender 0 mercado interclassista de bens simbélicos, deve ser reformulada a fim de in- luir os produtos culturais nascidos dos setores populares, as represen tages independentes das suas condigées de vida e a ressemantiza- fo da culcura hegeménica feita pelos subalternos de acordo com seus interesses. No mesmo sentic tica “pragmética e funcionalista” das classes populares ea capacidade, limita & burguesia, de instaurar um campo auténomo edo belo, A partir dos critérios estéticos hegeménicos, pode ser dificil descobrir “a intengéo de harmonia ou de beleza” quando uma familia operéria compra uma panela ou decora sua cozinha, mas a observagio dos seus préprios modelos de elaboracéo simbélica demonstra que ela tem maneiras particulares de cultivar © gosto, nfo redutiveis & relagio com os modelos predominantes >, questionou-se a ciséo radical entre a esté- nem & preocupagio utilitaria, que também costumam estar presen- tes. Assim 0 testemunham muitos trabalhos dedicados ao estudo das clases populares. Na Gré-Bretanha, isso se tornou visivel desde a admitdvel investigagao de Richard Hoggart sobre a culeura operi- tia, The uses of literacy: a exuberincia das artes ¢ festas populares, o fervor pelo detalhe e a opuléncia de cores que registra fizeram com que esse autor falasse dos “cem atos barrocos da vida populat” (Hoggart, 1957, p. 139-196). Poderiamos nos afastar do propésito deste texto, evocando 05 estudos de antropélogos e historiadores italianos, sem diivida 5 mais sensiveis, na Europa, as manifestagées estéticas populares (penso em Alberto Cirese, Pietro Clemente, Lombardi Satti Amalia Signorelli). Nos pafses latino-americanos, uma ampla vida. Por exemplo, as festas religiosas em que se tealiza um gasto suntuirio do excedente econémico: 0 gasto tem uma finalidade es- ‘ética relativamente auténoma (0 dinheiro se consome no prazet da decoracio, das dancas, dos jogos, dos foguetes) ou intervém pa- maa obtengio do pres eventos confere a0 mayordomo, que 0 financiamento dos Concordo com Bourdieu quanto a0 fato de que o desenvolvi- mento modemo poss ou uma forte autonomizacéo do campo artistico e dos signos estéticos na vida cotidiana, e de que a burguesia encontrou na apropriaciéo Ia dos signos, destacados da sua base econémica, um modo de eufemizar ¢ le ia, mas sem desconhecer que nas culturas populares existem ma- nifestagGes simbdlicas e estéticas préprias, cujo sentido supera 0 pragmatismo cotidiano. Em aldeias indigenas, camponesas ¢ tam- bbém em grupos subalternos das cidades, encontramos partes da vi- da social que nao se submetem & ldgica da acumulagao cay nem estio regidas pelo seu pragmatismo ou ascetismo “pul ‘Vernos priticas simbélicas relativamente auténomas ou que sé se mar sua hegemo- Em algumas comunidades, os ancifos clegem um majordomo por ‘casio das festas religiosas, levando em conta, também, sua prospe- ridade pessoal. Cabe a cle limpar e preparar objeros religiosos, cape- las e igrejas, providen ha, oferecer comida e beb etc. (N. da T) on 94 maeas de capitalismo que se instauraram no transcurso dos iltimos vinte id., p. 456). Ao examinar os discursos ¢ os trabalhos esta~ tisticos dedicados aos excluidos, os autores observam que as desvan- tagens sociais sio consideradas como uma consequéncia de relagses centre miséria e culpa, ou de caracteristicas facilmente transformé- lade individual, de modo que se eli- mina a visio estrutural da exploracéo ligada & nogio de classe: “A excluséo apresenta-se mais como um destino (contra o qual & preciso lurar) do que como o resultado de uma assimettia social, de rido em prejuizo de outras” (i p. 458). Esses autores reconhecem a utilidade do conceito de ex sio para entender formas de miséria correspondentes 20 desenvol- vimento