Você está na página 1de 51
Medo, desamparo e poder sem corpo Minha mae pariu gémeos, eueomedo. THOMAS HOBBES Normalmente, acreditamos que uma teoria dos afetos nao contri- bui para o esclarecimento da natureza dos impasses dos vinculos sociopoliticos. Pois aceitamos que a dimenso dos afetos diz res- peito a vida individual dos sujeitos, enquanto a compreensao dos problemas ligados aos vinculos sociais exigiria uma perspectiva diferente, capaz de descrever o funcionamento estrutural da so- ciedade e de suas esferas de valores. Os afetos nos remeteriam a sistemas individuais de fantasias e crengas, o que impossibilitaria a compreensao da vida social como sistema de regras e normas.' Tal distingdo nao seria apenas uma realidade de fato, mas uma neces- sidade de direito. Pois, quando os afetos entram na cena politica, eles s6 poderiam implicar a impossibilidade de orientar a conduta a partir de julgamentos racionais, universalizaveis por serem ba- seados na procura do melhor argumento. 1 Sobre a critica dessa posigao ver, por exemplo: Rebecca Kingston e Leonard Ferry, Bringing the Passions Back in: The Emotions in Political Philosophy. Toronto: UBC Press, 2008, p. 11. 2 Oargumento padrio dessa necessidade de direito foi criticamente bem descrito por George Marcus: “Do ponto de vista da imparcialidade e da universalidade 47 No entanto, um dos pontos mais ricos da experiéncia intelec. tual de Sigmund Freud ¢ a insisténcia na possibilidade de ultrapas. sar tal dicotomia. Freud nao cansa de nos mostrar quao fundamen. tal uma reflexdo sobre os afetos, no sentido de uma consideragig sistematica sobre a maneira como a vida social e a experiéncia po. litica produzem e mobilizam afetos que funcionarao como base de sustentac3o geral para a adesao social. Maneira de lembrar a necessidade de desenvolver uma reflexdo social que parta da Perspectiva dos individuos, nao se contentando com a acusacao de “psicologismo” oucom descrigées sistémico-funcionais da vida social. O que nao poderia ser diferente para alguém que insistia em afirmar: “mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, nao pode ser nada mais que Psicologia aplicada. Em ultima instancia, s6 ha duas ciéncias, a psicologia, pura e aplicada, e a ciéncia da natureza”.s Mas, em vez de ver su- jeitos como agentes maximizadores de utilidade ou como mera expresso calculadora de deliberagdes racionais, Freud prefere compreender a forma como individuos produzem crengas, desejos einteresses a partir de certos circuitos de afetos quando justificam, para si mesmos, a necessidade de aquiescer a norma, adotando tipos de comportamentos e recusando repetidamente outros. Aperspectiva freudiana nao é, no entanto, apenas a expressao de um desejo em descrever fendmenos sociais a partir da intelec- go de seus afetos. Freud quer também compreender como afetos sao produzidos e mobilizados para bloquear o que normalmente chamariamos de “expectativas emancipatorias”. Pois a vida psi- quica que conhecemos, com suas modalidades de conflitos, sofri- mentos ¢ desejos, é uma produc de modos de circuito de afetos. da aplicacio, 0 cidadao emotivo nao seria mais capaz de fazer um uso racional de sua inteligéncia, uso que lhe permititia, sendo o erro sempre possivel, por- tar um julgamento justo e equinime” (George Marcus, Le Citoyen sentimenial: emotions et politique en démocratie. Paris: Sciences Po, 2008, p. 41). 3 Sigmund Freud, Gesammelte Werke, v. xv. Frankfurt: Fischer, 1999, p. 194. Por outro lado, a propria nogo de “afeto” é indissociavel de uma dinamica de imbricagiio que descreve a alteraco produzida por algo que parece vir do exterior e que nem sempre é constituido como objeto da consciéncia representacional. Por isso, ela é a base para a compreensao tanto das formas de instauragdo sensivel da vida psiquica quanto da natureza social de tal instaurac4o. Fato que nos mostra como, desde a origem: “o socius esta presente no Eu”.* Ser afetado é instaurar a vida psiquica através da forma mais elementar de sociabilidade, essa sociabilidade que passa pela aiesthesis e que, em sua dimensao mais importante, constréi vinculos inconscientes. Tal capacidade instauradora da afecc’o tem consequéncias politicas maiores. Pois tanto a superacio dos conflitos psiquicos quanto a possibilidade de experiéncias politicas de emancipacao pedem a consolidagao de um impulso em diregao A mutagao dos afetos, impulso em direcao a capacidade de ser afetado de outra forma. Nossa sujei¢ao é afetivamente construida, ela é afetiva- mente perpetuada e so podera ser superada afetivamente, a partir da produgao de uma outra aiesthesis. O que nos leva a dizer que a politica é, em sua determinagio essencial, um modo de produgao de circuito de afetos,’ da mesma forma como a clinica, em especial 4 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, La Panique politique. Paris: Christian Bourgeois Editeurs, 2013, p, 24. Dai se segue que: “para individualistas meto- doldgicos, a ideia de que um sentimento como a angustia ou a culpa possa set propriedade de um grupo ¢ quase incompreensivel. Vendo 0 individuo como unidade basica da sociedade, eles estao dispostos a assumir que sentimentos, assim como significados e intengées, sao de certa forma a “propriedade” de individuos. Esse conceito de sujeito humano sub-socializado, partilhado por algumas tradigdes no interior da psicologia hegeménica, é incapaz de com- preender como sentimentos sedimentam grupos, contribuindo substancial- mente para sua coeréncia” (Paul Hoggett e Simon Thompson [orgs.], Politics and the Emotions: The Affective Turn in Contemporary Political Studies. Nova York: Continuum, 2012, p. 3). 5 Lembremos, a esse respeito, as analogias entre modos de governo e carter dos individuos que aparecem ja no livro VIII de A repiiblica, de Plato. A se perguntar sobre o carater e a persona prépria ao “homem democratico” que vive em uma democracia, 20 “homem oligarquico” que vive em uma oligarquia, a0 “homem 49 ocura ser dispositivo de desativacao ama perpetuagao de configura- Nesse sentido, o interesse em sua matriz freudiana, pr‘ de modos de afecgao que sustent gdes determinadas de vinculos sociais. rc ; freudiano pela teoria social nao ¢ fruto de um desejo de construir enese, teoria das teorias altamente especulativas sobre antropos e, teor ‘al dos sentimentos morals € violéncia. Na sua maneira, por um questionamento a aemancipacao social e por uma eza sensivel de seus bloqueios. er as modalidades de cir- religides, origem soci verdade, Freud é movido, sobre as condi¢des psiquicas par forte teorizacao a respeito da natur: Por outro lado, ao tentar compreend a es de cir culago social dos afetos, Freud privilegia as relagGes verticais pro- os vinculos relativos as figuras de autoridade, em especial as aternas. Sao basicamente esses tipos de afeto que instau- ica através de processos de identificagao. O que priasa figuras p; ram a vida psiqui | I no poderia ser diferente para alguém que via nesta forma muito peculiar de empatia (Einfihlung) chamada “jdentificagao” o fun- damento da vida social.