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Introdugiio A Tragédia e os Gregos Ter inventado a tragédia é um belo feito ¢ este feito pertence aos Gregos. De facto, ha qualquer coisa de fascinante no sucesso que este género conheceu. Pois ainda hoje, vinte e cinco séculos depois, se escrevem tragédias; escrevem-se um pouco por todo o mundo; mais, continua-se, periodicamente, a pedir emprestados dos Gregos os seus temas e as suas Ppersonagens: escrevem-se Electras e Antigonas. B isto nio 6, de todo, simples fidelidade a um passado brilhante. Com efeito, é evidente que o brilho da tragédia grega se prende com a amplitude da sua significagao, com a riqueza do pensamento que os autores souberam dar-lhe: a tragédia grega apresentava, na linguagem directamente acess{- vel da emocdo, uma reflexdo sobre o homem. £, sem dtivida, por isto que, em todas as épocas de crise, como a nossa, sentimos a necessidade de voltar a esta forma inicial do género. Atacam-se os estudos gregos, mas, um pouco por todo 0 mundo, represen- tam-se as tragédias de Fsquilo, de Sofocles e de Euripides, visto que € nelas que esta reflexio sobre 0 homem brilha com a sua forca primeira. Com efeito, se os Gregos inventaram a tragédia, sucede que entre uma tragédia de Esquilo e uma de Racine as diferengas sao profundas. O quadro das representagdes nao é, de todo, o A TRAGEDIA GREGA mesmo, nem a estrutura das pegas. O ptiblico nado é, de modo nenhum, compardvel, E, mais do que tudo, mudou o espirito interior. Do esquema tragico inicial cada época, ou cada pats, da uma interpretagao diferente. Mas € nas obras gregas que ele se traduz com mais forga, dado que af aparece na sua nudez pri- meira. Além disso, foi, na Grécia, uma explosio stibita, breve, fascinante. A tragédia grega, com a sua colheita de obras-primas, durou ao todo oitenta anos. Devido a uma relagdo que nao se pode dever ao acaso, estes oitenta anos correspondem exactamente ao momento do desenvolvimento politico de Atenas. A primeira representacao tragica das Dionisiacas atenienses situa-se, dizem- hos, cerca de 534, sob Pisistrato. Mas a primeira tragédia con-ser- vada (ou seja, considerada pelos Atenienses como digna de ser estudada) situa-se a seguir A grande vitéria alcangada por Atenas sobre os invasores persas. E, 0 que é mais, ela perpetua-lhe a recordagao: a vitéria de Salamina, que cria o poder ateniense, foi em 480 e a primeira tragédia conservada é de 472; trata-se dos Persas, de Esquilo. Depois, as obras-primas sucedem-se. Todos 08 anos © teatro vé novas pegas apresentadas a concurso por Esquilo, S6focles e Eurfpides. As datas destes autores sao proxi- mas, as suas vidas tém partes comuns, Esquilo nasceu em 525, S6focles em 495, Euripides por volta de 485 ou de 480. Muitas das obras de S6focles e quase todas as de Euripides foram repre- sentadas depois da morte de Péricles, durante a Guerra do Peloponeso, quando Atenas, prisioneira de um império que nao soube manter, sucumbe enfm sob os golpes de Esparta. Apés vinte € sete anos de guerra, em 404 Atenas perde todo o poder que conquistara a seguir as guerras médicas. Nesta altura, Euripides ja tinha morrido ha trés anos, S6focles ha dois. Ainda se representavam algumas pecas suas que nao tinham sido acaba- das ou representadas. E foi tudo. Se pusermos o Reso, uma tragédia que nos foi transmitida como sendo de Euripides mas cuja autenticidade € muito contestada, de parte, nao possuimos, ATRAGEDIA E OS GREGOS depois de 404, mais do que nomes de autores ou de pegas, frag- mentos, alusdes por vezes severas. Desde 405 que Aristéfanes, em As Rds, nao via outra forma de preservar 0 género trégico sendo indo procurar aos infernos um dos poetas desaparecidos. Quando 0 teatro de Dioniso foi reconstruido em pedra, na segunda metade do século tv, foi decorado com estétuas de Esquilo, S6focles e Euripides. E, desde 386 (pelo menos é a data provavel), tinham comegado a inscrever no programa das Dionisiacas a repetigo de uma tragédia antiga. A propria vida da tragédia cessou no momento em que cessava a grandeza de Atenas. Dito de outro modo, quando falamos hoje de tragédia grega, baseamo-nos quase completamente nas obras conservadas dos trés grandes tragicos: sete tragédias de Esquilo, sete de S6focles e dezoito de Euripides (se contarmos com o Reso). A escolha destas trinta e duas tragédias remonta, no seu todo, ao reinado de Adriano (!), E pouco, de todos os pontos de vista: € pouco se pensarmos em todos os autores que sé conhecemos indirectamente e de que apenas fazemos uma ideia — especialmente os grandes prede- cessores, Téspis, Pratinas e, sobretudo, Frinico. E pouco se pen- sarmos nos rivais dos trés grandes — como 0s filhos de Pratinas e de Frinico, fon de Quios, Néofron, Nicémaco e muitos outros, entre os quais os dois filhos de Esquilo, Euférion e Evéon, e 0 seu sobrinho Filocles, 0 Antigo. B pouco, por fim, se pensarmos nos continuadores de Euripides, entre os quais Iofonte e Ariston, ambos filhos de S6focles, e, sobretudo, em autores como Critias e Agaton ou, mais tarde, CArcino. E é muito pouco, enfim, se pensarmos na produgio dos préprios trés grandes, visto que Esquilo, parece, terd composto noventa tragédias, Séfocles escreveu mais de cem (Aristéfanes de Bizincio identificava (!) A escolha da época de Adriano compreendia as sete pecas de Séfocles ¢ dez pegas de Euripides: as outras pegas de Euripides conservaram- -se independentemente. A TRAGEDIA GREGA cento e€ trinta, das quais sete passavam por nao ser auténticas) Euripides, enfim, teria escrito noventa ¢ duas, das quais sessenta e sete ainda seriam conhecidas na época em que se escrevia a sua biografia. O naufragio é, portanto, imenso; € quando falamos de tragédias gregas € preciso, infelizmente, ter em mente que conhecemos trinta de entre mais de um milhar. E algumas, sem qualquer diivida, parecer-nos-iam tao belas como aquelas que possuimos. Além disso, desde o inicio que Esquilo, Sofocles e Euripides nao eram sempre vencedores