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|. Putin de um eto poaccoeid de Wrno AGORIANIDADE: | «di. yeas cat ETT OU ee cere een Se a ETNOGRAFIA (1880-1940) ! | scram corpo procure de un rst lets para ts Ages Een eno de ditentes epee Gianrivn nat pla eager aes Ss eosin aoa on aa Conny esa uns cntsw pos den Cenjunts do sees sobre po, bre aa titre afr Prceen Su oe, are Sone prc nesters ens ‘sce pri apes cltilade doy urea enogenesogs 0 piclgi Jotio Leat | ies ea bjeconi cocaltra pois ee Vitorino Nemésio e Le Mythe de Monsieur Queimado hy Mythe de Monsieur Queimado é um texto relativamente pouco conhecido de Vitorino Nemésio, escrito em francés em 1940, aquando da estada de Nemésio em Franca, onde ensinou durante algum tempo historia da literatura portuguesa. O texto — que nao deixa de evocar alguns escritos de Jorge Luis Borges ou de Bruce Chatwin — é a narrativa do encontro, durante uma viagem aos Acores, entre um jovem viajante — Nemésio ele mesmo — e Monsieur Queimado — um heterénimo de Nemésio, “travestido” em naturalista e baptizado com uma das designac6es populares (queimado) dada nos Acores a0 milhafre (a ave que, tendo sido confundida pelos primeiros descobridores com © acor, esteve na origem da designacao dada ao atquipélago). O encontro entre o narrador e Monsieur Queimado — “un jeune homme. naif” (Nemésio 1986a: 404), “beaucoup plus poéte qu’homme de science” (id.: 406) — comeca por ter lugar num barco que circula entre as ilhas — “un de ces petits paquebots qui font la croisi@re des Acores en ancrant le soir dans une fle pour repartir le lendemain en quéte d’une autre” (id.: 404) — e prossegue depois na Terceira, terra natal de Nemésio. No seu decurso, Monsieur Queimado, ao mesmo tempo que vai comentando a paisagem, o solo, a flora e a fauna acorianas — acentuando sempre as suas particularidades — desenvolve uma teoria sobre a peculiaridade do Homo agorensis baseada numa conviction purement vitale e arbitraire sur la singularité tellurique de son pays et, par 1é, sur Iisollement farouche et présomptueux de sa nature. [..] L'idée dune Atlantide engloutie dans les eaux, dont les Acores, les Canaries, Madre et Cap Vert n’eussent été que les sommets d'une cordilligre affaissé, le mettait * Uma verso relativamentepreliminar dese texto fi apresentada no mbit do mestade em “Antropologi: Patiménios €e ldentidades” (SCTE, 1996/97). Aradeco a tres os participants no mestado e, em particu, a0 Daniel Seabra Lopes que tevea seu cargo a ingata miss de comantar "no escuro” dois txtos de Vitoino Nemésio — as interogayies¢ sugestesformladas O Joaguim Pais de Brito eo AntSnio Medirstveram, pelo seul, a paciencia deere comestat a versio pre-final do artigo. opis, Vol 1, 1957 p12 | JOY Joao Leal en colére, car elle ruinait la possibilité d’une structure agoréenne autonome et Je mythe de homme agoréen sans ancétres, le mythe de Monsieur Queimado (id. 406). Ora bem: mais para além do seu valor propriamente literério ?, Le Mythe de Monsieur Queimado pode ser encarado como a expresso, no quadro de um registo literério dotado de alguma especificidade, de uma constante nao apenas da produgao de Nemésio, mas de um conjunto significativo de outros intelectuais agorianos do periodo que medeia entre 1880 e 1940: 0 estabelecimento dos factos © argumentos susceptiveis de fundar os Acores como um espaco marcado pela peculiaridade e pela diferenca. Nesse sentido, uma parte significativa da histéria intelectual dos Agores pode ser vista como uma sucessao de varios “mitos de Monsieur Queimado” que gradualmente vio “inventando” (Hobsbawm & Ranger 1983) ou “imaginando” (Anderson 1991) a identidade dos Acores. Sao alguns desses mitos — ou, para utilizar a terminologia proposta por James Fernandez, algumas dessas “narrativas de identidade provincial” (Fer- nandez 1994) — que este artigo se propée passar em revista. Neles, “Monsieur Queimado” muda varias vezes de nome: Arruda Furtado, Montalverne Sequeira ¢ Aristides da Mota, Luis Ribeiro e, claro, Vitorino Nemésio ele préprio. Essas mudangas de nome séo também acompanhadas por mudancas de espacos discursivos. Arruda Furtado, embora ocasional praticante da etnografia e da antropologia fisica, é um naturalista — como Monsieur Queimado. Montalverne Sequeira e Aristides da Mota, por seu turno, s4o politicos. Com Luis Ribeiro, vemo-nos confrontados com uma reflexio que, embora apoiada sobretudo na etnografia, se desenvolve também no espaco da historia e da intervencao politica. Vitorino Nemésio, por fim, fala a partir da literatura e do ensaismo de cunho literério. Apesar destas diferentes origens disciplinares, entretanto, todos estes autores partilham nao apenas 0 mesmo campo de preocupacées genéricas, mas também um certo mimero de constantes na maneira como lhes dao corpo. Assim, e em primeiro lugar, todos eles fazem sua uma aproximacao A identidade acoriana