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a Seer a ¥ i Dee eee Sorat a ee Ee ra Cael * ca iA ¥ (soins ry ba 4 r Ton EP aL oe oe Na longa historia da atividade humana, em sua incessante Where) eel Lolo) reotareME eRe Re eel CMe Ey} humanidade e da felicidade social, o mundo do trabalho Tease ORME ZOOM Colmatsl( do trabalho que os individuos, Te R MCL eli) Relea oe (ka) oles eiatecToMe CEM Tela Clemens 0 “pior arquiteto e a melhor ESE MeN uC Rcelgrectets previamente o trabalho que NTE ecu TORN To a) lefeles Mins aL) oee cet marca tornou a historia humana uma realizagéo monumental, rica e cheia de caminhos e descaminhos, de alternativas e Cee Cem eteceeen eratiers Sem o trabalho, a vida cotidiana nao se reproduziria Contudo, por outro lado, quando a vida humana se resume exclusivamente ao trabalho, ela se converte num esforco penoso Pres ola tale lORee ete Nie oe rare ec (OREM Mora lado, necessitamos do trabalho humano e de seu potencial emancipador, devemos também recusar o trabalho que explora, Ua Male Rem tomeee)| eee me ERAT See CRs eects ee gerard Rt] tear for Mur em 1) cele a Seite RS Cae Mette) O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO Copyright © 2006, by Editora Expressio Popular Revisio: Miguel Cavalcanti Yoshida e Geraldo Martins de Azevedo Filho Projeto grafico, capa e diagramacao: ZAP Design Impressio e acabamento: Cromosete Dados Internacionais de Catalogagao-na-Publicagao (CIP) Onganista, José Henrique Carvalho (O debate sobre a centralidade do trabalho / José Henrique Carvalho Organista. --1.ed-Sto Paulo : Expresso Popular, 2006 184 p, -(Colegdo Trabalho e emancipagiio) Indexado em GeoDados - http://www. geodados.uem.br ISBN 85-7743-001-4 1, Trabalho - Mudangas. 2. Trabalho - Centralidade. 3. Trabalho — Exploragio. 4. Trabalho - Relagdes sociais, 5. Trabalho — Debates. I Titulo. II. Série. CDD 331 CDU 331 ELIANE M. S. JOVANOVICH CRB 9/1250 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizagao da editora. 1* edicdo: maio de 2006 EDITORA EXPRESSAO POPULAR Rua Aboligao, 266 - Bela Vista CEP 01319-010 — Sao Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3112-0941 vendas@expressaopopular.com.br www.expressaopopular.com.br “Um homem se humilha Se castram seus sonhos Seu sonho é sua vida E a vida é trabalho E sem o seu trabalho Um homem nfo tem honra E sem a sua honra Se morre, se mata Nao dé pra ser feliz” Guerreiro Menino — Gonzaguinha SUMARIO INTRODUGAO .. capiTuLa | . ANDRE GORZ: ADEUS AO PROLETARIADO E A UTOPIA DE UMA SOCIEDADE DO TEMPO LIVRE.... capituto tt OFFE E SEUS QUESTIONAMENTOS SOBRE CATEGORIA TRABALHO .. CAPITULO II KURZ: O OCASO DO SOCIALISMO COMO O ESPELHO PARA A CRISE DO CAPITALISMO . CAPITULO IV HABERMAS: LINGUAGEM, TRABALHO E INTERACAO. .. CAPITULO V LUKACS: A CENTRALIDADE DO TRABALHO EM SUA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL. see cAPITULO VI RICARDO ANTUNES: COMPLEXIDADE E CENTRALIDADE DA CATEGORIA TRABALHO A GUISA DE CONCLUSAO: .. INTRODUGAO Nos ultimos 30 anos — um pouco mais para os paises desen- volvidos e um pouco menos para os paises em desenvolvimen- tem passado por(@fansformagoes que suscitaram um intenso debate acerca de sua (CGheAlidade no mundo contemporaneo. Pode parecer estranho falar em transformagées no mundo do trabalho, j4 que, longe de ser um processo(particulab ¢ caracteristico dos Uiltimog SOMOS do século passado, as transformagdes — no somente do mundo do trabalho, mas também das relagdes sociais ~ s&o constantes em todo o processo histérico. Entao, por que fixar e destacar as trans- formagoes ocorridas a partir das ultimas décadas do século 20? Essa nao é uma pergunta que se possa responder de forma ime- diata, mas é possivel oferecer, por ora, indicios e tendéncias. Tais como as transformacGes ocorridas nafprimeiza RE voluga fT dus- trial suscitaram diversas pesquisas e uma vasta literatura acerca dasfmudangas produtivas c das novas relacdes sociais, as mudan- gas ora em curso tém precipitado reajustamentos e recon- sideragdes dos paradigmas teéricos e metodoldgicos, visando entender essas transformagGes, visto que para muitos autores elas implicam em dindmicas produtivas e relacGes sociais distintas das precedentes, apontando, principalmente, para o processo déGi- g 9s, dodesemprego edo (GabalHOIpTECazO, como fim de uma utopia de crescimento - entendida como uma tendéncia que possibilitaria a capacidade de incorporagao dos setores informais ao nticleo central da eco- nomia -, de estabilidade e de crescente integragao do trabalho como fator de coesio social. Assim, para alguns autores, o traba- Tho deixa de ser umd €ategoria ahaliticdimportante para compre- ender as relag6es sociais em virtude de suas{@fansformagoes) (QUaicativas e@llixativas. Ou seja, num primeiro momento, identificam(trabalhole emprego) parecendo esquecer que 0 se- gundo é uma construgio histérica enquanto o primeiro é uma (Geico ne limminAVeTGAENISteNCANUMDA. Num segundo mo- mento vislumbram a diminui¢ao dos empregos estaveis, regula- dos e assalariados € 0 conseqiiente aumento dos trabalhadores Gifornais) dos trabalhadoresPorconta propria, dos trabalhadores - domésticos, cooperativados, bem como o aumento dos trabalha- dores no setor de servigos como indicadores do fim da centra- lidade do trabalho na sociedade contemporanea. Estaria, assim, o trabalho perdendo sua forga enquanto categoria analftica do mundo social. Em outras palavras, estarfamos vivendo numa so- t ao : Giatbildeddd econ dominado, pouco a pouco, a sociologia do trabalho desde © fim dos anos 80 se explica, sem diivida , pela questio do emprego e do ¢ pelo fato de que a mundializagio & primeiramente vista em termos de repercussio sobre o emprego. Essa demanda social acentuou , no decorrer dos anos, 0 deslocamento da sociologia do trabalho, que, gradualmente, perdeu sua posigdo no campo cientifico em favor daquilo que jf aparecia hi duas décadas como dois de seus herdeiras: a sociologia do emprego ( €-a sociologia da empresa (vista como um corp . inteiramente voltado para . Bruno Lautier. Por uma sociologia da heterogeneidade do trabalho. In Revista © Lationamericana de Estudios del Trabajo. Ano 5, niimeto 9, 1999. 18 I ©. DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO etc -, seja na(baikajinformalidade , como os{Gaimelés, osibiseateitos etc. Esses tiltimos que exercem suas atividades nas ruas con- solidam a excentricidade do gozo de direitos constitucionais e de cidadania — no Brasil fortemente vinculada a carteira de trabalho assinada —, além de, a todo o momento, terem de se afirmarem como trabalhadores, diferenciando-se daqueles que esto além ddlilepalidade, nafmmarginalidade, Isso significa que, apesar de precdria, desestruturada e, aindaf@stigmatiza- ‘da, aatividade dfGameld vai além de pura estratégia de sobre- vivéncia para aqueles que as executam. Ela éa tentativa de se (GERSEEIGH” numa ética que opde AMNOENAERED, demonstrando que ainda existe no Brasil um forte vinculo simbélico dojéfabalho como@evermoral ¢ que, apesar da-de- manda por mio-de-obra superar a oferta, @a0/@\qualquer tra balho que é visto comofportadorde uma condutamoralment aceita; por isso, a necessidade imperativa de os camelés cons- truirem suas representagdes como trabalhadores em oposigao aos{malandros, procurando reconfigurar os valores na busca por “temperar” direito com justica no tratamento igual dos desiguais. Vejamos, por exemplo, a indignagao de Moisés, 33 anos, solteiro, 2° grau incompleto, arrimo de familia. Sua ocupacao como camelé foi intermitente; todavia, a partir de 1997, essa atividade tornou-se tinica. Diz Moisés nao entender nada quando ouve pronunciamentos dos representantes da Prefei- tura — principalmente do coronel Antunes -, ou Ié nos jornais COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO | 19 a associacao das atividades dos camelés con(bandidos. Segun- do éle, “... quando o jornal associa a gente com bandido, eu, que acho que l4 tem(Pessoas inteligentes, fico me perguntan- do para onde foi a inteligéncia deles, afinal bandido niio traba- Iha.” Portanto, apesar das consideragdes acerca das mutagGes do mundo do trabalho que apontam para o fim da centralidade do mesmo e para um novo paradigma da sociedade(@ellazer iD) (CGRPOAVF verificar-se-4 que essas transformagdes nao estio levando a uma produgio simbélica que referende, no mundo cotidiano, a idéia de que estarfamos vivendo num mundo mais GSAS AMarTas Mo trabalho. Ao contrério, as transformagées no mundo do trabalho ni se restringem a ele, mas abrangem todas as relagdes sociais, emitindo um alerta de que o traba- Iho — cada vez mais@esvintculado|dolemprego ¢ da forma di- reta de assalariamento — desperta, na-sua falta, uma@rade REAR USEPSANALE ATER, para aqueles que sofrem diretamente com o desemprego, bem como para aqueles que os cercam. De acordo com Lautier, podemos verificar que “... a demonstragio, por multiplos trabalhos antropolégicos, do papel preponderante do nivel simbélico da insergao no traba- Iho contrasta com a precipitagao desenvolta com a qual certos autores afirmam, simetricamente, que o trabalho teria perdido seu lugar central do sistema simbélico de nossas sociedades” (Lautier, 1999: p. 11). Assim, o trabalho nao é simplesmente uma forma de subsisténcia, ele opera, também, um modelo de CGGHERTERRSTRAUAND, 01 sejn,é cambén(PSIORRAIND que ° omo agentes sociais moralmente _acetivels 20 I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO Da mesma maneira, podemos perceber que é forte e pre- sente, especificamente junto aos(Gamelos, a idéia de que o trabalho, ainda que precdrio, ocupa uma le . Mesmo exercendo atividades que, no limite, os excluem da(@idadania regulada pela(@artéirajde trabalhof@§sinada) os camelés constroem suas representagdes como trabalhadores ¢ véem suas atividades(Parajalem| dasa Na auséncia e na impos- sibilidade da carteira assinada, a atividade de camelé significa , enfim, de se manter ativo. Em outras palavras, po- demos depreender que “manter-se vivo” nao se limita a so- brevivéncia fisica do trabalhador; essa expressao se remete para além do imediatismo que a ela, mormente, associamos, ou seja, “manter-se vivo” envolve questées valorativas como s moral, ditto, a justi ee, que se fundam no trabalho, mas que sdo remetidas para além dele, ou seja, para a totali- dadeB6eial. Essa € uma posic¢ao unanime entre aqueles que pude entrevistar. Para ilustrar essa forma de pensar, um excerto do depoi- mento de um entrevistado torna-se imperativo. Fernando, 34 anos, casado, cinco filhos, 2° grau completo, trabalhando como camelé desde ie que o trabalho para ele é “... etc,” Entio, segundo ele, “... o trabalhd@ tudo, no sé dinhei- to , doGielOMAaVida, tem que ter o trabalho para ser’ , quem ndo tem trabalho é um sefHOHO\...) quem nao trabalha Ga0pensanOManBA o fu- turo nao existe, s6 vive o presente”. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO I 21 E interessante essa passagem. As consideragées de Fernan- do sobre.o sentido do trabalho vao ao encontro daqueles que compreendem que as transformagdes no mundo do trabalho, ou seja, a perda da estabilidade, a diminuicao da regulagio e a EE. reduzem a expectativa das pesso- as ao imediatismoe quanto ao futuro, conforme poderemos ver adiante em autores como Gorz e Offe. Para Fernando, mesmo exercendo atividades{precanias) total- mento GSSHibbidas das Bataiitas CONSHUCIONS, estar trabalhandoé Haum entendimento desse camel6 de que , tampouco, ASUpere> io dos iRERES (RECERTARRS) ca sobrevivenca sia; como salientamos acima, “manter-se vivo” expressa muito mais que a objetividade da sobrevivéncia. Talvez isso se explique porque na América Latina, especificame: Brasil, jamais se consolidou, de forma sistematica, ee fato que tornou possfvel de ser constatado nas economias capitalistas avangadas. De acordo com Pochmann, “a presenca do assalariamento, mesmo quando chegou a ser majoritaria, jamais apresentou forga suficiente para le- var i homogeneizagio das fSfMlunehiGg0es © COndIGOES de tabalnO, conforme as nagdes avangadas” (2000:20). Disso depreende-se que alprecarizagaoe a informalidade niio sao novidades e conformam a histéria do trabalho no Bra- sil. Onde, de um lado podemos encontrar um centro organi- zado, com altos saldrios, estabilidade ¢ representagao de (GRSS2) de outro, encontramos uma expressiva maioria que se encontra nas franjas desse nticleo central. Uma maioria que construiu suas vidas em precariedade, informalidade, sem re- 22 I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO “nia- posto que, mais uma vez afirmamos, essa tiltima era (6) regulada pela carteira de trabalho assinada.} E necessério fri- sar que, a despeito da-esquematizacao acima, nao concorda- mos coma tese da existéncia de um(mundo dualdo trabalho. A esquematizacio é, portanto, meramente explicativa, haja vista que nao se pode perder de vista que o capital tem se utilizado cada vez mais do trabalh ara tornar mais flexivel as regu- lamentagoes e pa Dessa forma, nao é incomum encontrarmos pequenas empresas a servigo do grande capital. ‘Todavia, na auséncia de uma insergao formal, de perspec- tiva de carreira e de aposentadoria, o trabalho precario e infor- mal, mesmo com todas as dificuldades, consolida a condigao de 3 interessante destacar que, até a promulgagio da Constituigio de 1988, era aaa a apresentagio da carteira de trabalho assinada, principalmente em A carteira de trabalho funcionava como um instrumento de diferenciagao entre E instigante atentar que a retirada desse preceito na Constituigao de 1988 coincide com ocontexto histérico em que o trabalho formal vai cedendo lugar para o trabalho informal. Como exigir a carteira de trabalho assinada num mundo em que ela se torna menos presente? Se a carteira de trabalho assinada deixa de representar entre uais os instrumentos que sero utilizados para essa diferenciagao? Podemos pensar que a nfo exigéncia da carteira assinada para diferenciar cidadio ¢ bandido poderia levar a uma cidadania ampliada € menos regulada. Entretanto, a realidade se mostra mais complexa. No limite, a precarizagio das condigées de trabalho, a flexibilizagao das leis trabalhistas e a diminuigao de investimentos sociais, principalmente a partir da década de 1990, tém restringido a cidadania. No limite, substituiu a vinculagio da cidadania do trabalhador-cidadio para o cidaddo-consumidor. Retornaremos a esse ponto quando formos discutir 0 mercado de trabalho no Brasil. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO I 23 ser trabalhador. E ser trabalhador (Peispectivas ae Ftiito que se fundam no trabalho, mas que se remetem i além dele, fatores queseesvaem quando se esta ¥ possivel argumentar que esses sonhos, desejos e pers- pectivas sao diferentes quando se tem possibilidade de cons- truir suas(6idgratias no trabalholformak fato que deve ser melhor investigado, principalmente se tivermos em mente que 0 processo de industrializacio brasileira teve como prin- cipio norteador a@oncentragao delrenda) Dito de outra ma- neira, se €é verdade que os sonhos, desejos e perspectivas dos trabalhadores que vivem na informalidade sao valorativa- mente diferentes daqueles que exercem suas atividades no " trabalho formal, nio podemos esquecer que a industrializa- Gao conservadora também limitava esses sonhos, desejos € perspectivas, transferindo os mesmos para o futuro com base no “mito do@fOgresso ¢ di ”, como meca- nismo adequado a sustentabilidade da asticia, da mentira e da @Ovetnabilidade”’ Dessa forma, podemos arriscar em afir- mar que nao ha diferenga substantiva entre eles, posto que ambos apostam no mito do desenvolvimento e, a partir dele, num futuro melhor para os seus descendentes. Se antes se sonhava com uma carreira, hoje s@{§oHhaem se transformar em enfim, ambas as etapas se equa- liam na espenanga de dignidadeystams, consumo. de um + Recomendo para aqueles que desejam compreender esse processo com maior acuidade, a obra de Katia Mendonga, A Salvagdo pelo espetdculo: mito do herdie politica no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Topbooks, 2002. 24 { O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO (@utiroldecente para seus filhosy preciso, pois, entender que nao desconsideramos que esses sonhos e desejos sao constru- tos ideolégicos. Em outras palavras, ndo podemos perder de vista que se “ontem” se sonhava com um emprego estavel, de carteira assinada, ¢ que se “hoje” se sonha em ser “empres4- rio de si préprio”, ambos expressam a necessidade do@apitab em encontrar solugGes para o ordenamento social que,em tl- tima instAncia, significa que o trabalho ainda é(@@ntralpara ea. Portanto, a despeito das consideragGes acima, nao se deixa de sonhar por nao possuir emprego formal, mas se deixa de sonhar se nio tiver trabalho. Um de nossos entrevistados, o Sr. Ney, 36 anos, 1* série do ensino médio, casado, dois filhos e morador de Caxias, transitou durante sua vida profissional por diversas ocupagoes, entre as principais esto auxiliar de arma- zém da Sadia durante 12 anos e auxiliar administrativo numa casa de cambio até 1990, quando perdeu seu emprego e nao mais conseguiu retornar ao mercado formal de trabalho. Hoje, transfere seus sonhos e perspectivas para os filhos que, segun- ‘Para ver com maiores detalhes ¢ profundidade as andlises sobre 0 processo de industrializago conservadora, recomendo os livros de José Luis Fiori. O véo da coruja: para reler o desenvolvimento brasileiro, Rio de Janeiro, Record, 2003, ¢ Maria da Conceigao Tavares, Da substituigdo de importagées ao capitalismo financeiro, de Janeiro, 11* edigio, Zahar Editores, 1983. Nesses trabalhos, os autores irfio desenvolver seus argumentos, vi nstrar que, apesar do crescimento drs pio ns li ni eee seja, ndohouve uma igo de renda que pudesse reverter as desigualdades is € econdmicas historicamente presentes no Br: Ao contririo, a industrializagio € conservadora justamente por manter as mesmas condigdes de concentragio de renda com desenvolvimento das forgas produtivas, Voltarci a esse debate quando for abordar a formagio do trabalho no Brasil. COLECAO TRABALHO E EMANCIPACAO 1 25 do ele, Suas palavras possibi- litam vislumbrar que (Pectivas Sao FECoHERtes.