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ad MO ea Powe ee te Bret ose] GILLES DELEUZE A IMAGEM-TEMPO ‘CINEMA 2 Traducao Eloisa de Araujo Ribeiro Revisio filoséfiea Renato Janine Ribeiro editora brasiliense Copyright © by Les Btvions de aint, 1985 Thala orgina em frances: Lmage-temps Copysight © da traduedo brasileira: Eaitra Braslionse SA [Nenhuma parte desta publicagdo pode ser gravada, armazenada ‘em sistemas elettnicos, fotocopisda, reproduzida por meins mectinieos ‘ou outros quaisquer scm autorizagio prévia da editora ISBN: 85-11-22028.3 P edigzo, 1990 1* reimpresséo, 2005 Revisto téonica: André Parente Preparagio de originals: rene Hikisht Rovisio: Mawcio Bichara e Carmen Costa (Capa: Bitore Bonini A tradutora agradece a Foie Luiz Ribeiro ¢ a Roberto Machado pelo carinho © amizale com que ajudaram a resolver as dificuldades encontradas no decorer da traducio,¢ a genileza dos responsitveis pela Cinemateca do MAM/R/ que forneceram os titulos dos filmes ~em portugues e ma sua Versio original - citados ao longo do livro. Dados Internacionais de Catalogaco na Poblicagio (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Deleuze, Gilles, 1925 - 1995 ‘A imagem-tempo / Gilles Deleuze; tadugdo Eloisa de Araujo Ribeiro; revisio filoséfica Renato Janine Ribeiro. - Sto Paulo = Brasiliense, 2005 - (Cinema2) ‘Titulo original: Limage-temps Bibliogratia, ISBN: 85.11-22028-3 1. Cinema - Filosofia |. Ribeiro, Renato Janine IL, Titulo IL. Série, 04-8029) CDD- 791.4301 Indices para catilogo sistemtico: 1. Cinema : Filosofia 791.4301 editora brasiliense s.a. Rua Airi, 22 - Tatuapé - CEP 0310-010 - Sao Paulo - SP Fone/Fax: (Oxx11) 6198-1488 E-mail: brasilienseedit@uolcom.br www.editorabrasiliense.com br livraria brasiliense s.a. Rua Emilia Marengo, 216 - Tatuapé - CEP 0336-000 - Sao Paulo - SP ie ok ato Sumario 1. Para além da imagem-movimento Como detinir 0 neo-realismo? * As situagdes dticas e sonoras, em ‘oposisao as situagdes sens6rio-motoras: Rossellini, De Sica," Op- signos e sonsignos: objetivismo-subjetivismo, real-imagindtio. * A nouvelle vague: Godard ¢ Rivette, * Os tactisignos (Bresson). .. ‘Oa, invencor das imagens dticas e sonoras puras, * A banalidade cotidiana. Espacas vazios ¢ naturezas miortas. * O tempo como forma imutavel i © intoleravele a vidéncia. " Dos clichés & imagem. © Pate além do movimento: nao apenas os opsignos e sonsignos, mas os cro- nosignos, os Tektosignos, os noosignos. * Exemplo de Anto- nioni. Fi 2. Recapitulagto das imagens e dos signos Cinema, semiologia e linguagem. * Objetos e imagens. Semidtica pura; Peirce, ¢ 0 sistema das imagens ¢ dos signos. * A. imagem-movimento, matéria sinalética e tragos de expresséo nao relativos i linguagem (0 mondlogo interior) A imayem-tempo e sua subordinacao & imagen-movinento. * A ‘montagem como representagdo indireta do tempo, * Asaberracées, de movimento. * A emancipagdo da imagem-tempo: sua apresen- taedo direta. * Diferenga relativa entre o classico e moderno. ‘ 3. Da lembranea aos sonhos (terceiro comentirio a Bergson) 0s dois reconthecimentos segundo Bergson. * Os circuitos da ima- gem ética e sonora, * Personagens de Rossellini... Da imagem 6ticae sonora a imagen-lembranca. * Flashback e ci cuits. * Os dois polos do flash-back: Camné, Mankiewicz, ° O tem- po que se bifurea, segundo Mankiewicz, * Insuficiéncia da imagem- lembranea 8 7 a ry ey 6 ‘Dos cireuitos cada vez maiores, * Da imagem ética ¢ sonora & imagem-sonho. * © sonho explicit ¢ sua lei. ° Seus dois pélos: René Clair e Bulluel. * Insusleiéneia das imagens-sonho. * O “"so- tho implicado"; os movimentos de mundo. * Magia e comédia mu- sical. * De Donen ¢ Minneli a Jerry Lewis, * As quatro idades do Dourlesco, # Lewis € Tali, nsorcensnee st ieleatattt Pa Os cristais de tempo ‘© atual eo virtual: 0 menor circuito. * A imagem-cristal.* As dis- tingdes indiscerniveis. ° Os tds aspectos do circuito crstalino (exem- plos diversos). * A questo ambjgua do fihme dentro do filme: dinheito e 0 tempo, a arte industrial, ‘© atual c o virtual segundo Bergson. * Teses beresonianas sobce © tempo: a Tundagdo do tempo. .. 9% (0s quatro estados da cristal eo tempo. * Ophuls e o cristal perfel- to. © Renoir ¢ 0 ctistal rachado. * Fellini e a formagao do cristal, © Problema da snisica de cinema: cristal sonora, galope ¢ estribi- Tho (Nino Rots). * Visconti e o cristal em decomposigao: os cle montos de Visconti dtaieae aire 04 Pontas de presente ¢ lenedis de passado (Quarto comentario a Bergson) AAs duas imagens-tempo diretas: coexisténcia dos fengdis de passa- do (aspectos), simultaneidade das pontas de presents (acentos). * ‘A segunda imagem-tempo: Robbe-Girille, Buituel. * As diferen- cas inexpliciveis. * Real ¢ imaginério, verdadeiro e falso. ...-.. 