marcada pela centralidade dos temas da unidade e da diferenga. A afirmagao dos Acores como um espaco unitario envolve, pelo seu lado, a gestéo integradora dos factores de diferenciagio interna do arquipélago. Essa operacdo — dada a descontinuidade geogréfica dos Acores, a diversidade das suas culturas locais ¢ a inexisténcia, ao longo do perfodo considerado, de sentimentos generalizados de reconhecimento e identificagao com a realidade regional — é susceptivel de se revelar — como teremos ocasiao de ver — uma 2 Para uma aproximagio "Le Mythe de Monsieur Quimado" do ponto de vista dos estudositervis ef po exemplo, Piss 198, 5 Sto a este respeito extremamentesignficatvas at observagbes de Walker Connor em Whe is « Nation? (199). ‘Apoiando-se em dados referents as declragtes prestadas por emigranteseuropeus 8 sua ehegads aos EUA ene 1840 ¢ 1915, Connor escreve o seguinte acerca dos emigrantesportigueses “most cme from Azores and ether lands, Identity did not usually extend even to an archipelago but was inited to a specific island, Differences in segional accent wey quite great and there was ofen intense animosity among groupe” (Connor 199. $5). 192 | Acorianidade: Literatura, Politica, Btnografia (1880-1940) operagao delicada. Quanto a diferenga, ela tender4 a ser preferencialmente enunciada por referéncia ao todo nacional, num proceso marcado por um movimento de transformacao da distdncia geografica dos Acores em relagéo a0 continente — encarada “ressentidamente” (Cordeiro 1995: 278) e como uma desvantagem — numa distancia de natureza mais substancial em relacéo a resto do pais — vista, inversamente, como um trago positivo e assumido com orgulho. Interessados em fixar desta forma a identidade dos Acores, todos estes autores — em segundo lugar — irdo desenvolver a esse respeito uma argu- mentagdo que, pese embora as suas diferentes origens, converge em torno daquilo que poderiamos designar de uma “etnografia espontanea” dos Acores: um conjunto de assergdes de forte orientacao etnocultural em que conceitos ¢ ideias sobre 0 povo, sobre raizes étnicas e sobre cultura ocupam um lugar relevante. Sendo o objectivo comum afirmar a unidade e a diferenca dos Acores, a.cultura 6, nesse quadro, um argumento decisivo. Deste ponto de vista, 0 caso agoriano — apesar das suas particularidades — possui bastantes semelhancas com 0 caso do Quebec, analisado por Richard Handler (1988). De facto néo 86 a insisténcia na cultura é a mesma, como 0s discursos identitérios que a partir dela sao construidos podem ser vistos como situados a meio caminho entre a “ideologia” — neste caso a ideologia regionalista — e formulagdes de res- sonancia supostamente mais “cientifica”, nomeadamente de cunho etnografico ou antropolégico *. Essa “etnografia espontanea”, por fim, obedece a leit motifs eles proprios recorrentes e que apresentam fortes similitudes com aquilo que, no seu estudo classico sobre 0 nacionalismo, Anthony Smith classificou como © modelo etnogenealdgico de construgéo da nac&o (Smith 1991) 5, Embora numa escala diferente — a de uma regiao —, é de facto possivel detectar nos sucessivos “mitos de Monsieur Queimado” que passaremos em revista uma forma de pensar a identidade regional, a qual, 8 semelhanga das concepgdes etnogenea- lgicas referidas por Smith, valoriza os Acores como uma comunidade de descendéncia e como um corpo de natureza étnica, baseado em costumes populares proprios e numa maneira de ser distinta. A aplicacdo dese modelo pelos intelectuais agorianos reserva antes do mais um lugar importante A etnogenealogia no sentido mais estrito da palavra, isto €, a argumentos baseados na reconstituigéo de um pedigree étnico que seria préprio dos Acorianos e que seria responsdvel em grande medida pela sua identidade. E assenta, em segundo lugar, numa valorizacao muito forte da especificidade da psicologia étnica agoriana. Proprio dos Acores seria um tem- «Ente apecto etnocultural dos dscursos de identidade regional nos Agors tem sido sublinhado,ente ousos autores, pp Carlos Enes 1996) Calas Corder (1985). Como se sabe, Smith distingue o modelo etnogeneal6gioo do modelo cvicotersitoril da nagéo. Enquanto neste limo a nacho € vista esencalmente como uma comunidad baseada em eitrios de pertnga como oleittio ou © Aieito, no primeico caso 0 acento € posto em crtéros de naturezaetnocutural em que a descendéncla comum e & cestécia de uma cultura vernacular propria ocupam um lngar determinante. Esta dstingio retoma diereniagbes de sentido similar rcorrentes em diversos autores que tim escrito sobre nacionalsmo, 198 Joao Leat peramento, uma maneira de ser, um certo mimero de constantes de carécter, presentes em particular nas camadas populares, que distinguiriam de forma clara os Acorianos dos restantes cidadaos portugueses. Este peso da psicologia étnica na construgao dos Acores como um espaco identitério pode