* De acordo com o depoimento do Sr. Ney, seu pai trabalhou duro durante anos numa mesma empre- sa, conseguiu comprar uma casa pelo antigo BNH e desejou para ele melhor sorte. Por isso, investiu em seus estudos. En- tretanto, nosso depoente nos relatou que se casou cedo e foi tra- balhar na Sadia. Nessa empresa, (horas-extras) o que . No processo de reestruragaio da empresa, no entanto, foi mandado embora, posto que nio tinha o “perfil” tido como adequado para conti- nuar na empresa. Somente conseguiu comprar sua casa no municipio de Duque de Caxias depois que foi trabalhar na informalidade. Nao deseja a mesma “sorte” para seus filhos, j4 que para ele “seus filhos(irecem| Omelhor”. Paga para eles todos os cursos que sua(fenda permite, scus filhos esto em escola particular, mas reconhece que para conseguir emprego hoje no basta uma boa formagio, mas acima de tudo tefBOHD) G@ERGIOMAMENS) Seu trabalho, por mais{Precatio que seja, Ihe permite construir um(BFOjeto c@postar num futur para seus filhos. No depoimento do Sr. Ney fica clara a contradigao ine- rente ao desenvolvimento do capital. Quando a@xploragao)da mio-de-obra podia ser realizada tio-somente pela@xtensao|da (GGiMAAATAS ALAIN, nao havia nenhuma preocupagio da em- presa com a formagio do trabalhador. No entanto, no momen- © Hissa questo dé transferéneia patalo futurotambém é parte da andlise da obra de Katia Mendonga, ap. 26 =| © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO to em que a maior integragao dos mercados se fez presente, a empresa sefeestruturon "eur ou continuidade na produgio reprodugio social Hs- clarecimentos feitos, retornaremos ao trilho de nossa argumentagao. Somente no séculos) na era do capitalismo manufa- tureiro, é que o trabalho tem seu status revertido, ou seja, é no momento em que 0 capitalismo comega a se impor como modo hegeménico de produgao que o trabalho passa a ser revestido do sentido que lhe confere sua@uplaface: direito c ‘Tal fato foi possivel pela expropriagdo do homem do seu ins- trumento de trabalho, bem como de sua produgio e a construgao da forma de trabalho assalariado. A racionalidadd(@eonomicase- parou ohomem de sua forga de trabalho, ou seja, na tentativa de Gialifica GUAR CAFESUAEA 0s trabalhadores aostiemOsineen- @8de trabalho nas indiistrias, a organizagao cientifica do traba- lho imprimiu um novo sentido ao trabalho. De uma atividade que fazidlparte dalvida) o trabalho tornou-se offieiSjde|ganihiara vida. O homem nfo mais possuia sua, de, no produ- zia 0 que a € NBO o que . Podemos q depreender que essa transformagdo imprimiu qualidades valo- rativas novas, j4 que h4 uma diferenga substantiva entre o traba- Iho enquanto parte da vida € 0 trabalho como(fieio)delganhana Gida)Enquanto “parte” da vida, o trabalho divide com outros complexos mediadores, como affamniliaje ifeligiad) a manuten- COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I: 29 ¢ao da coesiio social, ao mesmo tempo em que pode ser compre- endido como atividade ineliminavel em qualquer sociedade—na linguagem marxiana, @abalho produtor de coisas utels —, enten- dido como “meio” de ganhar a vida, o trabalho passa a expressar, de forma cotter, a unica forma de manutengao da coesiio social, também nao é mais 0 trabalho que se limita a produzir coisas titeis — apesar dele nao poder; jamais, prescindir — passa a ser um trabalho(@Stfanhadd, produtor de valor de tro- ca, enfim, umélmereadoria) Sobre essa dupla e contraditéria ca- racteristica do trabalho humano no capitalismo, vale resgatar 0 excerto marxiano em que Marx busca demonstrar a distingao en- tre otrabalho concreto, produtor de valor de uso, eotrabalho abs- GB produtor devalorde troca. Deacordocom Marxem O Capital, “....a utilizagdio délforga ofproprio|traballio. O comprador da forca de trabalho@OnsOmesd fazendo o vendedor dela trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se realmente no que antes era apenas potencialmen- te: forga de trabalho em ago, trabalhador. Para o trabalho reapare- cer em mercadorias, tem de ser empregado em valores-de-uso, em coisas qui O que ocapitalista determina ao trabalhador produzir é valor-de-uso particular, um artigo especificado. A produgio de valores-de-uso nao muda sua natureza geral por ser levado a cabo em beneficio do ca- pitalista ou estar sob seu controle. Por isso, temos inicialmente de considerar 0 processo de trabalho A parte de qualquer estrutura so- cial determinada” (1982: pp. 201 e 202). Do que se expés, podemos depreender que a forca de trabalho passou a ser <@GUiGAGE NAIR: « GFOUGROTEUET @UEZAB; no entanto, mesmo subsumido ea servigo do capi- 30 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO talista, o trabalho concretoffao pode deixar de existip como condicio sine gua non para a reproducio social sob a forma capitalista. Por isso, entende Mamser possivel a superacao do trabalho@li€madd) historicamente determinado — produ- tor de valor de uso —, porém afirma ser impensavel a exis- téncia de umaG@oeiedade|sem trabalho. A possibilidade de uma sociedade sem trabalho é fruto de uma andlise que opera a redugo do trabalho concreto ao trabalho abstrato.? Com a dupla dimensio do trabalho acima pontuada € sob a formagio histérica capitalista hé o triunfo da racionalidade eco- némica e da esfera da heteronomia, isto é, de uma conduta de atividades que tém como contraparte normas impostas e€ pré- ordenadas para o cumprimento do trabalhador, mediada pela forma de assalariamento. Apesar dessa dimensao heterénoma, passa a ser o trabalho um instrumento de sociabilidade e de condigdo moral, capaz de suscitar seguranga e estabilidade a vida das pessoas, principalmente@posialll Guerta Mundial quando se implementou ofBstadolde bemeestan sociale a politica keynesiana ‘a Para autores como Gorz, Offe e Habermas, a utopia da sociedade do trabalho teria chegadol@olfim e com ela o@léiio _emprego ¢ o(igtadolde bemuestar social. Segundo esses au- tores, como veremos abaixo, o@ilmento do desempregoim- (@Ossibilitajoltraballio|de\continwar como categoria capaz de sustentar a €Stabilidade @a)seguranga) bem como de se man- ° Esse € 0 caso, por exemplo, do trabalho produzido pelo grupo Krisis que tem 0 sugestivo titulo: Manifesto contra o trabalho, Sio Paulo, Geouspflabus, 1999, COLECAO TRABALHO £ EMANCIPACAO | 31 ter como fiel da balanca da cidadania e¢ de balizador de identi- dades coletivas. No entanto, hé que se destacar nesse momento duas questies que sao centrais na construgao argumentativa de Offe, mas que consideramos estar presentes também em Gorz: 1. O trabalho pode, ainda, ser considerado central para susten- Gt ae SS? 2. Eo trabalho uma necessidade para sObrevivenciafisica? Em outras palavras, se- tia o trabalho importante par. no mundo contempor4neo? Isso posto, vamos aos argumentos dos autores com intuito de se verificar se e como seus arcabougos tedricos respondem essas questies. 32 1 © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO CAPITULO | ANDRE GORZ: ADEUS AO PROLETARIADO E A UTOPIA DE UMA SOCIEDADE DO TEMPO LIVRE Quando se tematiza sobre a centralidade do trabalho, é re- corrente lembrar da obra publicada, no original em 1980 e no Brasil em 1982, de André Gorz, sob 0 sugestivo titulo Adeus ao proletariado. Nesse livto, o autor dé uma guinada em relagao aos seus escritos que prevaleceram até a década de 1970. De acor- docom Silva, a produgao teérica gorziana, até a década de 1970, “estava baseada nessa dupla, porém interconectada, suposi¢ao: a sociedade pode ser vista através do modelo da fabrica ea clas- se operaria € 0 tinico sujeito da transformacio social revolucio- naria (...)” (Silva, 2002: p. 134). O abandono dessa dupla suposiga0 tem como pressupos- to que a crise do capitalismo nos paises desenvolvidos apre- senta a substituigdo crescente e continua da velha classe operdria por uma nova classe que ele denomina de uma nio- classe-de-nao-trabalhadores. Esta, segundo o autor, é compos- ta pelas pessoas que foram expulsas do mercado formal assalariado, desempregados, trabalhadores em tempo parcial e temporarios, pelo incremento do processo de automagao e informatizagao. Assim, a nfo-classe-de-nao-trabalhadores, a0 contrario do proletariado tradicional, tem o emprego como ati- vidade proviséria, acidental ¢ contingente (Gorz, 1982: p. 89). Nao tenho diividas de que, a partir da definigao da nao-classe- de-nao-trabalhadores, que nada mais é do que uma oposigao bindria da definig&o tradicional da classe trabalhadora, os camelés, bem como os que se encontram inseridos na “nova informalidade”, esto inclufdos, num primeiro momento, na primeira. Todavia, se levarmos em conta os depoimentos des- ses trabalhadores, nenhum deles reduz trabalho ao emprego, tampouco esperam e acreditam no retorno ao mercado formal. Assim sendo, a atividade de camel6 no é, com certeza, um em- prego, mas, ao que tudo indica é, doravante, uma atividade per- manente. Isso por dois motivos: 1. a relagio negativa entre demanda e oferta de mao-de-obra no emprego formal e 2. pela concentracao e diminuigao de renda das tiltimas décadas. Portanto, para Gorz, essa nova classe que vive a vulnera- bilidade do presente nao possui nenhuma concepgao de sociedade futura; por isso, segundo o autor, ela (a nao-classe- de-nio-trabalhadores) nao pode ser definida, como outrora 0 fizera Marx, a partir de sua inserg4o no processo social de pro- ducio, posto que o trabalho para Gorz nao é mais a atividade principal, haja vista que a revolugdo microeletronica inaugu- ra uma nova ordem, cujas conseqiiéncias mais visiveis sio a diminuigao da quantidade de trabalho social disponivel e 0 aumento do desemprego de natureza tecnolégica. Mais uma vez chamamos atengio para o que nos parece ser uma confu- sio que perpassa toda a obra gorziana, ou seja, confundir traba- 34. CO © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO lho e emprego, confusao que justificard a postura gorziana de dar “adeus ao proletariado”.!° Ao realizar a distingao entre trabalho e emprego, como fize- mos acima, creio ser possivel.demonstrar que nao é a auséncia de vinculo formal que reduz a concepgio do trabalhador ao pre- sente; ao contrério, ha uma perspectiva de uma sociedade fu- tura mais eqiiitativa nos depoimentos daqueles que exercem atividades informais. O que ocorre, definitivamente, € que 0 desemprego, mais do que o emprego precario e o subemprego € responsivel pelas turbuléncias que criam incertezas e angiis- tias que nao permitem Aqueles que esto nessas condigées vi- ver além do presente. Sustentar que existe percepgiio de futuro junto aqueles que exercem atividades precdrias nao significa que negamos que 0 estatuto de precariedade, como descreveu Paugam (2000), gera um clima de aflicdo, desilusao e sentimen- to de impoténcia, mas desejo ressaltar que esses trabalhadores transferem para os seus descendentes a possibilidade de um fu- turo melhor. Outro ponto a destacar, nessa passagem, é que a nao-clas- se-de-nao-trabalhadores, caracterizada como trabalhadores em tempo parcial e temporario, ao contrario do que afirma Gorz, nao esté desvinculada do processo produtivo. Nao podemos esquecer os diversos expedientes surgidos com a marca ea grife da flexibilizagéo que proporcionaram ao capital diminuir 0 1 Sobre essa distingdo, ver a tese de doutoramento de TAVARES, Maria Augusta. Os fios (in) visteeis da produgao: informalidade e precarizacao do trabalho no capitalismo contempordneo, UFRJ, 2002. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO | 35 nticleo central dos empregos diretamente vinculados 4 produ- Gao, sem, no entanto, descartar a absorcdo diferenciada no pro- cesso produtivo de “velhas” novas formas de trabalho. Como conseqiiéncia da “revolugdo microeletrénica”, Gorz vislumbra uma dualizagao do mercado de trabalho que passa a conviver com um centro privilegiado de trabalhadores em tem- po integral e uma periferia constitufda, cada vez mais, por traba- Ihadores parciais, domésticos e até mesmo desempregados. Entretanto, essa dualizagao nao pode, segundo o autor, perdurar por um tempo longo, pois h4 uma tendéncia de esse centro di- minuir quantitativamente, enquanto, por outro lado, o crescen- te nimero de trabalhadores centrais liberados deve encontrar dificuldades para serem recebidos pelo setor tercidrio, devido a crescente automatizacao desse tiltimo. Por tudo isso, o trabalho, segundo Gorz, perde a sua forga de integracio social e passa, doravante, a se constituir como um importante fator de desinte- gracao social, enfim, como um problema social."! * Cabe aqui destacar, para tornat factivel o entendimento sobre 0 processo de integragio social em Gorz, que o autor realiza uma go entre integracio funcional e social. Para o autor, quela que possui uma racionalidade exterior, ou seja, € uma conduta prescrita pela organizagio empresarial para que o ator desempenhe sua fungio. Em outras palavras, € uma fa esfera da heteronomia, posto que sio aquela relacionada a esfera da coordenadas do exterior. autonomia. E a atividad sob'os auspicios do sistema capitalista, é uma atividade heterénoma, portanto, funcional, condicionada pela racionalizagdo econémica, dessa forma, operando uma ruptura entre “a esfera auto-regulada da sociedade civil e a esfera da heteronomia. Enfim, a dualidade entre integracio funcional e integragio sistémica tem, por conseqiiéncia, a fragmentagio entre a vida privada e a vida profissional.” (Gorz, 1988: p..53). 36 I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO Tudo isso leva Gorz.a vaticinar o fim da utopia do trabalho, posto que para ele “a economia nao tem mais necessidade (...) do trabalho de todos e de todas. Dessa forma, (...) 0 trabalho nao pode servir de fundamento 4 integragao social” (Gorz, 1988: p. 223, apud Silva, Josué, 2002: p. 172). Se a economia “nao tem mais a necessidade do trabalho de todos e de todas”, nao resta a Gorz a coer€éncia e a consis- téncia de propor a reducio do tempo de trabalho. Grosso modo, o desemprego estrutural causado pelas transforma- ¢6es tecnoldgicas passa a ser encarado como um fator de de- sintegragdo social; sendo assim, a maneira de superar esse processo é distribuir a quantidade de trabalho socialmente necessfrio entre a populagio. Em outras palavras, Gorz identifica que a impossibilidade do pleno emprego na sociedade contemporanea se traduziu pela liberagdo de grandes contingentes de trabalhadores no trabalho e nao do trabalho, na medida em que estamos vivendo num an- tagonismo em que 0 sistema capitalista abole “massivamente” o trabalho, a0 mesmo tempo em que 0 perpetua como norma, obrigacao e fundamento dos direitos e da dignidade de todos.* E interessante destacar que o antagonismo vislumbrado por Gorz nao se mantém se pensarmos de forma mais abrangente, ou seja, para além da associacao do emprego assalariado e industri- alizacdo. O capitalismo nfo esta abolindo o trabalho. Ele esté, isto 2 Arriscando-me a ser cansativo, reforgo que Gorz reduz de forma imediata trabalho ¢ emprego. Por isso, insiste em afirmagdes como a de que “o sistema capitalista est4 abolindo massivamente o trabalho”. Isso sé & verdade se entendermos que, quando Gorz fala em trabalho, queira se referir ao emprego. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO | 37 sim, utilizando-se da forca de trabalho de forma diferenciada. Se antes prevalecia a forma de assalariamento direto, hoje é possi- vel observar que, por meio do processo de externalizagao e terceirizagio, se incentiva o trabalho por conta prépria e 0 empreendedorismo. Por isso, nao existe antagonismo. Se se gera menos emprego direto, por meio das atividades terceirizadas, cooperativadas, do contraproprismo, espera-se que o trabalho continue como condigao moral e forma de coesao social, sob pena de a sociedade se colocar no limite da desarmonia. Ademais, o capital nao pode prescindir do trabalho — mesmo que seja ele, utilizando a perspectiva gorziana de uma revolugao microele- tr6nica, na forma de trabalho objetivado, isto €, maquinas e equi- pamentos— para sua reprodugio; jd o contrario nao é verdade. Ou seja, o trabalho concreto, produtor de valor de uso, é uma ativi- dade ineliminavel em qualquer forma de organizagio social; por- tanto, a sua existéncia independe da forma hist6rica concreta, por outro lado, a existéncia e a ampliacao do capital nao pode ocor- rer sem 0 trabalho. Retornando a questao do antagonismo vislumbrado por Gorz entre a exigéncia moral do trabalho ¢ a auséncia do mes- mo na sociedade contemporanea, entendemos que, longe de ser uma contradicao, é uma bela construgdo que permite ao capital se eximir da “culpa” pelo desemprego gerado pelas transformagées de cunho tecnoldgico e/ou de gestio, transfe- rindo para o trabalhador a responsabilidade de gerar seu préprio trabalho, mantendo esse como um dever moral, sem 6nus para coesio social. Enfim, cria-se menos empregos formais, enquan- to, por outro lado, permanece o trabalho como fonte de digni- 38 ! O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO dade de comportamentos e de normas moralmente aceitas. Dessa maneira, 0 camelé vive um dilema que parece ser inso- Itivel: se a sociedade ainda tem o trabalho como principio da ordem e da moral, ao que tudo indica, nao é qualquer trabalho que tem esses atributos, ao menos € 0 que deixa transparecer as ages coercitivas do poder publico municipal junto aqueles que ganham seu sustento trabalhando nas ruas. Numa agao defensiva, esses trabalhadores que tém nas ruas mais.que um lugar de passagem, mas uma possibilidade de sobrevivéncia, procuram se diferenciar daqueles que nio se submetem as exigéncias do trabalho, tentando fortalecer sua representacao enquanto trabalhador, mantenedor de uma moral socialmente aceita, buscando reconhecimento social. Ora, importa ao capi- tal incentivar, como citado anteriormente, o contraproprismo € novos empreendedores, como meio de criar trabalho onde nao ha mais empregos, mas, com certeza, isso nao vale para o came- 16, posto que a atividade desse ultimo esbarra, no limite, na prerrogativa das autoridades municipais para organizagao do espaco ptiblico e na auséncia de reconhecimento moral de sua atividade. Outra questiio a ser posta é a seguinte: se na baixa informalidade o trabalho nao é visto como empreendedorismo, fato que se dé pela sua pouca ou quase nula importancia para o capital, o mesmo nfo é verdadeiro para a chamada “nova informalidade”, haja vista que essa Ultima est4 cada vez mais subsumida ao capital. A visio de Gorz de um antagonismo onde nfo existe tem -relagdo direta com definigao deste autor sobre o trabalho, Para Gorz o trabalho: ay COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I 39 “no sentido contemporineo do termo, nao se confunde nem com os " afazerest...) nem com o labor, por mais penoso que seja (...) nem com 0 que empreendemos por conta prépria (...) Pois a caracterfstica mais importante desse trabalho — aquele que “temos”, “procuramos”, “oferecemos” ~ € ser uma atividade que se realiza na esfera ptiblica, “solicitada, definida ¢ reconhecida stil por outros além de nés e, a este ticuloffemmunerada & pelo trabalho remunerado (mais particularmen- te, pelo trabalhof@ssalariada) que pertencemos a esfera publica, ED «1 AED 0 ua SD GERD > inscrime-nos em un SLE EEE onde a outros somos equiparados ¢ sobre os quais vemos conferidos certos direitos, em troca de certos deveres” (2003: p. 21). Em outro momento, Gorz repete seu entendimento sobre o significado do trabalho; vale a pena trazé-lo para 0 texto, posto que ele parece mais esclarecedor do que 0 excerto anterior. Entio, vejamos: “Designa-se por (tfaballo” uma atividade fundamentalmente dife- rente das atividades' edos cuidados com a satisfagaio no scio da familia; ¢ isso no tanto por- que o “trabalho” é uma atividaddipaga, mas porque ele sc situa no espago ptiblico, aparecendo enquanto uma(prestagad mensuravel, _permutavel ¢ intercambidvel que possui um valor-de-uso para os ou- tros (..) Euchamo de trabalho, portanto, as tinicas atividades inseridas no progresso social de trabalho ¢ reconhecidas como parte integran- te desse.” (Gorz, 1991: pp. 112 127, apud Braga, 1996: p. 96). Por compreender o trabalho enquanto atividade assala- riada, Gorz parece associar, conforme ja ressaltei, de forma imediata trabalho/emprego, posto que a existéncia de menos 4o I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO postos de trabalho nao implica, necessariamente, que o traba- lho remunerado tenha deixado de ser suporte para as relagdes de trabalho nao formais, ou que se restrinja a atividades pri- vadas e servis. Gorz se esquece de tomar como dado que a “nova” composic¢ao do capital da indtistria tem suscitado, para além da diminuigao dos postos de trabalho no nicleo central do capitalismo, a utilizagao da forga de trabalho periférica de maneira intensiva. Em outras palavras, isso significa que nao €s6a partir do incremento de capital fixo, ou seja, de capital vivo objetivado, que podemos entender a diminuigao dos postos de trabalho no nticleo central do capitalismo, mas, tam- bém, pela intensificagdo da exploragao do capital vivo, possi- bilitado pela terceirizagéo e externalizagao de processos de produgao. Em linguagem marxiana, mescla-se mais-valia re- lativa e mais-valia absoluta. O problema é que, para Gorz, as extensdes da esfera econé- mica para espagos da reprodugao tém transformado atividades remuneradas que remetem a existéncia de uma classe servil, ou seja, de acordo com a visao gorziana, “renasce hoje o que a in- dustrializagao, depois da II Guerra Mundial, abolira: uma classe servil” (2003: p. 18). Verdade sem diivida incontestavel, prin- cipalmente se levarmos em conta uma série de atividades que nao sao exercidas no espaco ptiblico e sim no espaco domésti- co. Porém, nao levar em conta que essas transformagées sao Uteis ao capital, €é manter-se nos aspectos fenoménicos sem nada acrescentar. Isso sem dtivida tem uma inextricdvel relacao com a definigao gorziana de trabalho que, como vimos acima, € uma definigao historicamente datada, ou seja, a definigao COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO i 41 gorziana de trabalho tem relagao inelimindvel com 0 processo de assalariamento que se tornou hegem6nico, juntamente com o industrialismo. Procedendo dessa forma, nao se pode exigir de Gorz que ele compreenda que affragmentagad, a (Heterogeneidade e a complexidade das condigdes de trabalho encobrem com um véu as novas relagdes entre capital e trabalho que, no limi- te, substituem a forma precedente de trocas de equivalen- tes, em que o salario era (€) almmedidade valor, por uma troca em que a relacio salarial € superada pela troca entre clien- tes e/ou, em ultima instancia, entre iguais. De forma dissi- mld, no se pag pela forga de trabalho, mas se comprar. GRFCIGTASESEIVICOR|PFORUAIADS pclos novos patrdes. O que vale salientar é que essa nova relagio, mesmo nio se realizando na esfera publica nao deixa de produzir valores de troca, pelo menos se pensarmos nos{faballios precanos) par- (GRSEREAOMESHCSS) porém vinculados diretamente ao tra- balho produtivo. Na perspectiva gorziana, se a sociedade nao for capaz de repartir o trabalho liberado pela revolugao microeletr6nica, veremos transformados em @mipregos remunetados atividades) (@rivadas)intimas/edelazeP Dito de outra maneira, Gorz vis- lumbra uma sociedade que libera tempo de trabalho, gera menos postos de trabalho estaveis e remunera atividades que de trabalho nao tem nada em comum senio 0 nome. FE verdade que o capitalismo tem gerado atividades cada vez mais prec4rias, levando homens e mulheres a buscarem, com “os suores de seus rostos”, garantir sua sobrevivéncia. Os ambulan- 42 ! © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO tes sdio exemplos dessa precarizagao. Mas também é verdade que existe um nticleo de trabalhadores que, mesmo na precarieda- de," esto diretamente, como citei acima, associados ao nticleo central do capital. Nao podendo ser consideradas atividades de pura sobrevivéncia, so exemplos dessas atividades os “conta prépria” que prestam servicos diretos 4 empresa central, bem como as cooperativas, principalmente, nas dreas téxtil, de sapa- tos e de confecgio, e o trabalho em domicilio. Nao se pode afir- mar que algumas dessas atividades, mesmo sendo exercidas fora do espago ptiblico, nao produzam valores de troca. Se levarmos em conta a dualidade do mercado de trabalho exposta por Gorz, poderiamos afirmar que nio ha, exatamen- te, uma equacao dual do mercado de trabalho entre centro e pe- riferia, mas que hé, para, além disso, uma periferia da periferia. Explicaremos melhor: quando falamos da existéncia de uma periferia da periferia queremos expor que consideramos, a par- tir da perspectiva gorziana e tentando expandi-la, que existe, por um lado, uma periferia diretamente vinculada ao trabalho produtivo, por meio das atividades ja citadas — cooperativas, tra- balhadores em domicilio etc. -, enquanto, por outro, existe uma periferia desvinculada da atividade produtiva, ligada a ativida- des de babé, servigos domésticos etc. Nao podemos esquecer, ainda, das atividades precdrias que nao sao produtivas nem improdutivas, mas esto vinculadas a distribuigao e circulagao 3 Considero precario o trabalho que é exercido em condigdes de trabalho atividades remuneradas sem vinculo salarial direto, ou mesmo nao remuneradas, bem como as diversas formas de trabalho em domicilio. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO I 43 de mercadorias, na maioria das vezes produzidas pelo nicleo central do capital; referimo-nos a alguns camelés. Basta olhar- mos que boa parte das mercadorias vendida pelos ambulantes é, em grande medida, produzida por grandes indistrias, dimi- nuindo o tempo para realizacdo do valor. Com isso, queremos afirmar que nfo existe simplesmente uma dualizagao visivel do mercado de trabalho, mas que h4 uma complexificacao, hetero- geneizagio e fragmentagio da classe-que-vive-do-trabalho, como salientou Antunes (2000). Tal constatagao nao invalida a argumentago gorziana de que ha uma diminuigio constante 4 Essa categoria de classe-que-vive-do-trabalho foi bastante criticada. Afinal, qual €aclasse que nio vive do trabalho? Mesmo o capitalista vive do trabalho, mesmo que seja da exploragio do trabalho alheio. Em busca de uma categoria que desse suporte 4 nogdo ampliada da classe trabalhadora hoje, Antunes manteve a expressio hifenizada, mas, levando em conta as criticas, esclareceu que “a classe- que-vive-do-trabalho deve incorporar também aqueles ¢ aquelas que vendem sua forga de trabalho em troca de salrio, como o enorme leque de trabalhadores precarizados, terceirizados, fabril e de servigos, part time, que se caracteriza pelo vineulo de trabalho tempordtio, pelo trabalho precarizado, em expansio na totalidade do mundo produtivo, Deve incluir também o proletariado rural, os chamados béias-frias das regides agroindustriais, além, naturaimente, da totalidade dos trabalhadores desempregados, que se constituem nesse montimental exército industrial de reserva. Estdo exclufdos, em nosso entendimento, isto é, nfo fazem parte da classe trabalhadora, os gestores do capital, que sio parte constitutiva (objetiva e subjetivamente falando) da classe dominante, exercendo papel central no controle, mando € gestio do processo de valorizagio ¢ reprodugio do capital. Eles sto as personificagdes assumidas pelo capital, Esto exclufdos também aqueles que vivem de juros © da especulagio. Os pequenos empresérios urbanos € rurais, proprietarios dos meios de produgio, esto, em nosso entendimento, excluidos da nogio ampliada, que aqui desenvolvemos, de classe trabalhadora, porque nio vendem seu trabalho diretamente em troca de salério, ainda que possam, e freqilentemente sio aliados importantes da classe trabalhadora assalariada.” Ricardo Antunes, O desenko multifacetado do trabalho hoje e sua nova morfologia, in Servigo Social & Sociedade, niimero 69, ano XXIII, margo 2002. Rio de Janeiro. Editora Cortez, 2002. 44 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO dos postos de trabalho do nticleo central do capitalismo; visa tdo-somente dar maior amplitude ao seu argumento e relativizar sua defini¢ao sobre o trabalho, fortemente vinculado ao empre- go assalariado formal. Aassociacao direta entre fim de empregos estdveis e cria- io de atividades remuneradas servis levou Gorz a vaticinar, coerentemente com sua visio, a redistribuigao do tempo de trabalho socialmente util, j4 que, para o autor, estamos “diante de um sistema social que nao € capaz de repartir, nem de gerenciar, nem de utilizar o tempo liberado; que teme seu aumento ao mesmo tempo em que emprega todas as armas para fazé-lo crescer ainda mais”! 'S Trabalhd{Seeialmente ei) para Gorz é o trabal diproduave) Gorz repudia qualquer tentativa, neste momento, aa des que podem ser empreendidas pela prépria pessoa, ou atividades de ajuda a idosos ou criangas, enfim, servigos pessoais. Gorz niio concorda que o desemprego é mais um deslocamento de atividades que uma supressio de empregos; por isso, no comunga com alguns economistas que vislumbram a possibilidade de remunerar atividades que até entio no cram remuneradas. Para Gorz, “postular, como se faz correntemente, que a totalidade do tempo liberado pela racionalizagio econdmica ¢ pela tecnificagio em curso pode ser reempregada em outros lugares da economia, gragas a extensio indefinida da esfera econdmica, é postular que Go hé limite as atividades que podem ser transformadas em servigos remunerados, geradoras de emprego; dito de outra mancira, significa postular que todos, ou quase todos, serio finalmente chamados a vender aos outros um servigo especializado e a comprar os servigos que vendem: que a troca mercantil de tempo (sem criagio de valor) pode abranger todos os dominios da vida, impunemente, sem arruinar o sentido das atividades ¢ das relagdes, gratuitas € espontineas, cuja esséncia é justamente nao servir a nada” (2003:pp. 19 ¢ 20). No limite, 0 autor é contrério a monetarizag’o do mundo da vida, pois compreende que hé um riseo de assumir formas mercantis, ¢ eada vez mais especializadas, ati tuitas ¢ que tinham gum sentido. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO | 45 Por isso, para Gore,aredugio do tempo de trabalho sua distribuig&o tém por objetivofepensaba relagad entre @raba> , sem que o primeiro@ominea segunda, por meio da monetarizagao de atividades, antes exercidas gratuitamente. Devido a crescente racionalidade, avango técnico e divisio do trabalho, o autor sustenta que os trabalhadores sao impedidos de encontrar ni Por isso, a redugio di é fundamental, de acordo com Gorz, para que os individuos encontrem na tota- lidade da vida o desenvolvimento de suas habilidades cultu- rais € cognitivas nado mais encontradas no mundo do trabalho. O que Gorz nao explica é como o trabalhador pode encontrar uma’ , JA que para ele ha um antagonismo presente na sociedade contem- pordnea, onde se produz cada vez menos trabalho, enquanto esse continua como principio organizador dos comportamen- tos moralmente aceitaveis. A proposta gorziana de umd{fedistribuigao do tempo de tra balho tem como ponto positivo impedir a dualizaco do merca- do de trabalho, conforme acima aludido, ofertando, de certa forma e de acordo com seu entendimento, uma atividade que tenha sentido. Trabalhando menos, os trabalhadores poderaio encontrar, fora do local de trabalho @OVvos|espagos para socia> ‘lizagio. Entretanto, esse autor nao levanta a hipétese de que essa dualizagao, ou melhor, fragmentagao do mercado de traba- Iho seja funcional ao capitalismo, pois, como vimos, ela nao se limita a criar e remunerar empregos servis, mas empregos dire- tamente vinculados ao nucleo central do capitalismo; dito de 46 I © DEBATE. SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO outra maneira, a crescente fragmentacao do mercado de traba- lho é funcional para o capital, posto que permite a esse reduzir o capital varidvel, se abster das querelas trabalhistas e pressio- nar para o barateamento da mao-de-obra. Resumidamente, os argumentos de Gorz sobre a redistribuigao do tempo de traba- lho socialmente ttil sao os seguintes: “A medida que aumentam as margens de tempo disponivel, o tem- po de nfo-trabalho pode deixar de se opor ao tempo de trabalho... A medida que se amplia o tempo disponivel, desenvolvem-se a pos- sibilidade ¢ a necessidade de estruturi-lo através de outras ativida- des ¢ de outras relagGes, nas quais os individuos desenvolvem suas faculdades diferentemente, adquirindo outras capacidades, condu- zindo a uma vida diferente. O local de trabalho e o emprego podem, entio, deixar de ser os tini- cost@ipagoslde socializagad, as tinicas fontes de identidade social. dominio do além-trabalho pode deixar de ser 0 dominio do privado edo consumo...Uma nova relagao inversa, entre tempo de trabalho e tempo disponivel, tende, entio, a se estabelecer: as atividades aut6- nomas podem se tornar preponderantes em relago a vida de traba- Iho, a esfera da liberdade em relagao 4 da necessidade. O tempo de vida ndo tem mais de ser gerido em fungdo do tempo de trabalho. E o trabalho que deve encontrafSeulupan subordinado) dentro do pro- jeto de vida.” (Gorz,1988: pp. 118 e 119, apud Silva, 2002: p. 186). Gorz propugna a redistribui¢ao do trabalho socialmente necessdrio para romper com a dualidade, por ele vislumbra- da, entre um mercado de trabalho central e outro periférico. Ao optar por essa solugao, Gorz remonta uma sociedade dual baseada em duas racionalidades: uma econémica ¢ outra nao COLECAO TRABALHO E EMANCIPAGAO | 47 econémica. Nessa tiltima, o individuo encontraria sua esfera de autonomia por meio do tempo livre. Sao, portanto, duas racionalidades distintas: aquela do tempo do trabalho vincu- lado a racionalidade econémica e aquela representada pelo tempo livre, responsdvel pela emancipagao do individuo. Em suas palavras, Gorz afirma que “nao ha solugao que nfo seja dualista, pela organizagao de um espago social descontinuo, comportando duas esferas distintas e uma vida ritmada pela passagem de uma a outra” (Gorz, 1980a: p. 135, apud Silva, 2002: p. 179). Dessa forma, Gorz defende a tese de que a esfera da racionalidade econémica ou da heterono- mia nao iré desaparecer por completo, mesmo considerando que o tempo livre tornar-se-4 predominante em relagio ao tempo de trabalho. Isso nao impede que o autor vislumbre que a racionalidade nao econémica possibilitar4, por meio da redistribuigao do tempo de trabalho, a conquista da autono- mia ou da liberdade e que esta subordinard a esfera da heteronomia. Dessa forma, diz o autor: “Tentei ilustrar, em outro lugar, o que poderia ser essa organiza- ¢4o dualista do espaco social numa esfera da heteronomia subor- dinada aos objetivos da esfera da autonomia, A primeira garante a produgio programada, planificada, de tudo o que € necessario a vida dos individuos e ao funcionamento da sociedade, 0 mais efi- cazmente possivel e, por conseguinte, com 0 menor consumo de esforgos e de recursos. Na segunda, os individuos produzem de forma auténoma, fora do mercado, sozinhos ou livremente associa- dos, mas de acordo com os desejos, os gostos ¢ a fantasia de cada um” (Gorz, 1982: p. 117). 