121 A primeira imagem tempo: os lenpéis de passado segundo Orson Welles. * As questdes dle profundidade dle campo, * Metafisica da meméria: as lembrangas evocdveis initeis (imagem-lembranga), as Jembrangas inevovdveis (alucinagdes). * A progressio dos filmes de Welles. * A meméria, o tempo e a terra... - 129 5 lengéis de passado segundo Resnals. * Memdria, mundo e ida- des do mundo: @ progress dos filmes. * As leis de transforma- 40 dos lengdis, as alternativas indecidiveis. ° Plano longo e mon- tagem de planos curtos. * Mapas, diagrama e funedes mentais. * ‘Topologia ¢ tempe nao-cronolégico. * Dos sentimentos ao pensar mentor @ RIPNOSE. ors orerernte sestseteeesee MI AS porncias do faiso (0s dois regimes da imagem: do pont de vista das deserigdes (des- crigao organiea e descrigdo eristalina), * Do ponto de vista das nar- rages (narrasio veridica ¢ narraglo falsificante). * O tempo e 2 potincia do falso na imagem. * A personagem do falsério: sua mul ‘iplicidade, sua poténcia de metamorfose. .... pesceeees 155) Orson Welles ea questo da verdade, * Critica do sistema de jul samento: de Lang a Welles. * Welles e Nietzsche: vida, dovir ¢ po- téncia do falso. * A transformagao do centro em Welles. * A com plementaridede de montagem de planos curios © do plano- soqiiéncia. * As grandes séries de falsérios. * Por que nem :udo se equivale. 168 Do ponto de vista do relsto (narrativa veraz e narrativa simulan- te). * O modelo de verdade no real ena fiegao: Eu=Eu, * A dupla transformagao do real ¢ da fleedo. * “Ew é outro": a simulagio, a fabulagdo. * Perrault, Rouch ¢ 0 que quer dizer “cinema verdade". © antes, 0 depois ou 0 devir, como terceira imagem- tempo. 179 7 O pensamento € 0 cinema As ambigdes do primeito cinema: a arte das massas ¢ o novo pen- samento, o aut6mato espiritual. * O modelo de Eisenstein, © Pri- tieiro aspecto: da imagem ao pensamento, © chogue cerebral. * Segundo aspecto: do pensamento a imagem, as figuras ¢ 0 moné- logo interior. ® A questo da metafora: a mais bela metaiora do cinema. * Terceiro aspecto: a igualdade da imagem e do pensamen- 0,9 vncao do bomen ¢ do mundo, * 0 penne, potéaca ‘saber, 0 Tudo, 189 A crise do cinema, a ruptura, * Artaud precursor: a impoténcia de pensar. * Evolugao do autdmato espiritual. * Em que o cinema std essencialmente afetado. * Cinema e catolicidade: crenga, em vez de saber. * RazSes para erer neste mundo (Dreyer, Rossellini, Godard, Garrel. ... Unna estrutura teoremitica: do (eorema ao problema (Astruc, Pa- solini) * O pensamento do Fora: o plano-seailéncia * O problema, a excolha ¢o autOmato (Dreyer, Bresson, Rohmer) * O novo esta tuto do todo * Intersticio e corte irracional (Godard) * O destoca- mento do monélogo interior ¢ a recusa de metéforas * Retorno do problema ao teorema: © método de Godard e as eategorias. ... 209 198 3. Cinema, corpo e eérebro, pensamento “*Dé&me entéo um corpo”. * Os dois pélos: cotidianidade e eeri- moOnia. * Primeira aspecto do cinema experimental, * © cinema do corpo: das atitudes ao gestus (Cassavetes, Godard e Riveite) © Apds a nouvelle vague, * Garrel ¢ a questio da eriagdo cinema. togréfica dos corpos. * Teatro e cinema. * Doillon & a questio do espaco dos corpos: 2 nao-escolla. Dé-me um eérebro. * © cinema do cérebro e a questio da morte (Kubrick, Resnais), * As duas mudancas fundamentais do ponto de vista cerebral. * A tela preta ou tela branca, os cores irracio- 27 nais ¢ 05 re-encadeamentos. * Segundo aspecto do cinema expe mental fatally ee islstl Cinema e politica, * © povo falta... * O transe. * Critica do, mito, * Fungo fabuladora © produgao de enunciados cole- tivos. m4 237 9. Os componentes da imagem (© “mudo”: © visto e 0 lido. * © falado como dimensio da imagem visual. * Ato de fala e interagao: a conversa. * A comé- dia americana. * © falado faz ver, ¢ a imagem visual torna-se legivel. ene fs toes ‘© continuo sonoro, sua unidade. * Sua diferenciacao conforme os dois aspectos do extracempo. * A vox off. €0 segundo tipo de alo de falas reflexivo. * Concepso hegeliana ou concepeao nietzseheana dda misica de cinema. * Miisica e apresentagao do tempo. ...... 277 O terceiro tipo de ato de fala, ato de tabulacao. * Nova lisibilidade dda imagem visual: « imagem estratigrifien. * Nascimento do au- diovisual. * A autonomia respectiva da imagem sonora e da ima- em visual. * Os dois enquadramentos ¢ 0 corte iracional, * Straub, Marguerite Duras. * Relacdo entre as duas imagens autdnomas, ‘© novo sentido da miisica 267 286 10. Conclusées Evolugdo dos autSmatos. * Imagem ¢ informacao. * problema de Syberberg, este fetecetde ‘A imagem-tempo direta. * Dos opsignos e sonsinnos aos signos cr talinos. * As diferentes espécies de cronosignos. * Os noasignos. * Os lektosignos. * Desaparecimento de flash-bac, do fora de can. po e da voz off. a 321 A utilidade da tearia no cinema, s.iscsssseeisasnnveanneenene 331 aul Indice dos autores 1. Para Além da Imagem-Movimento Contra aqueles que definiam o neo-realismo italiano por seu contetido social, Bazin invocava a necessidade de ctitérios formais esiéticos. Tratava-se, segundo ele, de uma nova forma de reatida- de, que se supde ser dispersiva, eliptica, errante ou oscilante, ope- rando por blocos, com ligagdes deliberadamente fracas ¢ aconteci- ‘mentos flutuantes. O real nao era mais representado ou reproduzi- do, mas “‘visada””. Em ver de representar um real j4 decifrado, 0 neo-realismo visava um real, sempre ambiguo, a ser decifrado; por {sso o plano-seqiiéncia tendia a substituir a montagem das represen- tacdes. O neo-realismo inventava, pois, um novo tipo de imagem, que Bazin propunha chamar de “imagem-fata’?!. Essa tese de Ba- zin eta infinitamente