ser visto em termos idénticos aos sugeridos por Louis Dumont e retomados por Richard Handler a propésito da nacdo moderna. Tal como esta, a regido de que falam as diferentes narrativas que passaremos em revista tende a ser vista como um “individuo colectivo” (Dumont 1983), que pode ser descrito, caracterizado ou evocado como uma entidade “that can be said to have a soul, spirit, or perso- nality” (Handler 1988: 41). Uma falsa partida: Arruda Furtado Se quisermos ser rigorosos, podemos dizer que a histéria desses mitos comega mal. Em 1884, Arruda Furtado (1854-1887) — um naturalista micaelense, estabelecido em Lisboa, que marcou de forma significativa as ciéncias naturais da segunda metade do século XIX em Portugal — publica um texto intitulado ‘Materiais para o Estudo Antropolégico dos Povos dos Agores. Observagées sobre 0 Povo Micaelense (1884), que pode ser visto como a primeira tentativa de pensar 0 problema da especificidade acoriana de um ponto vista antropoldgico. De facto, embora a antropologia para que nos remete o titulo do ensaio seja sobretudo a antropologia fisica oitocentista, Arruda Furtado desenvolve ao longo do texto um conjunto de argumentos de natureza mais etnografica, que fazem dele uum marco seminal na discussio em torno da especificidade etnocultural dos Agores. S6 que, como uma leitura mais atenta do titulo do ensaio poe em evidéncia — Materiais para 0 Estudo dos Povos dos Acores (sublinhado meu) € nao “do Povo dos Agores” —, Arruda Furtado coloca o problema para ime- diatamente o afastar. De facto, segundo ele, seria impossivel falar, de um ponto de vista etnolégico, do povo acoriano como uma realidade unificada. “Etno- logicamente, 0 homem acoriano esta diferenciado”, escreve a esse respeito Arruda Furtado (1884: 2). Constitufdo a partir de populacdes oriundas de diferentes regides do continente e “diferindo entre si os habitantes das diversas provincias de Portugal”, os Acores apresentariam também “diferencas seme- Ihantes entre as suas diversas ilhas” (id.: 23) e no interior de cada uma delas, Seria, portanto, imposs{vel falar da cultura agoriana como um todo. Daf que Ro seu ensaio — como de resto sugere o subtitulo Observagées sobre 0 Povo Micaelense — ele opte pela exclusiva caracterizagio da populacdo de S40 Miguel, procedendo, aqui e além, a contrastes com outras ilhas que visam tornar claras as diferencas entre a populagao micaelense e os restantes "povos” acorianos. A sua caracterizacéo da cultura micaelense nao 6, pelo seu lado, particularmente entusidstica. Argumentando com o isolamento geografico dos Acores —de uma forma que possui inequivocas referencias darwinistas 194 Acorianidade: Literatura, Politica, tnografia (1880-1940) importadas da sua formacao de naturalista —, Arruda Furtado defende que 0 facto de os Acorianos em geral e dos Micaelenses em particular terem “sido separados do continente na chamada época gloriosa da hist6ria portuguesa, numa época em que [...] uma corrente de novas e grandes ideias circulava em todo o pais” (id.: 24), o facto de terem sido “sequestzados inteiramente a essa corrente de pensamentos novos e abandonados para aqui [sic]” (id,, ibid.), teria tido consequéncias negativas sobre a cultura dos povos agorianos. Seria justamente 0 que se passaria no caso de Sao Miguel, ilha em relacdo & qual a andlise de Arruda Furtado parte do “pressentimento” de que, devido ao isolamento “e pela falta de cruzamentos generosos, [...] 08 camponeses devem estar muito mais atrasados na sua constituicdo mental com respeito ao resto do povo portugués [...] e devem possuir [...] sentimentos muito primitivos” (id : 25). Confirmando esse seu “pressentimento” inicial, 0 ensaio de Arruda Furtado traga de seguida uma panoramica do camponés micaelense pontuada de referéncias criticas muito severas ao seu “estado psicoldgico actual” (id., ibid.) que conclui de forma particularmente desanimadora: estamos em face de um povo sem instruco, com os sentimentos mais grosseiros, servindo nos seus quatro séculos de existéncia a uma completa exploracéo. Encontrando facilmente na cultura rotineira do solo os recursos de que carecem e uma emigracéo fécil no caso contririo, nada os obriga a desenvolver a sua inteligéncia curta, e so, para o encobrir, excessivamente manhosos, condi¢io que acusam imediatamente no falar ronceiro, mastigado, € respondendo sempre vagamente ao que se Ihes pergunta. Sem dtivida, como por toda a parte, encontra-se inteligéncias notaveis nos nossos cavadores, mas € extremamente raro eo camponés micaclense ¢ essencialmente cabecudo (id 43). Isto é: segundo Arruda Furtado, nao s6 nao pode falar-se de unidade etnolégica dos Acores, como 0 estudo concreto do povo micaclense sugere que a diferenga dos povos acorianos em relagao a Portugal continental seria ndo uma fonte de orgulho, mas um motivo de profunda consternacao. Convenhamos que — do ponto de vista daquelas que vimos ser duas das condigées bésicas para a construsao de um discurso de identidade regional (a unidade interna e a diferenga em relacao ao exterior valorada positivamente) — o ensaio de Arruda Furtado nao representa propriamente um bom principio. 