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osio72017 ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Heat ‘Google Docs Aula 3: Tépicos sobre Marx, Freud e Hegel Encontro passado nés falamos sobre o "espago tedrico” do Zizek. Discutimos um pouco 0 modo como a psicanalise, o marxismo e a filosofia se articulam, falamos sobre a cultura popular e a importéncia dos exemplos na obra zizekiana, e depois eu apresentei seis conceitos construidos dentro desse espago conceitual. Os conceitos de “fantasia ideolégica’ e de ‘sujeito suposto crer", depois os conceitos de “ontologia inconsistente” e do “real como aparéncia", e pra completar a ideia da “superidentificagao” o problema do “dia depois” Hoje a ideia é a gente dar um passo atras e falar sobre cada um dos trés "componentes” desse espago - a psicandlise, 0 marxismo e a filosofia - e ver como que o Zizek entende cada um deles. Ou seja, a pergunta do dia é: quem séo Marx, Freud e Hegel do Zizek? Para dar uma ideia de por onde iria a resposta, hoje a gente vai estudar "Tépicos sobre Marx, Freud @ Hegel’. "Tépicos" quer dizer: rapidas pinceladas que ajudem a gente a entender quem & quem. Entdo, seguindo a ordem proposta pelo proprio Zizek, no prefacio que discutimos encontro passado, vamos comegar pela psicanalise, para ir entdo para a filosofia e por fim para a politica, 4, Freud e Lacan (a) Mais Lacan que Freud Para comego de conversa, o Freud do Zizek é, acima de tudo, o Freud do Lacan. O que isso quer dizer? La no primeiro encontro eu mencionei que o Freud investigava a constituigao e o funcionamento do aparato psiquico - a maneira como a gente se torna um individuo, com corpo que a gente reconhece como nosso, com uma certa forma de se entender, etc. Pois bem existem diferentes manciras de entender a proposta do Freud. Alguns vao tirar dai uma teoria normativa: j4 que a gente nao nasce pronto, ¢ temos que fazer um percurso até constituirmos um senso de si, ent&o existe um caminho certo e um errado - um modo normal de constituigéo e varias maneiras de desviar do caminho. Se a gente entende o Freud assim, entao a clinica vira um processo ortopédico: a pessoa vem com um problema, a gente tenta entender o que deu errado na histéria dela e "retificar" na medida do possivel © Lacan foi muito importante porque essa nao era a posicdo dele. Ele mostrou duas coisas essenciais na obra do Freud: primeiro, que o fato que hd uma histéria da constituigao de cada um de nés significa também que nao existe um caminho correto, ou menos patolégico que 08 outros. A neurose ou a psicose, a heterossexualidade ou a homossexualidade - todas sao respostas patolégicas, no sentido de que nenhuma delas é um caminho garantido ou mais auténtico, E segundo, ele mostrou que as intervengées clinicas no sao ortopédicas, nao devem visar corrigir ninguém, mas tornar possivel a pessoa se servir dos seus defeitos limitagées. Esse segundo ponto é realmente essencial: para Lacan, as experiéncias em que a hitps:ildocs.goole.com/documenUi13/CzIXHVnWIykWBFHOO!mKVpHn_VNSQB7KSiIcHozC8Iedt osio72017 hitpssiidoes. ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Heat ‘Google Docs gente se sente fora de si ou nao consegue se reconhecer sdo aquelas que realmente atestam a nossa histéria singular, de modo que a nossa identidade é que esta subordinada a essas experiéncias de alteridade. Com isso ele inverte a ordem: © que é “outro” em mim tem precedéncia e centralidade sobre o que é “eu” em mim. A psicandlise, para o Zizek, ¢ Principalmente essa pratica centrada sobre a alteridade do sujeito (b) Pulsao de morte Isso nos traz ao conceito central que a psicandlise lacaniana pega do Freud, que é 0 de pulséo de morte. A gente costuma ouvir que a psicandlise tem a ver com os desejos inconscientes, com aquilo que a gente quer, mas ndo sabe que quer. E, de fato, se a gente segue o fio disso que "6 outro” na gente, essas coisas que néo sabemos porque fazemos, muitas vezes descobrimos que, por conta de nossa histéria, nosso