48 I O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO A dualidade apresentada por Gorz, entre as esferas da autonomia (liberdade) e da heteronomia (necessidade), é for- malmente similar 4 apresentagio teérica habermasiana entre sistema (aquela em que prevalece a razdo instrumental com relagdo a fins, enfim esfera da necessidade) e mundo da vida (aquele espago auto-organizado e intersubjetivo, isto 6, a es- fera da liberdade) que abordaremos mais adiante."® Por ora, cabe voltar ao tema do tempo livre e da aboligaio do trabalho apregoado por Gorz. Esse tiltimo, que esté sendo abo- lido, €, como vimos acima, para esse autor aquele trabalho que se generalizou a partir do advento do industrialismo e que é realizado na esfera ptiblica, em troca de um salario, sendo, por fim, um trabalhofheteronomo (@lienada), o trabalho assalaria- do. E importante destacar que o trabalho alienado nao pode ser abolido, salvo se tal abolicio acontecer com o fim da forma¢ao social que Ihe deu origem. Em outras palavras, a aboligio do trabalho alienado pressupée o fim da sociedade capitalista. Assim, 0 processo em curso, vislumbrado por Gorz e que lhe permite dar adeus ao proletariado, esta relacionado ao avanco da técnica e da revolugao auténoma das forgas produ- tivas, denominadas pelo autor de revolugao microeletrénica. Esta confere, sempre segundo o autor, uma novidade, nao somente porque permite subverter 0 tempo de trabalho como 6 A obra habermasiana que seré apresentada, pai adiante, de forma similar & dualida iana entre a esfera di e da heteronomia, também sustenta isfio dual da sociedade. De acordo com Habermas, a sociedade é composta por duas racionalidades distintas: a razdio instrumental, a se refere ao mundo do trabalho, e a razio comunicativa, que se refere ao COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO 1 49 medida de valor, posto que “ela inaugura o decréscimo da massa total do capital fixo posto em agao para produzir um volume rapidamente crescente de mercadorias” (Gorz, 1983: p. 68), mas também porque ela (revolugio microeletrénica), por conta disso, acirra a contradigdo inerente ao préprio capi- tal. Dessa forma, a novidade da presente crise “f que as mutagées tecnolégicas pelas quais o capitalismo responde a ela no sio mais domindveis no quadro da racionalidade capitalis- ta. Acelerando as destruigdes de capitais e empregos, tais mutagdes permitem produzir quantidades crescentes de mercadorias com quan- tidades decrescentes de capital e trabalho... A automatizagio abole os trabalhadores ao mesmo tempo em que os compradores potenciais” (Gorz, 1983: p. 70). O ocaso do trabalho, bem como a “agonia” do capital, sao potencializados segundo Gorz, pela automatizagao das atividades produtivas e de servicos. Ha, nesse sentido, a hi- potese de uma neutralidade da técnica que, de uma forma geral, inaugura a era da abolicao do trabalho, posto que “o trabalho tende a tornar-se uma forga produtiva secundaria, face 4 poténcia do automatismo e da complexidade dos equipamentos” (Gorz, 1988: p. 277, apud Castro, 1996: p. 98). O argumento do autor nao sé esvazia a esfera do traba- lho, mas também da politica, j4 que para ele a revolucao microeletrénica “corresponde a aspiragao de uma propor- gio importante dos homens e mulheres por (re) tomar 0 poder da/e sobre sua vida” (Gorz, 1988: p. 171). E a partir da hipétese da neutralidade da técnica que Gorz constréi sua utopia de uma sociedade de tempo livre, na qual 50 |] © .DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO o trabalho heter6nomo é subordinado a esfera da autonomia, posto que a possibilidade de redugao do tempo de trabalho, de forma substantiva, permitiré transformar o trabalho em mais uma atividade, e nao na atividade. Gorz salienta que a reducao do tempo de trabalho deve ser considerada como um fim para reduzir as desigualdades sociais. Por isso, ela (a redugdo do tempo de trabalho) nao pode ser seletiva e tampouco estar condicionada aos ganhos em produtividade. O objetivo, portanto, é que a redistribuigao do trabalho socialmente necessario seja benéfica para todos. Dessa forma, nao cabem agées corporativas de sindicatos e empresas que véem na redugo da jornada de trabalho uma oportunidade para manter os empregos existentes, mas sim pensar a oportunidade de melhor distribuf-los, aumentando os nuimeros de postos de trabalho. Aqui, encontra-se a dificul- dade de equacionar interesses coletivos com interesses indi- viduais, abordados por Olson." A renda bAsica vinculada ao trabalho foi defendida por Gorz como a condi¢io sine gua non de estabelecer um vin- culo entre trabalho e cidadania. Seu principal argumento € de prover uma renda independente da quantidade de tra- balho executada, numa espécie de equagao que se funda ” O trabalho de Mancur Olson, A /égica da agdo coletiva, Sio Paulo, Edusp,1999, mostra a contradigdo entre interesses ptiblicos coletivos ¢ as contribuigées individuais para alcangar a promogiio de interesses comuns, De acordo com esse autor, existe um paradoxo nas agées coletivas. Para ele, os individuos nao possuem condigées de proverem sozinhos os beneficios que as grandes instituigdes podem oferecer; no entanto, os individuos irio alcangar os beneficios providos pelas instituigées, participando ou nao das agdes coletivas. COLEGAO TRABALHO £ EMANCIPAGAO I 51 no atendimento dos marginalizados da sociedade do traba- lho, tornando possivel distribuir mais trabalho para termos mais cidadaos. No artigo “Direito ao Trabalho versus ren- da minima”,"* Gorz faz uma breve andlise sobre a denomi- nada “garantia de uma renda insuficiente”, apontando como um dos adeptos e disseminadores dessa idéia 0 eco- nomista Milton Friedman. De acordo com Gorz, essa “ren- da insuficiente” tem, como objetivo principal, “‘.. pressionar os pobres aptos ao trabalho a aceitar empregos mar- ginais, sazonais, irregulares e de remuneracio baixa, para os quais nio havia candidatos suficientes, ¢ os beneficios sociais eram mui- tos generosos para que esses empregos inferiores € subalternos fos- sem um atrativo. Era conveniente, entio, reduzir as alocagdes de ajuda social, agravar a pobreza dos pobres e forga-los a aceitar tra- balhos que, ainda que mal pagos, representassem um complemen- to de renda. O minimo garantido devia, pois, subvencionar as pessoas que aceitassem os bad jobs, mas devia, a0 mesmo tempo, subvencionar os empregadores fornecendo-lhes uma mio-de-obra ao avesso, Cujo saldrio seria, antes de tudo, uma renda complemen- tar” ( Gorz, 1994: p. 76). Gorz observa que essa proposta, em suas palavras, social- mente regressiva pode servir em dois pélos complementares: 1. “a indenizacio de desemprego, total ou parcial ¢ 2. a de in- citagao a trabalhar de modo intermitente, em tempo reduzi- 52 Artigo extraido da revista Futuribles (Franga), publicada em seu n° 184, de fevereiro de 1994, ¢ traduzido por Mariangela Belfiore Wanderley, em julho de 1996, In Revista Servico Social e Sociedade, ano XVII, dezembro de 1996, n° 52, Séo Paulo, Editora Cortez. | O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO do ¢ hordrios varidveis, segundo a demanda da empresa” (Gorz, 1994: p. 79). Gorz critica a busca do pleno emprego, efetivada por tal expediente, pois entende que este colocaria os beneficidrios na estrita dependéncia do Estado, além de transformar em trabalho atividades que se desenvolvem no Ambito do mundo privado, como, por exemplo: “ocupar-se de parentes ou amigos doentes, educar os filhos, assumir ativida- des voluntarias, politicas ou de ajuda miitua etc.” Como con- seqiiéncia, “ninguém ter4 mais necessidade de ajudar um cego, por exemplo, a atravessar a rua, pois h4 pessoas que sao pagas para isso” (Gorz, 1994: pp. 80 e 81). Como se pode vis- lumbrar, Gorz mantém-se coerente com sua argumentacio, pois, sua critica a renda insuficiente tem relagao estreita com sua proposigao de romper com a dualizagao do mercado de trabalho e com sua definigio de mercado de trabalho. Para Gorz, a transformagio de atividades extra-econémi- cas em empregos entra em choque com a pressuposi¢ao do direito ao trabalho como fonte de cidadania, “precisamente porque a produgio social nao engloba todas as atividades. Nao esto todas situadas na esfera ptiblica, nado sao todas regidas pelo direito e nem todas conferem um status” (Gorz, 1994: p. 83). Nao ha como discordar das assertivas de Gorz. E incontest4vel que nem todas as atividades conferem status enem todas sao regidas pelo dircito. Isso significa que, na so- ciedade regida pelo capital, nao é o direito ao trabalho fon- te de cidadania; ao contrario é o emprego a sua condigao, principalmente se nos atermos A sociedade brasileira: como jd salientamos, no Brasil, é o emprego formal que se apresen- COLECAO TRABALHO E EMANCIPACAO 1 53 ta como fonte de cidadania.'° Tal fato torna-se um paradoxo, jd que os empregos formais, desde a década de 1990, tém so- frido um decréscimo constante. Dessa forma, ha de se pensar numa cidadania ampliada e desvinculada do emprego formal. E pela auséncia da carteira assinada que podemos afirmar que a atividade exercida sob as mais variadas formas de informalidade €, no limite, a negagao da cidadania, aqui entendida como um contrato que permite a maximizagao de expectativas universais e de longo prazo. A condi¢io de informalidade marca a ruptura do contrato social. Vejamos, por exemplo, o que versa o capitulo II, arti- go 6°, da Constituig&o Federal Brasileira, promulgada em 1988. Esse capitulo trata da universalizagio da educagao, da satide, do direito ao trabalho, moradia, lazer, seguranga, apo- sentadoria, da assisténcia a infancia e 4 maternidade. Podemos verificar que existe uma lacuna entre a existéncia do direito e seu cumprimento. Diversos ambulantes entrevistados rela- taram que tiveram de parar de estudar para trabalhar; isso implica um quase antagonismo entre trabalho e educagio, especificamente para 0 universo de trabalhadores entrevista- dos. Quanto a seguranca, o principal ponto negativo apresen- tado pelos camelés no exercicio de suas atividades é a ago coercitiva da Guarda Municipal. E a aposentadoria? Essa pa- Aqui cabe um esclarecimento: ha uma distingdo significativa entre emprego e trabalho, nem sempre levada em conta. O emprego é uma categoria objetivada ¢ mediatizada por relagdes contratuais juridicas, historicamente demarcada e com forte aporte valorativo no imagindrio popular, enquanto o trabalho € uma categoria abrangente que nio se restringe apenas aos processos considerados econdmicos stricto sensu. 54 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO lavra nao consta, ou quase nunca, no vocabulario dos camelés; tampouco, eles alimentam a expectativa de se aposentar. ‘Tudo isso revela que a cidadania nao é universal; ao contrario, € condicionada e limitada por uma série de instituigdes, den- tre elas o mercado formal de trabalho, tornando-se, de certa forma, um privilégio para poucos. Nao por menos se discute politicas sociais focais, visando atender aqueles que se encon- tram excluidos da cidadania, que, pelos preceitos legais, de- veria ser universal. O que Gorz deseja salientar é que o trabalho assalariado, mesmo que penoso e desagradavel, tem um prego € um status ptiblico, posto que o trabalho é regido por regras de direito universais ¢ ao abrigo da arbitrariedade do patrao. Em assim sendo, Gorz defende que a garantia de uma renda suficiente “deve permanecer ligada ao direito e ao dever de cada cida- dio realizar determinada quantidade irredutivel de trabalho profissional ao longo de um ano, de um qiiingiiénio, ou de uma vida inteira (...) Nao ha plena cidadania fora disso” (Gorz, 1994: p. 85). Conceber, portanto, uma renda de existéncia, ou uma-ren- da insuficiente, transformando em emprego atividades que sao desprovidas de satus e so exercidas no ambito do priva- do é demonstrar, para Gorz, que centenas de milhares de pessoas sao dispensdveis. Ademais, a incondicionalidade da renda € um recurso que permite encobrir o verdadeiro problema para o qual a socie- dade de mercado nao consegue solugio, ou seja, o do direito ao trabalho. De acordo com Gorz, COLEGAO TRABALHO £ EMANCIPAGAO | 55: “... sua solugao no pode constituir em subvencionar, com 0 objetivo de reduzir o desemprego o ganha-pao de carpinteiros, encanadores etc, Essas atividades apenas realizam o direito ao trabalho quando correspondem a uma consciéncia ptiblica de sua utilidade € nfo pela criag’io em si de empregos como objetivo principal. O problema nao provém do fato de que nao ha trabalho suficiente para ocupar todo mundo. Provém daquilo que a sociedade nfo sabe ou nao quer repartir com todo mundo: o volume de trabalho decrescente de que tem ne- cessidade, permitindo, assim, a todos trabalhar menos, melhor e de outra forma, abrindo, ao mesmo tempo, o espago piiblico a atividades que nao tenham a remuneragiio como objetivo.” ( Gorz,1994: p. 85). Todavia, em seu livro Miséres du prisent, richesse du possible, “ Gorz muda de posigao, passando a aceitar a idéia de uma renda basica ou alocagio universal incondicional”( Silva, 2002: p. 193). Gorz muda sua opiniao por nao considerar mais possivel vincular a renda minima suficiente ao trabalho assalariado de tempo integral ¢ como tinica fonte reconhecida de status, pois, segundo ele, sua proposta nao é mais aderente as transforma- des introduzidas pelo pés-fordismo. De acordo com Gorz, sua posigio anterior era “coerente com a perspectiva de extingio do assalariamento e da lei do valor: a renda social 20 importante ressaltar que este livro foi publicado em 1997, apenas trés anos apés Gorz criticar com veeméncia a proposta de uma renda incondicional, ou seja, uma renda minima que nao se restringisse tfo-somente 3 esfera econdmica do trabatho. Sua aderéncia a uma renda incondicional serd justificada por considerar que a revolugio microeletrénica solapa os fundamentos do raciocinio econémico tradicional, posto que a produgio dos meios de produgio (setor I), cresce mais rapido que a dos produtos de consumo (setor II), por isso, a tendéncia é cada vez menos emprego estdvel ¢ por tempo indeterminado ¢ mais flexibilidade, incerteza ¢ trabalho em tempo parcial. 56 I O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO garantida nao era mais um saldrio. Ela era coerente com a apropriacao e o controle do tempo” (Gorz, 1997a p. 139, apud Silva, 2002: p. 193). ‘Tendo em vista as mudangas ocasionadas pelo pés- fordismo, Gorz compreende que nio é mais possivel vincular de forma restrita uma renda bdsica com a atividade laboral,”! dessa forma, a alocagio da renda basica universal passa a ser considerada “a melhor alavanca para redistribuir tao ampla- mente quanto possivel, ao mesmo tempo, o trabalho remu- nerado e as atividades nado remuneradas” (Gorz, 1997a p. 194, apud Silva, 2002: p. 194). Essa mudanga de Gorz traz em sia perspectiva que esse autor possui sobre o trabalho. Ao tematizar sobre o tempo livre, Gorz, num primeiro momento, reconhece que a categoria trabalho permanece em Ultima ins- tancia, sendo um instrumental importante de anilise social, haja vista a sua vinculaco entre trabalho e cidadania. A socie- dade de tempo livre, nessa perspectiva, nao esta desconectada do mundo do trabalho, j4 que o tempo livre parece-nos, aqui, tGo-somente uma imagem invertida do trabalho. Explicamos melhor: mesmo de forma categérica, dando Adeus ao proleta- 2 Para Gorz, 0 pés-fordismo imprime uma nova caracteristica & sociedade do trabalho. Fortemente vinculado a sua hipétese da revolugao microcletrénica, © autor compreende que hé uma hegemonia do trabalho intelectual sobre 0 material, tornando-se o primeiro a principal forga produtiva e nao mensurdvel. Hé, portanto, para Gorz, a prevaléncia do trabalho imaterial cujo conhecimento € a forca produtiva principal. Assim sendo, 0 autor vislumbra que, com a diminuigio intensiva da utilizagao do trabalho vivo em detrimento do trabalho morto (trabalho vivo objetivado), a quantidade demandada por trabalho diminui, enquanto sua oferta se expande, impedindo que se restrinja a renda basica a redistribuigao de horas de trabalho (Gorz, 1997). COLEGAO TRABALHO £ EMANCIPAGAO | 57 riado, Gorz manteve a sua concepgio de tempo livre de for- ma relacional ao trabalho, tendo este como fundamento da cidadania e de status; por isso, a sua construgio teérica, até a publicagio do livro Misdres du present, richesse du possible, em 1997, se fundamentava na distribuigao do trabalho entre os individuos, mesmo reconhecendo o trabalho como esfera da heteronomia em oposi¢ao a esfera da autonomia. Todavia, a partir de 1997, sua concepgao teérica acerca de uma sociedade do tempo livre dé uma guinada radical. Dora- vante, Gorz desconsidera o imperativo do trabalho como fonte originaria da cidadania; por isso, passa a aceitar a renda basica de forma incondicional, ou seja, n’io associa a disponibilidade da renda bdsica com a distribui¢ao eqiiitativa do tempo do tra- balho. Esse “fato” revela que, para Gorz, nao somente ao pro- letariado deve se dar adeus. Percebendo que a revolugao microeletrénica tende a diminuir cada vez mais 0 uso do traba- tho vivo e aumentar o uso do trabalho objetivado, Gorz dé adeus ao trabalho como categoria central capaz de oferecer sentido a vida em sociedade. Assim, 0 autor entende ser possivel uma sociedade do tempo livre e a prevaléncia da esfera da autono- mia em virtude das transformagGes tecnolégicas, mesmo sem a existéncia de um ator coletivo que possa substituir o proleta- riado. H4, em nosso entendimento, o abandono da