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Prefacio Gustave Bernardo! Secs lingua erie a retidade € 4 posi via a lingua, ‘que era a poe? Esa 6a pergunta do leitor quando comegaa ler a obra-prima do filésofo Vilém Flusser, Lingua e realidad, ora.cm bela reedigéo comemorativa daeditora Annablume. HA quacentac um anos atti, zn 1963, ese livo foi publicado, em portugues, pel edtora Herdet. Desde entéo, nunca foi reeditado, em porcugués ou em outra lin- gaa, obrigando-nos, leitores de Flusser, a procu-lo em bibliotecas, cm schos ou através de e6pias xerogrdficas. © volume com que trabalhei, por exemplo, comei-o virias vezes emprestado do fil6s0- fo Leandro Konder, até que ele gentilmente (ou ironicamente) resolveu me presencear com 0 préprio. “Trata-se de uma obra-prima por sero primeira livro desse pen sador , também, por sex um livro absolatamente fmpar. Nunca ances ¢nem depois discutiu-se uma filosofia da lingua como neste trabalho, baseado no apenas na informacéo de um erudiva como também na vivencia de um poliglota exilado. Lingua e realidade {fi escrito em portugués por um fldsofo tcheco que usualmente ‘screviaem slemo.A partir da sua redacSo, Flussersentiu-seincor- porando o portugués como uma terceira lingua materna (por cscranho que isto possa parecer 2 um monoglota dos trépicos que seesforca, 20 maximo, para tartamudear em inglés) ‘Um dos iltimos episédios da sua vida demonstra o que dize- ‘mos. Em 1991, recebeu eonvite para profetir conferéncia no Insituco 0 Vite Fae Goethe de Praga. Voltava asua cidade natal pela primeira ver, des- dde que fugira dos nazistas, em 1939. Na conferéncia, empolgou-se a ponto de alternar o tcheco eo alemao, até que, sem perceber, comegou a falar em portugués a lingua dos seus flhos,alingua dos seus afetos. Sua mulher, Edith, precisou avisé-lo quea platéia nfo cstava entendendo muita coisa. No dia seguinte, ee e Edith fizeram um piquenique no bos- que em que costumavam ir quando criangas, Ao tomarem 0 carro no meio de forte neblina, si0 abalroados por um caminhio bran- co. Edith sobrevive, mas Vilém Flusser morze no acidente, na cidade ‘em que nasceu, no dia 21 de novembro de 1991. A sua pedra tumular, no cemitério judcico de Praga, contém uma inscrigéo em tués idiomas: em hebraico, em tcheco, ¢em postugués. Em carta para a pintora Mira Schendel, Vilém explicava por- ‘que sistematicamente traduziaa si mesmo. Escrevia tudo primeiro em: — “que éa lingua que mais pulsa no meu centro”. Tradu- zia depois para o portuguts, “que &a lingua que mais articula a realidade social na qual metenho engajado”. Depois traduzia para 0 inglés, “que éa lingua que mais articula nossa situagio hisesrica e que dispoe de maior riqueza de repertério ¢ forma’. Finalmente, traduzia paraa lingua na qual queria que o excrito fosse publicado— “por exemplo, retraduzo ara o alemao, ou tento traduair para 0 francés, ou reescrevo em inglés”, Procurava “penetrat as estruturas as varias inguas até ur niicleo muito geral ¢ despersonslicado para poder, com tal nticleo pobre, articular a minha liberdade”. ‘Nao escrevia em tcheco, porque a expressividade adocicada da lin- gua materna nfo Ihe agradava, embora comentasse, galhofeiro: “cu falo tcheco em vérias linguss”. Antes de mais nada escrito, recorre. & sentenga latina scribere neces et, vivere non est, que mais tarde usou como epigrate do liveo Die Schrif No manuscrito inédito, “Retraducio enquanto método de tra- batho”, Flusser moscrou-se fascinado com os acordas cos desacordos entreas virias linguas e seus “espiritos", como os chamava. O ale- Unga Reldade " sngo desafava a sua mente a nfo se entregar ao convire sedutor da profundidade para, entiéo, buscar careza. O francés, 20 contritio, desafiava-o a resist a0 virtuosismo verbal para obrigar a lingua a tocar em surdina. O portugués seria para clea lingua das digressOes, logo, da indisciplina, convidando-o a concer-se. O inglés, lingua sfntese, contendo