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Inesquecível

Sinal da cruz feito, entra com o pé direito no gramado. Sempre fez isso, mas nem sempre deu
certo. É hora de saudar a torcida. “São poucos, mas vieram da capital até o interior só pra prestigiar o
time”, imagina. Para e pensa que pode estar equivocado, afinal de contas joga em um dos grandes. “São
torcedores da própria cidade, certamente”.

Tem dúvidas se será apoiado durante a partida, já que a torcida anda com raiva do time. O
goleiro foi agredido no aeroporto esse ano. Justo o goleiro, ele acabou de chegar! Lembra-se de ter ouvido
gritos de “uh, vai morrer” em uma partida há alguns meses. Pensa que isso talvez aconteceu há apenas
algumas semanas. Pensa que pode acontecer hoje de novo. Acha melhor pensar em outra coisa. O
aquecimento veio em boa hora.

Corre para a lateral do campo. Um repórter o chama e faz a mesma pergunta de sempre. Normal,
tudo como planejado, inclusive a resposta dada. Volta para perto dos companheiros e toca a bola. Corre
para receber. Tenta um passe em profundidade, mas erra o cálculo e a bola vai forte demais. Lembra que
é só o treino, mas fica sem graça ainda assim. Abaixa a cabeça e começa a pular e dar pequenos trotes.

Olha para o banco e vê os reservas e toda a comissão. Era o primeiro jogo depois do clássico. O
professor estava confiante no vestiário, disse que hoje era dia de vitória, que era para somar pontos.
Lembra-se do último jogo, um empate sem gols contra o antigo time. Ainda guardava boas lembranças
daquela época. Recorda que a última vez que esteve nesse estádio era com aquele time. E que time! Acha
melhor pensar em outra coisa. O hino nacional veio em boa hora.

Dessa vez não conseguiu se distrair. Três anos separavam o inferno do presente da glória do
passado. Jogava ao lado de craques em ascensão! O time tinha ídolos que serviam como fonte de
experiência e modelo a ser seguido e o principal deles chegou da Europa. Estava em baixa, mas vinha
para jogar a Copa do Mundo. Ainda tentava assimilar, com dificuldades, que o sujeito desceu de
helicóptero no gramado e acompanhado do Rei. E que fizeram um show para recebê-lo. E que a banda da
cidade estava tocando em um palco montado. E que o estádio tinha mais torcedores naquele dia do que
hoje.

Voltou a pensar em si mesmo. Naquela época era um coadjuvante, é verdade, mas fazia parte do
plantel e tentava se enganar achando que isso bastava. Não conseguia, não achava justo. Vinha da base,
foi emprestado para um time do sul e voltou com o futebol renovado. Era para ser valorizado. “Será que
era?” A torcida gritava o seu nome em todos os jogos.

Está em 2013 de novo. Hoje o time não joga com o zagueiro principal. Mudança de última hora.
Estreia um menino, fazendo seu primeiro jogo como profissional. Olha atento para ele. Está nervoso, é
claro, foi pego de surpresa também. “Está com vontade, quer vencer. Os pais dele devem estar vendo”,
imagina. Lembra quando começou, quando era uma promessa. Torce pelo novo menino. E 2010 atravessa
o pensamento, quando a imagem do outro menino, da outra promessa, aparece na cabeça: sorrindo,
magrelo e de moicano. Relembra como as coisas pareciam fáceis. Foram campeões inquestionáveis. Um
timaço eterno!

O passado tinha que ficar de lado, o jogo vai começar. O menino de 2010 não está mais ao seu
lado. O de 2013 estreia hoje. “É zagueiro, não vai driblar. É zagueiro, vai se consagrar com a raça. É
zagueiro, é só fazer o feijão com arroz. É zagueiro, só precisa subir de cabeça e tá tudo certo.” Percebe
que o colega tomou sua atenção como uma obsessão e estranha isso. Aos poucos se dá conta que o recém-
promovido tinha se tornado o seu depositário de qualquer esperança e acha graça.

O árbitro apita, vai começar o jogo e quem vai dar a saída é o time da casa. “Aquele que toca na
bola estava em 2010”, relembra e refuta. O professor falou para segurar os primeiros quinze minutos no
vestiário. O time teria que se concentrar em ter posse de bola, igual ao mágico Barcelona. Os adversários
estão no ataque. Um belo drible e bola cruzada na área. “Vai, menino!”

GOOOL!

Era o primeiro lance do estreante, a primeira vez que ia tocar a bola como profissional. Deu um
cabeceio certeiro contra a própria meta, sem chances para o goleiro. Menos de um minuto de jogo e já
estavam perdendo.