nos concursos anuais. Mas, por muito estranho que parega, estas cerca de trinta pecas repartidas por menos de oitenta anos dao testemunho nao s6 do que foi a tragédia grega, mas da sua histéria e da sua evolugio. Uma franja de sombra permanece para aquém e para além dos dois limites que encerram a vida do género no seu nivel mais elevado: estes limites constituem como que um limiar que no podemos atravessar sem cair naquilo que ainda nao é, ou que j4 niio 6, a tragédia digna desse nome. Entre os dois, entre 0 «ainda nao» e o «ja nfio», um poderoso impulso impele a tragé- dia para uma renovagio que se vai confirmando em cada ano. De muitos pontos de vista, hd uma diferenga mais vasta e mais profunda entre Esquilo e Euripides do que entre Euripides © Racine. Esta renovagio interior apresenta dois aspectos complemen- tares. De facto, 0 género literério evolui, os seus meios enrique- cem-se, as suas formas de expressio variam. E € possivel escre- yer uma histéria da tragédia que se apresente como continua e que parega independente da vida da cidade e do temperamento dos autores. Mas, por outro lado, sucede que estes citenta anos que vio da vitoria de Salamina a derrota de 404 marcam em todos os dominios um desenvolvimento intelectual ¢ uma evolu- ¢do moral absolutamente impares. A vit6ria de Salamina fora alcangada por uma democracia totalmente nova e por homens ainda totalmente imbuidos dos ensinamentos piedosos e claramente virtuosos de Sdlon. Em 10 A TRAGEDIA E OS GREGOS seguida, a democracia desenvolveu-se rapidamente. Atenas assistiu @ chegada dos sofistas, os mestres do pensamento que eram, antes de mais, mestres da retérica e que punham tudo em questao, agitando, em vez das doutrinas antigas, mil ideias novas. Por fim, Atenas conheceu, depois do orgulho de ter afir- mado gloriosamente 0 seu herofsmo, o sofrimento de uma guerra prolongada, de uma guerra entre Gregos. O clima intelectual e moral dos tiltimos anos do século é téo fecundo em obras e em reflexdes como 0 do inicio do século, mas é, tanto quanto possi- vel, diferente. E a tragédia reflecte, ano a ano, esta transforma- gao. Vive-a, Alimenta-se dela. E difunde-a noutras obras-primas. Entre a evolugao externa das formas literdrias ¢ a renovagio das ideias e dos sentimentos hd, com toda a evidéncia, uma relacao. O enfraquecimento dos meios explica-se pelo desejo de exprimir outra coisa; e uma continua deslocagao dos interesses leva a uma evolugio igualmente continua nos processos de expressdo, Dito de outro modo, a aventura que a histéria da tragédia em Atenas reflecte € a mesma, quer a observemos ao nivel das estruturas literdrias, quer ao nivel das significagdes e da inspiracao filosdfica. S6 depois de termos seguido, no seu impulso interior, esta dupla evolugio é que podemos esperar compreender qual é 0 seu prinefpio e perseguir desse modo — para la do género tragico e dos autores de tragédias — aquilo que constitui 0 préprio espirito das suas obras, ou seja, aquilo a que, depois deles, nunca mais deixdmos de chamar trdgico. ro Capitulo 1 O Género Trdgico A tragédia grega é um género A parte que nao se confunde com nenhuma das formas adoptadas pelo teatro moderno. Gosta- tlamos de poder descrever 0 seu nascimento a fim de compreen- der um pouco melhor o que € que péde suscitar um éxito tao notavel. E nao faltam livros, nem artigos, que tentam descrever esse nascimento. Mas © ntimero dos ensaios explica-se precisa mente pela auséncia de certezas. De facto, uma grande sombra paira sobre essas origens. Possuimos, pelo menos, uma ou duas indicagdes seguras que se traduzem na forma como as tragédias eram representadas © que, para ld dessas representagdes, explicam o nivel em que a tragédia se situa. L.A Origem da Tragédia Dioniso e Atenas Antes de mais — jé 0 dissemos e voltémos a dizer—, a tragé- dia grega tem, sem qualquer divida, uma origem teligiosa. B ATRAGEDIA GREGA Esta origem ainda era muito sensivel nas representagdes da Atenas classica. E estas dependem francamente do culto de Dioniso. S6 nas festas deste deus € que se representavam tragédias. A grande ocasiao era, na época classica, a festa das Dionisfacas urbanas, que se celebrava na Primavera; mas também havia concursos de tragédias na festa das Leneias, que tinha lugar pelo final de Dezembro. A propria representacdo inseria-se, assim, num conjunto eminentemente religioso; era acompa- nhada de prociss6es e sacrificios. Por outro lado, 0 teatro onde tinha lugar, e cujas ruinas ainda hoje visitamos, foi reconstrufdo por diversas vezes; mas era sempre o «teatro de Dioniso», com um belo assento de pedra para o sacerdote de Dioniso e um altar do deus no centro, onde 0 coro evolucionava. O pré- prio coro, s6 pela sua presenga, evocava o lirismo religioso. E as mascaras que os coreutas e os actores usavam fazem- ~hos pensar, com muita facilidade, nas festas rituais de tipo arcaico. Tudo isto revela uma origem ligada ao culto € pode conci- liar-se muito bem com 0 que diz Aristételes (Poética, 1449a): segundo ele, a tagédia teria nascido de improvisos; teria a sua origem em formas lfricas como 0 ditirambo (que era um canto coral em honra de Dioniso); seria, portanto, tal como a comédia, a amplificagao de um rito. Se isso € mesmo assim, entdo a inspiragdo extrema- mente religiosa dos grandes autores de tragédias situar-se-ia no prolongamento de um primeiro impulso. Certamente, nao encontramos nas suas obras nada que lembre particularmente Dioniso, o deus do vinho c das procissdes falicas, nem mesmo 0 deus que morre e renasce com a vegetagio; mas encontramos sempre uma certa presenga do sagrado, que se reflecte no préprio jogo da vida e da morte. Todavia, quando falamos de uma festa religiosa, em Atenas, devemos evitar imaginar uma separaga como aquela que pode existir nos nossos Estados modernos. oO 4 O GENERO TRAGICO De facto, esta festa de Dioniso era igualmente uma festa nacional. Entre os Gregos nao se ia ao teatro como podemos ir nos nossos dias — escolhendo