desejo nao “cabe" na nossa identidade. A gente gosta de pensar que é assim ou assado, mas temos desejos que contradizem isso. Mas 0 negécio é que o Lacan faz questao de mostrar que o Freud nao parou ai: além de mostrar que a maneira como a gente se constitui, com todos os percalgos dificuldades, cria essa disjungo entre quem achamos que somos e 0 que desejamos, Freud também teorizou que essa operagao deixa um “resto”, elementos que nao cabem nem na nossa identidade nem no nosso desejo Um jeito de entender esse excesso & pensar na impedancia de um cabo eléttico, a resisténcia interna a algo que era pra ser s6 um meio de comunicagdo: era pra s6 passar a energia pelo cabo, mas na hora que a gente liga na tomada, dependendo de como ¢ 0 cabo, ele resiste & passagem da corrente elétrica e essa resisténcia vai gastando energia, que vira calor e 0 cabo esquenta. E uma metéfora precéria, mas serve pra gente entender que isso que o Freud comegou a investigar, e que 6 um tipo de “excitagdo” ou satisfagéo que nao respeita a finalidade dos processos, que faz 0 meio ou a mediagao - as representagées - ganharem vida prépria. A gente ligou 0 cabo na tomada pra acender o filamento de uma lémpada - mas 0 cabo, que nao serve pra nada, comega a esquentar © aquecer também. A gente quer falar sobre alguma coisa, mas as palavras comegam a aquecer - era pra dizer isso, mas dizemos aquilo, era pra usar essa palavra, mas usamos aquela, ou ndo conseguimos falar de algo sem “nos esquentar", Ou ainda a gente t4 com fome, comega a comer - daqui a pouico estamos estufados ja, mas nao conseguimos parar de comer, até o ponto de enjoar, © que o Freud estava tentando entender é essa experiéncia estranha, em que os meios parece que ganham vida - a atividade de comer se separa do objetivo de nés nos alimentarmos, ¢ 0 objetivo, matar a fome, vira uma desculpa pra gente se empanturrar. Quando essa inversao acontece, a gente ndo sente prazer necessariamente - pode ser uma coisa muito dolorosa inclusive, mas 0 que 0 Freud percebeu é que algo se satisfaz nessas experiéncias, ¢ essa “coisa” que se satisfaz ele chamou de pulséo. O que o Lacan faz é pegar essa ideia da pulsao e falar: al uma satisfagao que é diferente nao s6 da minha identidade, mas até mesmo do meu desejo - ela é outra até daquilo que é “outro” em mim. E foi se baseando nisso que ele conseguiu reconstruir a psicandlise como um procedimento verdadeiramente baseado na sgoogle.comdocumentid/13{Cz1KHVAWiykWBFHOO}mKVpHn_VNSOS7KSIicHezC8iedit 218 osio72017 hitpssiidoes. ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Heat ‘Google Docs alteridade, © ndo $6 na ideia de um “eu ocullo” ou “inconsciente", Quando a gente se orienta por reconhecer a satisfacao pulsional na clinica, fica muito mais claro como que o desejo de cada um responde a um encontro realmente singular e contingente com essa dimenséo ‘energética” - e traumética - da vida psiquica. (c) 0 Lacan do Zizek Entéo, por um lado, o Zizek encontra no Lacan uma psicandlise compativel com o materialismo, jé que o Lacan pega do Freud a visdo contingente e histérica da constituigao do individuo, a centralidade da alteridade - tanto social quanto natural - nesse processo, a suspensdo de qualquer normatividade ideal e tal. E, mais importante, ele encontra no Lacan uma teoria que, ao mesmo tempo que admite tudo isso, consegue manter a ideia de sujeito e subjetividade, justamente porque Lacan atrelou a indeterminagdo do sujeito a essas experiéncias da pulsao, que sao impossiveis de antecipar. Mas, por outro lado, 0 Zizek também faz uma leitura particular do Lacan, e que também tem a ver com a pulséo de morte, No Freud, a pulséo de morte tem esse nome porque seria um tipo de satisfagéo que tende a transformar tudo em "coisa": 0 cabo era um conduite, mas passa a contar como uma coisa em si quanto mais ele esquenta né? Um outro exemplo bom é o de ficar repetindo uma palavra varias vezes, até ela perder o sentido: o meio, a palavra, vai virando uma "coisa’, quase