capitalist atual, mas se perguntam em que sentido esse 10 oculta dispositivos de formagéo do lucro préprios de modos cexploragio em um “mundo de conexées”. (O pensamento pés-moderno (nfo 960 neoliberal mas também 6 que sustenta uma critica social) destacou a mobilidade e a desver- ritorializagio, 0 nomadismo ¢ a flexibilidade de pertencimentos. Todos, inclusive os migeantes ¢ os cxilados, viveriamos com Muidez entre o global o local. Mas poucas vezes se ans condigées desiguais de fixider e mobilidade. Se, como explica Ronald Burt, as relagdes estabelecidas em rede sio conversives ‘em outra coisa, basicamente em dinheito, deve-se averiguar como & que atores com posigdes diferentes ¢ desiguais transformam as conexées ¢ a informacio em capital social. Boltanski ¢ Chiapello chamam de “grandes” aqueles que dispéem de maior capacidade de se deslocarem nos espacos geogréficos e interculturais, enquanto (0 “pequenos” estio destinados » imobilidade. Assim como no antigo discurso hegeménico, que atribufa aos ago (“trabalham pouco”, “nio ingfo entre os que se fixas dos sedentitios’. No entanto, existem vinculos estruturais ¢ complementares entre uns ¢ outros. Os pequenos ou localizados so os “duplos” indispensveis para o nomadismo ¢ o entiquecimen- to dos grandes. Como o grande tece sua relagio & distincia? “Entra em con- tato com uma pessoa (que pode ser 0 centro de um grupo de pres- sio) ¢ escolhe ou estabelece nesse lugar alguém que mantenha esta telagio. O duplo hi de permanecer no lugar que Ihe foi atribuido. Sua permanéncia nesse né da rede é imprescindivel para os desloca- mentos do grande. Sem sua presenga, 0 grande perderia, & medida que se desloca, tantas relagées quantas criasse. Nao poderia acumu- s. O capital se the escaparia. De que the serviria seu telefone lar (grande objeto de conex6es) se no tivesse.a certeza de encon- trar, do outro lado, no posto, na base, alguém capaz de atuar no seu lugar, alguém que tenha ao alcance da méo aquilo sobre o que é preciso A exploragao se forcalece num mundo de conexées a partir da imobilidade dos pequenos e gracas & duragdo com que os ndmades acumulam mobilidade e m izagao. Forte € quem, antes de ‘mais nada, consegue no ser desconectado e, por isso, acrescenta conexdes, Nas relagées clissicas de exploragéo, obtinha-se 0 poder gracas A repartis4o desigual dos bens estéveis, ixados territorialmen- te: a propriedade da terra ou dos meios de produgéo numa fébrica, ‘Agora, 0 capital que produz.a diferenga ¢ a desigualdade é a capa- cidade ou a oportunidade de mover-se, manter redes interconec- tadas. As hierarquias no trabalho ¢ no prestigio estio associadas no 36 & posse de bens localizados, mas também ao dominio de recursos para conectar-se. No entanto, errariamos se vissemos esse processo de forma linear, Esse mundo hipermével aumenta as dificuldades de identifi- cat pontos de enraizamento, regras estiveis ¢ zonas de confianca. A autonomia ¢ a mobilidade sio obtidas em troca da seguranca. Desconstruiu-se 0 antigo conceito de autenticidade, baseado na fide~ lidade a si mesmo, na resistencia do sujeico a pressées externas ¢ nna exigéncia de comprometer-se com um ideal. Costuma interpre- tar-sea fidelidadea si mesmo ea un como rigide, a resisténcia 9s 96 MAAS 408 outros como recusa de conectar-se, o compromisso com ideais permanentes como incapacidade de adaptar-se 2s variagdes da moda. ‘Mas, 20 mesmo tempo, comega a ser cada ver mais insatisfatério vi- ‘yer num mundo de simulactos, atificios e mercadorias inconstantes. Valoriza-se, entéo, junto com a flex depende s6 da sua plasticidade: “Se se limita a ajustar-se as novas situagdes que se lhe apresentam, corre 0 risco de passar desperce- bido ou, pior ainda, ser considerado