o dia e 0 espectaculo, e assistindo a uma representacdo que se repete todos os dias ao longo do ano. Havia duas festas anuais onde se apresentavam tragédias. Cada festa comportava um concurso, que durava trés dias; e, em cada dia, um autor, seleccionado muito tempo antes, fazia representar, seguidas, trés tragédias. A representagao era prevista e organi- zada a expensas do Estado, dado que era um dos altos magistra- dos da cidade que devia escolher os poetas e escolher, igual- mente, os cidadaos ricos encarregues de prover a todas as despesas. Enfim, no dia da representagiio, 0 povo todo era convi- dado a ir ao especticulo: desde a época de Péricles que os cida- daos pobres podiam até, para este efeito, receber um pequeno abono. Por consequéncia, 0 especticulo revestia-se do cardcter de uma manifestagio nacional. E este facto explica com toda a certeza certos tragos na prépria inspiragio dos autores de tragé- dias, Estes dirigiam-se sempre a um piblico muito vasto, reunido para uma ocasiéo solene: € natural que tenham tentado alcan- gé-lo ¢ interessé-lo. Escreviam, por isso, como cidaddos que se dirigem a cidadzos. Mas este aspecto da representagao remete, também ele, para as origens da tragédia: parece que, com efeito, a tragédia nao pode ter nascido a nao ser que estas improvisag6es religiosas, de onde deveria sair, se encontrassem encarregues e organizadas por uma autoridade politica que se apoiava no povo. Através de um trago assaz notavel, o nascimento da tragédia est4 associado, em quase todo o lado, a existéncia da tirania — isto é, de um regime forte que se apoiava no povo contra a aristocracia. Os raros textos em que nos baseamos para tentar remontar mais alto do que a tragédia atica conduzem-nos todos eles a tiranos. Uma tradicao, atribuida a S6lon, conta que a primeira repre- 15 A TRAGEDIA GREGA sentagio trégica dever-se-ia ao poeta Arfon(2). Ora Arion vivia em Corinto sob 0 dominio do tirano Periandro (final do século viviinicio do século vi a. C.). O primciro caso relativa- mente ao qual Herddoto refere coros «tragicos» € 0 dos coros que, em Sicion, cantavam as desventuras de Adrasto e que foram «restituidos a Dioniso» (3); ora quem os restituiu a Dioniso foi Clistenes, tirano dessa cidade (inicio do século vi). Sem divida que ali s6 existe um esbogo de tragédia. Mas a verdadeira tragé- dia nasce do mesmo modo. Depois destas tentativas hesitantes em diversos pontos do Peloponeso, um belo dia, a tragédia sur- gi na Atica: devem ter existido antes umas primeiras tentativas, mas houve um momento inicial — que € como 0 acto de nasci mento da tragédia: entre 536 e 533, pela primeira vez, Téspis produziu uma tragédia para a grande festa das Dionisiacas(4), Ora era a época em que 0 tirano Pisistrato, 0 tinico que a cidade alguma vez conheceu, reinava em Atenas. Esta data tem, para nés, qualquer coisa de comovente: nenhum dos géneros literdrios tem um estado civil to preciso: hem vemos que outra forma de expresso permitiria cerimoénias como aquelas que tiveram lugar na Grécia, hé alguns anos, para © aniversario dos 2500 anos da tragédia. Mas ao mesmo tempo, para I4 da precisao destes comegos, a data tem, por si mesma, o seu interesse. Tendo entrado na vida ateniense devido a uma decisio oficial, inserindo-se em toda uma politica de expansao popular, a tragédia aparece associada, desde 0 seu inicio, a actividade civica. E este lago s6 podia estrei- tar-se quando este povo, reunido, assim, no teatro, se tornou no Arbitro do seu préprio destino. Ele explica porque é que 0 género ) Cf. Jean Diacte, texto citado em Rheinisches Museum, 1908, pig. 150, Suda, @) Cf. Herddoto, V, 67. (*) Cf. Marmore de Paros: IG XII, 5, 1,444 e Céron de Lampsaco, em Jean Diacre, ef. supra. ©. GENERO TRAGICO trdgico esta associado ao desenvolvimento politico. E explica o lugar que os grandes problemas nacionais da guerra e da paz, da justiga e do civismo, ocupam na tragédia grega. Pela importincia que Ihe atribuem, os grandes Poetas situam-se perfeitamente, também aqui, no prolongamento do Primeiro impulso. Além disso, entre estes dois aspectos da tragédia existe uma relagdo na sua origem. Pois, num sentido, Pisistrato & Dioniso. O tirano ateniense desenvolvera o culto de Dioniso, Construfra, na base da Acrépole, um templo a Dioniso de Eleutéria; e fundaraem sua honra estas festas das Dionisfacas urbanas, que deviam ser as da tragédia. Que a tragédia, no seu teinado, tenha entrado no quadro. oficial do culto deste deus simboliza, portanto, a unidio dos dois grandes patronos sob os quais se colocava este nascimento: 0 de Dioniso ¢ o de Atenas, Obtém-se, assim, dois Pontos de partida geminados, cuja combinagio parece ter sido essencial no nascimento da tragédia. Nao quer isto dizer, infelizmente, que a parte de um e de outro, nesta combinagiio, ou o modo como ela se faz, nos apareca com clareza. E entre os improvisos religiosos do inicio e a represen- tagao oficial que somente conhecemos faltam as transigdes: estamos reduzidos as hipéteses ¢ as modalidades estao envoltas em mistério, Tragos do culto e da epopeia E, primeiro, existe este termo —a wrag-cedia ~ que significa «0 canto do bode». Como compreender este termo? E 0 que fazer com este bode? A hipétese mais difundida consiste em aproxi- mar 0 bode dos sétiros, associados normalmente ao culto de Dioniso, e em aceitar as duas indicagoes de Aristételes, que, em primeiro lugar, na Poética, 1449 a 11, parece fazer remontar a tragédia aos autores de ditirambos (quer dizer, de obras corais executadas sobretudo em honra de Dioniso) ¢ que, mais adiante, 7 A TRAGEDIA GREGA precisa, em 1449 a 20: «Quanto & grandeza, tarde adquiriu [a tragédia] 0 seu alto estilo: [s6 quando se afastou] dos argu- mentos breves e da elocugao grotesca, [isto €] do [elemento] satirico» (*). Terfamos, assim, para a tragédia, uma origem muito préxima da da comédia — grupos de fiéis de Dioniso, represen- tando sdtiros, ¢ cujo aspecto ou vestudrio fazia pensar no bode. Esta