que sé um som, 2 medida em que perde sentido. A pulsdo de morte seria "mortificante” No Lacan, isso muda um pouco, porque ele coloca a satisfagao pulsional no centro da subjetividade - pra dar um spoiler: é justamente quando os outros se satisfazem com a gente desse jeito ai que a gente vira uma "coisa", ou seja, nosso corpo tem substancia, Por conta disso, a pulso ndo tem tanto esse ar de "mortificar", mas ndo deixa de ser “mortifera", de atrapalhar nossa identidade e nossa forma de desejar. © que o Zizek vai criticar é que o Lacan continua associando a pulsao a finitude: se existe pulsdo, entdo toda identidade é finita, todo desejo deixa algo de fora. A existéncia da pulsao é um jeito de lembrar: 6, eu sei que voc8 quer tratar esse cabo como se ele fosse s6 um conduite perfeito, mas ele também é material, ele também oferece resisténcia e gasta energia - a pulsdo ndo deixa a gente ser idealista em relagdo as representagées: as palavras so sons ou escritos, também estéo sujeitas contingéncia e tal. Mas o Lacan fica por ai, ele usa a pulsao pra criticar as visées idealistas da linguagem, da subjetividade e do desejo, Mas 0 Zizek acha que isso no é o suficiente: porque a pulséo ela nao é s6 mortificante ou mortifera, ela “da vida" para as representages e mediagdes. Para ele, a pulsdo tem menos a ver com a finitude do que com a infinitude. Menos com a finitude de quem eu sou - jé que ela atrapalha a minha identidade e atrapalha a realizagéo do meu desejo - e mais com o fato de que tanto a minha identidade quanto o meu desejo existem. E tudo o que existe té sujeito a essa negatividade ou inquietude. Por isso que eu escolhi o exemplo da impedancia do cabo: 6 verdade: quando 0 cabo esquenta e derrete até o plastico, é um perigo, e a gente pode ficar muito frustrado com o fato de que nossos planos de usar a torradeira foram por agua sgoogle.comdocumentid/13{Cz1KHVAWiykWBFHOO}mKVpHn_VNSOS7KSIicHezC8iedit 318 osio72017 hitpssiidoes. ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Heat ‘Google Docs abaixo, mas o que essa situagdo mostra é antes que 0 cabo ta ai na realidade, ele 6 materiale ele é também afetével. As mediagdes sao reais - vamos resumir assim Isso é essencial para o Zizek, porque ele est4 muito interessado na ideia - muito importante para o Hegel - que as mediagées podem ganhar vida propria. Essa ¢ inclusive uma definigao possivel da dialética, como vamos falar daqui a pouco. Mas, no caso da psicandlise, o que define a leitura que 0 Zizek faz do Lacan é essa aposta de que a pulsdo ndo ¢ tanto "de mort - 14 mais para uma coisa de "morto-vivo": aquilo que era pra desaparecer e ficar enterrado de repente ganha vida prépria e sai por ai. Quando a gente pensa assim, uma coisa essencial muda: as experiéncias de fracasso da identidade, os momentos em que 0 desejo encontra um percalgo, so - como o Lacan sugere - experiéncias muito singulares na vida de cada um, mas, do ponto de vista do Zizek, também sao experiéncias daquilo que ha de mais universal: a inquietude ou inconsisténcia em separar o que S40 meios e 0 que sao fins, o que so representagdes e 0 que s40 as coisas. Ou sea, ele baseia na pulsdo, e nao na identidade ‘ou no desejo de cada um, uma teoria materialista do universal. 2. Hegel (a) Dialética e mediagao Bem, com esse pano de fundo, fica mais facil entender porque o Zizek diz que, a partir do Lacan, podemos "salvar" o Hegel. Porque, para ele, essa teoria da negatividade, de como os processos descarrilham por conta da vida prépria que as mediacées ganham por conta de sua existéncia, é justamente o que define a dialética hegeliana. Vou dar um exemplo aqui. E 0 primeiro capitulo da Fenomenologia do Espirito, onde o Hegel vai discutir a "certeza sensiver’ Ele comega dizendo: a gente costuma achar que a filosofia 6 essa coisa abstrata que quer falar de tudo de uma vez 86, € que por isso deixa de fora a riqueza da vida, das coisas tomadas em sua singularidade. O filésofo quer falar do universal, mas o que importa & 0 aqui e 0 agora, as coisas em sua concretude. Ai o Hegel safadamente pergunta o seguinte: mas essas palavras que estamos usando pra falar do que mais real ¢ mais singular - aqui, agora, isso.. - nao justamente as palavras que descrevem as coisas mais abstratas? Todo instante é “agora”, todo lugar é "aqui", toda coisa é “isso” - a gente achou que estava criticando o universal em nome da singularidade, mas acabou que estavamos falando das coisas mais universais que tem: tudo é singular, falar em singularidade néo é dizer nada... de singular! Entéo 0 caminho que tomamos para falar das coisas sem mediagées abstratas acabou se revelando 0 jeito mais abstrato de falar. E ai o Hegel pega esse desvio ¢ fala: pois bem, vamos entao investigar essa mediagdo - essa universalidade que surgiu sem querer - e ver no que dé. E assim comega a Fenomenologia. (© que 0 Zizek faz é dizer: se a gente reconheceu que, no Lacan, a pulsao é uma negatividade sgoogle.comdocumentid/13{Cz1KHVAWiykWBFHOO}mKVpHn_VNSOS7KSIicHezC8iedit 48 osio72017 hitpssiidoes. ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Heat ‘Google Docs que da vida propria as representagées, transforma elas em “coisa”, entao a gente pode também ler a dialética assim, reconhecendo que essa ¢ a légica geral da filosofia do Hegel. A gente comega querendo ir para algum lugar, ai o meio que deveria levar a gente até ld ganha uma certa autonomia, uma vida préptia, e no fim das contas ¢ ele que é esta mais imerso na realidade, enquanto tanto nosso objetivo imediato quanto onde queriamos chegar que eram abstragées. (b) Identidade especulativa Iss0 nos traz a um segundo conceito fundamental da leitura zizekiana do Hegel, que 6 0 problema da identidade especulativa - por exemplo, a identidade entre a mediagao abstrata ¢ © real, que a gente acabou de ver. Como que a representagao pode acabar sendo uma coisa? Mesmo grandes leitores de Hegel como o Adomo tendem a abandonar esse ponto do Hegel Por conta do seguinte: se a gente reconhece que a propria existéncia é inconsistente, que a materialidade das coisas ¢ 0 que faz elas ndo ficarem "no seu lugar", atrapalhando 0 uso instrumental que queremos fazer das representagSes e das mediagGes, entao existem pelo menos duas maneiras de seguir a partir dai: a gente pode tecer um elogio da negatividade, dizer que tudo 0 que quer ser idéntico a si mesmo ou funcional é uma ilusdo ou mistificagao, ¢ 86 as coisas que mostram a dilaceragao ou o impasse é que s4o verdadeiras, ou a gente pode passar a apreciar ainda mais as coisas que funcionam justamente porque sabemos que o pano de fundo delas 6 essa bagunga generalizada. E aqui que, filosoficamente, 0 Zizek se separa do Adomo: para o Zizek, é justamente porque a negatividade é impossivel de escapar que, quando encontramos um fiapo de identidade que sobrevive a essa inquietagdo, ou que se alimenta dela, é quase um milagre, Nisso ele parece muito um filésofo inglés, chamado Chesterton, que dizia que um trem chegar na estagao no hordrio marcado uma vitéria contra © universo - tudo no mundo é contingente e imprevisivel, precério e inquieto, entao uma coisa que chega no seu destino, que atravessa essa negatividade no é "menos" real, mas pelo contrério, é uma prova de que o negativo ¢ tdo inquieto, mas tao inquieto, que ele pode trair até a si mesmo e oriar alguma ordem. Para muitos filésofos, recuperar o Hegel significa abandonar o tema da identidade - para Zizek no: ele acha que a teoria do Hegel ¢ justamente uma aposta que a identidade é a forma de apresentagéo da negatividade, Ou, como o Chesterton diz, que a ordem & a maior das desordens, ¢ a lei o maior dos crimes. O que o Hegel chama de "identidade especulativa é essa afirmagao de que a identidade é a forma com que a negalividade se apresenta, néo é meramente 0 seu oposto. E uma ideia complicada, mas tem muito a ver com aquilo que falamos sobre 0 sujeito suposto crer, da ultima vez: quando precisamos ficar lembrando os outros de que a ordem uma iluséo e que o mundo 6 uma desordem.. Quem que estamos tentando convencer? Se todo mundo lida o tempo todo com a desordem, pra que que serve ficar marcando isso, desmascarando a violéncia e 0 caos que é 0 pano de fundo das coisas? Para o Zizek, esse elogio constante da negatividade como nao-dentidade esconde um desejo de burlar o problema, que nem quem vé filme de terror falando e atrapalhando todo mundo dizendo que "é sé um filme": todo mundo sabe que é sé um filme - no fundo a pessoa sgoogle.comdocumentid/13{Cz1KHVAWiykWBFHOO}mKVpHn_VNSOS7KSIicHezC8iedit se osio72017 hitpssiidoes. ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Heat ‘Google Docs quer 6 evitar de tomar um susto, E quem permite se perder no filme e se identificar com os personagens e a estéria que, na sua posigao, estd assumindo que aquilo é tudo ilusdio. Quem fica enunciando que iluso normalmente acredita tanto na ilusdo que tem que se proteger dela, Na psicandlise a gente vé isso também: a pessoa jé diz de saida que nada tem sentido, justamente pra se proteger das situagdes em que a falta de sentido poderia cortar o barato da pessoa. (c) Contradigées e conflito Isso traz a gente ao terceiro ponto que eu queria falar sobre Hegel, que ¢ a confusdo que a gente faz entre conflito e contradigao. O Hegel ndo ¢ mesmo um pensador do conflto - ele no acha que na base as coisas estéo sempre lutando com outras coisas, ele acha que, no seu nivel mais fundamental, as coisas estdo lutando com si mesmas. Isso & muito importante, Porque significa que 0 conflito pro Hegel é sempre secundario, nunca fundamental. Mas isso no é porque antes do conflito as coisas estéo na paz - pelo contrario: para o Hegel os conflitos sao uma maneira de fixar a contradicao, de tornd-la manejavel. E por isso também que a passagem de um momento ldgico para 0 outro nao é exatamente um avango, tanto quanto uma nova diviséo da contradicdo em outros termos. No caso que mencionei, do comego da Fenomenologia, quando a gente percebe que ha uma contradigdo na ideia de singularidade - ela visa o mais concreto, mas 6 a ideia mais abstrata - 0 que nos permite dar um passo a frente ndo é superar essa contradigao, mas aceitar que o contraditério no é um erro, mas algo que esta ai na realidade - por isso que o capitulo seguinte chama Percepgao ou a coisa e a iluséo": primeiro a gente achou que falar do abstrato era coisa de filésofo, mas agora que vimos que nem nés conseguimos evitar isso, temos que nos perguntar © que 6 que, dentro da realidade, faz a gente "errar” a coisa que queriamos aprender @ acabar falando em abstragdes? E um problema novo, o problema da diferenga entre a coisa ¢ a nossa percepedo dela, mas um problema que re-divide a contradi¢ao entre singular e universal e "fixa” ela em uma nova oposigdo. 3. Marx Esse tema da contradigao nos traz, finalmente, ao Marx. A gente jé discutiu encontro passado alguns dos conceitos politicos do Zizek: a teoria da ideologia, a ideia de superidentificagao, etc. Entao vou pular um pouco essa parte, que podemos discutir no forum e no video de respostas, e focar em dois aspectos sobre o Marx do Zizek menos comentados. (a) Base, superestrutura Todo mundo que leu os manuais marxistas conhece a famosa metéfora da base e da superestrutura. A idela é que a base é a economia politica, definida pela contradi¢ao entre as forgas produtivas e as relagdes de produgdo, e a superestrutura é aquele aparato juridico, cultural, subjetivo - em suma, ideolégico - que ajuda a manter a contradigo econémica mais ou sgoogle.comdocumentid/13{Cz1KHVAWiykWBFHOO}mKVpHn_VNSOS7KSIicHezC8iedit osio72017 hitpssiidoes. ‘Tépicos sobre Marx, Freud 8 Hage ‘Google Docs menos estavel. No marxismo muito grosseiro, a gente diz que a economia determina a superestrutura, isso &, que no fim das contas 0 problema - e a solugao - séo sempre do campo do confito entre trabalho e capital, e que toda a realidade deve ser lida nessa chave. No marxismo um pouco menos grosseiro, a gente diz que a superestrutura