Pensa no que a torcida poderia fazer. Pensa nos adversários e nas piadas que farão amanhã.
Pensa no arquirrival da capital. Pensa no último jogo, era contra o time de 2010. Lembra que quis ser
vendido na primeira oportunidade e assim conseguiu, mesmo com a torcida querendo que ele continuasse
no time do litoral. Foi jogar na Alemanha, um sonho! Foi para o time ocupar a vaga de um dos craques da
Copa, que decidiu ir jogar no Real Madrid. Foi para ser coadjuvante também, mas era a Europa, bastava.
Lembra que começou bem, mas aos poucos foi amargurando o banco de reservas e de lá não saía. Acha
melhor pensar em outra coisa. O apito de recomeço do jogo veio em boa hora.

Parecia uma daquelas noites em que as coisas simplesmente não dariam certo. A bola não ficava
em posse do time, enquanto os donos da casa se exibiam com facilidade. Estavam perdendo todas as
segundas bolas, era impressionante. Ficava se perguntando o que poderia ser feito para mudar o esquema
de jogo. Nem dez minutos de jogo e mal tocavam na bola! Uma jogada de ataque do adversário e o lance
é mal cortado. Posse dos donos da casa novamente. Um passe de calcanhar e o atacante está diante do
goleiro.

GOOOL!

Olhou para a torcida e viu um senhor gordo e careca com as mãos na cabeça, incrédulo. A
camisa que usava devia ter uns dez anos. Era do tempo de quando era menino, ainda na base do time do
litoral. Era um tipo comum, se fosse ao shopping iria encontrar vários assim por lá. Pensou que talvez
tenha dado alegria a esse torcedor quando foi contratado, em 2012. Vinha para ser, enfim, um dos
protagonistas. Ficou imerso nos pensamentos que quase não percebeu quando uma bola colocava o
adversário cara a cara com o goleiro.

GOOOL!
Menos de quinze minutos de jogo e já estavam perdendo por 3x0. Teve a absoluta certeza que
iria apanhar dos torcedores na saída do campo. Imaginou que teria invasão e o cenário seria catastrófico.
Só falariam disso amanhã no Sportv, na Globo e na ESPN. Começou a temer que lhe dessem uma
pancada na perna e que voltasse a ficar machucado. Foram seis meses de agonia e longe do campo. Veio
para trazer alegria e, duas semanas depois, foi parar no departamento médico. Tinha medo de virar
chinelinho.

O professor resolveu mudar, coisa rara de se acontecer no primeiro tempo, mas a situação era
desesperadora. O medo da goleada era maior que a confiança própria. O meio-campo estava ficando mais
forte à medida que o adversário recuava, acusando sua condição de time pequeno. O time da capital
avançava. Eles eram os grandes, aquilo havia de ser corrigido. “Se a técnica falha, tem que ser na raça.
Tem que se atirar na bola!”

GOOOL!

Não há tempo para comemorar, ainda faltam dois gols para o empate. Vestido de experiência, vai
até o gol e pega a bola com as mãos, levando-a para o meio-campo. Qualquer segundo é importante, o
relógio é inimigo. Acha que agora era a hora de pressionar. Imagina que os adversários vão ficar ainda
mais recuados.

O time realmente parece estar se encontrando em campo. A torcida reascende a chama da


esperança. “Mais um gol ainda nesse tempo e temos todo o segundo para empatar”. A vitória é um plano
distante, sabia que viviam no limiar da mediocridade. Falta coragem. Um chute, um desvio, uma falta
besta, nada disso surgia. Os deuses do futebol protegem os filhos maiores. Se perguntava onde estavam
eles quando o sujeito que veio do banco virou e chutou de fora da área.

GOOOL!

Agora só faltava um. Imaginava que esse jogo ia fazer história. “Vamos virar!” Os mesmos
Sportv, Globo e ESPN iriam anunciar a partida heroica. Especula que ia ser entrevistado pelo Tiago
Leifert e que ele faria brincadeiras e elogiaria o seu futebol. Lembrou-se de 2010 e de que gostaria que
isso tivesse acontecido já naquela época, mas estava resignado. Faltava um gol. Agora acreditava no time.
Nem se preocupou com a comemoração demorada do companheiro. Ele homenageava o filho, há de se
respeitar.

Bola no campo de defesa novamente. “É só cercar, com calma.” Falta. Vai para a barreira ouvir
as ordens do goleiro. Pula da direita para a esquerda, apreensivo. Posiciona-se no centro enquanto olha
para frente imaginando o contra-ataque ideal, fulminante, que empataria o jogo. O juiz apita.