86 que a opiniao de Arruda Furtado a este respeito parece nao coincidir com a opinio dominante entre muitos outros intelectuais acorianos oito- centistas. Alguns deles, desde os anos 20 do século XIX, tinham vindo a desenvolver esforgos orientados num sentido contrdrio aos empreendidos por Arruda Furtado, sugerindo, por um lado, a unidade etnocultural dos Acores, ©, por outro, transformando a “ressentida” distancia geogréfica em relagdo ao. continente numa diferenca cultural valorizada positivamente. Esses esforcos ‘comegam por tomar corpo, na sequéncia da Revolugao Liberal, nas obras de Joao Soares d’Albergaria e Sousa (1796-1875) e de José de Torres (1827-1874), onde é j visivel a preocupacao de sublinhar a singularidade acoriana quer ao nivel da 195 Jofo Leal etnogenealogia, quer no tocante & psicologia étnica®, Mas ser sobretudo no quadro do chamado primeiro movimento autonomista — como tém mostrado um conjunto de investigacées recentes ” — que esses esforgos se tornam mais relevantes. Os movimentos autonomistas micaelenses e a identidade acoriana Desenvolvendo-se a partir dos anos 90 do século XIX, o primeiro movimento autonomista é usualmente considerado como um dos factos politicos maiores da historia acoriana do final de Oitocentos. Ligado a figuras como Aristides da Mota (1855-1942) e Montalverne Sequeira (1859-1931) — que foram 08 seus principais idedlogos —, 0 movimento desenvolve-se sobretudo em Sio Miguel ¢ tem sido visto como a expresso do descontentamento de certos sectores da burguesia micaelense perante uma conjuntura de crise ligada ao fim de um ciclo econémico de prosperidade centrado na laranja e na baleia. A procura de solucées alternativas — baseadas na criagéo de novas indiistrias locais como 0 alcool e o tabaco — e a reivindicacao da diminuicao da carga fis- cal encontraram entretanto resisténcia por parte do poder central. Ser essa resisténcia que ir despoletar 0 desenvolvimento do movimento, que — tendo como palavra de ordem a “livre administragdo dos Acores pelos Acorianos” — fara da autonomia politico-administrativa em relago ao poder central a sua reivindicacao principal. Embora o movimento tenha uma expresséo fundamentalmente politica, 98 seus idedlogos desenvolverao em torno da reivindicacao da autonomia uma incipiente reflexéo de natureza mais ampla, em que o tema da identidade propria dos Acores é recorrentemente abordado. Dada a natureza das rei- vindicagées avancadas e das razGes subjacentes ao programa autonomista, essa especificidade comeca por ser justificada do ponto de vista da geografia e da economia. Seriam, antes do mais, a distancia e a descontinuidade geogréficas dos Acores em relacao ao continente, combinadas com a existéncia de problemas econémicos préprios no arquipélago, a aconselharem solugées politico-admi- nistrativas mais descentralizadas. Mas — como sublinhou Carlos Enes (1996: 37) — simultaneamente a estas razdes mais “préticas” a autonomia agoriana é ja entéo argumentada de um ponto de vista etnocultural, com os temas da etno- genealogia e da psicologia étnica a ocuparem um lugar de alguma importnci De facto, em alguns dos textos de Aristides da Mota, a especificidade em nome da qual se reclama a autonomia dos Acores é argumentada a esses dois niveis. Do ponto de vista etnogenealégico, a diferenga dos Acores assentaria no facto, por um lado, de a sua populacao “provir originariamente [...] de diversas nacionalidades” (Mota 1987: 15). Jé avaneado por Soares d’Albergaria — e parcialmente retomado, para o caso de So Miguel, por Arruda Furtado —, este § Ch, a este respeito, Leite 1988 1980, Joo 1981: 28-238 e Enes 1996: 34-35, 7 CEs em particular, joio 1981 e 191-82, Cordeiro 199, Leite 194, nes 1996, 196 Asorianidade: Literatura, Politica, Etnografia (1880-1940) argumento contém uma alusdo & suposta contribuicdo de populagées flamengas e bretés para 0 povoamento inicial do arquipélago. Por outro lado, este cosmopolitismo inicial dos Acorianos projectar-se-ia para a actualidade, uma vez que a populacdo acoriana do século XIX seria ainda fortemente marcada pela importancia “das relacdes com povos de outras racas, especialmente devidos emigracao” (id,, ibid.) . Seria esta etnogenealogia especifica — conjugada com outros factores, designadamente de ordem geografica — que tornaria a partida 08 Acorianos diferentes dos restantes portugueses. Essa diferenca teria uma das suas melhores express6es no plano da psicologia étnica. De acordo com Aristides da Mota, poderia falar-se, a propésito dos Acores, nao apenas de uma comu- nidade de “interesses, tradicdes, costumes, aspirages