hipotese € coerente e, em certos aspectos, sedutora. Apresenta, contudo, duas dificuldades. A primeira é técnica: relaciona-se com o préprio facto de que os sdtiros nunca foram associados a bodes. Por isso, é preciso encontrar uma explicagao. E se apelamos a lascfvia comum a uns e a outros, nao nos afas- tamos da primeira dificuldade a nao ser para agravar a segunda. Esta segunda dificuldade é, com efeito, que a génese assim reconstituida seria muito mais a do drama satirico do que a da tragédia, e que ela nao permite de modo nenhum imaginar como € que estes cantos de sitiros, mais ou menos lascivos, puderam alguma vez ter dado origem & tragédia, a qual nao era de todo lasciva nem comportava qualquer trago de sétiros. E por isto que, desde a Antiguidade, alguns preferiram inter- pretar de outra forma o nome da tragédia. Pensaram que 0 bode era Ou a recompensa oferecida ao melhor participante (>), ou a vitima oferecida em sacrificio (®). Neste caso, 0 ditirambo teria servido apenas de modelo formal, simultaneamente a tragédia e ao drama satirico(’), que constituiriam dois géneros paralelos, mas de inspiragdo totalmente distinta. Esta interpretagao tem o grande mérito de respeitar a diferenca entre estes dois géneros e C) Para esta citagZio, bem como para todas as outras da mesma obra, usou-se Aristételes, Poética (traducio, prefiicio, introdugao, comentirio e apéndices de Eudoro de Sousa), Lisboa, IN‘CM,1986 (NV. ©) CF. omarmore de Paros, a propésito de Téspis, e Eusébio, Crénica, Olimpiada 47, 2; do mesmo modo, Horicio, Arte Poética, 220. (9) Cf. Les études classiques, 1964, pp. 97-129. (7) Pratinas de Fliunte teria levado o drama satirico para Atenas no inicio do século v. 18 RO TRAGICO de conduzir directamente aquilo que constitui a originalidade intrinseca do género tragico. No entanto, isto nao quer dizer, de todo, que ela nao tenha dificuldades. A primeira é, evidente- mente, que ela rejeita uma parte do testemunho de Aristételes, num dominio onde os testemunhos j4 séo num niimero tao reduzido. A segunda é a de que ela repousa totalmente sobre 0 sentido a dar ao sacrificio do bode; ora, apesar de alguns exem- plos bastante notdyeis, o culto de Dioniso parece mais associado suas crias do que ao nosso infeliz bode (®). Qualquer que seja a solucio, alias, a passagem permanece abrupia, entre estes ritos primitivos ¢ a forma literaria a que chegaram. Num caso, é preciso imaginar uma mudanga profunda de tom ¢ de orientagio; no outro, a evolugdio & menos ilégica, mas 0 caminho a percorrer continua singularmente longo. O facto é que estas festas rituais, qualquer que seja a feigao que tenham tomado, relevam mais ou menos da sociologia, enquanto o nascimento da tragédia permanece como um aconte- cimento tinico, que nao tem equivalente em mais nenhum pajfs e em mais nenhuma época. Do mesmo modo, os improvisos dos pastores tém lugar, sem diivida, entre muitos outros povos; e podem ser feitas aproximacGes sugestivas com a tragédia. Mas Os pastores, os sacerdotes, os camponeses, noutro lugar, nao inventam a tragédia. E todas as hipGteses apresentadas sobre a origem da tragédia, das piores as melhores, no nos fornecem — mesmo que digam a verdade — a chave deste mistério. De facto, 0 género literdrio que é a tragédia s6 se pode expli- car em termos literdrios (°). E, dado que as tragédias conservadas nao nos falam de bodes nem de satiros, é preciso admitir, neces- (®) autor cita quatro exemplos e insiste sobretudo em dois epitetos de Dioniso: Dioniso Aigobolos (que golpeia as cabras) e Dioniso Melanaigis (da cabra negra). Naturalmente, ficarfamos mais satisfeitos se 0 vocdbulo empre- gue fosse tragos. (*) Cf.G. F. Else, The Origin and Early Form of Greek Tragedy, Martin Classical Lectures, XX, 1965, pag. 31. 19 A TRAGEDIA GREGA sariamente, que o seu alimento essencial nao vem nem deste culto, nem destes divertimentos. Estes poderiio ter sido a oca- sido. Poderao ter dado a ideia desta mistura de cantos ¢ didlogos, entre pessoas mascaradas, imitando uma accao mitica situada fora do tempo. Poderdo até té-Ia iluminado num dia mais reli- gioso. Mas niio fizeram mais nada. E a tragédia, como género literério, apareceu apenas porque estas festas em honra de Dioniso procuraram, deliberadamente, a prépria substancia das suas representagdes num dominio estranho ao ambiente deste deus. A passagem em que Herédoto fala de Arion evoca represen- tagdes que ilustram as desgracas de Adrasto, um dos herdis que se liga ao ciclo tebano. Clistenes, diz Herédoto, restituiu estes coros a Dioniso. Querer4 dizer que ele mandou fazer de Dioniso © herdi da prépria representagio? E-nos permitido duvidar, Clistenes pode ter, simplesmente, associado 0 conjunto da festa ao culto de Dioniso. Em todo 0 caso, uma coisa é certa: a tragé- dia s6 teve existéncia literéria no dia em que a sua matéria foi, também ela, igualmente literéria, e em que se inspirou, directa e amplamente, nos dados de que a epopeia jé tratava. Estava ali um terceiro elemento, como um corpo estranho no culto de Dioniso; e um provérbio referido frequentemente dizia-o, sob a forma de uma critica, ou talvez de espanto: «Nao ha ali nada que diga respeito a Dioniso» (10). Com efeito, a epopeia e a tragédia abordam o mesmo assunto. Houve, na verdade, algumas pecas relativas aos mitos de Dioniso (As Bacantes, de Eurfpides, sio, para nds, 0 tinico exemplo); houve também algumas pegas relativas a factos mar- cantes da histéria contempordnea (os Persas, de Fsquilo, sao, para ns, 0 tinico exemplo); mas, normalmente, a tragédia asso- (1) Cf. Plutarco, Questoes de banquetes, 615 a, Zendbio, V, 40 ¢ Suda, ad. verb. A critica aplica-se a varios autores de tragédias, entre os quais Téspis e Esquilo. 