GOOOL!

4x2. É 2012 de novo. Lembra-se do cobrador oficial de faltas e de quantos jogos ele salvou. Está
agora no time de 2010, com o menino que sorri e usa moicano. Recorda-se como tudo era simples em
2010 e de como foi fracassar em 2012. Série B, segunda divisão... Uma vergonha na carreira pessoal e do
time. Respira fundo e calcula que o ano será difícil, de reestruturação. Pondera que é preciso ter
paciência. Falta calma...
GOOOL!

Não tinha nem se recuperado do choque e os adversários ampliaram. Tomar cinco gols é
desumano. Já são sete só no primeiro tempo e a derrota já é uma realidade. Não acredita mais no milagre
nem que os deuses do futebol irão interferir a favor do filho alviverde. Enquanto imagina as manchetes do
vexame no dia seguinte, uma bola longa faz seus companheiros correrem atrás de um adversário, sem
sucesso. Uma finta na área e o zagueiro já era.

GOOOL!

Seis gols em um tempo, parecia jogo de várzea. Nem no rachão isso acontecia! Não havia mais
energia vital quando o juiz apitou o fim do primeiro tempo. Olhou desconsolado para o banco e não viu
rostos conhecidos. Não viu ninguém usando a mesma camisa que ele, só repórteres armados com seus
microfones e com a pergunta óbvia e inevitável que estava por vir.

Foi para o vestiário anestesiado. Não havia o que se dizer no intervalo, nenhuma preleção seria
milagrosa. Pensa que diminuir a diferença do placar pode ser algo nobre. Pensa na diretoria. É 2013, mas
2012 ainda não acabou. Se pergunta como deixaram o argentino ir embora. Imagina que as coisas seriam
mais simples com ele em campo. Em 2012 eram, bastava tocar para ele que o gringo resolvia. Não como
o menino de 2010...

Começa o segundo tempo e era melhor que ele nem existisse. Queria implorar para que o capitão
adversário tivesse piedade, mas temia que sua carreira chegasse ao fim se isso acontecesse. O corpo
estava em campo, mas a cabeça viajava pela cronologia. Passado, presente e futuro são uma coisa só.
Especula se vai conseguir uma transferência na janela de meio do ano. Volta no tempo e se imagina de
novo no time de 2010. Só isso salvaria 2013. Acha melhor pensar em outra coisa. Não consegue.

O jogo se arrasta, interminável. A torcida começa a vaiar. Um por um, nenhum jogador que foi
rebaixado escapa. Xingam seu nome. Não acha justo. Tenta um chute, mas o goleiro defende. Não se
conforma que foi hostilizado pela torcida. Tenta recuperar o foco, há uma falta para bater. Chuta. Na
trave! A torcida vai embora antes do fim da partida enquanto o time da casa toca na bola aos gritos de
“olé”.

Não há mais tempo, o jogo acaba. Os adversários comemoram como se fosse um título. Fizeram
história. Mas não é isso que lhe pesa na cabeça. É hora de enfrentar a vergonha, a torcida, os repórteres, o
ônibus e a viagem de volta. Esta já estava definida antes de começar o jogo, iria acontecer imediatamente
após o término da partida. Pensa que isso é a prova de falta de confiança. Pensa que estão certos em fazer
isso. Acha melhor pensar em outra coisa. Não consegue.

O trajeto do ônibus é interminável. Quer chegar em casa, tentar dormir, fugir. Tenta escapar com
o celular, mas a bateria acaba. O mundo real grita, dribla o escapismo. Mais uma derrota no dia.

Passa os olhos pelos colegas desolados, buscando alguma coisa que nem mesmo sabe. Hoje não
há pagode nem resenha. O jovem estreante está no fundo do ônibus, sentado sozinho. Chora alto, como
uma criança, e repete:

- Acabou! Acabou pra mim! Nunca mais!


Não quer, mas acaba concordando com o grito desesperado. Sabe que a carreira do colega ficará
marcada para sempre, assim como a do professor, no primeiro banco. Ele está em silêncio, atônito, sua
cabeça está em jogo e todos sabem disso.

Procura outro lugar para olhar. A janela não é opção, não aguenta encarar o próprio reflexo.
Espia um parça vendo novela no tablet. Uma jovem atriz muito bonita aparece, fazendo papel de uma
periguete. É 2010 de novo, mas está em 2013 e não sabe qual lembrança inesquecível doerá mais: o
sucesso do passado, que servirá como parâmetro eterno, ou o vexame dessa noite.

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