tanta eiéncia, técnica, filosofia © kitsch quanto nenhuma outta, desafiava-o a podar a profundidade alem§, 0 bri- Iho francés ¢ a genialidade portuguesa, de modo a reduzir 0 texto aoessencial, Flusser dramatizava, através das linguas, 0 seu estar no mundo. Blogiando o feribmeno da migracio de que foi objeto ¢ participe, afirmou, no liveo Natural:mente:“estrangeiro (c estranho) € quem afiema seu préprio ser no mundo que o cerca”. Ser cstrangeiro, portanco, é necessério, tanto quanto viajar, ou imigrar. Navegar é preciso, viver nao é preciso; escrever € preciso, vive no ¢ preciso. E 6 filésofo navegava ¢ excrevia no apenas entre dois continentes, ‘mas também entre pelo menos quatro idiomas. Em muitos momentos, Vilém se referiu& importéncia, para o seu pensamento, de ter escolhido migrar ¢, em conseqiiéncia, de haver escolhido a Lingua portuguesa como sua outra agua mater- na. No 10° Simpésio Vilém Flusser, na Suisa, em 2001, a pesquisadota italiana Francesca Rigotti observou que o filésofo te- ria elaborado uma conveniente e romantica justificativa a posterior, uma vez que tanto a migragio quanto a lingua portuguesa Ihe teri- _am sido impostas pelas circunstincias, de resto nada agradaveis. Na ocasizo, discordei de Francesca. Argumente, por analogia, que cu nio poderia ter escolhido a mulher que vive a meu lado, ‘uma ver que ndo teria tido a oportunidade de conhecer ¢ experi- ‘mentar todas as mulheres do mundo. Ao mesmo tempo, porém, eu precisava, como preciso, escolher a mulher que vivea meu lado todos 0s dias, para viver uma vida realmente boa. Logo, nfo esco- hemos lberalmente entre muita possbildades, porque cada escolha importante se diem razio de uma possibilidade dnica. Vem Fuser Como diz 0 ditado est6ico, “o destino guia quem consentc € arrasta quem recusa”. Ou, segundo Ortega Y Gasset: “eu sou eu € minhas circunstancias’. Formulando de outra maneira: como ni ‘scolho as minhas circunstincias, preciso escolhé-lascotidianamen- te. Por isso a lingua, para Flusser,é seu compromisso e sua forma de teligiosidade, como comenta no trecho abaixo, que aparece em mais de um arti Oscontomos de mex futuro pensamente comegava deine; ‘problema cnt viiaasealingus. Em pines hau, obviamente, org sno agua. Amo aa beler, sa rigue, eu minis ¢ sev encanto. Sd sou verdadeiamente quando fle, seo, ea ou quand cle sustura dentro de mim, querendo atcularsc. Mas também porque ela € forms simi, morale do Ser gue va © ‘era vereda pel qual me igo ar outros, campo deimrtalidade sere perenninn, matésia ¢ insteumento da arte. Ela é meu ‘ompromisoaraés dela conccbo minha reidedec pr cs dering ‘amo o eu horizont efundament,osléncio do indafve. la & ‘mins forma de rigisiade.#, quip, ebm afuma pela quad Esse judeu sem Deus, semelhanga de Freud, é religioso a seu modo. No sentido radical e nfo paternal do termo, a lingua éa sua dimensio religiosa, se implica o mistério por onde ele também se Pere, Nesse sentido mais amplo, sua religiosidade procura nao a Verdade mas sim a Procura. Coerente com essa procuta 0fildsofo «sboga jd no seu primeiro livro uma filosofia da lingua, sabendo auc es floofis nfo pode se sendonebulos. Ese carder da l- sofia ndo a tornava nls, se nao partia da suposigao de que toda a verdade sti to-somente uma iusiolingUstcs. Ao contri dis 0, assumia jé um filosofar resistente e insistente. Flusser afirmava que wniverse, conhecimento, verdade e reai- dade si0 aspectos lingifsticos. Aquilo que nos vem por meio dos sentidos ¢ que chamamos “realidade” é dado bruto, que se torna seal apenas no contexte da lingua, nica criadora de realidade. No Lng e Reside 8 eatanto, como as linguas, plurais, divergem na sua estrutura, diver- gem também as ralidades criadas por elas. Anatol Rosenfeld, 20 resenhar Lingua e realidade em 1964, discordou das tses de Flusser mas, a0 mesmo tempo, recomendou aleitura do seu livro, que considerou “magistral”. Reconheceu no trabalho intuigées profundas e percebeu