20 O GENERO TRAGICO ciou-se sempre aos mesmos mitos que a epopeia: & guerra de ‘Trdia, as faganhas de Héracles, aos inforttinios de Edipo e da sua estirpe. Excepto os dois exemplos referidos, todas as pecas con- servadas encontram af 0 seu primeiro assunto. Nao nos devemos espantar: a epopeia fora, durante séculos, 0 género literdrio por exceléncia. O préprio lirismo alimentara-se dela. E a matéria épica fora a matéria normal de qualquer obra de arte. O mais admirdvel, com efeito, é que tenha continuado a ser a da tragédia, ndo s6 na Atenas do século v, mas depois dos Gregos e até 4 época moderna. E por demais evidente que existiram, em diversos paises, tragédias historicas. Mas, nestas tragédias, a hist6ria é tratada um pouco 4 maneira de um mito: serve de exemplo, apenas man- temos dela o sentido humano, modificaram-na a seu gosto. E é preciso dizer, inversamente, que jé se considerava que os mitos gregos, na sua origem, narravam uma histéria, longinqua e herdica mas, no seu conjunto, veridica. Embora a diferenga nio seja radical: de qualquer modo, trata-se de personagens que per- tencem a um passado heroicizado e revestidas de uma certa grandeza. Esta grandeza, vinda da epopeia grega, devia continuar para sempre associada ao género trégico. Este género, dizem por vezes os autores do século xx, & «para os reis»: estes reis sio 0s herdis de Homero que, tendo entrado um dia na tragédia, nunca mais deveriam sair dela. Assim se explicam as Electras, as Oresteias, que ainda hoje se escrevem, O empréstimo é legitimo. E verifica-se que ele res- ponde a um hébito antigo, que também no é falho de interesse para explicar a sorte do género. Com efeito, estas lendas eram conhecidas. As criangas de Atenas tinham-nas aprendido juntamente com a epopeia. O piiblico das representagdes conhecia os seus elementos. Um autor trigico retomaya-os ¢ um outro, depois dele, regres- sava a0 mesmo tema. Ora isto implica que a originalidade dos a ATRAGEDIA GREGA autores esteja noutro lado: nao se situava ao nivel dos aconteci- mentos, da accao, do desenlace, mas ao nivel da interpretagio pessoal. Vinha do facto de 0 actor tornar piiblica uma emogio, uma explicagio, um significado que nao tinham sido veiculados antes dele. Deste modo, desenvolveu-se uma espécie de distan- cia, de recuo em relagio ao tema, que parece ter ainda contri- buido para aumentar a majestade da tragédia e para Ihe conferir uma dimensao particular. Pois ela apenas utiliza uma determi- nada acgao como uma espécie de linguagem por meio da qual o poeta pode dizer tudo aquilo que o toca ou o fere. Como quer que seja, os autores das tragédias foram buscar © assunto das suas obras a epopeia. E nao é duvidoso que, ao mesmo tempo, tenham ido buscar a arte de construir personagens € cenas capazes de comover. Apresentar o sentimento da vida, inspirar terror e piedade, obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade —a epopeia fizera-o sempre e ensinou os trdgicos a fazé-lo. Poderfamos, ainda, dizer que, se a festa criou o género tragico, foi a influéncia da epopeia que fez dele um género literdrio. Mas a epopeia assim transposta tornou-se algo de novo. A epopeia contava: a tragédia mostrou. Ora, isto mesmo implica uma série de inovagdes. Com efeito, na tragédia esta Id tudo, sob os olhos, real, préximo, imediato. Acreditamos nisso. Temos medo. E sabemos pelos testemunhos antigos como alguns espec- tdculos assustavam os espectadores. A tragédia retira a sua forga, relativamente epopeia, de ser assim tang{vel e terrivel. Por outro lado, a limitagdo imposta ao autor obrigava-o a escolher um episddio, um tinico, cujo desenrolar os espectadores seguiam na sua continuidade, passando assim por todas as fases da espe- ranga e do receio, sem diminuigao do interesse. A tragédia tam- bém retira a sua forga desta concentragao da aten¢fio numa tinica acgao. Por tiltimo, as préprias condigdes da representagio con- duziam naturalmente a que o autor engrandecesse mais os heréis © os temas. E conveniente lembré-lo, pois 0 nosso teatro (e jao 22 © GENERO TRAGICO teatro latino) difere do que foi o teatro grego neste ponto. Teatro ao ar livre, este Ultimo era feito para representagGes excepcio- nais, reunindo um vasto ptiblico. As faces eram escondidas por mascaras, os papéis das mulheres desempenhados por homens. Tudo isto afasta a funco de um teatro cheio de cambiantes, consagrado a psicologia e aos caracteres. Contrariamente aquilo que Os termos possam sugerir a um modemo, entre os Gregos 0 teatro era menos intimo do que a epopeia. Porque ela mostrava em vez de contar e, pelas préprias con- digdes em que mostrava, a tragédia podia assim retirar dos factos €picos um cfeito mais imediato e uma ligao mais solene. Isso adequava-se primorosamente a sua dupla funcao, religiosa e nacional: os factos épicos s6 tinham acesso ao teatro de Dioniso associados a presenca de deuses e A Preocupagao com a colec- tividade, mais intensos, mais impressionantes, mais carregados de forga e de sentido. Um exemplo basta para medir esta mutacao. O assassinio de Agamémnon, morto por Egisto ou até por Clitemnestra, e 0 regresso de Orestes, que vem vingar o pai, eram factos que a Odisseia jé conhecia ¢ que foram contados na Oresteia de Estesicoro. Esquilo mais no fez do que retomar um facto épico. Mas, com ele, tudo se organiza: no centro de cada uma das duas primeiras pegas da sua Oresteia figura um assassi- nio, que € ao mesmo tempo sacrificio e sacrificio expiatério. Esperamo-lo, receamo-lo, assistimos a ele e, depois, choramo-lo: cada tragédia apresenta, portanto, uma unidade fortemente orga- nizada. Na terccira, o assassinio € substituido por um julga- mento, mas o problema nao € menos simples nem menos terrivel, visto que também ali se receia sem cessar por uma vida que esta em jogo. Por outro lado, se 0 ptiblico nao via estes assassinios, que se realizavam dentro de casa, assistia directamente ao con- fronto horrivel entre mae e filho; via 0 delirio de Cassandra; © — experiéncia que ultrapassava de longe tudo 0 que se conhe- cia ~ via as Erinias, plenas de vida, roncar medonhamente ATRAGEDIA GREGA perseguindo os passos do culpado. Cada tragédia era, portanto, uma presenga, e uma presenga aterradora. Mas presenca de