mais rica do que a que ele contestava, mos trando que o neo-realismo nao se limitava ao contetido de suas pri- meiras manifestagées. Porém, as duzs teses tinham em comum o faio de colocar 0 problema 20 nivel da realidade: 0 neo-realismo produ- via um “mais de realidade”, formal ou material. Mas nio temos a certeza de que 0 problema passa ser colocado assim ao nivel do real, seja pela forma ou pelo contetido. Nao seria antes ao nivel do ‘mental’, em termos de pensamento? Se o conjunto das imagens- movimento, percepgdes, acdes ¢ afeogSes sofria tal transtorno, 120, seria, isto sim, porque irrompia um elemento novo, o qual impedi 41 an, Quesee are ono, tu Cer p24 (9 cone dos apes abe 0 nnn). ‘Ams Sion gue otto ei som enc a nis esoaeal: "Da Pe 0 GILLES DBLEUZE ria percepgdo de se protongar em aco, para assim relacioné-la com © pensamento, ¢ que, pouco a pouco, subordinaria a imagem as exi- s€ncias de novos signos, que & levassem para além do movimento? ‘Quando Zavattini define o neo-realismo como uma arte do en- contro — encontros fragmentarios, efémeros, interrompidos, fra- cassaclas —, 0 gue ele quer dizer? Eo que acontece nos encontros de Paisd, de Rossellini, ou de Ledrées de biciclera, de De Sica. B, ‘em Umberto D, De Sica constréi a célebre seatiéneia que Bazin da- va como exemplo: a jovem empregada entrando na cozinha de ma- nha, fazendo uma série de gestos maquinais € cansados, limpando um pouco, expulsando as formigas com um jato dégua, pegando ‘© moedor de café, fechando & porta com a ponta do pé esticado. E, quando seus ollios fitam sua barriga de ardvida, € como se nas- cesse toda & miséria do mundo. Bis que, numa situacdo comum ou cotidiana, no curso de uma série de gestos insignificantes, mas que por isso mesmo obedecem, muito, a esquemas sensdrio-motores sint- ples, o que subitamente surgiu foi uma situaedo dtica pura, para a qual a empregadinha nao tem resposta ou reagdo. Os olhos, a barri- ga: um encontro... Claro, os encontros podem tomar formas muito, diferentes, chegar ao excepcional, mas mantém a mesmia formula. Considere-se a grande tetralogia de Rossellini: longe de marear um abandono do neo-realismo, ela leva-o, 20 contririo, & perfeigao. Ale- ‘manha ano zero apresenta uma erianga que visita. um pais estran- giro (por isso o filme foi criticado, porque nao teria o enraizamen- to social, que se supunha ser uma condi¢ao para 0 neo-realismo) ce morre devido ao que vé. Stromboli pde em cena uma estrangeira ‘que da ilha vai ter uma revelacdo ainda mais profunda porque nao dispde de reacdo aleuma para atenuar ou compensa a violencia do due vé, a intensidade e a gravidade da pesca do atum (foi horri- vel...”), a forca panica da erupedo (“estou acabada, tenho medo, ‘que mistério, que beleza, mea Deus..."). Europa $/ mostra uma bur- auesa que, a partir da morte de seu filho, atravessa espacos quais- {quer e passa pela experiéncia dos grandes conjuntos residenciais, da favela e da fabrica ("*pensei estar venclo condenados”). Seus olhos abandonam a fungao pratica de dona-de-casa, que arruma as coisas € 08 seres, para passar por todos os estados de uma visdo interior, aflicdio, compaisio, amor, felicidade, aceitagao, até no hospital psi- uiitrico onde a prendem, ao termo de um novo processo de Joana @Arc: ela vé, aprenden a ver. Romance na Itélia acompanha uma turista que é profundamente abalada pelo simples desenrolar de ima- gens ou de clichés visuais, nos quais ela descobre algo insuportavel, PARA ALEM DA IMAGEM-MOVIMENTO " Eumci- para além do limite do que pode pessoalmente suporta nema de vidente, nfo mais de agao. © que define o neo-realisimo € essa ascensdo de situaedes pu- ramente éticas (e sonoras, embora no houvesse som sineronizado no comeco do neo-realistno), que se distinguem essencialmente das situagdes sensorio-motoras da imagem-aco no antigo realismo. Tal ve2 sso seja tZo importante quanto a conquista de um espaco pura- mente dtico na pintura, ovorrida com o impressionisono. Objeta-se que o espectador sempre se defrontou com ‘deserigdes”, com ima- gas dticas e sonoras, ¢ nada mais. Mas nio € essa a questo. Pois 0s personagens reagiam as siluacdes; mesimo quando uma delas se encontrava teduzida a impotneia, era, em virtude dos acidentes da ago, atada e amordagada. O que o espectador percebia era, pois, uma imagem sens6rio-motora da qual participava mais ou menos, por identificacio com as personagens. Hitchcock inaugurow a re- versio deste ponto de vista, incluindo o espectador no filme. Mas € 86 agora que a identificacto se reverte efetivamente: a persona gett tornou-se uma espécie de espectador. Por mais que se mexa, corra, agite, a situaydo ein que esté extravasa, de todos 0s lados, suas capacidades motoras, e Ihe faz ver e ouvir © que no € mais passivel, em principio, ce uma resposta ou agao. Ele registra, mais que reage. Esta entregue a uma visto, perseguido por ela ou perseguindo-a, mais que engajado numa ago. Obsessdo, de Visconti, E visto, com razio, como precursor do neo-realismo; ¢ a primeira coisa a tocar o espectador é a maneira pela qual a heroina, vestida de preto, & possuida por uma sensualidade quese alucinatéria, Ela esta mais perto de uma visionaria, de uma sonambula, do que de uma sedutora ou apaixonada (tal como, mais tarde, a condessa de Senso)* Por isso 0s caracteres pelos quais definimos anteriormente a crise da imagem-acao :a forma da balada/perambulacdo**, a dift- so dos clichés, 0s acontecimentos que mal concernem aqueles a quem acontecem, em suma, o afrouxamento dos vineulos sensério- oes ts, ea lade Bowe, “Rowe "Dewan gerne don ne te init nl Wel (i or ue aa pa Smale ete tec, Sen Ge Wo, tes Sti doar Pre feu ood {Sea damon de 1 oar) oe uc ea vee cm oe ps0 0 6 a et “en 6 ater soni le, Yount. 