proprias e peculiares tdo diferentes da metrépole quanto dela os Agores distam” (1994: 160, subli- nhado meu), como, de forma mais decisiva, de uma homogeneidade “de habitos de vida material e mental, um modo de ser da consciéncia individual ¢ colectiva sensivelmente diferentes dos da populacao portuguesa continental” (id, ibid.) Embora insipiente, o discurso etnocultural desenvolvido no quadro do primeiro movimento autonomista possula caracteristicas algo radicais. O que se sublinhava era as diferengas dos Acores em relagio a Portugal. O seu regio- nalismo pode nessa medida ser visto — em relagao ao todo nacional — como um regionalismo mais exclusivo do que inclusivo. Essa sua caracteristica 6, alids, sublinhada pelo modo como, no plano politico, alguns autonomistas aventavam a hipétese de separagéo dos Acores de Portugal sob tutela norte-americana, Essa radicalidade de posicdes reencontra-se, de forma ainda mais acentuada, no segundo movimento autonomista, que se desenvolve, mais uma vez. a partir de Sao Miguel, nos anos do pés-guerra e que terd os seus pontos altos em 1921 e 1925. Facilitado pelo clima de crise politica existente a nivel central e ligado & permanéncia de problemas estruturais na economia das ilhas —em particular em Sao Miguel — esse movimento deve também ser visto como © resultado da euforia desenvolvimentista que se tinha instalado em Sio Miguel na sequéncia da presenca americana durante a I Guerra Mundial. Tendo tido reflexos positivos para a ilha, essa presenga seré utilizada para demonstrar a existéncia de caminhos alternativos para a politica e para a economia agorianas fora do quadro de dependéncia politico-administrativa em relacdo a Lisboa. A teivindicacao da autonomia é de novo relancada e, simultaneamente a ela, ganham agora maior vigor as formulacdes que suigerem 0 separatismo sob tutela dos EUA ®, A intervengio samenga no povaamento dot Agores — designadamente nas ilhas do grupo central — esté hoje razoevelmente bem demonsirada, Quanto &supostaintervengao bret na colonizagio de Sio Miguel — defendida em particular por Arruda Farlado (1884) —, apoia-se em bases extemamentefrgeis tm sido recasada pele Nstoriografia, fgoriana mais slid. > Como sublinhou Carlos Enes, Aristides da Mota retoma argumentospresentes na hstriograf setae do século XX, com particular destaque para Soars dAlbergara (Enes 1996-27). 1 Entre outros autores cf. foto 191 e 1991-92, e Enes 1996, para uma andise mais detalhada do segundo movimento atonorist, rans da primers 197 Joao Leal Luis Ribeiro e “Os Agores de Portugal” Esta tendéncia nao deixou de suscitar resisténcias em circulos intelectuais doutras ilhas, designadamente na Terceira, cuja relagéo nao apenas com o segundo mas também com 0 primeiro movimento autonomista tinha sido sempre de alguma distancia. De facto, embora falando sempre em nome dos Acores e procurando alargar 0 movimento para a Terceira e para 0 Faial, os autonomistas micaelenses tinham enfrentado reservas ou indiferenca nos circulos politicos e intelectuais dominantes nessas duas ilhas " E nesse quadro de distancias e reservas em relagdo as teses micaelenses que a reflexao sobre a identidade dos Acores conheceré um conjunto de novos desenvolvimentos, que terao como protagonista principal o terceirense Luis Ribeiro (1882-1955). Fundador e primeiro director do Instituto Hist6rico da ha Terceira, e, posteriormente, do Museu de Angra do Heroismo, Luis Ribeiro é usualmente considerado como o etnélogo por exceléncia dos Agores, sendo autor de uma volumosa obra etnogréfica dispersa por iniimeras recolhas, ensaios e artigos. Além desse seu interesse pela etnografia, Luis Ribeiro — uma das figuras cimeiras da cultura acoriana do século XX — cultivou também a hist6ria ¢ teve igualmente uma intervengao activa em matéria politica, expressa nao apenas nos diversos cargos ptiblicos que ocupou, mas também em intimeros artigos de opiniao que escreveu para jornais terceirenses 12, ‘Tendo uma posicao de reserva e distancia em relacéo aos autonomistas micaelenses, Luis Ribeiro iré consagrar & questo autonémica um certo mimero de textos (cf,, em particular, Ribeiro 1996). Entre esses textos, um deles — escrito em 1919 — é particularmente importante: Os Acores de Portugal (Ribeiro 1983b). Produzido inicialmente sob a forma de uma conferéncia proferida na Associagao de Classe dos Empregados de Comércio de Angra do Heroismo, Os Acores de Portugal foi depois julgado suficientemente importante pelo seu autor para ser objecto de uma edicao propria, A justificacéo dada pelo proprio Luis Ribeiro para o facto é bastante elucidativa. Depois de afirmar que ndo tem por hébito a publicagao de conferéncias, Lufs Ribeiro explica as razées que 0 levaram a abrir esta excepcao: porque, pensando sobre a independéncia agoriana por modo diverso de muitos dos meus patticios e estando convencido