* Tal privilégio dado por Freud a essas re- lagGes verticais foi motivo de criticas das mais diversas tradigées, Pois, aparentemente, em vez de dar conta do impacto da autono- mizagao das esferas de valores na modernidade e dos seus mo- tiranico” que vive em uma tirania, Platdo nao esta fazendo apenas uma analo- gia engenhosa. Trata-se de, a sua maneira, lembrar como circuitos de afetos. fundamentam a racionalidade interna a modalidades especificas de governo. Dai afirmagdes como: “Sabe vocé que necessariamente existem tantas espé- cies de carateres de homens quanto formas de governo, ou cré por acaso que tais formas saem de carvalhos e de rochedos, ao invés de sair do carater (ethos) dos cidados, que leva tudo para o lado ao qual ele tende?” (Platio, A repui- blica. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005, 544d). Como se um ethos comum, com suas qualidades emocionais, fosse a verdadeira base de uma identidade politica coletiva. 6 ois: “A identificagao é, para Freud, o sentimento social e é, pois, o dominio do afeto como tal [implicado pela identificacao] que deve ser interrogado” (P. Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy, op. cit., p. 67). 7 Por exemplo: Mikkel Borch-Jacobsen, Le Lien affectif. Paris: Aubier, 1992; Jean a Monod, Quéest-ce qu'un chef en démocratie? Politiques du charisme. Paris: Seuil, 2012. dos de legitimagaio, Freud teria preferido descrever processos de interagdo social que nunca dizem respeito, por exemplo, aos vin- culos entre membros da sociedade em relag6es horizontais, mas apenas a rela¢ao destes com a instancia superior de uma figura de lideranga ou a relacdes entre membros mediadas pela instancia superior do poder. Como se os sujeitos sempre se reportassem, de maneira direta, a instancias personalizadas do poder, como se as relages sociopoliticas devessem ser compreendidas a partir das categorias de relagdes individuais entre dois sujeitos em situacao tendencial de dominagao e servidao. Estratégia que implicaria um estranho resquicio de categorias da filosofia da consciéncia trans- postas para o quadro da anilise da ldgica do poder. O que nos le- varia a crer, por exemplo, que a expressio institucional do Estado teria sempre a tendéncia a se submeter & figura de uma pessoa singular na posigao de lider. No entanto, podemos dizer que Freud age como quem afirma que a relacdo com a lideranga é 0 verdadeiro ponto obscuro da re- flexio politica contemporanea. Ha uma demanda continua de expressao do poder em lideranga, ha uma ldgica da incorporagao que vem da natureza constitutiva do poder na determinagao das identidades coletivas. Isso esta presente tanto em sociedades di- tas democraticas quanto autoritarias. De fato, inexiste, em Freud, uma esfera politica na qual a relagao com a autoridade nao seja poder constituinte das identidades coletivas devido a forga das identificagdes, dai a tendéncia a fenédmenos de incorporagao.* A primeira vista, como veremos mais a frente, este parece ser 0 resultado necessario, mas nem por isso menos problematico, da 8 Foi Ernesto Laclau quem melhor desenvolveu as consequéncias desse papel constituinte da lideranga a partir da psicologia das massas em Freud. Ver Er- nesto Laclau, La raz6n populista, Buenos Aires: Fondo de Cultura Econémica, 2011 ed. bras.: A ra2do populista. Sao Paulo: Trés Estrelas, 2013} 61 tendéncia freudiana em nio livrar a figura do dirigente politico de analogias politico-familiares ou teoldgico-politicas.? Essa centralidade da discussao sobre a natureza da lideranga no interior da reflex3o sobre o politico nao deve ser compreendida, no entanto, como a expressio natural da pretensa necessidade de os homens enquanto animais politicos se submeterem a figuras de autoridade, como se ohomem fosse um animal que procura neces. sariamente um mestre, mesmo que Freud em alguns momentos faca afirmagées nesse sentido. Na verdade, Freud intuitivamente percebe como a soberania, seja ela atualmente efetiva ou virtual- mente presente enquanto demanda latente, é 0 problema consti- tutivo da experiéncia politica, ao menos dessa experiéncia politica que marca a especificidade da modernidade ocidental. Contraria- mente a tedricos como Michel Foucault, Freud nao acredita em alguma forma de ocaso do poder soberano em prol do advento de uma era de constituic&o de individualidades a partir de dinamicas disciplinares e de controle social. Ele simplesmente acredita que o poder soberano, mesmo quando nao se encontra efetivamente constituido na institucionalidade politica," continua em laténcia como demanda fantasmatica dos individuos. A recorréncia conti- nua, mesmo em nossa contemporaneidade, de sobreposi¢ées en- tre as representagGes do dirigente politico, do chefe de Estado, do pai de familia, do lider religioso, do fundador da empresa deveria nos indicar que estamos diante de um fenémeno mais complexo do que regressées de individuos inaptos 4 “maturidade democra- 9 Oque levou certos comentadores a afirmar que: “a andlise freudiana pertence, sem duvida, sob certos aspectos, a um momento de reafirmagao polémica da metaforica pastoral que participa de uma desilusio historica quanto ao ‘pro- gresso moral da humanidade’, de uma decepedo face As tendéncias regressivas da dita civilizagao ‘racional’ e de uma problematizagao das esperancas das Luzes” (J.-C. Monod, op. cit., p. 237). 10 O que nao é certamente nosso caso, ao menos se levarmos em conta elabo- ragSes como estas apresentadas em Giorgio Agamben, Estado de exceio. S40 Paulo: Boitempo, 2004. 