sem grandeza ¢ assimilado a0 pequenos, a0s novos, aos ignorantes”. Para tirar partido dos essar”, ou contatos que estabelece, deve por sua vez, faca a conexéo com “outros mundos”. Uma vez que sua pessoa, sua personalidade contenha “esse ‘algo’ suscetivel de interes- sat ¢ seduzir tais contatos, seré capaz de atrair a avengéo ¢ obter apoio ou informagées. Mas, para tanto, deve set algiuém, ou sj, le- vvar consigo elementos alheios a0 mundo deles, elementos perce- bidos como caracteristicamente préprios” (ibid., p. 584). E possivel inserir nessa tenséo entre ser alguém ¢ ser flexivel, set local e ser global, um novo tipo de critica as inconsisténcias ¢ lismo? Para construir essa critica atualizada, deve-se reconhecer, em primeito lugar, que o capital social estendeu-se ais, deslocando o eixo das posses territoriais is da mobilidade ¢ das conexées. Em se- maceriais de as relagées intern: para os recursos intan; producto, identificando os apropria a ‘economia em rede: a) as pos idade e conexio io, disposigdo flexivel de todo o tempo dos traba- da sua jornada de trabalho); b) a transformacéo em “produtos”, dotados de um prego ¢ da consequente possibi- lidade de intercambio mercantil, de bens ¢ préticas que antes ¢s- o: as relagbes amistosas usadas como tavam fora da comerci ocasi6es para fazer negécios, as diferengas culturais estimuladas OIMERENTES, DESIGUAIS £ DESCONECTADOS 7 para incorporar os dissidentes ao mercado. Boltanski e Chiapello evocam “a prospeceio de jazidas de autenticidade conversiveis em fontes potenciais de lucro” (paisagens, bares charmosos, alternativo), capazes de restabelecer um sentido do auténtico com- pativel com as variagées da especulagio mercantil e da moda. Em- bora esses autores no 0 mencionem, as indiistrias da new age € da world music séo outros exemplos eloquentes. A lista pode ser ampliada, Chama a minha atengio 0 fato de ue esses autores no destaquem as radioftequéncias, chaves da co- nectividade mididtica, a ‘propriedade mai segundo avalia Jeremy Rifkin (2001). Nas redes eletrés concentraséo e irradi ” (Ford, 1999, p. 147), que organizam o acesso desigual aos bens e as mensagens. Em grande parte da so- clologia francesa, continua a existir uma cisio entre quem estuda as redes comunicacionais e quem se ocupa do resto da vida social. Teremos de voltar mais adiante aos mei de comunicasio rais hegeménicos ou diversos, mas suscetiveis de serem codificados Para inser-losfacilmente no process de acumnulagéo, Apesar de néo desenvolverem essa ideia no campo midiitico, vale a pena citar a distingfo que Boltanski e Chiapello fazem entre a estandardizagéo, imperativa na produgdo em massa do capitalismo industrial, ¢a co- dificagdo da etapa mais recente, “Enquanto aestandardizagdo consistia em conceber 0 produto uma primeira vez e submeté-lo & reprodu- «fo idéntica do maior mimero possivel de exemplates absorvidos pe- Jo mercado, a codificagio, elemento a elemento, permite jogar com combinagées ¢ introduzir variagées com o fim de obter produtos relativamente diferentes, ainda que do mesmo est ‘modo, a codificagdo possibilita mercantilizar diferengas inv produgéo estandardizada, Fazem-se mercadorias com “o auténtico”, a0 conservar parte da singularidade que dava valor a0 original. cy Sirva de exemplo o pequeno bar montado sem cui ivamente, a olho, ¢ que funciona, Que 0. Para amplig- lo em outro lugar esas desarrumadas? Os pra simpatia dos seus que outros consumidores estejam dispostos a pagar ‘mais em outro lugar)? Para sabé-lo, é preciso anali- sar o bas, descobrir 0 que & que Ihe dé esse cardter de verdadeira aute selecionar algumas das suas qualidades, es e as mais transportiveis. (0 puiblico, por

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