de que o meu modo de pensar é verdadeiro, julgo um dever ndo o ocultar ou néo limitar 0 seu conhecimento ao nimeto restrito dos couvintes da conferéncia; e porque néo quero que passe sem o protesto de um acoriana portugués o que se diz acerca da nossa independéncia e do papel que alguns nela pretenclem confiar aos Estados Unidos da América (Ribeiro 1983b: 1, % As razbes para esas resistincias, de acordo com Isabel Joo, einm sobretudo aver com o “birsmoilbéy, assete, por um lado, “nas condigoesinerentes# insularidade , por outo, na falta de articulagto do espago econdince” ¢ administrative agorano (Jofo 1991: 241) 5 A obra de Luis Ribeiro tem vind a ser redial poo Istituto Hisérico da tha Tercera (Ribeio 1982, 1963, 19858 199) Infelizmente no dispomas anda de un estudo deconjunto desta ob, em particular da sua vertentsetogrsie Para abordagens mais parcelares de Luis Ribeiro, vejamae os esudosreunidos no volume fx Memoria de ist Sae Riba (VVAA 1982) ea intredugio de Carios Ene a IV Volume das Obs ce Las Rel (Exes 1996) Paro uma anise do envolvimento de Luls Ribeiro no process de criagdo do Museu de Angra de Heroismo veje-ce Ormonde 1996 198 Acorianidade: Literatura, Politica, Btnografia (1880-1940) De facto, como o préprio titulo — Os Acores de Portugal (sublinhado meu) — se encarrega desde logo de sugerir, 0 grande objectivo do ensaio é 0 de contrapor a uma reflexao sobre os Acores de alguma forma marcada pela tentacéio separatista — como era aquela produzida pelos intelectuais micaelenses do primeiro e segundo movimentos autonomistas — uma reflexao sobre os Acores capaz de reinscrever a sua especificidade num quadro — chamemos-lhe assim — mais portugués. Nessa viragem, dois factores prineipais parecem ter pesado. Por um lado — como ja foi referido — a hostilidade da intelectualidade terceirense as formulagées mais radicais dos autonomistas micaelenses. Por outro — e este serd talvez o factor mais decisivo —, 0 clima intelectual de nacionalismo cultural caracteristico da I Reptiblica (cf. Ramos 1994) e o modo como ele possibilitava uma gestdo mais integrada da pulsdo regionalista no interior de um quadro ideolégico de inspiragéo nacionalista ®. Procurando recuperar a dimensao portuguesa da especificidade agoriana, Luis Ribeiro iré conferir aos temas da etnogenealogia e da psicologia étnica — tratados de forma ainda algo insipiente pelos idedlogos autonomistas micae- lenses — um lugar central. © tratamento concreto que ele Ihes dé ira entretanto introduzir — em funcao desse “reaportuguesamento” da andlise — um conjunto de significativas inflexdes relativamente ao modo como eles tinham sido inicialmente trabalhados pelos autonomistas micaelenses. ‘Assim, no plano da argumentagdo etnogenealégica, a especificidade dos Acores é agora vista ndo como 0 resultado da mistura do elemento portugués com elementos de outras proveniéncias, mas como 0 resultado da fixacdo no solo acoriano de um tipo portugués especifico: 0 portugués de Quatrocentos, isto é, © portugués da grande epopeia dos Descobrimentos, o portugués no auge das suas faculdades criativas como povo. De facto, segundo Luis Ribeiro, embora a colonizagéo dos Agores se tenha feito com a contribuicdo de “elementos étnicos diferentes, entre os quais 0 flamengo” (id.: 3), 0 facto ndo invalida que haja nos Acores. ‘um notével predominio do elemento portugués que foi o que entrou em maior niimero {..}, Entre todos os colonos o maior mimero era de portugueses, sendo relativamente ‘pequena a influéncia estrangeira sobre o subsequente desenvolvimento da colénia, como 0 demonstram os costumes genuinamente portugueses, a lingua e a persisténcia de certas, tradigdes eminentemente nacionais (id. 3-4). Sublinhando a importancia da influéncia portuguesa na etnogenealogia dos Acores, Lufs Ribeiro nao faz, porém, dos Acorianos portugueses como os outros. De facto, embora portuguesa, a populacao acoriana retiraria a sua especificidade do facto de descender dos portugueses do século XV, [...] daqueles valorosos soldados que um século antes, cheios de patriotismo, haviam firmado com sangue a nossa independéncia, ' Para uma anise dos reflexes a conjntrapolto-cultural portuguesa dos anos 1.» 