52 tica”. Compreender a natureza dessa demanda pelo lugar sobe- rano do poder, assim como a forca libidinal responsavel por sua resiliéncia, é uma tarefaa qual Freud, a sua maneira, se impés. No entanto, nao se trata apenas de compreendé-la, mas tam- bém de pensar caminhos possiveis para desativa-la, caminhos para ~ se quisermos usar um sintagma analitico — atravessar tal fantasia. Mas, tal como no trabalho analitico, nao é questao de crer que, “uma vez desvelada a armadilha libidinal do politico, devemos abandoné-la a histéria caduca de seu delirio ocidental, substituindo-lhe uma estética ou uma moral”." Pois tal crenca transformaria a psicandlise em um modelo de critica que cré po- der contentar-se com os desvelamentos dos mecanismos de pro- dugao das ilusdes sociais, na esperanca de um desvelamento dessa natureza ter a forga perlocucionaria capaz de modificar condutas. Seriamos mais fiéis a Freud se compreendéssemos o processo de travessia como indugo 4 mutacao interna no sentido e no circuito dos afetos que fantasias produzem. Freud age como quem explora as ambiguidades de nossas fantasias sociais, como quem descons- trdi (e a palavra nao esté aqui por acaso) a aparente homogenei- dade de seu funcionamento, permitindo assim que outras histdrias apare¢am 4 onde acreditavamos encontrar apenas as mesmas his- torias. Nao se trata de uma critica pela qual ilusdes sociais seriam denunciadas a partir de normatividades posstveis, ainda latentes, que serviriam de fundamento para outra forma de vida em socie- dade. Como se fosse 0 caso de desqualificar uma normatividade atual a partir da perspectiva de uma normatividade virtual a res- peito da qual Freud seria o enunciador eleito. A critica freudiana éuma espécie de abertura a possibilidade de transformagao das normas através da exploragao de sua ambivaléncia interna - no nosso caso, transformagio da soberania através da exploracao de efeitos ainda inauditos do poder. Ha algo na hipétese do poder so- 11 P. Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy, op. cit., p. 10. 53 berano que nao pode ser completamente descartado como figura regressiva de dominagao; ha algo em seu lugar que parece pulsar para além dos efeitos de sujeigao que tal poder parece necegga_ riamente implicar, bastando lembrar tanto as discussdes sobre g soberania popular quanto a constituigéo da soberania como lugar da subjetividade emancipada.” Isso talvez explique por que ha- ver em Freud dois paradigmas distintos de figuras de autoridade, Uma deriva das fantasias ligadas ao pai primevo, enunciada inj- cialmente em Totem e tabu, e que alcancara Psicologia das massas eandlise do eu. Outra, que é quase a negacao interna da primeira e nos abre espac¢o para uma reavaliacao da dimensao politica do pensamento freudiano, aparecera de forma tensa nesta obra pa- limpsesto e testamentaria que é O homem Moisés ¢ a religido mo- noteista. Gostaria de, neste e no préximo capitulo, dedicar-me a tais elaboragGes para tentar pensar 0 tipo de mutacao dos afetos que permite o advento da politica como pratica de transformagio. O verdadero escultor da vida social Partamos de algumas considera¢ées iniciais sobre um pressuposto freudiano central, a saber, 0 afeto que nos abre para os vinculos so- ciais é 0 desamparo. A principio, essa poderia parecer uma versao modernizada de uma ideia presente, por exemplo, em Thomas Hobbes, a respeito do medo como afeto politico central, pois afeto mais forte que nos levaria a aquiescer 4 norma, constituindo a possibilidade de uma vida em sociedade que permitiria nos afas- tarmos do estado de natureza. Lembremos, neste contexto, de al- gumas caracteristicas importantes da ideia hobbesiana. “Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder co- mum capaz de manté-los todos em temor respeitoso”, diz Hobbes 12 Georges Bataille, “La Souveraineté”, in Euvres completes, v. vill. Paris: Galli- mard, 1976. 54 em passagem célebre, “eles se encontram naquela condigfio a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra to- dos os homens.” A saida do estado de natureza e de sua guerra de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade natural que nao implica consolidagiio da experiéncia do bem comum, mas conflito perpétuo entre interesses concorrenciais, se faria pelas vias da internalizagao de um “temor respeitoso” constantemente reiterado e produzido pela forca de lei de um poder soberano. Pois “se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverao de brotar controvérsias sobre quem mais gozaré de tais bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguird o tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural, todo homem ¢ ensinado a esquivar”."* Proposi¢ao que ilustra como as individualidades seriam anima- das por algo como uma forga de impulso dirigido ao excesso. Nao pode haver bens comuns porque hd um desejo excessivo no seio dos individuos, desejo resultante de a “natureza ter dado a cada um direito a tudo” sem que ninguém esteja assentado em alguma forma de lugar natural. Tal excesso aparece, necessariamente para Hobbes, nao apenas através do egoismo ilimitado, mas também através da cobiga em relago ao que faz 0 outro gozar, da ambicao por ocupar lugares que desalojem aquele que ¢ visto preferencial- mente como concorrente. Pois 0 excesso, como é trago comum de todos os homens, s6 pode acabar como desejo pelo mesmo. “Mui- tos, ao mesmo tempo, tém o apetite pelas mesmas coisas.”** Assim, 13 Thomas Hobbes, Leviatd. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109. Dai por que: “a origem de todas as grandes ¢ duradouras sociedades nao provém da boa von- tade reciproca que os homens teriam uns para com os outros, mas do medo reciproco que uns tinham dos outros” (id. Do cidaddo. Sao Paulo: Martins Fon- tes, 2002, p. 28). 14 Id, ibid., p. 7. . 15 Id, ibid. p. 30. Como lembrara Leo Strauss, a respeito de Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” (Leo Strauss, The Political Philosophy of Thomas Hobbes. Chicago: University of Chicago Press, 1963, p. 10). 16 Id., ibid., p.30. 55 Hobbes descreve como o aparecimento histérico de uma sociedade de individuos liberados de toda forma de lugar natural ou de regy. lagao coletiva predeterminada sd pode ser compreendido como 9 advento de uma “sociedade da inseguranga total”,” nao muito dis. tante daquela que podemos encontrar nas sociedades neoliberais contemporaneas. Contra a destrutividade amedrontadora desse excesso que coloca os individuos em perpétuo movimento, fazendo-os dese. jar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente A morte violenta, faz-se necessario 0 governo. O que demonstra como a possibilidade mesma da existéncia do governo e, por consequén- cia, ao menos nesse contexto, a possibilidade de estabelecer re- lagdes através de contratos que determinem lugares, obrigacées, previsdes de comportamento, estariam vinculadas a circulacio do medo como afeto instaurador e conservador de relagées de autori- dade.* Esse medo teria a forga de estabilizar a sociedade, paralisar o movimento e bloquear 0 excesso das paixées. Isso leva comenta- dores, como Remo Bodei, a insistir em uma “cumplicidade entre razao e medo”, nao apenas porque a razdo seria impotente semo medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes, uma espécie de “paixdo universal calculadora” por permitir 0 calculo das consequéncias possiveis a partir da memoria dos danos, fun- damento para a deliberacao racional e a previsibilidade da agao.” 17 Robert Castel, L’Insécurité sociale: qu'est-ce qu étre protégé? Paris: Seuil, 2003, p.13. 