nas anilises modelos de argicia. Pela originalidade, considerou-o um livro poético, formu- lando talvez 0 elogio mais perseguido pelo proprio fldsofo. No entanto, ee nio considerou vilidas, no campo da ontologia, as te- ses de Flusser, porque elas borrariam os limites dos vitios tipos de ser, impedindo que se entendesse bem a diferenca entre o centauro, ser imaginiio, 0 triingulo matemético, ser ideal, ¢ a drvote, ser tal Tudo se nivelaria na noite dos gatos pardos, a lingua produzin- do sua prépria realidade, espécie de divina causa desi mesma, ‘Anacol admitiu haver alguma verdade na afirmagio de que a lingua determina a nossa visio da realidade, mas essa verdade seria apenas parcial. Para ele, teria sido melhor se Flusser se tivesse imi- tado ao exame cuidadoso dessa verdade parcial, “em vex de pregar logo um mito c arrancar dos seus diversos nadas toda uma mistica” ‘Todavia, admitiu 0 conselho como “filisteu” ante esta filosofa kidica, chegando a considerar preferfvel que Flusser continuasse escreven- do livros como aquele, “espléndidos, conquanto errados", até porque ceitos ertos podiam ser mais ecundos do que tantas verdades, Este €0 interlocutor que Flusser sempre procurou: aquele que, quaisquer que fossem as suas conviogdes,acctasse participa da “gran- deconversaso geral”. Este tipo de interlocutor vé erro, mas admite que o erro que vé possa ser“espléndido”. Vilém teplicou a Anatol no mesmo jornal, O Estado de Sao Paulo, afirmando que a primeira motivagio do seu livre havia sido responder 20 desafio que Ihe fora lancado pela lingua portuguesa, centendendo que a literatura brasileira de filosofia seria uma litera- tura alienada de sua prdpria lingua. Do seu ponto de vista de imigrante, tratava-se de uma literatura de erudigio que parasitava “ Vim Fuser obras inglesas, alemiscfrancesas, Para se contrapor, comoua lingua portuguesa como personalidade auténtica, sujeitando-se aos seus mandamentos ¢ tentando formular pensamentos por cla ditados. Deixou-se arrastar pela beleza dos verbos “ser” e estar’, saborcouo isterioso “hd”, esforgou-se por desvendar o segredo do Futuro for- mado por “haver”¢ “it”, mas p:ocurou néo perder o contato coma conversagio filoséfica geral, apelando sempre para as trés linguas {que entio the eram {ntimas: @ alemao, o inglés ¢ 0 tcheco. Aos Poucos, a ingua portuguesa tomnava-se o scu laboratétio, as outras ‘s&s passindo a constituir um sistema de controle. A segunda motivagio do seu livro era 0 desespero no qual a leicura de Wittgenstein, provando que a lingua gira em circuito fechado, o tinha mergulhado. A lingua espelha o comportamen- to das coisas entre si, 0 qual, por sua vez, espelha a lingua, como dois espelhos pendurados em paredes opostas num quarto vazio, ‘Se um juizo reflete uma situasio, é certo, mas vazio. Se nio 0 reflete, mero ruido. As situagées consistem de conceitos questo as sombras das palavras, como as palavras so as sombras dos con- ccitos. Em suma, a realidadc, para além das situagdes, para além do comportamento das coisas umas em relagio as outeas, sria inteleccualmente inating(vel. ___ Aterezira motivasio do seulivro residia na inquietagto que lhe ‘causavaa fluides da realidade. Semethante fluider nio estaria con- remplada pela rigidez dos sistemas ontoldgicos fornecidos pela ttadisio filosdfica. A partir dessa constatagdo, Flusscr vomou os ‘cxemplos levantados por Rosenfeld e os procurou demolit. Com que direico, perguntou, posso afirmar no ser uma drvore um ser imagindrio para o eodlogo ~ quesé reconheceafloresta como real? Com que dircito, insistiu, posso afirmar a idealidade do triingulo, se ndo estiver mergulhado numa camada geométrica de conversa. 