7 n GILLES DELEUZE motores), todos estes caracteres eram importantes, mas somente en- quanto condigées preliminares. Eles tornavam possivel, mas ainda ndo constituiam, a nova imagem, O que a constituiu é a situagio puramente stica e sonora, que substitu as situapdes sensério-motoras, enfraquecidas. J4 se chamou @ atengdo para o papel da crianga no neo-realismo, especialmente com De Sica (¢, depois, na Franca, com Truffaut): é que, no mundo adulto, a crianca é afetada por uma certa impoténcia motora, mas que aumenta sua aptidao a ver ¢ ou Vir, Do mesmo modo, se a banalidade cotidiana tem tanta impor- ‘Ancia, € porque, submetida a esquemas sensério-motores automa- ficos ¢ }4 construidos, ela ¢ ainda mais capaz, & menor perturbacio do equilibrio entre a excitacdo € a resposta (como na cena da em- pregadinha de Umberto D), de escapar subitamente as leis desse es- quematismo e de se revelar a si mesma numa nudez, crueza ¢ bruta- lidade visuais e sonoras que a tornam insuportavel, dando-Ihe 0 as- pecto de sonho ou de pesadelo, Da crise da imagem-acdo a pura ima- ‘gem dtico-sonora hé, portanto, uma passagem necesséria, Ora éuma evolugio que permite passar de um aspecto a outro: comecamos por filmes de batada/perambulacdo com ligagdes sensério-motoras de- bilitadas, e depois chegamos as situagSes puramente dticas ¢ sono- ras, Ora é dentro de um mesmo filme que os dois aspectos coexis- tem, como dois niveis, servindo o primeiro apenas de linha mel6ali- ca ao outro, E nesse sentido que Visconti, Antonioni, Fellini pertencem ple namente a0 neo-realismo, apesar de todas as diferengas entre eles. Ohsessao, 0 precursor, néo é somente uma das verses de um eéle- bre romance policial americano, nem a transposicao desse romance para a planicie do P6°. No filme de Visconti se assiste a uma mu- danga muito sutil: aos primérdios de uma mutagao que afeta a no- so geral de situaeao. No antigo realismo ou de acordo com a imagem-aco, os objetos ¢ os mios jd tinham realidade propria, mas esta era uma realidade funcional, estreitamente determinada pelas exigéncias da situagdo, ainda que estas fossem tdo poéticas quanto dramaticas (por exemplo, o valor emocional dos objetos em Elia Ka zan). A situacao se prolongava, pois, diretamente em acdo e pai- (040 mance tame Can, cer same aed ver Th panna ig nk, en ge ‘alison (1981). A pumee paren: como wale putas franc, exsdun dine como realise cr ‘Notntophee Tyas, BS] pp. 85 tegonar sora tame aro sobte Ost, 8 2 PARA ALEM DA IMAGEM-MOVIMENTO 8 xo, Ao contritio, desde Obsessio ja aparece o que munca mais dei- xara de se desenvolver em Visconti: os objetos ¢ os meios conquis- tam uma realidade material aut6noma que os faz valerem por si mes- mos. E preciso portanto que nao somente o espectador mas tam- bém os protagonistas invistam os meios e os objetos pelo olhar, que vejam e ougam as coisas € as pessoas, para que a aco ou @ paixio nascam, irrompendo numa vida cotidiana preexistente. F 0 caso da chegada do heréi de Obsessio, que toma uma espécie de posse vi- sual do albergue, ou, em Rocco e seus irmdos, a chegada da familia que, toda olhias ¢ ouvidos, tenta assimilar a imensa estagao e a cida- de desconhecida: esse “inventério” do meio, dos objetos, méveis, tutensilios ete. sera uma constante na obra de Visconti, Tanto assim que a situagtio ndo se prolonga diretamente em acéo: nao é mais sens6rio-motora, como no realismo, mas, antes, dtica e sonora, in- vvestida pelos sentidos, antes de a agdo se formar, utilizar e afrontar seus elementos. Tudo permanece real nesse neo-realismo (quer haja cendrio ou exteriores), porém, entre a realidade do meio ea da acio, no é mais um prolongamento motor que sc estabelece, é antes uma relacao onitica, por intermédio dos 6rgaos dos sentidos, libertos'. Dir-se-ia que a acdo flutua na situacdo, mais do que a arremata ou cencerra. B esta a fonte do estetismo visiondrio de Visconti. La Ter- +a trema confirma singularmente estes novos dados. Certo, a situa- cao dos pescadores, a luta que ravam, 0 nascimento de uma cons- ciéncia de classe so expostos no primeiro episédio, o tinico que Vis- conti realizou. Mas, justamente, aqui essa “‘consciéneia comunis- ta” embrionaria depende menos de uma futa com @ natureza ¢ entre ‘05 homens, que de uma grande viséio do homem e da natureza, de sua unidade sensivel e sensual, da qual os “ricos"” séio excluidos & que constitui a esperanca da revolugao, para além dos fracassos da aco flutuante: depende de um romantismo marxistaS. Em Antonioni, desde sua primeira grande obra, Crimes da ai- ‘ma, a investigacHo policial, ent vez de proceder por flash-back, trans- forma as agdes em descrigdes dticas e sonoras, enquanto a