qué? Nao sé do assassinio e da violéncia, pois 0 assassinio era preten- dido pelos deuses e as Erinias eram divindades rambém pode- mos dizer que, ao longo das trés tragédias, se manifestava a pre- senga divina. Mesmo ao nivel dos factos e dos actos humanos, a simples estrutura das pecas impGe certas questdes e volta a aten- cdo dos espectadores para os deuses. Na verdade, porqué? Por- qué o assassinio de Agamémnon? Depois deste primeiro crime, porqué outro? Onde estava a falta? Onde estar 0 castigo? O que decidem os deuses? Esta interrogac4o preocupa 0 coro, preocupa os actores. E os préprios deuses estado muito perto. Falam por meio de ordculos; falam pela voz de uma vidente; trememos ao adivinhar a sua célera; depois, de repente, surge a Erinia, depois Apolo, depois Atena. Cada tragédia tem valor religioso. E, por fim, 0 conjunto é algo mais. Atena é, com efeito, a deusa tutelar de Atenas; gragas a sua intervengao, as Erinias transformam-se, por seu turno, em divindades protectoras da cidade: velardo pela ordem e pela prosperidade do pais onde, doravante, se instalam; e, a0 mesmo tempo que obtém este resultado, Atena da instru- gOes para que este tribunal do Areépago, fundado para julgar Orestes, continue a existir; ora Esquilo exalta 0 papel conferido aeste tribunal precisamente no momento em que Atenas acabava de alterar os seus poderes. Desta forma, a Oresteia refere-se & vida da cidade: fala de civismo; a sua inspiragao adquire um Ambito nacional. Assim, a Oresteia ilusta bem os diversos caracteres que constituem a originalidade intrinseca da tragédia grega, quer porque, simplesmente, distinguem 0 género trégico do género €pico, quer porque distinguem a tagédia grega das tragédias posteriores, associando aquela as suas raizes religiosas ou nacionais. Devemos acrescentar a isto que, no pormenor da estrutura, a tragédia grega apresenta caracteres que nao sio menos origi- 4 ___OGENERO TRAGICO nais © que nao reflectem com menos fidelidade as préprias circunstancias em que ela nasceu. 2. A Estrutura da Tragédia Destes caracteres originais, 0 principal € evidente ao pri- meiro olhar: a tragédia grega funde numa tnica obra dois ele- mentos de natureza distinta, que sAo 0 coro e as personagens, Dado que a tragédia nasceu seja do proprio ditirambo, seja pela imitagio dos procedimentos do ditirambo, esta realidade nada tem de surpreendente: o ditirambo era, na verdade, 0 didlogo de uma personagem com um coro. Na tragédia grega, esta partilha Permanece essencial; esta marcada na estrutura literdria das obras, nos metros usados, e corresponde mesmo a uma divisao espacial. Na verdade, uma tagédia grega representava-se em dois locais ao mesmo tempo; ©, para 0 compreender, basta ter visto as rufnas de nao importa que teatro grego. Os espectadores ocupavam degraus/bancadas que formavam um vasto hemiciclo. Em frente destes degraus encontrava-se uma parede de fundo dominando uma cena, que se pode comparar ao cendrio dos nossos teatros: esta cena eta o local reservado as personagens. Era dominada por uma espécie de balcio, onde podiam aparecer deuses. Nao havia uma verda- deira decoragio, apenas algumas Portas e alguns simbolos que evocavam 0 quadro da ac¢ao: normalmente, considerava-se que a aco se desenrolava do lado de fora, a porta de um palcio; em caso de necessidade, uma méquina de teatro (ou ekkukléma) podia fazer com que aparecesse na cena um quadro ou um curto episddio revelador de uma accio realizada no interior. Tudo isso era simples e deixava uma grande parte 4 imaginagio do espectador; mas, apesar de tudo, tratava-se de procedimentos compardveis aos que deve ter praticado 0 teatro francés tra- dicional. ATTRAGEDIA GREGA Em compensagao, havia uma diferenga maior; pois, para além desta cena, um teatro antigo ainda comportava aquilo a que se chamava a orchéstra, ou orquestra, no sentido em que se diz: «lugares de orquestra». A orquestra era uma enorme esplanada, de forma circular, cujo centro era ocupado por um altar redondo dedi- cado a Dioniso; e esta esplanada era totalmente reservada As evo- lugdes do coro. Na verdade, a cena formava o fundo da orquestra; e alguns movimentos iam de uma a outra. No entanto, os dois locais eram bastante distintos; os actores, sobre a cena, néio se misturavam com os coreutas da orquestra; ¢ os coreutas, esses, nunca subiam para a cena. Dizendo de outra forma, 0 coro, devido ao local que ocupaya, mantinha-se de certo modo independente da acgio em curso; podia dialogar com os actores, encorajd-los, aconselhé-los, reced-los, até mesmo ameagé-los. Mas mantinha-se & parte. De resto, a sua fungio era definida com precisio. Se ele Ocupava a orquestra, isso correspondia ao seu papel, que era lirico © comportava evolugoes, indo desde uma mimica hierdtica até verdadeiras dangas. Ao todo, cantava e dangava. Podia, certamente, suceder que um chefe de coro (ou corifeu) tivesse com uma personagem um diélogo falado (tal como um actor podia, mais raramente, ver ser-Ihe confiado um solo); mas 0 coro NO seu Conjunto s6 se exprimia cantando ou, pelo menos, salmo- diando. E isto traduz-se no metro usado: enquanto os actores, numa tragédia grega, se exprimem em trimetros jambicos (adop- tando uma forma lirica apenas sob o efeito de uma viva emogao), © coro, esse, exprime-se em metros adequados ao lirismo: os versos constituem, muitas vezes, conjuntos de estrofes empa- relhadas, alternadas, sempre sabiamente ordenadas e sempre acompanhadas de evolugdes coreograficas. A tipografia das nossas edigdes dé conta desta diferenga: os caracteres itdlicos indicam ao olhar as partes cantadas, entre as quais figuram, em primeiro lugar, os conjuntos corais. O resultado € que a tragédia grega se desenrola sempre em dois planos e que a sua estrutura comandada pelo princfpio desta alternancia. 