politica de classe e uma crenga determinista no progresso tecnolégico como fonte legitima e emancipadora do trabalho heterénomo, em favor de uma sociedade auténoma. Portanto, 0 que Gorz vislumbra é a retragio do trabalho estranhado e fetichizado e sua transformagio, numa esfera de desenvolvimento de formas 58 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO criativas; isso significa que o trabalho heter6nomo se tornard re- sidual e subordinado a esfera das atividades autOnomas dos in- dividuos. : A defesa de uma sociedade do tempo livre é legitima e antiga. Podemos citar Paul Lafargue e seu trabalho O direito @ preguicga (1880) ¢, mais recentemente, Dominique Méda (1995). Entretanto, sob os auspicios do capitalismo, nem o trabalho nem o tempo podem ser verdadeiramente livres, ao contrario, ambos podem se tornar realmente livres e criativos quando fora do dominio do capital.” Ao dar adeus ao proleta- tiado, Gorz se mostra coerente com sua proposic¢io teérica e atento as condigdes empfricas que demonstram a diminuigao intermitente dos trabalhadores formalmente integrados ao processo de reproducao material; todavia, ao reduzir trabalho e emprego deixa de vislumbrar que as transformagdes que analisa nao se limitam a uma dualidade do mercado de traba- Iho entre um niicleo central e outro periférico, mas se consti- tuem para além disso, isto 6, o que hé é uma complexidade 2 Marx defende nos Grundisse (1971) uma sociedade do tempo livre, mas, 20 contritio de Gorz, nao entende teleologicamente, que o desenvolvimento das forcas produtivas por si s6 seja libertadora do trabalho e do tempo de trabalho. Para sermos mais preciso, o desenvolvimento das forcas produtivas ¢ a queda da proporgdo dos trabalhadores no universo total traz consigo a possibilidade de superagio da consciéncia estranhada, pela tensio entre as relagdes de produgao ¢ as forgas produtivas. Recorro a Istvan MészAros em sua obra Para além do capital, S40 Paulo, Boitempo, 2001, para aclarar a contradigio entre forcas produtivas e relagdes de produgao. Segundo Mészéros, a formagio social capitalista € marcada por uma contradigio imanente, jé que, a0 mesmo tempo em que aumenta sua capacidade produtiva, dispensa a-forga de trabalho, gerando um descompasso entre a capacidade produtiva e a possibilidade de consumo, em face do aumento do desemprego. COLEGAO TRABALHO £ EMANCIPAGAO | 59 cada vez maior do mercado de trabalho, que abre espago para uma nova sintese que, no limite, pode ser traduzida por no- vas relagées sociais, consubstanciada pela subsungao do tra- balho concreto pelo trabalho abstrato. Isso significa que, longe de estar desaparecendo, o trabalho abstrato é condigio ineli- mind4vel na formagio social capitalista, j4 que sua aboligao seria a destruicao do préprio sistema. Dessa forma, a possibi- lidade vislumbrada pela estrutura argumentativa gorziana da coexisténcia do trabalho abstrato com uma sociedade do tem- po livre somente pode ser sustentada enquanto utopia. Por fim, de acordo com Lessa, “tais propostas buscam sempre 0 impossivel: novas formas de relago capital-trabalho que aten- dam as exigéncias da reestruturacao produtiva (...) sem o de- sagradavel efeito colateral do desemprego em massa” (2002: p. 44). Resumindo: consideramos que a associacio realizada por Gorz entre trabalho e emprego o impede de vislumbrar a utilidade de formas tidas como atipicas de trabalho para o capital. Nao por menos, torna-se impossivel uma sociedade de tempo livre sob o dominio do capital, haja vista que nao é a diminuigao dos empregos formais que determina a importan- cia do trabalho para sociedade capitalista. Dessa forma, nao pode haver emancipagao sem a existéncia de um ator social. Este ator, nfo temos divicss, S(CSSG TCE) 60 | O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO CAPITULO II OFFE E SEUS QUESTIONAMENTOS SOBRE CATEGORIA TRABALHO ‘Clauss Offe é outro autor importante que se insere no mesmo debate, apresentado, no capitulo anterior, pelas ar- gumentacoes gorzianas. Segundo Offe, o modelo de uma sociedade burguesa consumista, preocupada com o traba- Iho, movida por uma racionalidade e abalada pelos confli- “tos trabalhistas, é uma das preocupagées do pensamento sociolégico classico de Marx, Weber e Durkheim, apesar das suas abordagens metodolégicas e construgées teéricas distintas. Para Offe, a experiéncia do século 19, com o in- cremento da atividade industrial que articulou uma hierar- quia entre por meio da organizagao ¢ do desenvolvimento do célculo racional e da racionalidade técnica, trabalho e trabalhadores, como nao poderia deixar de ser, aparecem nos escritos desses autores classicos como categorias centrais e reveladoras dos princf- pios organizacionais da sociedade, tornando-se 0 cixo em torno do qual era analisada e reproduzida a vida social (Offe, 1989). Por sua vez, para Offe, as transformagées ocorridas a partir do ultimo quartel do século 20, com o declinio das ocupagdes do setor secund4rio, bem como do desemprego estrutural, do avango da racionalidade técnica ¢ da(@iminuigao do emprego - assalariado, apontam para a crise da sociedade do trabalho e, no limite, para a perda da centralidade do trabalho assalariado como fator de integracao social e para diminuig¢ao politica dos trabalhadores. Para Offe, a crise € percebida “como uma situagdo na qual repentinamente instituigdes tradicionais ¢ evidéncias incontes- taveis, tornam-se controversas”. Para ele, pode-se falar em crise “na medida em que os indicios de que o trabalho remunerado formal perdeu sua qualidade subjetiva de centro organizador das atividades humanas de auto-estima e das referéncias sociais, as- sim como orientagdes morais” (Offe, 1984/1989: pp. 7-41). Além disso, Offe constata a diminuigo das tentativas de compreender a realidade social por meio das categorias do trabalho assalaria- do, ou seja, para esse autor hd uma ampliagao do espectro das pesquisas sociolégicas, que j4 niio se limitam ao trabalho como categoria central e privilegiada para suscitar explicagdes sobre a vida cotidiana (Offe, 1989). E com respeito a essas observacgdes empiricas € tedrico- metodolégicas que Offe levantard algumas questées sobre 0 ocaso da centralidade do trabalho. Entre as questées susci- tadas, podemos destacar as seguintes: Estaria a sociedade objetivamente menos configurada pelo fator trabalho? Pode- se dizer, apesar do fato de uma parte esmagadora da popu- lagio depender do salério, que o trabalho se tornou menos 62 1 © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO importante para os individuos quanto para a coletividade? Enfim, podemos, entio, falar de uma implosao da categoria trabalho? Para respondé-las, Offe descreve o processo de di- ferenciagio, fragmentagiio ¢ heterogeneizagao do mundo do trabalho, com atengo para o espetacular crescimento do setor tercidrio (servigos), posto que para o autor “o cresci- mento do setor de servigos nado pode ser interpretado atra- vés do modelo de uma totalizagdo da racionalidade do trabalho, baseada na produgio técnica organizacional econo- micamente eficiente pelos trabalhadores assalariados” (Offe, 1989: p. 180). Offe apresenta, portanto, o setor de servigos como sendo constitufdo por uma racionalidade es- pecifica que se distingue do setor industrial. Essa distingao entre racionalidades apontadas por Offe implica uma maior diferenciagSo interna da coletividade dos trabalhadores as- salariados. Dessa forma, segundo o autor: “A diferenciagio interna e continua da coletividade dos trabalhado- res assalariados, assim como a erosio dos alicerces culturais ¢ politi- cos de uma identidade coletiva centrada no trabalho, ampliaram esses dilemas das formas trabalho assalariado ou da dependéncia com re- Jago ao saldrio nao serem mais o foco de intengao coletiva e de divi- sio social e politica. No que diz respeito aos contetidos objetivos e subjetivos da experiéncia, muitas atividades assalariadas nada mais tém em comum a no ser o nome trabalho.” ( Offe, 1989: p. 177). O crescimento do setor de servicos, o declinio da partici- pagio dos trabalhadores do setor industrial, o desemprego, a expansiio do emprego parcial, a crise do Estado de bem-estar- social ¢ a fragmentagao da sociedade salarial, sugerem, para COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACGAO | 63 Offe, o declinio da ética do trabalho, haja vista que o trabalho ocupa cada vez menos espago como continuidade biografica, tornando-se, na maioria dos casos, uma excepcionalidade. Para Offe, esta claro que “cada vez mais a produgao de bens e servigos ocorre fora da estrutura institucional do trabalho as- salariado formal e contratual, ou seja, em dreas onde os traba- Ihadores nao sio empregados, mas membros de familias ¢ domicilios, membros de instituigdes compulsérias como exér- citos e presidios, ou de uma economia subterranea semilegal ou criminalizada” (1989: pp. 177 e 178). Além disso, o autor aponta para a ampliagao do tempo livre, nao como um aspec- to fenoménico conjuntural, mas como uma tendéncia que tende a se confirmar. Tendo em vista 0 desenvolvimento tecnolégico, a proporgao do tempo dedicado ao trabalho na vida da pessoa diminuiu. O que leva o autor a vaticinar que, para além do trabalho, outras questdes, antes tidas como se- cundarias, (res) surgem como questées sociolégicas relevan- tes, tais como questées étnicas, de género, ecoldgicas etc. Para Offe, tais argumentos podem ser questionados. Se- gundo ele, “alguém pode (...) contrapor que é a mesmissima l6gica da valorizago do capital que domina as formas de tra- balho e fomenta a variacao crescente das mesmas. O poder de persuasao dessa objecao me parece limitado, pois as inime- ras rupturas no trabalho assalariado pretensamente unificado ecom uma ‘forma determinada’ (...) sao tao evidentes que nao podem ser tcoricamente vulgarizadas” (1989: p. 177). E verdade que as transformagdes no mundo do trabalho- sto evidentes. Entretanto, essas evidéncias nio podem ser 64 1, © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO desprezadas como se fossem algo dado, pois, ao contrario de Offe, no consideramos que as supostas objegdes levantadas por ele, contra seus préprios argumentos, sejam limitadas ou vulgares. Nao se pode desconsiderar, como faz 0 autor, que, mesmo com a produgio de bens e servigos ocorrendo fora das estruturas de assalariamento formal e contratual, elas sejam regidas pela mesma légica de valorizagio do capital. Da mes- ma forma, a precariedade apresentada pelo autor nao é sind- nimo de que a forma de assalariamento nao domine e de que funcione como medida dessas relagdes de trabalho. O que implica afirmar que o autor sustenta suas argumentagoes a partir de sintomas e aparéncias com base em dados estatisti- cos, insuficientes por si s6 para dar conta da complexidade existente, ndo fazendo uso de uma abordagem analitica que parta de uma reflexao mais apurada capaz de lhe possibilitar ir além dos dados aparentes. Em outras palavras, Offe aponta com rigorosa clareza para a diminuigdo do trabalho industrial ¢ para 0 crescimen- to do setor de servicgos — os dados por ele utilizados apon- tam para o aumento da presenga dos assalariados no setor de servicos (73% na Alemanha). Dessa forma, nao poderia ser outra a sua conclusao senao a de apontar para a diminui- ¢4o dos trabalhadores formalmente empregados no setor secundario, bem como o crescimento do trabalhador preca- rio e parcial, além de apontar corretamente que a produgao de bens e servicos se da fora das relagdes contratuais for- mais. Mas erra ao considerar que essas transformagées de- monstram de forma contundente que o trabalho nao é mais COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO I 65 central -nas vidas das pessoas, equivocando-se, por nao compreender, que essas mutagdes sustentam a mesma 16- gica de valorizagao do capital. Onde Offe vé disfungao e de- sorganizacio, nas palavras de Harvey o que acontece, na verdade, é que o capitalismo est4 “se tornando cada vez mais organizado através da dispersao, da mobilidade geografica e das respostas flexiveis nos mercados de trabalho, nos proces- sos de trabalho e nos mercados de consumo, tudo isso acom- panhado de pesadas doses de inovagao tecnoldgica, de produto e institucional” (1993: pp. 150 e 151). Dessa maneira, o que Offe evidenciou foi um processo de realinhamento do capitalismo, que nao se “encabulou” por usar velhas formas de organizacao do processo produtivo, com intuito de ampliar seu poder e sua dominagio. Assim, o capi- tal no tornou indispensdveis as formas de trabalho precario, tempordrio ou informal, como sugere Offe; ao contrario, as tornou, em diversos casos, interdependentes e funcionais ao nticleo central do capitalismo produtivo. Nao reconhecendo que a heterogeneidade crescente do trabalho assalariado nao consubstancia a erosao da centralidade do trabalho, mas, sim, uma nova funcionalidade para o capital, para Offe, a crise do mundo do trabalho pode ser verificada em sua dupla dimensio. No nivel da integragio social e no nivel da integracHo sistémica. No primeiro, o trabalho é moralmente considerado um dever, enquanto, no segundo, é estabelecido como uma necessidade.” Para que se possa sustentar a perda da centralidade do trabalho seria, ent&o, necessario demonstrar a insustentabilidade de, ao menos, um dos dois principios, isto 66 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO é, da inoperancia do trabalho como forma de integragdo social ou de integragao sistémica. Dessa forma, procurando sustentar seu construto teérico que aponta para a perda da centralidade do trabalho, Offe aponta que o trabalho foi deslocado objetiva- mente de seu s/aus de uma realidade de vida central e evidente por si prépria, pois, do ponto de vista da ética do trabalho, esse perdeu sua forga -de persuasao moral; por outro lado, “como conseqiiéncia desse deslocamento objetivo, mas inteiramente contrario aos valores oficiais e aos padrGes de legitimagao des- sa sociedade, o trabalho estd perdendo seu papel subjetivo de forca estimulante central na atividade dos trabalhadores” (Offe, 1989: p. 194). Isso porque, sempre segundo Offe, hd uma visi- vel diminuigao do tempo de trabalho na totalidade das vidas das pessoas, cedendo lugar para outras experiéncias que se colocam para além do trabalho, em virtude do aumento do tempo livre. Acerca do aumento do tempo livre, um excerto da obra de René Passet intitulada A i/usdo neoliberal (2002), com toda sua a ironia, pode ser usado como contraparte da argumentagao offeana acerca da diminuigao do tempo de trabalho e, por conseqiiéncia, do aumento do tempo livre. De acordo com Passet, “o salario médio, declara Lawrence Michel, diretor de pesquisa no Economic Policy Institute de Washington, per- 2 Vimos essa mesma dimensfo dual em relagio ao trabalho em Gorz. Nas palavras desse autor, existe uma dualizagio racional, uma econémica ¢ outra da esfera da autonomia. A dimensio econémica é similar ao conceito de integragio sistémica, enquanto a esfera da autonomia encontra no conceito de integragio social sua similaridade, Essa construgio dualista também est presente no trabalho de Habermas, especificamente pelos conceitos de sistema ¢ mundo da vida. COLECAO TRABALHO £ EMANCIPAGAO | 67 manece 4% inferior a seu nivel de 1990 —isso em 1997; o de uma familia média volta a se aproximar de seu nivel de 1989, mas gra- ¢as a um tempo de trabalho aumentado de quatro semanas por ano” (2002: p. 176). Uma passagem ir6nica complementa o argu- mento de Passet acerca do aumento do tempo livre, que, como dissemos anteriormente, se opde a Offe. Ressalta Passet que, “quando o presidente Clinton se gabava em sua campanha clei- toral de 1996 da criacao de cerca de 10 milhdes de empregos durante seu primeiro mandato, uma piada entio popular consis- tia em responder: Sim, eu sei, eu mesmo estou ocupado com trés” (2002: p. 182). Podemos depreender dessas passagens da obra passetiana que, ao contrario do que afirma Offe, a diminuigao do tempo de trabalho nao tem como correspondéncia 0 aumento do tempo livre, j4 que a diminuic&o do tempo de trabalho é acompanha- da, geralmente, pela redugio dos saldrios, obrigando as pesso- as a multiplicar suas ocupagdes. Parece-nos claro que a tese de uma sociedade de tempo livre nao pode ser generalizada como fez Offe: se ela for possivel, com certeza acontece de forma restrita ¢ limitada a um contingente pifio da sociedade. Feitas as consideragées acerca de uma sociedade do tempo livre, retornemos as consideragées de Offe a respeito da centralidade cotidiana do trabalho nas vidas das pessoas. Para Offe, a descontinuidade do trabalho nas vidas das pessoas permite 4s mesmas perceberem e colocarem o traba- Iho como um interesse entre outros, desconstruindo a capa- cidade de focar a auto-realizacao apenas no trabalho. Nas palavras de Offe: 68 | O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO “A medida que a experiéncia (ou a previsio) de desemprego ou o afas- tamento involuntdrio da vida de trabalho crescem, o efeito da estigmatizagdio moral e da auto-estigmatizacio gerada pelo desempre- go provavelmente desaparece porque, além de um certo limite (...) nao se pode mais plausivelmente considerd-lo responsdvel pelo fra- casso ou culpa individual. A luz dos dados e prognésticos econdmicos do presente, no parece de todo irrealista esperar um declinio drds- tico na absor¢ao potencial do mercado de trabalho no futuro préximo; provavelmente essas condigées reduzirao ainda mais os periodos médios de trabalho como uma proporgio da vida, ou fomentario 0 crescimento de um amplo setor da populacao marginalizado da esfe- ra do emprego remunerado”( 1989: p. 186). Ora, como pode 0 autor falar que o desemprego involuntario provavelmente