propria narrativa se transforma em agdes desarticuladas no tempo (0 epis6- (dyer sos oats Vicon Bad ntti, tan arise Beard ar SESa Dawu tet Daisey one Recension. sneer de MED inns oma av eigen aon da geet am wa. 4 GILLES DELEUZE dio da empregada contando a histéria, enquanto refaz os gestos pas- sados, ou ainda a célebre cena dos elevadores)®, E a arte de Anto- nioni se desenvolverd sempre em duas direrdes: uma espantosa ex- plorasdo dos tempos mortos da banalidade cotidiana; depois, @ partir de O eclipse, um tratamento das situagdes-limite que as impele até paisagens desumanizadas, espagos vazios, dos quais se diria terem absorvido as personagens e as agdes, para deles s6 conservar a des- crig2o geofisica, o inventario abstrato. Quanto a Fellini, desde seus primeiros filmes, nao & apenas o espetdeulo que tende a extravasar sobre 0 real, 60 cotidiano que sempre se organiza como espeticulo ambulante, e os encadeamentos sensorio-motores dao lugar a uma sucessio de variedades, submetidas a suas proprias leis de passagem. Barthélemy Amengual estabelece uma f6rmula que vale para a pri- meira metade desta obra: “O real se faz espetdculo ou espetacular, e fascina de verdade. (...) 0 cotidiano ¢ identificado ao espetacular. ) Fellini alcanga a confusdio desejada do real e do espetéculo”, negando a heterogeneidade dos dois mundos, suprimindo nao so mente a distancia, mas a propria distingdio do espectador ¢ do espeticulo’. As situagdes dticas e sonoras do neo-realismo se opdem as si- Inagdes sensério-motoras fortes do realismo tradicional. A situagao sensério-motora tem por espaco um meio bem qualificado, e supde uma aco que a desvele, ou suscita uma reacao que se adapte a ela ou a modifique, Mas uma situagao puramente dtica ou sonora se cestabelece no que chamavamos de “espaco qualquer”, seja desco- nectado, seja esvaziado (encontraremos a passagem de um ao outro em O eclipse, onde os pedagos desconectadlos do espaco vivido pela heroina, Bolsa, Africa, aeroporto, somam-se no final do filme em um espago vazio que se confunde com a superficie branca). No neo- realisiio, as ligaedes sensdrio-motoras s6 vao valer pelas perturba ges que as afetam, soltam, desequilibram ou distraem: crise da jimagem-agdo. Nao sendo mais induzida por uma ago, como tam- bém nao se prolonga em acdo, a situacao ética e sonora no é por- tanto um indice, nem um synsigno. Falaremos de uma nova raca de signos, 0s opsignas e os sonsignos. E sem divida estes novos sig- nos remetem a imagens bem diversas. Ora é a banalidade cotidiana, ora sto citcunsténcias excepcionais ou limites. Mas, acima de tudo, (©) Barsdemy Arner), “Du spetadle au speccncuste”, Fein F Ener einnotovrapcnes PARA ALEM DA IMAGEM-MOVIMENTO Is ora sio imagens subjetivas, lembrangas de infancia, sonhos ou fan- tasmas auditivos e visuais, onde a personagem no age sem se ver agir, espeetadora complacente do papel que ela propria representa, & maneira de Fellini, ora, como em Antonioni, so imagens objeti- vas a maneira de uma constataedo, ainda que a mera constatagdio de um acidente, definida por um enquadramento geométrico que, ‘entre seus elementos, pessoas e objetos, s6 deixa subsistir relagdes de medida ¢ de distancia, transformando desta ver a aco em deslo- camento de figuras no espaco (por exemplo, a busea da desapareci- acm A aventura)®, £ neste sentido que se pode opor o objetivis- mo critico de Antonioni ao subjetivismo etlmplice de Fellini. Have- ria, portanto, dois tipos de opsignos, as constatagdes ¢ as “instata ses", uns dando uma visto profunda a distancia, tendendo para a.abstracio, 0s outros, uma visdo prdxima ¢ plana, induzindo uma participacio. Esta oposicdo coincide, em certos aspectos, com a al- temativa definida por Worringer: abstracdo ou Einyithlung®. As vi- soes estéticas de Antonioni nfo podem ser separadas de uma critica objetiva (nds estamos doentes de Eros, mas isto porque 0 préprio Eros estd, objetivamente, doente: 0 que se tornou 0 amor, para que um homem e wna muther saiam dele to desmunidos, lamentaveis c enfermos, € ajam € reajam tao mal, tanto no comeco quanto no fim, numa sociedade corrompida?), enquanto as vis0es de Fellini sio insepardveis de uma “‘empatia”, de uma simpatia subjetiva (des- posar até mesmo a decadéncia que permite sé amar em sonho ou em lembranea, simpatizar com esses amores, ser ciimplice da deca- dncia, ¢ até mesmo precipité-ta, a fim de salvar alguma coisa, tal- vez, 0 quanto for possivel...)