26 0 GENERO TRAGICO. Representada sem cortina, uma tragédia grega nio tem actos; em compensagio, nela a acgao divide-se num certo ntimero de partes, chamadas episédios, que so separadas pelos trechos liricos executados pelo coro na orquestra, Além disso, como € preciso um certo tempo para que este Coro entre na orquestra e se distribua por ela, a estrutura habitual da tragédia comporta, normalmente, um Prdlogo (que precede a entrada do coro), em seguida a entrada do coro, ou parodos (eserita frequentemente num ritmo de marcha), depois os epis6- dios, entrecortados pelos cantos do coro (ou stasima), cujo mimero pode variar, segundo os casos, entre dois ¢ cinco, e, por fim, a safda do coro, ou exodos, Isto no impedia que os actores ¢ os coreutas estivessem empenhados numa mesma corrente de emoco; e havia uma forma precisa em que se traduzia esta relagdo: era uma espécie de canto dialogado no qual participavam em conjunto actores coreutas ¢ aque se chamava kommos. Como escreveu Aristételes (Poética, 1452 b), «kommos é um canto lamentoso, da orquestra eda cena a um tempo». Ele traduz a concordancia; une num todo @ cena € a orquestra, E contam-se pelos dedos da mao as tragé- dias que nao tinham pelo menos um episédio que logo se trans- formasse em kommos. Tudo isto apresenta um esquema muito claro, que se encontra Ro conjunto das tragédias gregas e as distingue de qualquer outra Obra teatral. Mas seria um erro falar apenas de regras. Enquanto a tragédia francesa do século xvu esté constantemente preocupada em conformar-se com os habitos fixos, a tragédia grega, essa, no deixou de inovar, de inventar; e $6 0 seu impulso interior esclarece © sentido de uma estrutura a primeira vista desconcertante. Além do mais, isto é natural: © préprio género era uma invengo recente, que nao dispunha de nenhum precedente nem denenhum modelo. Por isso, foi preciso solté-lo, liberté-lo, aper- feigod-lo. Foi preciso adapti-to a interesses que se modificavam, A novas curiosidades que nasciam. De 472 a 405, sofreu o efeito ” ATTRAGEDIA GREGA ———_____ATRAGEDIAGREGA de miiltiplos impulsos, que se combinaram numa evolugao quase continua. Em particular, a importancia relativa dos dois elementos constitutivos da tragédia ~ acefo dramética e coros liricos — foi-se modificando pouco a pouco, a ponto de se encontrar inver- tida. E esta modificacio, produzindo consequéncias diversas, acabou por se traduzir numa completa renovagio: das pecas arcaicas do inicio chegou-se assim, no espaco de menos de um século, a um teatro j4 muito pr6ximo do nosso. O coro Era, na origem, 0 elemento mais importante da tragédia. Quando se tratava de preparar 0 concurso trdgico, dois dos magistrados mais importantes da cidade zelavam, primeiro, pela designago dos coregos — ou seja, cidados ricos que, a expensas Proprias, tinham a honra de recrutar de manter os quinze mem- bros do coro, ou coreutas(!!), Os mesmos magistrados faziam igualmente uma escolha entre os poetas que «pediam um coro», ‘OU seja, que se inscreviam para concorrer. O poeta que tivesse conseguido um coro tinha entio a tarefa de o preparar. Em prin- cipio, ele proprio se encarregava disso, embora pudesse recorrer ao talento de um «mestre de coro». Dizendo de outro modo, o coro era considerado 0 ponto de partida da representagao. Muitos titulos, alids, dio testemunho desta importancia. Com efeito, tal como para a comédia, nio é raro designar uma tragédia pela designagio dos papéis confiados aos coros. Os Persas, As Suplicanies, As Coéforas, As Euménides, incluem- ~se nestes casos; e também, para Euripides, As Troianas ou As Bacantes. Acontece mesmo que 0 titulo tenha sido dado deste ("}) Parece que no inicio 0 coro era formado por cinquenta pessoas; depois, tera passado a doze e, com Sofocles, a quinze. 28 O GENERO TRAGICO modo, quando a natureza do coro jé nao permitia definir o contetido da tragédia— como com As Traquinias, de Séfocles, ou As Fenicias, de Euripides. Este habito corresponde ao facto de que, na origem, 0 coro tinha um papel preponderante no curso da tragédia, Represen- tava pessoas intimamente interessadas na acgao em curso. E os seus cantos ocupavam um ntimero considerdvel de versos. Assim, a sorte dos velhos que constituem o coro dos Persas, de Esquilo, depende directamente do sucesso ou da ruina do seu soberano. Tém medo por si mesmos; interrogam-se sobre 0 seu préprio futuro, pois a sorte do seu pas depende da do exército. Do mesmo modo, nos Sete contra Tebas, 0 coro é constitufdo por mulheres da cidade que, a cada instante, receiam o desastre da sua patria e niio cessam de evocar a atmosfera de uma cidade pilhada e saqueada; t8m medo ao pensar no que as espera, nas mulheres (1452 a). Aristételes chega’mesmo a precisar quais so as regras para um bom reconhecimento: com efeito, é preciso que nele a verosimilhanga e o natural se aliem ao patético. A seus olhos, o melhor exemplo é 0 Rei Edipo, de Séfocles, onde 0 reconheci- mento constituia, na realidade, o préprio né da acgdo, e onde ela era cortada por reviravoltas diversas. Mas é evidente que Euripides, com a sua destreza e o seu habito das verosimilhancas ret6ricas, tinha tudo para se tornar um dos mestres no género. Em todo 0 caso, escarnece sem vergonha do reconhecimento imaginado por Esquilo entre Electra e Orestes; este reconheci- mento fora preparado pela descoberta de uma madeixa de cabelos e de marcas de pegadas, confirmado depois pela desco- berta de um antigo tecido bordado: uma madeixa de cabelos ou uma marca de pegadas seriam entio as mesmas entre um irmao uma irma? Um tecido ainda seria usado, depois de tantos anos? Euripides tinha, portanto, que fazer melhor. E Aristoteles cita aprovadoramente 0 reconhecimento que ele introduzira entre Ifigénia e Orestes na /figénia entre os Tauros. O facto € que cenas deste género sio frequentes no seu teatro. fon nao passa de uma série de reconhecimentos que termi- nam no verdadeiro. E Euripides imaginou mesmo, na sua Helena, circunstancias tais que é preciso um reconhecimento, imprevisto ¢ assombroso, entre Helena ¢ Menelau, entre a mulher ¢ o marido. Mas ele parece gostar sobretudo daqueles que 48 0 GENERO TRAGICO se combinam