fard cessar o efeito da estigmatizagao moral e da auto-estigmatizacao, se o préprio autor reconhece que a supres- sio do trabalho como representacio ordenadora “é inteiramen- te contraria aos valores oficiais ¢ aos padrées de legitimacio dessa sociedade”, parecendo-me no minimo insuficiente a ar- gumentacdo do autor, pois nao é possivel pensar que o fracas- so ou a culpa individual ser4 atenuado se a sociedade ainda exige dos individuos o emprego como valor fundamental ¢ legitimador de suas vidas. Mais uma vez, Offe, como fez Gorz, (@eauzZempregoaoltrabalhe; por isso sua dificuldade em apre- ender que apesar do desemprego em massa, 0 trabalho conti- nua como valor central nas vidas das pessoas — seja pelo carater moral, seja para suprir as necessidades fisicas essen- ciais —, bem como persiste a exigéncia da sociedade e do Estado de sua presenga. Nao se pode negligenciar que uma COLEGAO TRABALHO & EMANCIPACAO I 69 das.bandeiras dos criticos do Estado de bem-estar social, demonstrada pelo préprio Offe, é que os individuos afasta- dos do trabalho nao sao punidos; ao contrario, sao beneficia- dos pelas instituigdes legais, suscitando no individuo uma aversio ao trabalho, nio uma compulsao ao trabalho impos- ta, ao menos idealmente, pelo mercado. Dessa forma, nio devemos considerar, como faz Offe, as transformagdes no mundo do trabalho como incontestdveis. H4 a necessidade de analisarmos criticamente a diminuicao dos postos de trabalho assalariado formalmente constitufdos, 0 au- mento da informalidade, do trabalho precario e do tempo parci- al, tentando desvendar 0 que ele considera como evidéncia que, como tentamos demonstrar, acaba por simplificar em demasia a complexidade das relacgdes sociais. O “ataque” nos pafses capi- talistas avangados ao Estado de bem-estar social e nos paises capitalistas periféricos aos expedientes regulatérios do mercado de trabalho demonstra que, mais do que excrescéncias, a difusio do trabalho parcial, por tempo determinado, do trabalho auténo- mo, informal etc., séo conseqiiéncias das estratégias de recons- trugao da instituigdo do mercado como o unico instrumento regulatorio valido. Nas palavras de Passet, “o desemprego torna- se, portanto um meio de gestio (...) para moderar as reivindica- goes salariais” (2002: p. 179), criando, dessa forma, “a teoria das demissdes de competitividade” (2002: p. 179). Face ao exposto, pode-se concluir, a partir das considera- gdes de Offe, que o trabalho como integragio social, ou seja, como um dever, perdeu seu poder persuasivo, haja vista a crescente fragmentagio, precarizagio e a diminuigao do tem- 7o | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO po dedicado ao trabalho, fruto da crescente e constante ino- vagio tecnolégica. O autor aponta, ainda, que a chance de um exercicio profissional continuo acarretada pela desocupagiio e pela ruptura entre formagio e exercicio profissional faz com que o trabalho perca a sua dimensio de dever e de integragao social. Quanto a integragio sistémica, entendida como 0 rei- no da necessidade, em linguagem gorziana da esfera da racionalidade econémica, o trabalho continua central para a @ObrevivencialfisicaOffe, 1989: p. 28). Apenas Offe, vendo o trabalho sob o prisma que salienta a diregdo aut6noma do desenvolvimento das forgas produtivas, deduz a perda da centralidade do trabalho devido ao deslocamento e aos dese- quilibrios gestados pela diminuig&o do trabalho secundario € o crescimento do tercidrio (Offe, 1984: p. 11). Sustentar a perda da centralidade do trabalho pela diminuigao da ativida- de no setor produtivo e pelo movimento crescente do nime- ro de trabalhadores no setor de servicos é, ao nosso ver, equivocado, j4 que, de acordo com Lessa, ”O fendmeno, tao aclamado como a “novidade” da sociedade con- temporinea, da recente expansio do setor de servigos, nada mais € que uma expressio historicamente particular de um fato muito mais geral. O significado imediato do “afastamento das barreiras naturais” éacrescente diminuigao da proporgao do total de trabalho socialmen- te disponivel a ser alocada na transformagio direta da natureza. Em suma, com 0 desenvolvimento das forgas produtivas, uma propor¢ao cada vez menor da forga de trabalho total da humanidade devera ser ocupada pelas atividades envolvidas com o “intercimbio organico com a natureza”(2002: p. 36). COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I 71 Em outras palavras, o incremento das atividades produtivas em detrimento do setor de servigos é uma resposta ao proces- so de reestruturagao produtiva que diminuiu, ao menos em teoria, a distancia entre planejamento e execugio, bem como deu maior organicidade a realizagio ¢ 4 produgio de mais-va- lia, com o processo de producio denominada just-in-time.* A maior proximidade entre as categorias de trabalho produtivo e improdutivo abre caminho para afirmar a perda do caréter ma- terial da produgio e sua superagao pelo trabalho imaterial ~ forma de trabalho em que prevalecem as atividades de plane- jamento e de marketing, enfim, pela 4rea do conhecimento.* O que aqui nos interessa esclarecer 6 que o aumento do nimero de pessoas diretamente vinculadas ao setor de servigos nao ex- tingue a distingao entre trabalho produtivo e improdutivo, da mesma maneira que a forma historicamente datada do trabalho abstrato nao significa a inexisténcia do trabalho concreto. Con- forme demonstrou Lessa, “... 8 ha atos de trabalho claramente produtivos e improdutivos, sendo facil a distingao entre eles, no é menos verdade que encon- tramos também atos de trabalho que se localizam na fronteira da dimensio produtiva com a improdutiva, ou ent&o exercem fungdes 4 Justin-time & 0 processo de organizagio da forma de trabalho que tem por finalidade reduzir os custos com armazenamento; por isso, a tendéncia nese proceso é produzir somente 0 que foi vendido. Para maior aprofundamento sobre 0 assunto, ver, entre outros, os trabalhos de Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho?, Si0 Paulo, Cortez, 1995; Os sentidos do trabalho, S30 Paulo, Boitempo, 1999, e de Armando Boito, Politica neoliberal esindicalismo no Brasil, Sio Paulo, Xam, 1999, Sobre a discussio acerca do trabalho imaterial, ver a obra de Maurfzio Lazzarato & Antonio Negri, Trabalidiimatertal) Rio de Janeito, DP&A, 2001. 2 72 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO tio mutaveis no interior do processo de trabalho que podem ser ora produtivos, ora improdutivos. E isso acontece n&o porque as cate- gorias de trabalho produtivo ¢ improdutivo, tal como pensadas por Marx, tenham perdido sua validade para a compreensio das mudan- gas do mundo em que vivemos, mas porque o processo de valoriza- ¢ao do capital articula em uma unidade (0 processo de trabalho) todos os atos singulares de trabalho abstrato, independentemente de suas determinagées particulares. E essa unitariedade ultima do Processo de valorizacao do capital (que articula em unidade nao ape- nas todos os atos singulares de trabalho abstrato, como assinalamos, mas também todos os capitais singulares) que faz com que, em al- guns momentos desse processo, a distin¢do entre a fungao produtiva e improdutiva do trabalho requeira um exame muito particulariza- do da situagdo especifica” (2002: p. 42). Por tudo isso, é importante destacar que, assim como para Gorz, também em Offe, a categoria trabalho é deslocada de sua posi¢ao central privilegiada. Todavia, mesmo que esses autores pensem o contrario, o trabalho permanece como referencial e instrumento de andlise do mundo social. Segundo Braga, “con- tra as aparéncias, poderfamos opor a argumentagao segundo a qual é a propria centralidade do trabalho que se determina en- quanto descentramento no nio-trabalho, ou seja, a centralidade do trabalho constitui-se na unidade contraditéria envolvendo trabalho e nao trabalho” (1997: p. 268). Esse fato é relativizador para a prépria afirmativa de Offe, quanto ao declinio do modelo de pesquisa social centrada na categoria trabalho. : Agora, aqui cabem duas perguntas: 1. Teria a sociedade substitufdo o trabalho como ponto central de uma vida ho- COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO I 73 nesta e moralmente boa?; 2. Quanto 4 sobrevivéncia fisica, o trabalho nao é mais necessdrio? Para responder a essas questées, recorrerei, mais uma vez, ao depoimento de um de nossos entrevistados. Nilton, 42 anos, separado, trés filhas, mora em um quarto alugado no centro, estudou até a 5* sé- rie. Seu curriculo inclui varias ocupagées, dentre elas, as que mais tempo trabalhou, foi como cozinheiro c @otorista, fa- zendo um total de quinze anos de carteira assinada. Apés perder seu tiltimo emprego comol@ozinheiro, que exerceu durante dez anos, com carteira assinada na(RedelGlobs, Nilton foi trabalhar na informalidade, com transporte alter- nativo. Entretanto, ressaltou que em virtude da perseguigao da agiio dos fiscais e das propinas que tinha de pagar para rodar, nado conseguiu pagar as parcelas de financiamento da “yan”, que acabou tendo que entregar a financeira. A partir daf, em 1996, foi trabalhar como ambulante. Apesar de ja estar na rua hd sete anos e de entender que sua idade e a baixa escolaridade sao fatores impeditivos para retornar ao mercado formal, se apresenta como um cozinheiro profissi- onal e capacitado por diversos cursos ministrados pelo SENAC. Fez questio de afirmar que somente foi para rua por necessidade, mas nfo considera sua atividade atual como um bico, pois “é melhor ter um mal trabalho que nenhum emprego”. Durante a entrevista, repetiu varias vezes que considera 0 trabalho como fonte de dignidade do homem, suporte para as relagdes familiares, além de importante para supriras necessidades basicas. Para ele, sem trabalho perde- se.a dignidade, a familia e se é humilhado. Nilton relatou 74 I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO que o periodo em que ficou desempregado se sentiu humi- Ihado, pois em tudo dependia de amigos e parentes. Além disso, entende que seu casamento terminou devido ao de- semprego. Como os outros.camelés, fez questao de chamar atencao, durante a entrevista, que é camelé, nao bandido. Ademais, considera que trabalha honestamente, mas nao tem dignidade, posto que a acao da Guarda Municipal e as condigdes em que exerce sua atividade nao conferem digni- dade ao trabalho. Alonguei-me na apresentagdo da entrevista, pois conside- ro que ela responde as duas questées anteriormente postas. O depoimento do Sr. Nilton nao deixa dtividas de que o traba- lho, ao menos para 0 universo pesquisado, tem importancia substantiva e central para a sua vida. E no trabalho que ele consegue suprir suas necessidades materiais e espirituais. Dito de outra maneira, em conformidade com seu depoimen- to, € pelo ato laborativo que se € respeitado, que se consegue se alimentar, mas, como o trabalho ainda é fortemente asso- ciado ao emprego, nao é, ainda, qualquer trabalho que é soci- almente aceito; por isso, nosso depoente sentiu-se obrigado a construir sua representagao como trabalhador em oposigio ao marginal. Como vimos anteriormente, quando discutiamos as argumentagées gorzianas, tal fato € recorrente nos depoi- mentos dos camelés. Offe reconhece que o emprego tem se tornado cada vez mais diferenciado, fragmentado e irregular. Mas, ao tratar de forma similar trabalho e emprego, nao consegue se des- vencilhar das armadilhas contidas nas.suas préprias propo- COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I 75 sigdes, ou seja, ao reduzir como formas idénticas categori- as historicamente distintas, Offe nado consegue vislumbrar que a diminuic&o do nimero de trabalhadores formalmen- te constitufdo — em especial no setor industrial — nao sig- nifica que nao exista inimeras formas de trabalho associadas e interdependentes ao grande capital. Sob o signo da fle- xibilidade o grande capital conseguiu traduzir “velhas” for- mas de produzir em atualfssimas. Sao os casos dos trabalhos em domicilio, cooperativados, terceirizados, por conta pré- pria etc. Com certeza, essas novas/velhas formas de traba- Iho tém contribuido para a diminuigio dos trabalhadores com carteira assinada. Nao significa, portanto, o fim do assalariamento. Esse continua a predominar, mesmo sem a contraparte prevista na regulag4o. Pelo exposto, Offe asso- cia tempo livre com a diminuigao do ntimero de trabalha- dores com assalariamento formal. Ledo engano, como demonstramos através da citagao de Passet. A despeito de Offe nao dar adeus ao proletariado, ele nao parece compre- ender que as transformagées no mundo do trabalho nao podem ser explicadas sem que se dé atengio a disputa e aos interesses de classe. Nao por menos que a introdugido de novas técnicas de gestdo, de maquinarias e a busca pela desregulamentacao tem por conseqiiéncia a diminuigio de postos de trabalho regular e estdveis, agindo sobremanei- ra na luta de classe. Os sindicatos ainda nao se deram con- ta de que a fragmentagio e a diferenciagio do mundo do trabalho implicam numa mudanga de diregao da e na for- ma de representar os trabalhadores, ou seja, estes devem 76 1 © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO. buscar ampliar seu leque de atuagao para que possam fazer frente a essa nova realidade do mundo do trabalho.” % Para informag6es mais detalhadas acerca da atuagio dos sindicatos no mundo onde o capital é transnacionalizado ver a obra de: BERNARDO, Joao. Transnacionalizagéo do Capital e Fragmentagao dos Trabalhadores: ainda hd lugar para 0s sindicatos? Sio Paulo, Boitempo Editorial, 2000. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO 1 77 CAPITULO III KURZ: O OCASO DO SOCIALISMO COMO O ESPELHO PARA A CRISE DO CAPITALISMO “Robert Kurz € outro autor que se insere na polémica dis- cussdo sobre a crise da sociedade do trabalho, talvez o autor que amarga um maior pessimismo, posto nao identificar sujei- tos aptos a mudar os rumos ora em curso. Entretanto, seu trabalho é importante para aqueles que fazem objegao a afir- maciio de que uma sociedade de tempo livre sob os dominios do capital € uma utopia. O trabalho de Kurz deixa claro que o denominado socialismo real tinha muito mais semelhangas do que diferengas em relagiio As sociedades capitalistas. Dito de outra maneira, o chamado socialismo real em pouco se di- ferenciava das sociedades capitalistas, j4 que, também, nele predominava a valorizagao do capital, ou seja, o trabalho abs- trato criador de valor de uso. ACGTSPIA TARA de umaSociedade de tempolivee somente poderd se concretizar com o fim da subordinagio do trabalho (@oneretouoltrabalhiolabstrata) Somente quando esse tiltimo de- saparecer, ou seja, quando findar o trabalhdheteronome éque se podera viver, verdadeiramente, numa sociedade de tempo livre. Fora disso, como afirmamos nos capitulos anteriores, s6 é possi- vel pensar que: 1. uma sociedade de tempo livre, certamente, nao sera para todos, mas, tio-somente para alguns; 2. ou que essa sociedade de tempo livre sera para muitos no desejavel, cons- tituindo nao uma sociedade de tempo livre, mas, sim, uma soci- edade em que 0 6cio involuntdrio (desemprego) se opde ao tempo livre, enquanto representagao moral socialmente reco- nhecida e valida. Em tempo, é bom ressaltar a distingiio opera- da por Thorstein Veblen ao tratar da questo do dcio (sociedade de tempo livre), entre a classe dominante e a classe trabalhado- ra, em seu trabalho A seoria da@lasseociosa (1988). Segundo Veblen, “Os gentis-homens das camadaginfeniores, especialmente ospobres) “ou marginais, associam-se por um sistema de@ependéneia ouleal GRaos superiores... Em toda essa hicrarquia(@e\oeid consumo. -viedrios, a regra € que todos os cargos devem ser exercidos de tal modo... que se saiba inequivocadamente de quem € 0 é6cio ou o consumo a que se ligam os dependentes, e a quem de direito per- tence o resultante incremento de respeitabilidade. O consumo e 0 écio de tais pessoas representam um investimento que faz o senhor ou 0 patrono com a finalidade de aumentar sua reputagac AGS BEET TTTTREBD wis de consid G40; e seu modo de vida mais os seus padrdes de valor proporcionam A comunidade as normas de boa reputagio. A observancia desses pa- drdes torna-se também incumbéncia de todas as classes inferiores da escala... O resultado é os membros de cada camada aceitarem como ideal de decéncia o esquema de vida em voga na camada mais alta logo acima dela, ou dirigirem as suas energias a fim de viverem 80 l © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO segundo aquele ideal. Sob pena de perder seu bom nome e respei- to proprio em caso de fracasso””” (1988: pp, 38,39 e 41, apud André Laino, 2001: p, 131). Em outra passagem, 0 mesmo autor exalta 0 écio dos se- nhores como um tempo importante para conquista dos refina- mentos dos gostos ¢ da estética: “A discriminagio rigorosa no tocante 4 exceléncia nos alimentos, na bebida, etc., no somente passa rapidamente a determinar a manei- ra de viver como também a educagio ¢ a atividade intelectual do se- nhor... ele tem de cultivar o gosto, j4 que lhe é imprescindivel discriminar cuidadosamente entre 0 nobre ¢ 0 igndbil nos bens de seu consumo. Torna-se ele assim um connoisseur ... de alimentos... ador- nos... vestudrio... arquitetura.... Esse cultivo de senso estético requer tempo ¢ esforco; portanto, ele tende a transformar sua vida de écio num aprendizado mais ou menos arduo para uma vida correta de dcio ostensivo...cle deve também saber como consumi-los de modo adequado...As boas maneiras ¢ os modos de vida refinados siio sinais de conformidade com a norma de écio e de consumo conspicuo...” (Veblen, 1988: pp. 37 ¢ 38, apud André Laino, 2001: p. 129). Como podemos perceber nesses pequenos excertos da obra vebleniana, ha uma presenga forte do componente ideolégico, que tem como finalidade tornar natural as contradigGes que sao sociais € histéricas; por isso, sustentamos que a possibilidade de uma sociedade de tempo livre, na qual o trabalho concreto € 27 As citagdes da obra de Thorstein Veblen, A seoria da classe ociosa. Sio Paulo, Nova Cultural, 1988, foram extrafdas do trabalho de André Laino “Hedonismo vs Parciménia: Novas formas do velho conflito”, In Justiga e sociedade: temas é perspectiva. (org. Marcelo Pereira de Mello) Sao Paulo, LTr, 2001. COLEGAO TRABALHO E& EMANCIPAGAO | 81. subsumido pelo capital, é, no minimo, um ledo engano. Acredi- tar na possibilidade de uma sociedade de tempo livre para todos —tendo como base para tal crenca o desenvolvimento da ciéncia eda técnica -, ainda que 0 trabalho esteja sob o dominio do ca- pital, é desconsiderar a produgao de valores simbélicos que sao produzidos e reproduzidos socialmente.” E preciso, pois, aten- tar que, na producao de valores, as “elites seriam (...) pontas de langa dos valores simbélicos das classes dominantes no seio das classes trabalhadoras, canalizando suas “energias” para respaldar a aceitagao desse ideal de decéncia, o que lhes garantiria o bom nome e respeito (...) mesmo que tivessem fracassado” (Laino, 2001: p. 132). Laino, em relag%o aos excertos da obra vebleniana, faz algumas observacées que sintetizam os argumentos “apolo- géticos” desse autor que, a nosso ver, expde com clareza os fun- damentos ideolégicos do pensamento vebleniano. Vamos a elas: 1. A discriminagio do gosto do senhor € um “cultivo”. Mas, quando chega as classes trabalhadoras, essa mesma discriminago transmuta- se num “preconceito”. 