18 Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos dessa passagem hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade: “Esse contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos 0s vinculos e todas as comunidades sao dissolvidos, Individuos atomizados se en- contram no medo, até que brilhe a luz do entendimento criando um consenso dirigido a submissao geral e incondicional 4 poténcia suprema’” (C. Schmitt, Le Léviathan dans la doctrine de l’Etat de Thomas Hobbes: sens et échec d’un symbole politique. Paris: Seuil, 2002, p. 95). 19 Remo Bodei, Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicita - filosofia e uso po Utico. Milao: Feltrinelli, 2003, p. 86. Ou ainda, como dira Esposito, em Hobbes, omedo “nao determina apenas fuga e isolamento, mas também relagao e uniao- 56 Por isso, o medo ligado a forga coercitiva da soberania deve ser visto apenas como certa astticia para defender a vida social de medo maior: Porque os vinculos das palavras séo demasiado fracos para refrear a ambico, a natureza, a avareza, a cdlera e outras paixdes dos homens, se nao houver o medo de algum poder coercitivo - coisa impossivel de supor na condic&o de simples natureza, em que os homens sao todos iguais, e juizes do acerto dos seus préprios temores.” E verdade que Hobbes também afirma: “As paixGes que fazem os homens tender para a paz so 0 medo da morte, 0 desejo daquelas coisas que sao necessérias para uma vida confortavel e a esperanca de consegui-las por meio do trabalho”. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a forca da palavra demasiado fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de reforca-la: o medo ou ainda 0 orgulho e a gloria por nao precisar faltar com a palavra. Tais consideragdes parecem abrir espaco a circulagao de outros afetos sociais, como a esperanga e um tipo especifico de amor-proprio ligado ao reconhecimento de si como sujeito moral.” No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmagdes como: “de todas as paixdes, a que menos No se limita a bloquear e imobilizar, mas, ao contrario, leva a refletir e neutra- lizar o perigo: nfo tem parte como irracional, mas com a razio. E uma poténcia produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de politica” (Roberto Esposito, Communitas: origine ¢ destino della comunitd. Turim: Einaudi, 1998, p. 6). 20. T. Hobbes, Leviatd, op. cit., p.119. 21 Id.,ibid., p. 111. 22 Renato Janine Ribeiro, por exemplo, insistird que “pode-se reduzir a pares a muttiplicidade das paixdes: medo e esperanga, aversio e desejo ou, em termos fisicos, repulsio e atragdo. Mas nao ¢ possivel escutar a filosofia hobbesiana pela nota sé do medo, que nao existe sem o contraponto da esperanga’” (R. J. Ribeiro, Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004, Pp. 23)- 57 s leis € o medo. Mais: excetuandg faz os homens tender a violar a unica coisa que leva os homens algumas naturezas generosas, € a ‘ a respeita-las”.® Faltaria a maioria dos homensa capacidade de se afastar da forga incendidria das paixOes € atingir essa situagio de esfriamento na qual o vinculo politico nao precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao amor (que, enquanto modelo para a relagao com 0 Estado, acaba por construir a imager da soberania a imagem paterna, modelando a politica na familia).’* Ou seja, 0 esfriamento das paixdes aparece como fungao da autoridade sobe- rana e condi¢ao para a perpetuagao do campo politico, mesmo que tal esfriamento se pague com a moeda da circulagao perpétua de outras paixdes que parecem nos sujeitar A continua dependéncia. Por isso, mais do que expresso de uma compreensao antropo- logica precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo politico resultante da observagao desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como horizonte uma ldgica do poder pensada a partir de uma limitagéo politica, no caso, de uma impossibili- dade de pensar a politica para além dos dispositivos que transfor- mam o amparo produzido pela seguran¢a e pela estabilidade em afeto mobilizador do vinculo social.*s Politica na qual “o protego 23. T. Hobbes, Leviata, op. cit., p. 253 24 Ver, por exemplo, R. J. Ribeiro, op. cit., p. 53- 25 Interessante salientar a diferenga entre Hobbes e Hegel neste ponto. Para He- gel, a fungdo do poder soberano nao pode ser a garantia da seguranga, masa imposigao do movimento. Dai por que “Para nao deixar que os individuos se enraizem e endureram nesse isolar-se ¢ que, desta forma, otodo se desagregue eo espirito se evapore, 0 governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu intimo pelas guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira¢ odireito A independéncia. Quanto aos individuos, que afundados nessa rotina e direito se desprendem do todo aspirando ao ser para-si inviolvel e 4 segu- ranga da pessoa, 0 governo, no trabalho que lhes impée, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissolucio da forma da subsisténcia, o espirito impede o sogobrar do Dasein ético no natural, preserva o Side sua consciéncia eo eleva liberdade e & forca. A esséncia negativa se mostra como a poténcia peculiar da comunidade e como a forga de sua autoconservagio” (G. W. F. He- gel, Fenomenologia do Espirito, v. 11. Petropolis: Vozes, 1992, p. 455). Notemos que 58 ergo obligo & 0 cogito ergo sum do Estado”. Dificil nao chegar auma situagao na qual esperamos finalmente por “um quadro juridico no interior do qual nao exista realmente mais conflitos - apenas regras a colocar em vigor”.”” Pois o Estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de protecao social que se serve de todo poder possivel, instaurando um dominio de legalidade propria, neutro em relag&o a valores e verdade, para realizar sua tarefa sem cons- trangimento externo algum, ou seja, como uma maquina admi- nistrativa que desconhece coergdes em sua fungao de assegurar a existéncia fisica daqueles que domina e protege. Um Estado cons- truido a partir da dessocializagao de todo vinculo comunitario, constituindo-se como 0 espago de uma “relagiio de nao relagdes”.