0? Com que diteito, concluiu, posso afitmar ser um cemtauro de fato imagindrio para o grego do século IX AC, a nio ser com 0 direito da minha propria superioridade auto-designada? Lingua Resldade Sistemas ontolégicos que dividem as coisas em imagindt oe ne no refletem, de modo algum, a uidez da realidade. E preciso permitir 20 centauro condigo de idealidade, em determinado nivel de conversagio, como é preciso petmitir & drvore o status imagindtio e ao triingulo a chance de realizar-se. Rosenfeld nao estaria a pereeber o conceito de “realiza- do”, que aparece melhor na lingua inglesa: “do you realize it?”, isto & “voce compreende?” Logo, algo se “tealiza’, algo se torna teal dentro do processo lingtifstico, quando esse algo é compreendida, pelos intelectos em conversagio autntica. Encerrando a réplica, Vilém aplaudiu a critica que recebera de Anatol. A publicagio do desacordo, no seu entender, enriquecia a conversagio ¢, portanto, ampliava a realidade. Com a mesma cle- sincia do resenhista, considerou a critica recebida da maior imporcincia para.a propagagio do seu préprio pensamento. i © hiingaro Paulo Rénai — que, como Vilém Flusser, Anatol Rosenfeld, Orto Maria Carpeaux e tantos outros, viera para o Brasil fagindo da perseguicio nazista aos judeus—resenhou Lingua e realida- deno mesmo ano e no mesmo jornal, mas sua resenha foi francamente fayorivel ao ivo, Puxando a brasa para a sua sardinha de tradutor, ‘entusiasmou-se com as demonstragies de Vilém Flusser: “se cada lin- gua é um mundo diferente, 20 mesmo tempo, o mundo intro, 0 problema da tradugio edo poliglotismo reveste-se de importincia des- comunal, Antes que uma conversio, a tradugao & uma comparago; ais do que isso, uma ressurreigéo”, Deslumbra-se com a leitura de obra de horizontes tio vastos,assinalando o mérito de sr escrita por tum forastciro-em portugués. A traducio, forgando uma lingua a do- brarse,aacompanharas curvas de um pensamento estringcito, seria talvezo} ee ened a eed mages. Essa obra-prima de Vilém Flusser trata das questées primérias da filosofia, como aquela que persegue os fildsofos desde Plato: se ‘0 mundo pode ser pensado, pensar sobre o pensamento revelaria os tragos essenciais da estrutura do mundo? Vio Hse Responder hojea essa pergunta exige repensa ocagitcartesiano, Narelasao entre o mundo ea perspectiva que representa no se pode isolar 0 sujcico: 0 sujeito & 0 que na perspect mostra, assim como 0 eu éa do, nose ropricdade interna do mundo, Se le aso constieuem um jogo, como jogndor posto saber que o outro pens se aprender a interpreta seus ble, seus tigues sexy ods, mas no posto saber nique eu pent; poe sercor ‘Rgds "eioquevot pena’ mar pavement cd sna ‘si o que eu penso”. No momento em que tento flan com blinhou Clarice Lispetor no seu primeivo omance "aay ng ‘fo exprimo o que sinto como 0 que sinto se transforma lenrenens no queen di © mundo éindependente da vontad a vontade porque ito delingua- 'gem,entio “ss minhaspalavas mesurpreendemamimm mesmo one ¢asinam o meu pensamento”, como queria Merisu-Ponty. Arcane scalidncias da palavraultrapassam as premissas, Quem file oases sssrianene coro quexpeanude ue quem on De so eg sou” nao se deduz automaticaments “flo oye sou es 4 filou’: seo que digo tem sentido, sere para mim meme cnn lum outro ~ jf nao sei muito bem quem fou e quem ouria, No fnago do presentee no exerccio da palavraéqueaprende acompre, nde porque todo sentido se di a posterior, Percar no din dy mesmo Ponty, “no & possuir objetos de pensamente, cine através deles um dominio por pensar, que portanto a mos”. Quando se trata do Tide obra objeto do pensar, inda nfo pensa- Pensa, diz Heidegger, e quanto maior for mais rico serd 0 impensado. O chamado Progresso das idéias se dé obliquamente, pois cada idéia nova se toma diferente do que era antes de ser compreendida. A linguagem nao é serva das significagbes. Logo, oescritor , por definigéo, um profis- ‘onal da inseguranca, Vilém Flusser nos dé no mais do que pi wo mais do que pistas para responder a lingua, quem cria.a poesia? —ao formular sua defi io de poc- Lingua Reldade @ sia: “poesia € 0 esforgo do intelecto em conversasio de eriar lin- sua A resposta nfo é dada pelo esforco, a