?. Tanto de um lado quanto de outro vernos problemas mais profundos, mais importantes que os lugares comuns sobre a sofidao e a incomunicabilidade. A distingdes, por um lado entre o banal ¢ o extremo, e por outro entre © subjetivo € o objetivo, tém um valor, mas somente relativo. Valem para uma imagem ou para uma seqiiéncia, mas nao tes ot de cates em Aenean, Sars 1, cremtmenere a eonaus aucun, vba se ve a mn in eh sense" 16 GILLES DELEUZE para o conjunto, Valem ainda em relagio & imagem-agdo, que elas questionam, mas j4 no valem plenamente para a nova imagem que nasce. Indicam pélos entre os quais he constante passagem. Com feito, as situagdes mais banais ou cotidianas liberam ‘“foreas mor- tas” acumuladas, iguais 4 forea viva de uma situacio-timite ¢ 0 ca- 0, em Umberto D, de De Siva, da seqiiéncia do velho que se exami- na e acha que esti. com febre). Melbor ainda, os tempos mortos de Antonioni nfo mostram somente as banalidades da vida cotidiana, eles coletam as conseqiiéncias ou o efeito de um acontecimento re- Jevante que é apenas constatado enquanto tal, mesmo sem ser expli- cado (a separacio de um casal, o repentino desaparecimento de uma mulher...) O método da constatago em Antonioni tem sempre es- ta func de reunir os tempos mortos ¢ os espacos vazios: tirar to- das as consegiiéncias de uma experigncia decisiva passada, uma vez ue jé esta feito e que tudo foi dito. “Quando tudo foi dito, quan do a cena maior parece terminada, ha 0 que vem depois...” Quanto a distingao entre o subjetivo ¢ objetivo, ela também. tende a perder importancia, & medida que a situacdo dtica ou a des- ctigdo visual substituem a acdo motora. Pois acabamos caindo num principio de indeterminabilidade, ou indiscernibilidade: nao se sabe mais © que € imagindrio ow real, fisico ou mental na situacdo, no que sejam confundidos, mas porque nao é preciso saber, e nem mes- mo hd lugar para a pergunta. E como se 0 real ¢ 0 imagindrio cor- ressem um atrés do outro, se refletissem um no outro, em torno de uum ponto de indiscernibilidade. Voltaremos a falar sobre este pon- to; mas, por ora, quando concebe a sua grande teoria das descri- ees, Robbe-Grillet comeca definindo uma descrigao “realista’” tra~ dicional: ela supde a independéncia de seu objeto, ¢ afirma portan- to uma discernibilidade do real e do imagindrio (podem ser confun- didos, mas ndo deixam de ser distintos em direito). Bem diferente 6a descricao neo-realista do nouveau roman: como ela substitul seu prdprio objeto, por um lado apaga ou destréi a realidade dete que entra no imagindrio, mas, por outro, faz surgir toda a realidade que 0 imaginério ou 0 mental eriam pela palavra ¢ pela visio". O ima~ gindrio e o seal tornamt-se indiscerniveis. E disso que Robbe-Grillet rd tomando cada vez mais consciéneia em sua reflexdo sobre 0 not Aeon 8 8B end Lape, 4 ets pte seinen ne Unto Gris, owrun wonton, Teng tGesrifion 2 de Mii,» 129. Pecreno PARA ALEM DA IMAGEM-MOVIMENTO veau roman ¢ o cinema: as determinagdes mais objetivistas ndo os impedem de realizar uma “‘subjetividade total”. E 0 que esté em germe desde 0 comeco do neo-realismo italiano, e faz Labarthe di- zer que O ano passado em Marienbad € 0 iltimo dos grandes filmes neo-realistes?, Jéem Fellini, esta ou aquela imagem 6 subjetiva, mental, lem: branca ou fantasma, mas no se organiza como espetdculo sem se tornar objetiva, sem entrar nos bastidores, na ‘*realidade do espe- ticulo, daqueles que o fazem, vivem dele, se arranjam com ele" ‘© mundo mental de uma personagem povoa-se to bem com outros personagens proliferantes que se torna intermental, e chega, por aplainamento das perspectivas, ‘‘a uma visdo neutra, impessoal (...). ‘© mundo de todos nés"* (dai a importancia do telepata em Oito e meio)", Inversamente, em Antonioni, dir-se-ia que as imagens mais objetivas ndo se compoem sem se tornar mentais, sem entrar numa estranha subjetividade invisivel. Nao ¢ apenas que @ método da cons- tatacio deva se aplicar aos sentimentos como existem numa socie- dade, e tirar deles as conseqiiéncias assim como se desenvolvem no interior das personagens: Eros doente é uma historia de sentimen- tos que vai do objetivo ao subjetivo, ¢ passa para o interior de cada lum. Sob este aspecto, Antonioni est muito mais perto de Nietzs- che que de Marx; ele ¢ 0 tinico autor contempordineo que retomou 9 projeto nietzscheano de uma verdadeira critica da moral, ¢ isso gragas a um método “sintomatologista’”. Mas, ainda de outro pon- to de vista, nota-se que as imagens objetivas de Antonioni, as que seguem impessoalmente um devir, isto é, um desenvolvimento de conseqiiéncias numa narrativa, nem por isso deixam de sofrer rup- turas ripidas, intercalagdes, “‘injecdes infinitesimais de a- temporalidade"’. E 0 caso, jé em Crimes da alma, da cena do eleva- dor. Somos mais uma vez remetidos & primeira forma do espaco qualquer: espago desconectado. A conextio das partes do espago néo € dada, pois s6 pode fazer-se do ponto de vista subjetivo de uma personagem, mas que est ausente ou, mesmo, desaparecida, no somente fora do campo, mas remetida ao vazio, Em O grito, Irma nao € apenas 0 pensamento subjetivo obsedante do heréi que foge para esquecer, mas 0 olhat imaginario sob 0 qual esta fuga se faz ¢ junta seus préprios sezmentos: olhar que torna a ser real no mo- is GILLES DELEUZE mento da morte. E acima de tudo n’ A aventura: a desaparecida faz pesar sobre o casal um olhar indetermindvel que the inflige @ perpétua sensacao de estar sendo espiado, ¢ explica a incoordena- ho de seus movimentos objetivos, quando ele foge alegando ir procuré-la, Ainda em Idemificapdo de wma mulher: toda a busca ou investigacdo se faz sob o suposto olhar da mulher que partiu, de quem nao se saber, nas espléndidas imagens do final, se viu ou 1nd 0 herGi agachado no vao da escada. O olhar imagindrio faz do real algo imagindria, ao mesmo tempo que, por sua vez, s¢ torna real ¢ forna a nos dar realidade. E como um cireuito que troca, cor- rige, seleciona © nos persegue. A partir de O eclipse, est claro, 0 espago qualquer atingiré uma segunda forma, a de espaco vazio ou desertado. E que, de conseqiiéncia em conseaiiéncia, as personagens esvaziaram-se objetivamente: sofrem menos da auséncia de um ou- tro que de uma auséncia de si proprias (por exemplo, Passageiro, profissdo reporter). Por isso, este espaco remete ainda ao olhar per- dido do ser ausente tanto para 0 mundo quanto para si, e, como diz Ollier numa formula valida para toda obra de Antonioni, subs- titui o drama tradicional por “uma espécie de drama dtico vivide pela petsonagem’”*. 