** O fato fundamental no interior dessa relagao de nao relagSes éanecessidade que tal legitimagao da soberania pela capacidade de amparo e seguranga tem da perpetuacao continua da imagem da violéncia desagregadora 4 espreita, da morte violenta imi- essa guerra da qual fala Hegel nao ¢ a explosio de ddio resultante da lesio da propriedade particular ou do dano asi enquanto individuo particular. A guerra & campo de “sacrificio do singular ao universal enquanto risco aceito”. Se na Grécia tal guerra era, de fato, movimento presente na vida ética do povo, ja que o fazer a guerra era condigao exigida de todo cidadao, nao deixa de ser verdade que Hegel concebe aqui o Estado como que dissolve a seguranga ea fixidez das determinagées finitas. A guerra ¢ 0 nome do processo que demonstra como a aniquilacao do finito é modo de manifestacdo de sua esséncia. Essa éa consequéncia necessdria de um pensamento, comoo de Hegel, para o qual toda violéncia ¢ conversivel, ndo em coergo justificada, mas em processualidade ima- nente da razdo. O que nao poderia ser diferente para alguém que afirmou que as feridas do espirito se curam sem deixar cicatrizes. Perspectiva anti-hobbesiana por exceléncia. 26 Carl Schmitt, O conceito do politico - Teoria do partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56. 27 Etienne Balibar, Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p.56. O que fica claro em afirmagSes como: “entre os homens sio muitos os que se julgam mais sdbios € mais capacitados do que os outros para o exercicio do poder piblico. E es- ses esforgam-se por empreender reformas ¢ inovagées, uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o pais a perturbaco e 4 guerra civil” (T. Hobbes, Leviaté, op. cit., p. 146). 28 R. Esposito, Communitas, op. cit., p. 12. 59 nente caso etna tade soberana de amplos poderes.” Sendo o Estado nada Mais ntemente impedida através de uma for, a vocar continuamente 0 sentimentg o espago social deixe de ser controlado por uma von. que “a guerra civil consta insuperavel”,® ele precisa pro de desamparo, da iminéncia do estado de guerra, transformandg. -o imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para ag. sim legitimar-se como forga de amparo fundada na Perpetuagag de nossa dependéncia. Na verdade, devemos set mals Precisos e lembrar que a autoridade soberana tem sua legitimidade assegy. rada nao apenas por instaurar uma relacao baseada no medo para com o préprio soberano, mas principalmente por fornecer a ima- gem do distanciamento possivel em relagao a uma fantasia social de desagregacao imanente no lago social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. E através da perpetuago da iminéncia de sua presenga que a autoridade soberana encontra seu fundamento, E alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade do “poder pacificador” da representacdo politica, ou seja, do abrir mio de meu direito natural em prol da constitui¢do de um representante cujas agdes soberanas sero a forma verdadeira de minha vontade. So assim 0 medo podera “conformar as vontades de todos” os in- dividuos, como se fosse o verdadeiro escultor da vida social. E importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla fundamentago. Por um lado, ela apela & condi¢ao presente dos 29 Dai uma conclusio importante de. Agamben: “A fundagao no ¢ um evento que Se cumpra uma vez por todas in illo tempore, mas é continuamente ‘operante no estado civil na forma da deciséo soberana,” (Giorgio Agamben, Homo sacer:0 poder: soberano ea vida nua. Belo Horizonte: Editora da UEMG, 2001, p.115)- Esse mecanismo de fundacao que necessita ser continuamente reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como forga de reiteragao da relagéo do Estado ao seu fundamento. 30 oo Le Léviathan dans la doctrine de l'Etat de Thomas Hobbes, op. ¢it- p86. 31 T, Hobbes, Leviata, op. cit, p.147, 60 homens. Nao sendo uma hipétese histdrica, o estado de natureza é uma inferéncia feita a partir da analise das paixdes atuais.* Hobbes pede que lembremos como “todos os paises, embora estejam em paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilancia”. Lembra ainda como os “particulares nao viajam sem levar sua espada a seu lado, para se defenderem, nem dormem sem fecharem - nao sé as portas, para prote¢4o de seus concidadaos - mas até seus cofres e batis, por temor aos domésticos”.3 Mas notemos um ponto central. A espada que car- rego, as trancas na minha porta e em meus bats, os muros da ci- dade na qual habito sao indices nao apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles sao indices indiretos do excesso do meu proprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “Olhe para suas tran- cas e vocé vera n4o apenas seu medo em relaco ao outro, mas 0 excesso de seu préprio desejo que o desampara por querer leva- -lo a situagdes nas quais imperam a violéncia e o descontrole da forga”. A retdrica apela aqui a uma universalidade implicativa. De toda forma, como nao se trata de permitir que configura- ges atuais sejam, de maneira indevida, elevadas a condigao de invariante ontoldgica, faz-se absolutamente necessaria também a producao continua dessas construgées antropologicas do exte- tior cadtico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo nao sendo uma hipotese histdrica, nao ha como deixar de recorrer 4 antropologia para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construgdes como esta que leva Hobbes a acreditar que “os povos selvagens de muitos lugares da América, com exce¢ao do governo de pequenas 32. Isso leva Macpherson a afirmar que, longe de ser uma descrigio do ser humano primitivo, ou do ser humano a parte de toda caracteristica social adquirida, 0 estado de natureza seria: “a abstragao logica esbogada do comportamento dos homens na sociedade civilizada” (C. B. Macpherson, The Political Theory of Pos- sessive Individualism: Hobbes to Locke. Oxford: Oxford University Press, 1962, p-26). 33. T. Hobbes, Do cidadao, op. cit., p. 14. 61 familias, cuja concérdia depende da concupiscéncia natural, nig possuem nenhuma espécie de governo, € vive Nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi”. Na verdade, sempre deverd haver um “povo selvagem da América” a mao, 0 Estado sempre devera criar um risco de contaminacao da vida social pela violéncia exterior, independentemente de onde esse exterior es. teja, seja geograficamente no Novo Mundo ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena origindria da violéncia. Ao me- nos nesse ponto, Carl Schmitt ¢ o mais consequente dos hobbesia. nos quando afirma que “palavras como Estado, reptblica, socie- dade, classe e ademais soberania, Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. sao incompreensiveis quando no se sabe quem deve ser, in concreto, atingido, comba- tido, negado e refutado com tal palavra”.