201s Agores, cf. Cordeiro 1995, ce Enes 19%, 199 Joito Leal cobrindo-se de gloria em Aljubarrota; portugueses da época mais notével da nossa vida nacional; portugueses fortes e leais, ainda nao depauperados pelas conquistas nem corrompidos pelo oiro do Oriente; portadores de todas as virtudes da nossa raga, de todas as grandes qualidades que tornaram gloriosa a nossa histéria, Fortes de corpo ¢ alma, leais em extremo, amantes da honra e desprezadores da vida, cheios de f€ em Deus, tendo por ideal a constituicéo de uma patria maior, enriquecida e gloriosa, tais foram os nossos avés, os primeiros colonos do arquipélago (id: 4, sublinhado meu). Isolados no meio do Atlantico, esses descendentes dos portugueses dos Descobrimentos ter-se-iam posto ao abrigo, por um lado, das influéncias his- toricas que, em Portugal continental, teriam contribuido para uma desca- racterizacao do legado quatrocentista. E manteriam também, em virtude mais ‘uma vez do isolamento, uma particular capacidade de resisténcia ao que, vindo de fora, comprometeria a nacionalidade: se atentarmos em como 0 portugués 6 facil de assimilar os usos, os costumes, as modas, tudo o que vem do estrangeiro, melhor compreenderemos 0 que hi a ‘mais de nacional no habitante das ilhas ent relagto ao do continente, que recebe a todo © momento influéncia estranha (id.: 6, sublinhado meu). Pela sua énfase darwinista no isolamento ilhéu como factor de con- servacao, 0 argumento de Luis Ribeiro possui inequivocas semelhangas com 0 desenvolvido trinta e cinco anos antes por Arruda Furtado. $6 que opera simultaneamente uma completa inversdo da interpretacéo das consequéncias desse isolamento. Este, para Arruda Furtado — que fala ainda em termos de uma distincia geogréfica “ressentida” —, teria colocado os Acorianos & margem das novas ideias e ter-se-ia revelado um factor de estagnacao e retrocesso da cultura agoriana. Em Lufs Ribeiro — que fala jé em termos de uma diferenca cultural valorizada positivamente — 0 isolamento é encarado, pelo contrario, como um factor de imunizacdo da cultura acoriana contra a decadéncia da cultura portuguesa posterior aos Descobrimentos, de manutengéo das qualidades positivas entretanto perdidas na metropole e de resisténcia actual contra as influéncias desnacionalizadoras. Nesses termos, sendo aparentemente um “tipo [..] diferente do continen- tal, 0 ilhéu € no intimo mais e melhor portugués do que ele” (id,, ibid., sublinhado meu). Isto é: vistos primeiro — em Arruda Furtado — como portugueses “atrasados”, e depois — com os idedlogos autonomistas — como “portugueses etnogenealogicamente probleméticos”, os Acorianos passam agora a ser vistos como “mais ¢ melhores portugueses”. A especificidade da sua etnogenealogia em particular — deixa de ser procurada num mecanismo de distanciamento em relacao a Portugal, mas passa a assentar, ao contrério, num processo em que se reclama uma “portugalidade” acrescida e mais nobre para os Acorianos. Comecando por ter uma dimensao etnogenealégica destacada, a ideia do acoriano como representative do portugués de Quatrocentos posstii também importantes consequéncias em termos de psicologia étnica. Descendente do 200 | Acorianidade: Literatura, Politica, | Etmografia (1880-1940) portugués de Quatrocentos, o Acoriano possuiria igualmente as qualidades deste, como 0 provaria abundantemente a hist6ria do arquipélago, povoada de personalidades caracterizadas pelo “amor da patria, a lealdade, a bravura, a honradez. dos velhos capitaes dos séculos XIV a XVI" (id.: 7). Essas qualidades — de acordo com Luts Ribeiro — nao se limitariam apenas ao “escol da gente” acoriana mas estender-se-iam ao “povo todo” (id., ibid.). Como ficou sugerido atras, a chave explicativa para a persisténcia desse tipo étnico seria o isolamento do meio ilhéu, seria a insularidade: “numa ilha isolada pelo mar do resto do mundo [...] persistem os caracteres dos seus habitantes” (id.: 4). $6 que esta, ao mesmo tempo que teria conservado um. conjunto de elementos arcaicos, teria também introduzido nesse tipo caracte- risticas préprias suplementares, ligadas &s peculiaridades geogréficas do meio insular. Assim, a psicologia étnica acoriana seria, por exemplo, mais branda e sonhadora, “em razao da proximidade do mar e da suavidade do clima temperado e himido” (id., ibid.). As cangées acorianas, ao mesmo tempo que conservariam as formas da canc&o portuguesa tradicional, teriam ganho “um movimento mais lento, com um excessivo predominio da nota sensivel que ihes imprime demasiada sensualidade” (id.: 6). No cardcter agoriano have- ria sobretudo — vale a pena ret8-lo— um saudosismo ainda mais acerado: “9 delicioso pungir do acerbo espinho e a suydade que faz chorar e suspirar, ninguém a sentiu tao intensamente, ninguém a exprimiu melhor que o poeta povo dos Acores” (id., ibid.), Isto é: embora se mantenha o acento numa etnogenealogia e numa psicologia étnica préprias, estas so agora vistas num quadro distinto do proposto pelos idedlogos autonomistas. Em contraposigio 8 orientago exclu- sivista das suas teses, ha como que um alinhamento do discurso “acorianista” com © discurso da “portugalidade”. F a esse respeito significativo o peso concedido por Silva Ribeiro ao “quatrocentismo” na etnogenealogia dos Acores ou ao saudosismo na caracterizacao da psicologia étnica agoriana. Em ambos os casos estamos perante a apropriacao regionalista de temas essenciais definicéo da “portugalidade” nesse perfodo. De facto, na emblematizacao do portugués dos Descobrimentos ecoa 0 peso que esse motivo