'Em suma, as situagdes dticas e sonoras puras podem ter dois polos, objetivo e subjetivo, real ¢ imaginario, fisico e mental. Mas elas do lugar a opsignos e sonsignos, que esto sempre fazendo com que os pélos se comuniquem, ¢ num sentido ou noutro asseguram as passagens ¢ as conversbes, tendendo para um ponto de indiscer- nibitidade (¢ nfo de confusdo). Um tal regime de troca entre o ima- sindrio ¢ o teal aparece plenamente nas Noites brancas, de Viscon- i's A nouvelle vague francesa nao pode ser definida se nao se ten- ta ver como ela refaz por conta propria o caminho do neo-realismo italiano, ainda que também seguisse outras direcdes. Com efeito, a nouvelle vague, conforme uma primeira aproximacdo, retoma a {to Cade Oke, Sn ram, Cain 8 inn Oia 9.86 RO a aaa ta scion ce inte: oC tout Nii ar co eae enc poss tian, Event 22228 pee ot ‘lets dns ster anon ton PARA ALEM DA IMAGEMMOVIMENTO 9 via precedente: do afrouxamento dos vinculos sensério-motores (0 passeio ou o vagar, a balada, os acontecimentos niio-concernentes etc.) & ascensio das situagdes dticas e sonoras. Ainda ai, am cinema de vidente substitui a agi. Se Tati pertence & nouvelle vague, é por que, apés dois filmes-baladas, liberta plenamente 0 que estes pre- paravam, um burlesco que se efetua mediante situagdes puramente ticas e, sobretudo, sonoras. Godard comera com baladas extraor dindirias, de Acossacto a Pierrot le fou, ¢ tende a extrair delas todo um mundo de opsignos e de sonsignos que constituem anova ima- gem (em Pierrot le fou, a passagem do afrouxamento sensorio-motor, “nao sei o que fazer", ao puro poema cantado e dangado, “A li, nha de Cuas ancas”). E estas imagens, emocionantes ou terriveis, ga nham cada vez mais autonomia a partir de Made in U.S.A., que pode ser resumido assim: “uma testemunha fornecendo-nos suce sivas constatagdes sem conclusio nem lagos I6gicos (...), sem rea des realmente efetivas”” ©. Claude Ollier diz que, com Made in U.S.A., © caréter violentamente alucinatério da obra de Godard afirma-se por si mesmo, numa arte da deserigéio que sempre € reto- mada ¢ substitui seu objeto'?, Este objetivismo descritivo é também titico e até mesmo didatico, inspirando uma série de filmes, de Duas ou trés coisas que sei dela a Salve-se quem puder (a vida), onde a reflexdo trata no somente do contedido da imagem, mas de sua for- ma, seus meios ¢ fungdes, suas falsificacdes ¢ criatividades, das re- lagGes que nela tém 0 sonore ¢ @ dtico. Godard tem pouca compla- céncia ou simpatia pelos Fantasmas: Salve-se quem puder... nos fa- +4 assistir a decomposigdio de um fantasma sexual em seus elemen- tos objetivos separados, visuais ¢ depois sonoros. Mas esse objeti vismo nunca perde sua forca estética. Iniciaimente a servigo de uma politica da imagem, a forca estética ressurge por si mesma em Pas- ‘sion: a livre ascensao de imagens pict6ricas e musieais como qua- ‘0s, enquanto do outro lado os encadeamentos sensério- motores sao inibidos (a gaguez da opersria e a tosse do patrao). Pas- sion, neste sentido, leva a mais alta intensidade o que jd se prepara~ va em O desprezo, quando se assistia ao fracasso sensério-motor do casal no drama tradicional, ao mesmo tempo que subia ao céu @ representagao ética do drama de Ulisses e 0 olhiar dos deuses, ten- do Fritz Lang por intercessor. Através de todos estes filmes, uma evolugdo eriadora: a de um Godard visionatio. i) Sal, Cronies lan Fotis 1 1048p 0 2% GILLES DELBUZE Le pont du Nord, em Rivette, tem sem divida a mesma per- feigdo de recapitulagio proviséria que Passion em Godard. E a ba- ada de duas estrantas andarithas, entre as quais uma grande visto dos ledes de pedra de Paris vai distribuir situacdes dticas e sonoras puras, numa espécie de “jeu de loie’”* maléfico, em que reence- nam o drama alucinatério de Don Quixote. Mas, sobre a mesma base, Rivette e Godard parecem tracar os dois pélos opostos. E que, em Rivette, a ruptura das situagdes sensorio-motoras em prol das situagdes dticas e sonoras esta ligada a um subjetivismo etimplice, a uma empatia, que procede, na maioria das vezes, por fantasmas, embrangas ou pseucdo-lembrancas, ¢ nisso encontra uma alegria € leveza inigualaveis. (Céline et Julie vont en bateau é sem chivida um dos maiores filmes cémicos franceses, no mesmo nivel da obra de ‘Tati.) Enquanto Godard se inspirava na historia em quadrinhos, no ‘que esta tem de mais cruel e incisivo, Rivette mergulha seu tema cons- tante de compl6 internacional numa atmosfera de conto e brinca- deira. Jé em Paris nous appartient, o passeio culmina num fantas- ma crespuscular, no qual os lugares urbanos tém to-s6 a