com os golpes de teatro, pois ai o interesse da intriga ¢ 0 efeito patético sdo levados ao ponto mais alto. Ele possui tao bem a arte de estender a acgao, de provocar 0 medo, de fazer palpitar! Jé é, podemos dizé-lo, a arte de um escritor de profissao, de um homem de letras. O caso mais sim- ples & aquele em que se espera um salvador, mas demora tanto tempo, que desesperamos; e, de repente, quando jé niio acredita- mos nele, eis que aparece. Assim surge Héracles, na peca que tem o seu nome: a sua chegada deve salvar os seus no momento em que, depois de muitos lamentos, esperangas e stplicas, 0 seu pai acaba por concluir: «Mas eu chamei-te demais: esforcei-me em vao! Segundo me parece, a morte é inevitavel.» (502). Tam- bém assim surgiu o velho Peleu, na Andrémaca, no momento em que, depois de muitas discussées e censuras, Andrémaca e 0 filho vao ser, ambos, mandados matar. Esto acorrentados; ja se despediram da vida; ¢ Menelau acaba de pronunciar palavras inexordveis, das quais as tltimas so: «ao Hades subterraneo descerds>, quando 0 coro declara: «His, vejo Peleu que se apro- xima...> (*) Ou entdo a salvagao nao vem de uma pessoa, mas de uma informagao que altera a situagao; e, neste caso, 0 reconheci- mento constitui um golpe de teatro, visto que yem por fim a uma situagiio que iria acabar como um drama monstruoso. Muitas vezes sao parentes préximos — ou mesmo pais ¢ criangas — que estiio a ponto de se matar sem o saber. E assim que, no fon, primeiro, a mae quer matar aquele que, de facto, € 0 seu filho; depois este filho prepara-se, por seu turno, para se vingar; e est4 prestes a fazé-lo quando surge a Pitia: «Pra, 6 filho» (*). No (Esta citago, tal como as restantes da mesma obra, foi extrafda de Euripides, Andrdmaca (introdugao, tradugao notas de José Ribeiro Ferreira), Coimbra Instituto de Alta Cultura/Centro de Estudos Classicos ¢ Huma- nisticos, 1971 (N.T. (“) Esta citago, tal como as restantes da mesma obra, foi extraida de Euripides, fon (tradugdo do grego, introdugio e notas de Frederico Lourengo), Lisboa, Colibri, 1994 (N.T.). 4 A TRAGEDIA GREGA. {iltimo minuto ela vem permitir um reconhecimento tardio entre mae e filho. Nas pecas tardias, como Cresofonte, Alexandre, Hipsipilo, contam-nos que Euripides extraia de situagdes andlo- gas efeitos impressionantes. E mesmo na [figénia entre os Tauros é claro que o reconhecimento entre irmao e irma retira um alcance mais patético do facto de Ifigénia se preparar, sem 0 saber, para imolar este irméo ao culto de Artemis. Isto nao sio mais do que exemplos. Ao querer multipli- cA-los, ariscar-nos-famos a dar a impress de que 0 teatro de Euripides era feito apenas de truques do oficio e de cenas espec- taculares. Naturalmente nao é assim. Mas enquanto podiamos ser iludidos pelas primeiras tragédias de Esquilo, cujo trago hier4- tico © cujos meios limitados evocavam mais a tradigo dos mi térios religiosos do que a do teatro moderno, podemos talvez ser constrangidos a verificar que Euripides, sobretudo na segunda parte da sua vida literfria, se assemelha, por momentos, & comé- dia nova e a Menandro, ou mesmo, para la de Menandro, ao drama burgués. Contudo, a evolugao € continua; e é breve. O impulso inte- rior que renova a tragédia grega, multiplicando os seus meios € deslocando-lhe os centros de interesse, leva, em oitenta anos, do mais austero arcaismo a uma modernidade que depressa consi- derariamos excessiva. Talvez esta mesma modernidade marque, num certo sentido, o fim da tragédia grega. Porque a evolugo foi tal que um dos dois elementos, ao entrar na sua composigao, acabou por perder uma fungao essencial. Em certas tragédias de Euripides, 0 coro desempenha apenas um papel secundério; e a graga do lirismo acrescenta, com certeza, um atractivo, mas um atractivo de que nos poderfamos privar — de que 0 teatro moderno, de facto, se priva. Podemos mesmo perguntar-nos se nao sera ao sentimento de que qualquer coisa enfraquecia que se deve esta tragédia, que se conta entre as tiltimas de Euripides (a tltima ou a pentiltima) OGENERO TRAGICO © que € também uma das mais conformes ao esquema original da tragédia grega, A pega intitulada As Bacantes, composta na corte do rei da Macedénia pouco antes da morte do poeta, & uma tragédia onde 0 coro tem de novo um papel importante e onde esta, de novo, estreitamente ligado a acgao. E também uma tragé- dia de inspiragao religiosa, dirigida para uma catéstrofe tinica. Enfim, é uma tragédia hostil ao espirito racional ¢ sofistico que desempenhara um papel tao grande na inspiragio de Euripides. Consequentemente, tudo dé o sentimento de um regresso a uma fonte cujo curso, aos poucos, teria secado e desaparecido, De facto, a tragédia, como género literario, tinha evoluido até aos limites daquilo que definia a originalidade deste género. Mas s6 tinha evoluido assim devido a influéncia de uma trans. formacdo profunda no espirito geral que animava os autores, E quando a tragédia grega esta proxima do fim, é Porque o impulso religioso ¢ nacional, que suscitara estas grandes produ- g6es, ele mesmo abrandou e, depois, perdeu-se. O impasse a que chega a tragédia grega, no dia em que um dos seus elementos constitutivos perde o essencial da sua fungi, coincide com o impasse a que Atenas chega no dia em que 0 individualismo triunfa sobre o civismo, tal como a irreligiio Sobre a piedade, e em que o futuro do homem parece, no fim de contas, ser para repensar. Esta coincidéncia confirma 0 que faz a originalidade da tragédia grega e 0 seu poder profundo. Mas ela convida, do mesmo modo, a observar um pouco de perto 0 que cada um dos ttés tragicos pode ter tido a dizer sobre o homem _ visto que esta evolugao no pensamento ¢ na inspiragio pode, em definitivo, dar conta nao s6 das transformagies literdrias que aqui foram salientadas, mas também do que ficaré em seguida para defi- nir, a saber, o sentido que convém atribuir A prépria nogao de trdgico. SI

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