resposta esti no esforgo. Flusser aproxima-se do poeta: néo quer formalizar 0s seus pro- blemas, para nao esterilizd-los. Nao deseja criar sistemas consistentes, porque o prego da consisténcia éa improdutividade. Em contrapartida, pretende sempre provocar novos pensamentos campliara conversagio, Assim, os titulos dos capitulos de Lingua e realidade formu- lam osaxiomas geradores da sua concepcio: a lingua é forma, criae propaga realidad “Tais exiomas no implicam recusa da realidade. Continuam cxistindo 0 conhecimento, a realidade e a verdade ~ apenas, 0 co- nhecimento deve ser visto como menos absoluto do que nossas filosofias pretendem, a realidade, como menos fundamental, e a verdade, como menos imediata. A sabedoria dos antepassados 0 confirma: logos, a palavra, € 0 fundamento do mundo dos gregos pré-ilos6ficos; nama-rupa, a palavra-forma, é o fundamento do mundo dos hindus pré-vedistas; hachem hacadoch, o nome santo, €o deus dos judeus—e o Evangelho comeca dizendo que no comeco era 0 Verbo. ‘Asua ilosofa nfo é exaramente neo-nominalsts, embora beba dessa fonte. Tiata-se de pensamento que encara 0 enigma sem desfazé-lo. As palavras sfo “uma coisa no lugar de outra”. As pala- ‘ras, todas, sio metéforas. Flas substituem, apontam, procuram, mas 0 qué? A resposta ingénua: a realidade. A resposta sofisticada: nada. A resposta de Flusser € outra: “é que as palavras apontam para algo, substituem algo e procuram algo além da lingua, nio é possfvelfalar-se deste algo”. Esta resposta seria Sbvia se nao fosse tao inc moda. Para ele, as palavras si0 pequenos portais de acesso ao desconhecido que se abrem quando abrimos a boca mas pelos 4quais nfo passamos, quedando-nos na soleira. Parece absurdo, porque s6 0 que se faz € falar desse algo: mas, ‘40 mesmo tempo, parece légico, porque se as palavras estio no 8 Vil Fame lugar de outra coisa é porque essa coisa-em-si, kantianamente fae Jando, nio nos éacessivel—se foss, no precisariamos das palvtas. Portanto, ha, sim, a coisa a que chamamos realidade, mas as pala ras nos servem para tio s6 chegarmos perto dela ‘Gramética, Logica, Matematica e Ciéncia continuam a ser vili- das, mas num sentido epistemoldgico restrto: nada afirmam da realidade em si, apenas de realidades tais como a portugues: “a fa- rrespondéncia entre frases ¢ realidade nio passa da cormespondéncia entre duas frases idénticas. A verdade absoluta, se ‘xiste, ado € articulével, portanto, nao é compreenstvel”. A lingua aparece como processo procurando superar si mesmo, o que nfo aconteceria se houvesse uma tnica lingua. Neste caso, talvez houves- se correspondéncia untvoca entre dado bruto e palavra; as regras da suposta lingua nica revelariam o aspecto intern das leis que regem arealidade, enquanto esas leis desvelariam o aspecto externo das leis que regessem a lingua. Com efeito, se existisc uma énica lingua e ‘sta fosse0 alemao, seriamos todos, brinca Flusser, kantianos. As regras da lingua tinica seriam as categoria da razio pura, como deter- sminara Kant. Todavia, nio € 0 caso. Digamos, entio, quea ralidade ese proxima do intelecto, mas nao proxima. suficiente,O intelecto dispoe de uma colecio deécu- fos — as diversas linguas ~ para observar a tealidade. Toda vee que ‘roca de éculos, porém, a realidade difere, o que provoca perturba ‘#0: uma ontologia que opere com sistemas substitulveis de ralidade afigura-seinvolerivel. Como Vilém resolve o problema? Ele abando- ‘8a oconceito de realidad como conjunto de dados brutos, optando por entender qucos dados brutos se realizam quando artculados can palavras: néo sio de fato realidade, mas sim potencialidade, Elusser cenxerga na ciéncia, tal como a conhecemos no Ocidente desde 0 Renascimento, uma nova lingua, na qual os dados brutos se realizam como simbolos matematicos. Por sera cigncia lingua recent, asta independéncia da coisa-em-si éevidente, explicando a sensayiio de intealidade que nos invade quando penetramos