realidade eas conexdes que nosso sonho thes confere. E Céline et Julie vont ‘en bateau, depois do passeio-perseguigao da moca-dupla, nos faz, assistir a0 puro espetdculo de seu fantasma, menina com a vida amea- gada num romance familiar. O duplo, ou melhor, a prépria dupla, assiste ao espeticulo, com a ajuda de balas magicas; emlZo, gracas 4 pogaio alquimica, se introduz no espetéculo que jd nao tem espec tador, mas apenas bastidores, para terminar salvando a crianga de seu destino paralisado que uma barea leva para fonge: a mais en gracada das magias, Duelle j4 ndo precisa nox fazer entrar no espe taculo; as heroinas do espetéculo, a mulher solar ea mulher lunar, {4 entraram no real, e, sob o signo da pedra magica, perseguem, apagam ou matam as personagens existentes que serviriam ainda de (estemunha Poder-se-ia dizer de Rivette que & o mais francés dos autores da nouvelle vague, “francés” aqui, porém, néo tem nada a ver com ‘© que se chamou de qualidade francesa, B, antes, no sentido da es- cola francesa anterior a guerra, quando ela deseobre, no rastro do pintor Delaunay, que nao ha luta da fuz e das trevas (expressionis- mo), mas uma alterndncia ¢ duelo do sol ¢ da ha, que sto ambos PARA ALEM DA IMAGEM.MOVIMENTO. 4 luz, um constituindo um movimento circular ¢ continuo das cores ‘complementares, 0 outro ui movimento mais r&pido e contrastado das cores dissonantes irisadas, os dois juntas compondo e projetan- do sobre a terra uma eterna miragem'S. B Duelle, E Merry-gc round, onde a descrisao feita de luz € de cores esta sempre se cor gindo para suprimir seu objeto. F isso que Rivette leva ao extremo, em sua arte da luz, Todas as sua heroinas sao filhas do fogo, toda a sua obra estd sob esse sign, Finalmente, se ele é 0 mais frances dos cineastas, é no sentido em que Gérard de Nerval podia ser dito poeta francés por exceléncia, podia ser chamado de o *gentit Gi rard”, 0 cantor da Wha-de-Franga, tal como Rivette, 0 cantor de Paris e de suas ruas risticas. Quando Proust pergunta o que ha sob todos aqueles nomes que se aplicavam a Nerval, ele proprio respon- de que é mesmo uma das maiores poesias que ja houve no mundo, © a prépria loucura ou miragem as quais sucumbiu Nerval. Pois, se Nerval precisa ver, e passear no Valois, € porque ver e passear sio como a realidade que deve “verificar”” sua visio alucinatéria, ‘a ponto de jd nd sabermos absolutamente o que é presente ou pas- sado, mental ou fisico. Ele precisa da Ilha-de-Franga como do real ‘que sua palavra ¢ stia visio criam, como do objetivo de sua pura subjetividade: uma “‘ikuminagao de sonho”’, uma ““atmosfera azu- lada ¢ purptirea”, solar e lunar. O mesmo vale para Rivette e sua nevessidade de Paris. De tal modo que, mais uma vez, devemos con- cluir que a diferenca entre 0 objetivo ¢ 0 subjetivo tem valor apenas provisério c relativo, do ponto de vista da imagem ético-sonora. O ‘mais subjetivo, o subjetivismo ctimplice de Rivette, ¢ perfeitamente objetivo, ja que ele cria 0 real pela forca da descricao visual. F, in- versamente, 0 mais objetivo, o objetivismo critico de Godard, ja era completamente subjetivo, pois substitufa pela descricao visual 0 ob- Jjeto real, ¢ fazia com que ela entrasse ‘‘no interior” da pessoa ou (05 Vino amen xe nel da 8 ar A ers, mass om Cri. Ns Rivne ea un Sao supeio, ore nw compe mae fre de Dees Ao Sanrio dois, Day no pec see a cpvito an apse doy bj a fe 7 ns, gu sak rate desas r. 2 GILLES DELEUZE, do objeto (Duas ou trés coisas que sei dela). Tanto de um lado quanto de outro, a descrigdo tende para um ponto de indiscernibil dade do real e do imaginério. Umma iltima questo: por que o desmoronamento das situa- ‘s6es sensério-motoras tradicionais, como existiam no antigo tealis- mo ou na imagem-agdo, deixa emergir apenas situagdes dticas ¢ so- noras puras, opsignos e sonsignos? Notar-se-{ que Robbe-Grillet, a0 menos no comego de sua reflexao, era ainda mais severo: repu- diava ndo somente 0 téctil, mas mesmo os sons eas cores como inap- tos & constatacdo, ligados demais a emocdes e reacdes, e 50 aceitava descrigdes visuais operando por linhas, superficies e medidas?!. O cinema foi uma das razées de sua evoluco, que le permitin desco- brir a potgneia descritiva das cores © dos sons, na medida em que substi:uem, suprimem e reeriam 0 préprio objeto. Mas é 0 téctil que €0 mais apto a constituir uma imagem sensorial pura, com a condi- cio de que a mao renuncie & suas fungdes preensiveis € motoras, contentando-se com um puro tocar. Em Herzog, assistimos a um extraordinario esforgo para apresentar 4 vista imagens propriamen- te tacteis que caracterizem a sitnacdo dos seres “sem defesa”, ¢ se combinem com as grandes visbes dos alucinados®. Mas € Bresson, de uma maneira totalmente diferente, quem faz do tato um objeto da visto enquanto tal. Com efeito, o espaco visual de Bresson € um espago fragmentado © desconectado, cujas partes tém porém uma juno manual felta aos poucos. A mao tem pois, na imagem, um papel que extravasa infinitamente as exigéncias sensério-motoras da aco, que até substitul o rosto, do ponto de vista das afeagdes, ¢ que, do ponto de vista da pereepeao, torna-se o modo de constrt-

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