* Politica do desamparo Trata-se de um tépos classico do comentario de textos freudia- nos insistir em certas proximidades possiveis entre Freud e pro- posigdes como essas de Hobbes. Normalmente, comega-se por afirmar que a antropologia freudiana seria tao marcada por uma matriz concorrencial-individualista quanto a hobbesiana, a ponto de aceitar uma figuracdo belicista das relagdes sociais em sua ex- 34. Id, ibid., p. 10. Ou ainda: “sabemos disso também tanto pela experiéncia das nagées selvagens que existem hoje, como pelas histérias de nossos ancestrais, os antigos habitantes da Alemanha e de outros paises hoje civilizados, onde en- contramos um povo reduzidoe de vida breve, sem ornamentos e comodidades, coisas essas usualmente inventadase proporcionadas pela paz e pela sociedade” r. Hobe, Os elementos da lei natural e politica. S40 Paulo: Martins Fontes, 2010, P. 70). 35. C. Schmitt, O conceito de politico, op. cit.,p.32. 36 Para a discussdo sobre Freud e Hobbes, ver: Abraham Drassinower, Freud's Theory of Culture: Eros, Loss and Politics. Lanham: Rowman and Littlefield, 2003: Joel Birman, “Governabilidade, forca e sublimacao: Freud ea filosofia politica”. Revista de Psicologia usp, v.23, n.3, 2010. 62 pressao imediata. Haveria alguma forma de partilha entre os dois autores no que se refere ao que convencionamos chamar de esfera das reflexes sobre a natureza humana. Lembremos uma afirma- ¢40 como esta: o ser humano nAo é uma criatura branda, avida de amor, que no maximo pode se defender quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhao de agressividade. Em consequéncia disso, para ele o préximo nao cons- titui apenas um possivel colaborador e objeto sexual, mas também uma tentagao para satisfazer a tendéncia a agresso, para explorar seu trabalho sem recompensa-lo, para dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patriménio, para humilh4-lo, para infligir-lhe dor, para torturd-lo e mat4-lo. Homo homini lupus [O homem ¢ 0 lobo do homem].” Ametafora hobbesiana utilizada por Freud, que afasta do horizonte toda pressuposi¢ao de uma tendéncia imediata a cooperacao, dei- xaria claro como 0 vinculo social sé poderia se constituir a partir da restri¢ao a essa crueldade inata, a essa agressividade pulsional que parece ontologicamente inscrita no ser do sujeito. Dessa forma, uma “hostilidade primaria entre os homens” seria o fator permanente de ameaga 4 integracao social. Tal crueldade nao parece ser completa- mente maleavel de acordo com transformagGes sociais. Dai por que 37S. Freud, O mal-estar na civilizagao, trad. Paulo César de Souza. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 76-77. Lembremos ainda o tom claramente hobbesiano da descrigio da violéncia do “estado de natureza” que leva Freud a afirmar: “a principal tarefa da cultura, sua razio propria de existéncia, consiste em nos defender contra a natureza” (S. Freud, “Der zukunft einer Illusion”, in Gesammelte Werke, v. x1v. Frankfurt: Fischer, 1999, p. 336). 38 Odque teria levado alguém como Derrida a afirmar que, “se a pulsao de poder ou apulsio de crueldade ¢ irredutivel, mais velha, mais antiga que os principios (de prazer ou de realidade, que sao no fundo 0 mesmo, como gostaria eu de dizer, © mesmo na diferenga), entdo nenhuma politica poderd erradicd-la” (Jacques Derrida, Estados de alma da psicandlise. Si Paulo: Escuta, 2001, p. 34). “Sempre é possivel ligar um grande numero de pessoas pelo amo, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade” » Ou seja, os vinculos cooperativos baseados no amor ouem algumg forma de intersubjetividade primaria so so realmente capazes de sustentar relagdes sociais alargadas a condigao de dar espaco a cons. tituicdo de diferengas intoleraveis alojadas em um exterior que serg objeto continuo de violéncia. Tais vinculos de amor permitema pro. dugao de espacos de afirmagao identitaria a partir de relagGes libigj. nais de identificagao e investimento. Mas a constitui¢ao identitaria é indissocidvel de uma regulag4o narcisica da coesao social, 0 que explica por que Freud fazia questao de lembrar que, “Depois queo apéstolo Paulo fez do amor universal aos homens 0 fundamento de sua congrega¢io, a intolerancia extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-se uma consequéncia inevitavel’.« Nao ¢ dificil compreender como tal exteriorizagao da agressividade, assim como toda e qualquer aceitacao de restrigdes pulsionais, s6 poder ser feita apelando ao medo como afeto politico central. Medo do exterior, do poder soberano, da despossessao produzida pelo ou- tro ou ainda da destrui¢ao produzida por si mesmo. Lembremos ainda como, em Freud, 0 amor nao aparece como fundamento para a seguran¢a emocional advinda do saber-se am- parado pelo desejo do Outro. Antes, ele é marcado por uma cons- ciéncia de vulnerabilidade expressa no sentimento constante de “angustia da perda do amor”. Nesse sentido, tais relagdes nao podem servir de fundamento para a constru¢ao de alguma forma de seguranga afetiva pretensamente fundamental para a consoli- dagao de vinculos sociais estaveis e capazes de assegurar o desen- volvimento nao problematic de identidades. 39 Id, ibid., p. 81. 40 S. Freud, O mal-estarna civilizagao, op. cit.,p. 81. 41 Id,,ibid,, p. 94. 64 No entanto, se até aqui a posicdo freudiana parece proto-hob- besiana, ha de se lembrar de uma distingao decisiva. Falta a Freud a aceitagao hobbesiana da necessidade da soberania como uma espécie de contravioléncia estatal legitima que, por isso, seria ins- tauradora do direito e da associagao contratual, pois limitadora da violéncia desagregadora dos individuos. Ao contrario, se Freud € atento ao mal-estar na civilizagao é por saber que a crueldade entre individuos tende a ser repetida pela crueldade da pretensa contravioléncia soberana. A limitagao da violéncia desagregadora dos individuos nao é, no seu caso, legitimada como condi¢gao ne- cessaria para o aparecimento de algo semelhante a um espago po- litico que nao se dissolverd em guerra de todos contra todos pois garantido pela submissdo integral a um poder soberano comum. Asubmissao a tal poder é uma tarefa impossivel devido ao excesso irredutivel de violéncia que a vida pulsional representa a toda or- dem social que procure integrd-la.