2. Para o senhor, 0 écio é um desprendimento ¢ nao uma vagabun- dagem. Afinal, esta € a visio do écio que deve ser reservada ¢ apli- cada para um bom trabalhador. 2 Nessecaso, € bom lembrar Marx quando sustenta que, “ao afirmarem ques relagdes atuais — as relagdes de produgao burguesas — so naturais, os economistas dio a entender que se trata de relagdes pelas quais se cria a riqueza ¢ se desenvolvem as forgas produtivas, em conformidade com a lei da natureza, Portanto, tais relages so elas préprias leis naturais independentes da influéncia do tempo. Sao leis eternas que devem reger sempre a sociedade” (Karl Marx, “Miséria da Filosofia”. In Pierre Bourdieu. A profissdo de sociélogo. Rio de Janeiro. Vozes, 2000, p. 147) 82 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO 3. Para todos os seres humanos{@ultivat a senso estético é unf@duo) aprendizado. Esse cultivo, porém, é muito menos 4rduo para 0 se- nhor do que para o trabalhador, pois os “senhores” tém as condi¢des de vida indispens4veis para transformar sua(@eiosidad@num(belo) GRRE” (Laino, 2001: p. 130). Dessas observacées, podemos depreender que a histéria social sempre foi de controle dos “instintos” mais primitivos das classes trabalhadoras associadas 4 animalidade, em espe- cial, a histéria do capitalismo, desde sempre, constituiu-se pela busca concreta de efetivar normas e regras de compor- tamentos condizentes com os métodos de trabalho em cada momento histérico. Em outras palavras, a ociosidade para classe-que-vive-do-trabalho — em que pese as argumenta- gdes contrarias® — nao se equalizam com o modo de produ- ¢do capitalista, isso porque a ociosidade pode criar uma situagao de duplo fundo: a) tornar essa classe-que-vive-do- trabalho um @peso” para instituigdes do Estado; b) ou trans- formar-se numa classe em que a(agressividade compareca com intensidade, tornando-a uma(patologia, enfim, uma ameaga para a integragao social. Com isso, nao estamos querendo afirmar que o modo de produgao capitalista tenha conseguido, durante sua histéria, absorver em plenitude a mao-de-obra que ele préprio tornou livre; ao contrario, o que desejamos ressaltar é que o controle sobre a classe-que-vive- ® Ver, por exemplo, os trabalhos de(Domenica De Masi) A economia do écio, Rio de Janeiro, Sextante, 2002, ¢ Desenvolvimento sem trabalho, Sao Paulo, Editora Esfera, 1999. COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I 83 do-trabalho sempre foi uma constante na histéria do capita- lismo e que, mesmo num contexto histérico no qual o em- prego formal assalariado tem, aparentemente, perdido sua forga, esse controle permanece sob as mais diversas formas, em especial sob a categoria do empreendedorismo e do auto- emprego. E 0 espetaculo do vicio dominado pela virtude, pois as transformacdes empiricamente visiveis nao descar- tam o controle da ociosidade da classe-que-vive-do-trabalho; tampouco, devido 4 complexidade dessa mutagio, tendem “a recuperar os equilibrios do passado mediante mecanis- mos comprovados, mas de definir novos ajustes através de novos meios” (Passet, 2002: p. 12). Diante do que expusemos, reafirmamos que, numa socie- dade em que prevalece a légica de valorizagao do capital, nao se pode afirmar que uma sociedade de tempo livre seja valida para todos. Por mais que se constate o avango das técnicas e dos meios de produgio, nao podemos deduzir daf 0 fim da socieda- de do trabalho em sua forma concreta e produtora de coisas Uteis, mas podemos constatar empiricamente que as transfor- mac@es verificadas no mundo do trabalho tém incrementado a precarizagio do emprego e do trabalho em sua forma abstrata e historicamente datada. Esclarecimentos feitos, retornemos & exposi¢ao kurziana. Em seu trabalho, Colapso da Modernizagéo (1991/93), Kurz partiu do debate sobre a derrocada do que ele denomina “socia- lismo de caserna” e, por conseqiiéncia, da débacle do Leste Eu- ropeu, para demonstrar que o chamado fim do socialismo, em Uiltima instancia, expoe os limites sombrios da modernidade e do 84 1 O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO sistema produtor de mercadorias que condenam enormes con- tingentes humanos, no mais 4 exploragao do trabalho, mas ao desemprego estrutural, ao subemprego ea fome, fendmenos que ndo se restringem aos paises do Terceiro Mundo ou aos paises do Leste Europeu, mas que atingem, também, os paises centrais do capitalismo mundial. Assim, longe de implicar a vitéria de um sistema ideolégico e politico — 0 capitalismo — sobre um outro — o socialismo — a derrocada do socialismo revela, para Kurz, que a modernizagao soviética nunca abandonou os fundamentos constitutivos de uma sociedade de mercado. “O mercado planejado do Leste, como jd revela essa designagao, no eliminou as categorias de mercado, Conseqiientemente aparecem no socialismo real todas as categorias fundamentais do capitalismo: sa- lério, prego ¢ lucro. E quanto ao princfpio basico do trabalho abstra- to, este no se limitou a adotd-lo, como também levou-o ao extremo” (Kurz,1993: p. 48). Dessa forma, a débacle, antes de indicar a diferenga entre dois modelos, retira o véu que encobria a aparéncia contradi- t6ria entre dois sistemas e demonstra a existéncia de uma base comum entre ambos. Para Kurz, “Desde o principio, o socialismo real nao podia suprimir a sociedade capitalista da modemidade. Faz parte, ele préprio, do sistema produ- tor de mercadorias burgués ¢ nao substitui essa forma social histérica por outra, mas sim representa somente outra fase de desenvolvimen- to dentro da mesma formagio da época. Aquilo que prometia uma so- ciedade futura, pés-burguesa, revela-se como regime transitério pré-burgués, estagnado, a caminho da moderidade, como dinossauro fossilizado originado no passado herdico do capital” (Kruz, 1992: p. 29). COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO { 85 Portanto, para o autor, a crise do sistema mundial produ- tor tem de ser buscada para além da sociedade industrial, do mercado e do Estado, ou seja, na dissolugdo da sociedade do trabalho: “O termo, hé algum tempo em circulagao, da crise da sociedade de trabalho, mesmo que aparega por enquanto apenas como pro- blemitica particular e nao se refira as formas sociais basicas, pode ter nascido do pressentimento dessa metacritica, que est4 ama- durecendo (...) Falar de uma crise da sociedade de trabalho tem que parecer mais que estranho, tendo em vista que nio apenas a ideologia burguesa, como também o marxismo do movimento operario, com uma convicgao muito maior, declara sempre aquele trabalho a esséncia supra-histérica do homem como tal, fazendo desse suposto fato fundamental até a alavanca de sua critica 4 so- ciedade burguesa. A controvérsia social € hist6rica que até ago- ra dominou a modernidade, compreendida pelo marxismo como lutas de classes, apoiou-se em um fundamento comum, a socie- dade de trabalho, fundamento que deixa agora transparecer sua limitagao e, cafdo em crise, aguarda sua dissolugio” (Kurz, 1992: pp. 20 e 21).° 8° Aqui me parece que a argumentagio kurziana é um tanto ambigua, pois, a0 mesmo tempo em que reconhece a limitagio de diversos autores em tratar 0 trabalho como uma atividade supra-hist6rica, Kurz entende que o limite da andlise marxista se dé pelo fim daquilo que dava suporte as perspectivas de transformagées da sociedade capitalista: 0 trabalho. Ora, a afirmagio categérica de que o trabalho agoniza coloca Kurz como tributatio daqueles pensadores que vislumbram o fim da sociedade do trabalho, haja vista que o autor no parece fazer, nessa passagem, a distingo fundamental entre trabalho abstrato ¢ trabalho concreto, fato que Kurz corrigira nas paginas seguintes dessa obra. 86 1 O DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO O trabalho que Kurz afirma estar em crise é 0 trabalho abs- trato, aquele que produz valor de troca. O trabalho como tal no é em nada supra-hist6rico. “Em sua forma especificamen- te hist6rica, o trabalho nada mais € do que a exploragio eco- n6mica abstrata, em empresas, da forca de trabalho humano e das matérias-primas. Nesse sentido, s6 faz parte da moder- nidade, e como tal foi aceito como pressuposto nao questio- nado por ambos os sistemas conflitantes do pés-guerra, sem distingao” (Kurz, 1992: p. 21).3! Entendendo a crise do trabalho como uma forma datada e historicamente vinculada a sociedade produtora de merca- dorias, Kurz resgata o Marx presente n’ O Capital, esquecido pela mistificagdo do marxismo vulgar e/ou reprimido pelo viés ideologizante da estrutura burocratica do partido unico. “A teoria de Marx, vulgarizada por interpretagées unilaterais até tornar-se marxismo, foi privada de sua critica decisiva da forma do sistema de reprodugao burgués moderno; a critica da forma-merca- doria que culmina no conceito de fetichismo, criado por Marx, foi eliminada e empurrada para um além teérico ¢ histérico, difamada como nebulosa, ou degradada a um fendmeno mental puramente subjetivo” (Kurz, 1992: p. 26). 3 Deacordo com Kurz, “a aboligdo do trabalho, no involucro do sistema produtor de mercadorias, nio nasce como pura alegria e felicidade, mas somente em forma negativa, como crise, ¢ finalmente como crise absoluta da reprodugio realizada dessa forma, situagao que jé se anunciou por uma seqiiéncia histérica de crises de ascensio relativas da sociedade do trabalho moderna. A sociedade mundial capitalista esta se aproximando assim de sua prova de resisténcia ¢ sua ruptura, pois tem que chegar a um ponto (...) em que suprimird o trabalho abstrato em sua aptidio de ser a substancia social do valor econdmico” (Kurz, 1992: p. 81). : COLEGAO TRABALHO E EMANCIPACAO | 87 Kurz busca resgatar 0 pensamento marxiano, para funda- mentar sua tese de que existe, sim, uma crise da sociedade de trabalho, mas, como aponta acima, é uma(enisede uma forma especifica de trabalho, posto que “na histéria até agora trans- corrida, a vida social, quaisquer que sejam suas formas modi- ficadas, apenas podia ser uma vida que incluisse o trabalho. Somente as idéias ingénuas do(Paraiso ¢ 0 conto dofpais|das Gharaviliasfantasiam uma sociedade sem trabalho” (Kurz, 1992: p. 26). Kurz aponta para uma distingao importante entre trabalho concreto e trabalho abstrato, absolutamente imprescindivel, pois permite qualificar, quando se fala em crise, a qual dimen- sao do trabalho se esta referindo. Aqui, mais uma vez, Kurz recorre a distingo marxiana entre trabalho concreto e traba- lho abstrato: “Todo trabalho é, de um ladof@ispendio de forga humana de trabalho, no sentido fisiolégico, ¢ nessa qualidade de trabalho(fitimiano igua) ou - abstrato, cria o valor das mercadorias, Todo trabalho, por outro lado, é dispéndio de forga humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade déffabalho utile eoncreto) produz, 5 A argumentagio de que somente idéias ingénuas podem fantasiar uma sociedade sem trabalho sustenta a distingZo marxiana entre trabalho concreto e trabalho abstrato. I. possivel pensar que se pode abolir o trabalho abstrato, mas nunca o trabalho concreto, criador de coisas titeis. E nesse sentido que Lukécs ser recuperado, para esse autor, como veremos adiante, é 0 trabalho a protoforma do ser social. Em outras palavras, € 0 trabatho a teologia priméria que permitiu o salto que transformou o homem em um Ser social. Isso significa que quando se discute sobre a crise do trabalho, torna-se imprescindivel distinguir sobre que tipo de trabalho estamos falando, pois certamente nfo se sustenta uma sociedade sem trabalho. 88 ! © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO _valor-de-uso”( Marx,1971: p. 54), Deixando de lado o cardter util do trabalho, sua dimensio concreta, resta-Ihe apenas ser dispéndio de forga humana produtiva, fisica ou intelectual, socialmente determinada. Aqui aflora sua dimensio abstrata (...) (idem: p. 45). E possivel, pelas citagdes anteriores, verificar que Kurz aponta para supressao do trabalho abstrato. Entretanto, como destaca Antunes, ele “nao é suficientemente claro a este res- peito” (2000: p. 113), haja vista que, apesar das referéncias e da distingao kurziana entre trabalho abstrato e concreto, esse autor “parece ainda tributdrio, em alguma dimensio, dos adeptos da crise da sociedade do trabalho (...) uma coisa € 0 esgotamento da sociedade do trabalho abstrato, outra, bem diferente, é a critica que recusa um projeto socictario, que conceba o trabalho como criador de valores de uso, na sua dimensiao concreta (...) (Antunes, 2000: p. 113). Entendo que Antunes tem razdo em assinalar a fragilida- de do argumento kurziano, no que tange sua tese da crise da sociedade do trabalho, posto que Kurz, se por um lado, aponta para a distingao entre trabalho concreto e trabalho abstrato, por outro, nao aponta para o resgate da dimensiio do trabalho concreto, enquanto fonte criadora de coisas titeis. Por isso, encontramos afirmagdes como a de que “o capi- talismo tornou-se incapaz de explorar, isto 6, pela primeira vez na hist6ria capitalista esté diminuindo também em termos absolutos — independentemente do movimento conjuntural —a massa global do trabalho abstrato produtivamente explo- rado, € isso em virtude da intensificago permanente da for- ¢a produtiva” (Kurz, 1992: p. 226). Ou, ainda, assertivas que COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I 89 apreciam o desenvolvimento da ciéncia e da técnica como forga produtiva direta: “A tendéncia desse século ao aumento da intensidade do capital (ex- Pressio fetichista para o desdobramento da forga produtiva ciéncia) desvalorizou ha muito tempo a oferta de mio-de-obra barata do Terceiro Mundo, fechando com isso, porém, para o préprio Ociden- te, uma safda exteriorizante de sua crise por meio da exploragao daqueles ominosos mercados novos” (Kurz, 1992: p. 170). O argumento defendido por Kurz tem como referéncia 0 significativo avango tecnoldgico, vivenciado pelo Ocidente a partir da década de 1970, que eleva a produtividade sem que, aparentemente, necessite da forga-de-trabalho barata, como fator de suma importancia. Portanto, o fator decisivo € 0 aumento intensivo de capital, dito de outra forma, o in- cremento de trabalho morto no processo produtivo do capi- talismo concorrencial mundializado produz barreiras de entrada para o trabalho vivo de baixa produtividade. Nesse aumento intermitente da racionalidade técnica, o capital “perde a sua capacidade de explorar 0 trabalho” e, por con- seqiiéncia, constrdi sua prépria destruigdo, ja que, inviabi- 3B bom deixar claro o que entendemos por capital. Seguindo Marx quando este tratou de distinguir as duas principais caracteristicas do modo capitalista de produgio, afirmamos que “os principais agentes desse modo de produgio, 0 capitalista ¢ 0 operario assalariado, no sio, como tais, senao encatnagies do capital e do trabalho assalariado, determinadas caracteristicas sociais que 0 processo social de produgio imprime nas pessoas, produtos dessas relagdes determinadas de produgio (...)” (Karl Marx, “Relaciones de distribucién y relaciones de producién” In E/ Capital. México, Fondo de Cultura Econ6mica, 1846-1847, «. II, cap. LI, p. 1.015-1017, apud Colegio Grandes Cientistas Sociais, n° 10, Marx, (org. Octavio Ianni), Sao Paulo, Editora Atica, 1988. 