no territério das cién- Lingua Reside » cias exatas: “a ciénela, longe de ser vélida para todas a linguas, €cla or6pria uma lingua a ser traduzida paraas demais™ Eadie eras lta epee da eos, Sea traducio de uma formulagio ae para um idioma como «© poreugués for possvel, isso significa que a coisa-em-si se rornou Sect Piero on ore ithe urna ace seboea gues para o inglés (ou o tcheco, ou: © hebraico) for possive, isso também significa que acoisa-em-sise tornou acessivel. Entretanto, nfo é novamente 0 €a50. Explorando 2s contradigdes internas dos problemas que en- frenta e evitando sand-las,o poliglota Vilém Flusser entende que & secusainstintiva do monoglowa de accitar como equivaleate osig- nificado de uma outa lingua é sinal de repulsa sadia contra 0 clativismo ontolégico proporcionado pelo poliglotismo: aquele «que ndo fala “a lingua da gente”, ou que fala mais de uma lingua, deve ser suspcito, pois perdeu o fundamento firme da realidade ‘que outra coisa nao é do que “a lingua da gente”, O Eu no apenas ppensa por meio da Iingua matemna, mas ele a ama. Esse amor revela- seo dlkimo refigio ante a relatividade da realidad, explicando em parte o poder ieacional que nacionalismo exerce sobre as ments Quanta inguas ha? Quantas “familias” de aguas existe? Para cle, hd teés tipos de lingua: flesionai, aglurinantes ¢ iolances. 130 significa que exstem trés grandes tipos de mundo dentro dos quais 0 inteleeto pode viver. Enquantoa civilizagio ocidental sc constrdi so- breo teritdrio das inguas flexionas, a civilizagio oriental consudi-se no terttério das linguas isolantes. E-hé ainda um mundo que nfo € nem ocidental nem oriental, mas aglutinante, como 0 dos exquimés. ‘A cada lingua corresponderia um cosmos diferente. Aquilo a que chamamos realidade é lingua: determinada Ifngua. A his- t6ria do pensamento humano seria, no dizer de Wittgenstein, a colegio das feridas que esse pensamento acumulou ao precipi tar-se contra as fronteiras da lingua. Toda lingua representa um montinho de cinzas que espelham um processo, mas jé no fa- ~ en Hee is parte dele: “a lingua exceriorizada, ito &, civilizngio, & realidade ultrapasiada’. A lingua, em seu avango a partir da pos- sibilidade em diceyio a0 porencial, deixa para trés, conio cinzas, acivilizaggo, isto ¢, a realidade ulerapassada, Allingua tio 56 produs realidade como propaga rvalidade, di- icultando a compreensio da sua origem, A natureza existe: pedias, va, drvotes, fornc, s4o fenimenos reais exatamente por ‘que sio palavras. As zelagoes entre esses fendmenos ¢ nés também so reais, porque formam frases, A realidade sé pode ser real para 186s sca soletramos primeiro: antes disso, apenas se balbuciam ter- sores inominados. “De quem ¢ a ver", pergunta o jogador na mesa de paquer, apenas para que alguém responda: “normalmente é de quem per gunta’. A pergunna concém 2 resposta ¢ a resposta é um espelho céncavo. A lingua produ, contém e propaga a salidade, porquea scalidade ela mesma ¢ uma palavea assim como “existencia”¢ “exis- tit” sfo palavras que retornam sobre as préprias pegadas. Reconhecé-lo nio implica solipsismo ou apocaliptismo, pessimis- maou niilismo, Reconhecé-!o implica acompanhar 0 movimento das coisas, vendo com carinho em cada palavra, como queria Vilém, “obra de arte projecada para dentro da realidade da conversagio a partie do indizivel, em cujo aperfeigoamento colaboraram as gera- cs incontéveis dos intelecrosem conversagio ea qual nos é confiada pelaconversagioa im de que a aperfeigoemos ainda mais ea trans- initainos aos que virdo, para secvi-thes de insteumento er busca do india”. Vilém Flusser aprendew com Husserl que a vida néo é desco- bherta; que a vida € Sinngeben — isto é, doagio de significado ou, ‘numa palavra: poesia, Que a vida ¢ uma teverente e espantida no- -meacio dos fenémenos ware Beraid ¢ yor de Tei Teens 4 UERY eo <4 Fhayer (Sto Paes Cobo, 2002.

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