* Nesse ponto, Freud poderia parecer prisioneiro de um certo nu- cleo metafisico da politica, presente nessa forma de radicalizar a irredutibilidade da violéncia como constante antropolégica. Pode- mos falar em “nticleo metafisico” porque a violéncia irredutivel das relages interpessoais, além de ser elevada a paradigma intranspo- nivel do politico, tal como em Hobbes, pareceria fadada a sé se rea- lizar de uma forma, a saber, como experiéncia da vulnerabilidade diante da agressividade vinda do outro. Tal invariabilidade das fi- guras da violéncia parece expressdo de uma certa crenga metafisica na esséncia intransponivel das relagdes humanas. No entanto, essa aparéncia de aprisionamento é um erro. Sem desconsiderar os vin- 42 Daiumaafirmagao importante de Mladen Dolar: “A pulsio nao é apenas o que preserva uma certa ordem social. Ao mesmo tempo, ela é a razao pela qual tal ordem nao pode se estabilizar e fechar-se sobre si mesma, pela qual ela no pode se reduzir ao melhor arranjo entre sujeitos existentes ¢ instituigdes, mas sempre apresente um excesso que o subverte” (M. Dolar, “Freud and the Poli- tical”. Unbound, v. 4, n. 15, 2008, pp.15-29). culos entre antropologia e politica, Freud acaba por desconstryj; . sobreposi¢aio metafisica entre violéncia e agressividade com sua base afetiva soldada no fogo do medo. Ha uma gramatica ampla da violéncia a partir de Freud que nao se conjuga apenas como agressividade contra 0 outro, mas pode aparecer também de forma mais produtiva como desagrega¢ao do Eu enquanto unidade Tigida, como despersonalizagao enquanto modo de destituigao Subje. tiva, como despossessao nas relagoes intersubjetivas entre outros, Comoo ser em Aristételes, a violéncia se dira de varias formas, ter varias determinas6es afetivas e se inscrevera socialmente de mo. dos variados. De certa forma, é do desdobramento possivel de tal gramatica que a terceira parte deste livro trata. Talvez devido a tal variabilidade gramatical da violencia, acon- travioléncia repressiva soberana nao sera apenas impossivel, mas também ilegitima por aparecer como puro processo produtor de softimento psiquico neurético através da constitui¢ao de figuras de autoridade que retiram sua legitimidade da perpetuagao da su- jeicdo sob a mascara da condigao necessaria para a conservagio do vinculo social. Perpetuagao da sujei¢ao cujas estratégias Freud descrevera ao discorrer sobre a forma como as figuras modernas da soberania sao normalmente marcadas por construges narrati- vas que tendem a repetir estruturas proximas daquelas que encon- tramos na paranoia.* Por isso, é dificil aceitar certa leitura corrente que conclui ser sim- plesmente impossivel uma politica emancipatoria a partir de Freud, assim como seria, na verdade, impossivel toda e qualquer politica que ndo se reduzisse a simples gest’io do medo social. Tal conclusio nao ¢ inelutavel. Para qualificar melhor o debate precisamos nos perguntar se € possivel, para Freud, desenvolver formas de vinculos sociais nao baseados no medo como afeto central. E neste ponto que devemos 43 Ver Vladimir Safatle, “Paranoia como catdstrofe social: arqueologia de un co” Ceito clinico”. Revista Trans/form/agao, v. 34, n.2, Marilia, 2011. introduzir reflexes sobre o desamparo como modo especifico de vul- nerabilidade. Gostaria de mostrar como ha uma experiéncia politica que se constitui a partir da circulago do desamparo e como tal circu- lacao fornece uma via renovada para pensarmos o politico. Na verdade, Freud pode nos mostrar como uma politica realmente emancipatoria, de certa forma, funda-se na capacidade de fazer circular socialmente a experiéncia de desamparo e sua violéncia especifica, e nao de construir fantasias que nos defendam dela. Pois a politica pode ser pensada en- quanto pratica que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formas sociais, na medida em que impede sua conversao em medo social e que nos abre para acontecimentos que nao sabemos ainda como experimentar. Essa é uma maneira possivel de lembrar que a politica nao pode ser reduzida a uma mera gestiio do servigo dos bens, ou mesmo de reiteragao de teleologias histricas as- sentadas no necessitarismo do que esta previamente assegurado, mas é, na sua determinacao essencial, pratica de confrontagao com acon- tecimentos que desorientam a aisthesis do tempo e do espaco, assim como ocarater regular das normas e dos lugares a serem ocupados. Por isso, ela necessariamente nos confronta com acontecimentos que nos desamparam coma violéncia do que aparece para nossa forma de pen- sar como até ent4o imposstvel, radicalmente fora de lugar, contingente. Toda agao politica ¢ inicialmente uma ago de desabamento eso pessoas de- Samparadas sdo capazes de agir politicamente. Como gostaria de mostrar na ultima parte deste livro, sujeitos politicos sd se constituem a partir da internalizacao de tais desabamentos. A respeito da compreensao freudiana do desamparo, lembre- mos inicialmente como ele nao se confunde com o medo. Desde Aristoteles, medo implica preparo e reagao diante de um perigo real, iminente ou imaginado.# Freud tem, por exemplo, uma 44 Como diz Aristételes: “o medo consiste numa situag¢ao aflitiva ou numa per- turbagio causada pela representagao de um mal iminente ruinoso ou penoso” (Aristoteles, Retérica, trad. Edson Bini. Sao Paulo: Martins Fontes, 2012, 1382). 67 os distingao classica a respeito da diferenga entre medo e angustia, “A angustia tem uma inconfundivel relacao com a expectativg: Nela ha uma caracteristica de indeterm;, angustia dianie de algo. alinguagem correta chegaa mudar-lhe nagao e auséncia de objeto; o nome, quando ela encontra um objeto e o substitui por meq, [Furcht]”.*5 Ou seja, podemos dizer que 0 medo é essa forma de nosentido de reagao ao perigg angustia que encontrou wn objeto, sentado. Pensandg produzido por um objeto possivel de ser repre em chave nao muito distante, Hobbes verd, no medo, a “expecta. tura de uma representa. tiva de um mal”, ou seja, a projegao ful 40 capaz de provocar formas de desprazer e violéncia. Essa ideig da possibilidade de representacao do objeto do afeto é central, E a possibilidade de tal representag4o que provoca a reacao dos pelos que se erigam como sinal de defesa, da atengao que ¢ redo- brada, da respiracao que acelera como quem espera por um ataque. JA o desamparo (Hilflosigkeit) tem algo de desabamento das reacdes possiveis, de paralisia sem reagao (como no caso da hip- nose de terror dos animais) ou mesmo da extrema vulnerabilidade vinda do fato de se estar fora de si, mas agora dependendo de um Outro que nao sei como respondera. Dai por que a situacao tipica de desamparo na literatura psicanalitica diz respeito aos desdo- bramentos do estado de prematuracao do bebé ao nascer (com sua incompletude funcional e sua insuficiéncia motora). Por nas- cer e permanecer durante muito tempo na incapacidade de prover suas proprias exigéncias de satisfacao, incapacidade de saber 0 que fazer para prové-las, o bebé estaria sempre as voltas com uma situag4o de desamparo que marca sua abertura a relagao com 0s pais e sua profunda dependéncia para com os mesmos. Como a vida humana desconhece normatividades imanentes, a afeccao 45S. Freud, “Inibig&o, sintoma e angistia”, in Obras completas, v. 17. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.114. 46. T. Hobbes, Os elementos da lei natural e politica, op. cit., p. 38. 