tem uma “autonomia relativa" da base: a cultura, o estado, a subjetividade, teria uma certa lazeira - pode tanto ajudar a reforgar processos de luta quanto pode também ser meio indiferente a esse processo. No marxismo totalmente pés-modemo, a gente mistura tudo de uma vez: nao existe base, o campo do trabalho 6 um campo como outro qualquer, a luta de classes é uma luta como outra qualquer. Uma coisa interessante no Marx do Zizek é que ele néo é nenhum desses: nem economicista, nem gramsciniano, nem pés-moderno. E a razdo pra isso tem tudo a ver com © que a gente viu até agora, tanto no encontro de hoje quanto no encontro passado. Para 0 Zizek, a relagao entre as condigées de produgao e a légica do resultado nao é garantida’ ninguém tem controle absoluto sobre se uma dada coisa vai servir 4 sua finalidade, Um exemplo essencial para 0 Zizek & 0 cinema: & claro que Hollywood & uma industria como qualquer outra, submetida as leis do mercado, as formas de exploragao do trabalho, etc. Mas isso nao impede que os produtos da industria cultural - meros meios de fazer dinheiro - se desviem de sua fungdo, tal como as representagSes para Freud ou as mediagdes para Hegel, € acabem servindo outra fungéo que nao, ou nao apenas, a de fazer grana pro esttidio. Esse exemplo 6 importante porque ele ajuda a gente a entender a diferenca entre a “autonomia relativa" da superestrutura, que é uma proposta do Althusser, ¢ a ideia da “autonomizagao' das mediagées, que é a proposta do marxismo zizekiano. Autonomia relativa quer dizer: a légica cultural é determinada pela economia, mas nem tanto assim, ela tem um certo espago de manobra. Autonomizagao € outra coisa: quer dizer que, mesmo que toda a produgao da cultura se dé dentro de uma certa légica econémica, ao ser produzida a cultura cria seus préprios pressupostos. E como se as criaturas pudessem ganhar vida propria e as vezes entrar em contradigo com seus criadores. Pensar 0 capitalismo desde a autonomia relativa da superestrutura significa ja antecipar que todo processo de subjetivagao, tudo o que nos cativa e que tem sua origem no capitalismo, vai por necessidade servir ao capitalismo. Pensar o capitalismo desde a autonomizagéo significa que néo s6 nés somos impotentes para evitar nos subjetivar através da cultura capitalist, como o préprio capitalismo é impotente para impedir que essa subjetividade possa ser anti-capitalista. (b) Capitalismo e barbarie Mas isso tem outro lado. Porque se a autonomizagao uma forma dos meios se separarem de sua origem e ganharem vida prépria, entéo nada garante que exista uma regulagao entre as formas sociais que o capitalismo vai ganhando e os melos de sua reprodugao indefinida, Voltando ta na tipologia que mencionei, se o marxismo bem grosseiro acha que as contradigdes do capitalismo vo levar necessariamente ao comunismo, e se o marxismo menos grosseiro sgoogle.comidacumenti13{Cz1KHVaWiyRWBFHSOjmKVpHn_VNSQS7KSiicHbzC8ledt 718 osio72017 ‘Tépicos sobre Marx, Freud @ Hagel - Google Docs acha que essas contradigées podem durar pra sempre, porque 0 capilalismo vai se auto-regulando para sempre superar suas crises - podemos adicionar: e se 0 marxismo pés-moderno acha que nem existe capitalismo - 0 marxismo zizekiano defende que essa tendéncia a autonomizagao das formas capitalistas pode levar o capitalismo a entrar numa contradi¢éo consigo mesmo de tal maneira que simplesmente haja um colapso do planeta. Uma exaustéo cega dos recursos naturais e humanos que no nos permitiria nem ir automaticamente para algo melhor, nem ficar no "menos pior’ - mas nos levaria direto para a barbarie e a catastrofe. Bem, esse final sobre o Marx ficou um pouico mais reduzido, mas é também porque cobrimos um pouco 0 assunto no video anterior. Mas 0 forum esta ai e eu posso desenvolver mais 0 assunto no video com as respostas da semana. Entao até mais! hitps:ildocs.goole.com/documenUi13/CzIXHVnWIykWBFHOO!mKVpHn_VNSQB7KSiIcHozC8Iedt a8

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