90 \ © DEBATE SOBRE A CENTRALIOADE DO TRABALHO lizando a absorgao do trabalho vivo, faz nascer uma massa de sujeitos-dinheiro sem dinheiro, ou seja, “pessoas que nao se encaixam em nenhuma forma de organizacio social, nem na pré-capitalista nem na capitalista, e muito menos na pés- capitalista, sendo forgadas a viver num leprosdrio social que j4 compreende a maior parte do planeta” (Kurz, 1992: p. 234), Aqui cabe uma consideragao: Kurz sustenta uma exclu- sao completa do sistema social de algumas pessoas, mas, ao contrario do que esse autor compreende, o capital nao per- deu sua capacidade de explorar; 0 que acontece € que 0 ca- pital se expandiu e modificou sua forma de explorar, trouxe para seus dominios formas de trabalho consideradas pré-ca- pitalistas, como, por exemplo, o trabalho em domicilio, o precario e part-time, expandindo o processo de informa- lizagio do trabalho — sem que isso signifique o fim do assalariamento — para além dos limites dos pafses do Terceiro Mundo, ou seja, para o préprio nticleo central do capitalismo. Portanto, longe de dispensar a exploragio dos trabalhadores, o capital expande seus tentdculos e continua explorando o traba- lho produtivo, agora de forma diferenciada, externalizando sua produgio ou terceirizando a mesma, construindo pari passu as transformagées do processo de produgio, novas expressdes valorativas que possam sustentar o sobretrabalho sob a aparén- cia de uma maior liberdade e autonomia, fundada sobre os pila- res do contraproprismo, do auto-emprego, do cooperativismo etc. A légica destrutiva da forga produtiva ciéncia inaugura, na visio kurziana, uma “era das trevas”, onde o horror nao é mais a possibilidade da superexploragio do trabalho, mas a auséncia COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO | gu dessa exploragiio para milhdes de individuos: “o que hoje faz softer as massas do Terceiro Mundo nfo é a provada exploragao capitalista de seu trabalho produtivo, conforme continua acredi- tando, de acordo com a tradicao de esquerda, mas, sim, ao con- trario, a auséncia dessa exploracao” (Kurz, 1992: p. 194). Com certeza, para fazer tal afirmativa, Kurz se ateve, tao-somente, aos aspectos mais aparentes da realidade, isto é, ao ntimero elevado de desemprego no Terceiro Mundo, impossibilitando-o de per- ceber que sob a aparéncia da incapacidade de explorar do capital se esconde uma engenhosa capacidade de explorar a classe-que- vive-do-trabalho, resultante de tornar o “desemprego uma for- ma de gestio”. Neste mundo de caos, de horror ¢ decadéncia sociomoral e econdmica — Kurz entende que h4 no chamado “Terceiro Setor” uma possibilidade de superagio da racionalidade eco- némica, gestando uma nova racionalidade de reprodugio so- cial com base numa solidariedade, para além do Estado e do mercado — em linguagem habermasiana para além de uma racionalidade instrumental, isto é, para além do “mundo co- lonizado” e mediatizado pelas formas de dinheiro e poder. Para o autor, j4 que a racionalidade técnica tende a eliminar o trabalho produtivo — exatamente pela substituigao dos ho- mens pelas maquinas -, “j4 nfo tem sentido algum recorrer a0 Estado contra o mercado, e ao mercado contra o Estado. A fa- Iha do Estado e a falha do mercado tornam-se idénticas porque a forma de reprodugio social da modernidade perdeu comple- tamente sua capacidade de funcionamento e de integragaio” (Kurz, 1992: p. 234), Em outras palavras, para Kurz, a crise do 92 I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO trabalho coloca em questio a capacidade do Estado e do mer- cado em restaurar a integridade funcional da sociedade, j4 que ambos construiram suas formas de integragéo com base na ex- plorago do trabalho produtivo abstrato. Ora, como vimos, nao é verdadeiro que o capital deixou de explorar 0 trabalho produtivo devido ao incremento da ci- éncia e da técnica. Essas possibilitaram, quando muito, ao capital, tio-somente se abster da exploragio direta da forga de trabalho. Por isso, é verdadeiro 0 argumento de que dimi- nuiu o ntimero de empregados diretamente vinculados ao capital produtivo, mas tal evidéncia nao permite afirmar que o capital perdeu sua capacidade de explorar. Os trabalhado- res produtivos se afastaram do nicleo central, se fragmenta- ram, porém continuam como a base de valorizagio do capital; esse € 0 caso, por exemplo, das indistrias de calgados e de confecgGes — esses setores produtivos possuem, geralmen- te, sua produgio externalizada ou terceirizada.* Ademais, a 4 Em sua tese de doutorado intitulada Os fios (invistveis da produgdo: informalidadee precariaagiio do trabalho no capitalismo contemporéneo, deféndida na Escola de Servigo Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Maria Augusta Tavares sustentou a tese de que, “embora o trabalho informal nao constitua um fendmeno novo, a reestruturacdo produtiva impée transformagdes 3 economia que ampliam as possibilidades de uso dessa forma de trabalho mediante estratégias que dissimulam a relagio compra-venda da forga de trabalho. Essas, porém, sao insuficientes para eliminar os nexos do trabalho informal com a articulagao capitalista (...) Apreende-se que o fim capitalista € obtido em jornadas de trabalho combinadas, que se efetivam através de organizagées supostamente auténomas, indicando que 0 trabalho informal engendrado pela terceirizagio € uma forma adequada 3 lei do valor neste momento histérico. E 0 que se constata em empresas instaladas 4 redugao dos custos varidveis do trabalho ¢ ao aumento da exploragao “(2002, resumo). COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO I 93 precarizacio do trabalho nao atingiu somente os trabalhado- res produtivos, mas também a circulagio de mercadorias. E o que podemos verificar quando olhamos atentamente para as mercadorias vendidas, por vendedores de catélogos e al- guns ambulantes nos grandes centros urbanos. Elas niio saio mais aquelas descritas nas obras literarias, como nos versos de Manuel Bandeira, no poema de Joao Cabral de Melo Neto e€ nos livros de Graciliano Ramos. Nessas obras, os ambulantes eram vendedores de mercadorias que se asse- melhavam em muito ao que hoje denominamos artesanatos. Entretanto, hoje, encontramos nas barracas dos camelés e nas miaos dos ambulantes mercadorias industrializadas, sen- do estes responsiveis pelo “escoamento” da produgio de diversos tipos de mercadorias. Embora Kurz faga a distingao entre trabalho concreto e abstrato, nado percebe o autor que as transformagées nas for- mas de organizar a producao implica em “novas velhas” formas de exploragdo em busca de lucro e mais-valia. Nas construgées dos arcabougos teéricos dos trés autores, até aqui tratados, nado somente o trabalho foi deslocado de sua posigio privilegiada para compreensio dos outros complexos sociais, mas também qualquer possibilidade de emancipagio que tenha nos trabalhadores sua centralidade politica também foi descartada. Essa emancipagao, em conformidade com esses autores, somente pode vir a ser pela aco da ndo-classe-de- nfo-trabalhadores, dos novos movimentos sociais, do tercei- ro setor, enfim, da pluralidade dos atores que se encontram para além do trabalho. Sem esgotar o assunto, o descrédito 94 |. © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO tedrico e politico desses autores quanto a possibilidade de emancipagio pela classe-que-vive-do-trabalho, amparados empiricamente na desmobilizacao politica dos trabalhadores, apontam para a emancipagio celebrando as minorias que, em geral, se encontram inseridos precariamente no sistema pro- dutivo. Talvez seja oportuno lembrar que movimentos sociais, como, por exemplo, o feminista ¢ 0 étnico, “hoje gozam de popularidade por se fazerem lembrar como algumas das lutas politicas mais vitais que confrontamos na realidade. Essa po- pularidade também se deve ao fato de nao se mostrarem ne- cessariamente anticapitalistas (...)” (Eagleton: 1998, Pp. 33). Nao queremos, em hipétese alguma, afirmar que esses movi- mentos nio sejam importantes; na verdade esses movimentos levantam bandeiras de lutas significativas contra a opressao € pela acessibilidade as normas juridicas. Mas, também, € claro que cles, por si s6s, ndio podem ser agentes capazes de levar a emancipagiio quando nos referimos ao mundo do trabalho, isto é, quando tratamos da subsungio do trabalho concreto pelo tra- balho abstrato. Sendo a emancipagio do trabalho a questo, os agentes sociais que poderio sustentar tal projeto sao, com toda a ampliagao posta por Antunes, a classe-que-vive-do-trabalho. Salvo, é claro, se negarmos que a exploragao econdémica exista. _ Tal fato, entretanto, é um absurdo, pois, como vimos anterior- mente, as transformagdes em curso no sistema capitalista de- monstram como esse modo de producdo foi capaz de aumentar seu raio de agio trazendo para seus dominios formas de traba- lho até entio situadas nas margens de seu processo e/ou tidas como resquicios de tempos imemoriais. COLEGAQ TRABALHO E EMANCIPAGAO 1 95 Habermas, autor que abordaremos a seguir, construira seu arcabouco teérico buscando demonstrar que a emancipagao é possivel de ser alcangada por meio da “descolonizagao do mun- do da vida” dos pressupostos reguladores nfo lingiiisticos como o dinheiro e 0 poder, caracteristicos da racionalidade sistémica. Segundo Habermas, a emancipagao tem seu /ocus no entendi- mento; por isso, a linguagem € entendida como o meio genui- no e insubstituivel para se alcangar a emancipacao. Passemos ao autor. 96 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO CAPITULO IV HABERMAS: LINGUAGEM, TRABALHO E INTERAGAO Ao situar a obrd(habemmasiana como contraponto da cen- tralidade do trabalho, é necessdrio ressalvar que as obras que utilizo como referéncia, para dar curso ao debate sobre a ques- tao supracitada, nao se circunscrevem especificamente a sua cronologia, mas, sim, a sua produgao académica, que dispde sobre o deslocamento do(tfabalho como questao central, cs- tabelecendo afliiguagem como fEXOeXplicative fundamen- tal, além do trabalho, para para . Por isso, diante da imponéncia do conjunto de sua obra, julgamo-nos impossibi- litados de nos referirmos 4 mesma em sua totalidade; dessa maneira, faz-se necessario ressaltar que, nestas poucas pigi- nas, daremos prioridade ao pensamento habermasiano que re- sulta no@@seehtramento da categoria trabalho. Iniciaremos com a apresentagio desse fildsofo acerca da “@ntopogenese) ddformalde Vida especificamente humana”, j4 que nessa obra Habermas@€)opoe a posic¢ao markiana) presente também em GAR, que ofABAIHOSSCIAD permitiu a forma dePidAERELD Givamentehiimana; em outras palavras, que ¢ 0 trabalho a categoria queflindale mundo dosomens) Como veremos a seguir, o que interessa a Habermas nessa obra “é a questao de saber se of@oneeito de trabalhoGoeial € suficientemente carac- cerzado no que sc fer Ga CERO NAO ANITA, “mana. Por isso, devemos definir com maior precisao 0 que 0 autor entende por forma de vida humana”. Nessa obra, publicada originalmente em 19%, Para a recons- trugdo de ublicada no Brasil em 1990, Habermas concebe set a partir dos pressu- postos seguidos porMarx em A ideologia alemé, quando este,com base na literatut disponivel, fundamen- AAR Sendo assim, Habermas inicia seu@ESafid buscando, na histria dof ORESSOTEVOMROTERAROPORERETIED 2s dsinas ca racteristicas dos hominidas, dos primatas ¢ do homo sapiens. Em conformidade com Habermas, a passagem do primata antropéide ao homem se deu por meio de um antepassado comum 0 dominida, cuja evolugdo é demarcada por um@uplo * GROVER: 1. por mecanismos(Bidlogicos de desenvol- vimento @rganicd ¢ 2. por meio de mecanismos sociais de desenvolvimento@ultural O primeiro esté relacionado ao @ESEAVElimenco(G@OESHPO, especialmente doETEBW, en- quanto 0 segundo tem como fundamento o surgimento de (GaSRRORTERRESBEAAMN. De acordo com Habermas 38 Habermas, Para @ reconstrugdo do materialismo hist6rico, So Paulo, Brasiliense, 1990, p. 114. 98 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO “Por um lado, nesse longo perfodo da antropogénese, alteram-se—com base numa longa(Série de multagoes — damanhodo cérebro e impor- : tantes caracteristicas morfol6gicas: por outro lado, os ambientes de onde parte o impulso seletivo trazem a marca naio mais apenas da ecologia (GERD as jé de adaptagio daghOrdas de hominidas dedicadas Acaga” (Habermas, 1990: p. 114). Ainda, segundo Habermas, 0 que conhecemos como @ne- ro humano surge com 0 homoSapiens, haja vista que é com ele que cessa a espécie tipicamente pré-humana, na qual a evolu- co era(@Onsubstanciada estritamente pelas articulagdes do desenvolvimento orgdnico, como também por mecanismos culturais, conforme apresentado acima. O homo sapiens rompe com as determinagdes do duplo movimento que caracterizava os hominidas,* j4 que sud@volugad se constitui por mecanismos estritamenté§ociais. Isso supde que o desenvolvimento orga- nico caracteristico da fase anterior se encerra com 0 homo sapiens. % Fridman ressalta que “os hominidas adultos formavam hordas dedicadas ), dispunham d , conheciam neipio di s presas no A comunidade era regulada por dois sistemas sociais parciais: os homens agrupados em hordas igualitérias dedicadas 2 atividade dacacae a ue detinham uma posigao dominant: es }s. Nao havia, ainda, a fami pois arelagio familiar limitava-se aos lagos de mie ¢ filhos e de irmios e irmas. Com isso, os individuos se inguiam por o que Habermas chama de Ss nite dos hominfdias era ou completada po O poder era exercido por realizagbe , manifestagdes cognoscitivas, manifestagdes afetivas € relagées interpessoais” (2001:75) Luis Carlos Fridman, “Trabalho, ética ¢ emancipagio na obra de Jiirgen Habermas”. In Justica ¢ Sociedade: temas ¢ perspectivas, Sio Paulo, LT. 2001. COLEGAO TRABALHO & EMANCIPAGAO | 99 Nas palavras habermasianas: “tio-somente no limiar que intro- duz ao homo sapiens & que essa forma mista @rganico-culeural da evolugio cede lugar a uma evolucaof€xelusivamente social. Cessa 0 mecanismo natural de evolugio(Nao naseem mais novas espécies” (Habermas, 1990: p. 114). Verifica-se que 0 autor traga um processo evolutivo que sustenta 0 mundo habitado pelos hominidas, caracterizado principalmente por uma evolugio natural, enquanto, por ou- tro lado, com o surgimento dos 4omo sapiens, sua caracteristi- ca € marcada pela evolugio social. Este tiltimo, no que tange a evolugio natural, nado caminha mais para lugar algum, j4 que E bom ressaltar que essa evolucao social tem, como princf- pio, aextensio c aintensividade doato de trabalhar e a const- tuigdo de uma estrutura familiar fundada no matriménio, implicando o aparecimento d de papéis que tém como fundamento o reconhecimento das(fiiteragoes -intersubjetivas ¢ de estruturagao de normas; tal evolucao so- mente se deu, de acordo com Habermas, com 0 aparecimento dos homo sapiens. Se por um lado, a sociedad ominidas encontrava-se regida cd instrumental esem a presenga do agit comunicativo, por outro lado, os Aomo sapiens, que tém como caracteristica a evolugio- social, apresentam, de acordo com Habermas, toda complexi- dade que permite ao autor identificd-los com uma reprodugio da vida especificamente humana. Para Habermas: “Podemos falar de reprodugio da vida humana, a que se chegou 0 homo sapiens, somente quando a economia de caga é completada por 100 | © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO uma estrutura social familiar. Esse processo durou milhées de anos; ele equivale a uma substituigao, de nenhum modo insignificante, do sistema animal de status (...) por um sistema de normas sociais que pressupée AlinBuagem” (Habermas, 1990: p. 116).” Isso somente foi possfvel porque allinguagematingiu uma forma desenvolvida, capaz de fomentar uma(fazad comunica- tiva, o que levou Habermas a sustentar sua tese de que(taba> “Iho € linguagem sio anteriores ao homem e 3 sociedade, rar formalde vidayhumana. Antes de prosseguirmos, ha a necessidade, aqui, de fazermos um esclarecimento assaz impor- tante: como o trabalho e a linguagem podem ser anteriores ao homem e & sociedade2Ou, de outra maneira, mas com o mes- mo sentido: como essas duas categorias sociais podem antece~ der_ao ser social? Aqui, a tinica solugao a esse impasse teérico éconsiderar os hominidas, j4 que apresentam — de acordo com a argumentagio habermasiana/aiptidoes |e fungoes de trabalho e linguagem —auténticos humanos ou permaneceremos nas in- congruéncias de suas argumentagoes, nas quais as categorias especificamente sociais antecedem ao ser social. 3 Nessa citagdo, percebe-se a aproximagio da teoria habermasiana com os Pressupostos te Para este ultimo, sdo importantes as estruturas d&ipapei®. Sao os papéis sociais que regem a estrutura familiar em conformidade com as normas. Para Habermas, em conformidade sons, ‘Habermas,1990;p. 117). ente, isto &, sio , fundada ntre as Enquanto as normas sa ue precisam ¢ tém como base na as no agir racional, orientadas para COLEGAO TRABALHO E EMANCIPAGAO ] 101 Retornando a proposigao habermasiana acerca da@ntend- tidade do trabalho € da linguagem ao homem ¢ & sociedade, entende Habermas que tal constatago torna a teoria marxiana um 6bice para capturar na. Isso é verdade, sempre segundo, Habermas, pois, para ele, a andlise marxiana se funda nd{ftabalho SociaDcomo a catego- ria que permite o salto do(SEEBTOI6GG6 BHA OSEESOGR). Ora, coerente com seus argumentos, Habermas aponta affragilida- de de se basear, tio-somente, no trabalho social como@lemento) sociedade) € natureza, em virtude da(fazaolinstrumentad j4 se encontrar presente nos hom{nidas, por meio dan naREEED {No poden- do ser desta maneira 0 trabalho, uma categoriaffunndante do ser social, haja vista que, devido a sua limitagdo, ainda sempre se- gundo Habermas, este serve apenas para@eparar ou distinguir as forma: , nada, além disso. Por isso, sustenta 0 autor que: . mas j4 os hominidas se distinguem dos maca- cos antropéides pelo fato de se orientarem para areprodugio do tra- " balho social « de constitufrem uma(@eonomia. (..) A@fabricagad de meios de produgio e organizagao social — tanto do(@fabalho quan- to da distribuigao dos produtos do trabalho — satisfazem as condigdes de uma forma econémica de reprodugio da vida, mas$6)quelnaose) caracteriza pela vida humana” (Habermas, 1990: p. 115). 3 As observagdes anteriores, acerca da incongruéncia do argumento habermasiano sobre a anterioridade do trabalho e da linguagem ao ser social, possuem também, aqui, nesse pequeno excerto, validade. 102 I © DEBATE SOBRE A CENTRALIDADE DO TRABALHO

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