68 er originaria s6 pode ser, ao menos para Freud, a expresso da vul- nerabilidade do sujeito no interior da relagdo com 0 Outro e da auséncia de resposta articulada diante das exigéncias postas pela necessidade. No entanto, o desamparo nao serd produzido apenas pela consciéncia da vulnerabilidade do sujeito na sua relacao ao Outro, mas também pela propria auséncia de resposta adequada as excitagdes pulsionais internas. Ou seja, hé uma dupla articula- ¢4o entre fontes internas e externas. Freud, porém, nao se contenta em descrever o desamparo como um estado inicial afetivo de impoténcia a ser ultrapassado no interior do processo de maturagio individual, o que explica o uso freudiano do desamparo para falar de fendmenos como 0 es- tranhamento (Unheimlichkeit), a consciéncia da vulnerabilidade diante da forga do outro, a heranga filogenética da memoria da vulnerabilidade da espécie na era historica da glaciagao ou, ainda, o sentimento diante da desagregacao da visao religiosa de mun- do.* Paulatinamente, fica claro como o desamparo passa da condi- G0 de “dado bioldgico originario” para uma “dimensao essencial, propria ao funcionamento psiquico”.** Cada vez fica mais claro como 0 uso freudiano parece fazer ressoar o sentido concreto do termo alemio Hilflosigkeit, ou seja, estar em uma “condi¢o sem ajuda” possivel. Procurando uma definicao estrutural, Freud associa entao o desamparo a inadequagao da “avaliagao de nossa forga em compa- 47. Mario Eduardo Costa Pereira compreendeu bem como “a evolugio teérica de Freud ante a questo do desamparo parece ir no sentido de ‘desacidentalizé- -lo! em relagao ao ‘evento traumitico’, de colocé-lo para além de uma simples regressao a uma fase em que 0 pequeno ser humano encontrava-se completa- mente incapaz de sobreviver por seus proprios meios, de encontré-lo além das figuras aterrorizantes do superego, para conferir-Ihe um estatuto de dimensao fundamental da vida psiquica que indica os iimites e as condigdes de possi- bilidade do préprio processo de simbolizaga0” (Mario Costa Pereira, Panico e desamparo. Séo Paulo: Escuta, 2008, p. 127). 48 Id, ibid., p. 37. 69 os” ragdio com a grandeza”® da situagao de perigo ou de excitacgo, Tal inadequagao entre minha capacidade de rea¢ao, de controle, em suma, de representagao sob a forma de um objeto, e a Magnitude do que tenho diante de mim, da a situagdo um carater traumat, co.° A desmesura, pensada principalmente no sentido de aUsencig de capacidade de medida, é a condigao para o desamparo. Assim, Freud pode afirmar: “a angistia é, de um lado, expectativa (g,. wartung) do trauma, e, de outro, repetigao atenuada do mesmo, As duas caracteristicas que nos chamaram a aten¢ao na angustia tém, origens diversas, portanto. Sua relacdo com a expectativa se liga & situagao de perigo; sua indetermina¢ao e auséncia de objeto, ; situacdo traumatica de desamparo, que é antecipada na situacio de perigo”* A indeterminago da qual fala Freud a respeito da situagio traumatica de desamparo tem, ao menos, duas fontes. Primeito, ela indica uma experiéncia temporal especifica. Contrariamente ao medo, ou mesmo 4 esperanga, 0 desamparo nao projeta um horizonte de expectativas que permite aos instantes temporais ganharem a forma da continuidade assegurada pela projegao do acontecimento futuro. Medo e esperanga sAo, a sua maneira, dois afetos complementares, pois esto vinculados em sua dependén- cia mutua em relacao a temporalidade da expectativa, tempora- lidade do acontecimento por vir, seja ele positivo ou negativo. E tal temporalidade que o desamparo elimina, inaugurando outra temporalidade, desprovida de expectativa, que se expressaemum carater fundamental de indeterminagao. 49 8. Freud, “Inibigdo, sintomae angustia’, op. cit, p. 115. 50 A importancia da inadequacao da medida é 0 elemento estrutural fundamen na determinagao do trauma. Dai uma afirmag%o como: “somente a grandeza da soma de excitagao faz de uma impress4o um momento traumitico, paraliss a fungio do principio do prazer, dé a situagao de perigo sua importancia” 6- Freud, “Novas conferéncias introdutérias a psicanalise”, in Obras comple v.18. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2010). 51 &. Freud, “Inibi¢do, sintoma e angustia”, op. cit., p. 116. 70 ! : Por outro lado, a indeterminagao provocada pela inadequagio entre a avaliagao de nossa forca e a grandeza da situagio propria ao desamparo remete necessariamente ao excesso de forga pulsional, em especial ao excesso representado pela excitagio pulsional.* Em relagao aos objetos que possam representar sua satisfac, a pulsdo sempre se coloca com poténcia de excesso. Foi pensando muitas vezes em tal caracteristica que Freud fala do desamparo como ex- periéncia de uma “dor que nao cessa”, de um “actimulo de neces- sidades que nao obtém satisfagao”, isso para sublinhar 0 carater de desabamento das rea¢ées possiveis. Pois estar desamparado é estar sem ajuda, sem recursos diante de um acontecimento que nao é a atualiza¢ao de meus possiveis. Por isso, ele provoca a suspensao, mesmo que moment4nea, da minha capacidade de a¢ao, represen- taco e previsao. Estar desamparado é, em uma formula feliz do psi- canalista Jacques André, estar diante de algo que teve lugar, mas nao foi experimentado. Por nao ser a atualizacao de meus possiveis, a situacao de desamparo implica sempre reconhecimento de certa forma de impoténcia, tanto do sujeito em sua agéncia quanto da or- dem simbolica que o suporta, em sua capacidade de determinagao.* Ha uma suspensio da capacidade de ordenamento simbdlico que nos aproxima do que Lacan entende por experiéncia da ordem do Real, daf a fung’o do desamparo na experiéncia de final de anilise.® 52. Topico bem desenvolvido por Joel Birman, “A dadiva e o Outro: sobre o conceito de desamparo no discurso freudiano”. Physis Revista de Satide Coletiva, Rio de Janeiro, n. 9, V. 2, 19995 PP. 9-30 : Jacques André, “Entre angustia e desamparo”. Agora: Estudos em Teoria Psica- nalitica, v. 4, n.2, Rio de Janeiro, 2001. Como colocou bem Costa Pereira: “os grandes textos ditos ‘antropolégicos’ escritos no final da vida de Freud concebem a Hilflosigkeit como constitulda pela impossibilidade para o aparelho psiquico de aprender pela simbolizagao © conjunto dos possiveis e de delimitar, de uma vez. por todas, 0 sujeito, seu corpoe seus desejos em um mundo simbolicamente organizado” (Mario Costa Pereira, Pénico e desamparo, op. cit., p. 200)- ; ; §§ entre os psicanalistas posteriores a Freud, foi Lacan que mais insistiu ma ne- cessidade de afirmacao do desamparo como condigao paraa resolugaode uma tica que, necessariamente, precisaria levar 0 sujeito a certa 53 4 experiéncia anali 7s

Você também pode gostar