possuia — desde pelo menos finais do século XIX — no imaginério nacionalista da época, em particular em associagdo com temas como a decadéncia e a regeneracao nacionais. Quanto & saudade, desde 1911 que Teixeira de Pascoaes a tinha proposto nao apenas como a esséncia psicoldgica do “ser portugués”, mas também como o né estruturador do seu programa de regeneragao da patria. Fazendo desses dois motivos emblemas para a definicio da especificidade dos Acores, Silva Ribeiro estd a recorrer a dois temas fortes do imaginério nacionalista para afirmar os Acores como uma espécie de “quintesséncia” de Portugal. Esse dispositivo — como mostrou Anne-Marie Thiesse (1997) para o caso francés — é relativamente recorrente no discurso regionalista. De facto, da mesma maneira que o nacionalismo se baseia frequentemente na descon- textualizacao nacionalizadora de temas locais ou regionais (Foster 1991), 0 discurso regionalista, pelo seu lado, procede nao menos assiduamente a uma 201 Toto Leat recontextualizacéo particularizadora desses mesmos temas. Mas enquanto na generalidade dos casos essa recontextualizacao se articula com uma nocao da regido como uma espécie de miniatura da nacdo, aqui o seu efeito é mais complexo. De facto, a “portugalidade acrescida” dos Acores é um argumento que fala tanto do caracter portugués dos Acores, como da identidade propria dos Acores por referéncia ao todo nacional. Por outro lado, essa seria apenas uma parte da historia, uma vez que a essa “portugalidade acrescida” — enca- rada como factor de diferenciagéo — se somariam depois factores de indi- vidualizacao determinados pela circunstancia insular. Isto é, embora se torne mais inclusivo do que o dos idedlogos autonomistas, o regionalismo de Silva Ribeiro é, de qualquer modo, um regionalismo diferenciador. Os desenvol- vimentos posteriores do discurso acorianista confirmarao — em particular no respeitante ao dominio da psicologia étnica — essa sua dimenséo A “invencdo” da acorianidade: retorno a Nemésio Formuladas em 1919, estas ideias de Silva Ribeiro viréo a revelar-se decisivas nos debates posteriores sobre a identidade acoriana, Este conhecera a partir de entao um forte impulso, insepardvel das tendéncias regionalistas que, vindas de trés — como vimos —, continuarao a marcar a vida cultural portu- guesa das décadas seguintes. Esse impulso tem justamente como protagonista principal “Monsieur Queimado” ele préprio — ou seja, Vitorino Nemésio — e passa por dois ensaios fundamentais, escritos respectivamente em 1929 — O Agoriano e 0s Agores (Nemésio 1986b) — e em 1932 — Agorianidade (Nemésio 1986c), No ensaio de 1929, embora haja uma certa abertura aos contributos de “outras nacées” na formacao etnogenética dos Acores, reencontramos de novo uma etnogenealogia que faz dos Acorianos — vistos como “um exemplar aproximado do portugués da segunda metade de Quatrocentos” (Nemésio 1986b: 319) — “mais e melhores portugueses” e dos Agores — de acordo com a formulagao proposta pelo hispanista Marcel Battaillon — “une espéce de Por- tugal & la deuxiéme puissance” (id.: 327). “Os Acores”, escreve Nemésio, “sio [..] um Portugal requintado porque receberam dele a forma e 0 pensamento quando Portugal [...] era uma forga em marcha” (id., ibid,). Quanto a psicologia étnica, ao mesmo tempo que prolongaria esta definicao do Acoriano, é abordada de forma mais contraditoria. Nemésio comega, é certo, por evocar um tipo geral de Acoriano caracterizado “pelo aferro ao trabalho e por uma docilidade de maneiras que esconde dureza de acgio” (id.: 322). Mas se o faz é para, de imediato, insistir na diversidade psicolégica desse Homo agorensis por intermédio de uma tipologia que distingue trés categorias distintas de acoriano — 0 Micaelense, o homem das ilhas de baixo € © Picaroto (designacao por que s4o conhecidos os naturais da ilha do Pico). ¥ “thas de balvo” 6 a designagao dada nos Acores as ihas do Grupo Central ~ Tecra, Sto Jonge, Gracos, Fail ¢ Pico —e do Grupo Oriental — Fores e Corvo. Embora use esta termiologia abrangerte, ao flat das tas de bai 202 Agorianidade: Literatura, Politica, Etnografia (1880-1940) O Micaelense, mais “castigo”, revela desde a fala a0 tom bosselado das feigdes uma preocupagao de insu- lanismo tdo estreme, tZo rija e calada que em toda a parte 0 impée como alguém que 6 alguém. Porventura lesado na partilha dos dons agradadveis, insinuantes, que foram ter de preferéncia aos seus irmaos das outras ilhas, é ele que levanta a enxada mais alto, a crava mais fundo, e com mais vigor Ihe extrai a terra jé décil a0 gio e jé penetrével ao tubérculo (id, ibid). Em contraste com a indole étnica dspera e trabalhadora do Micaelense, © homem das ilhas de baixo — com relevo para o Terceirense — seria marcado por qualidades como a “amenidade, alguma manha, e principalmente uma bizarria que trai a coabitagio com o castelhano durante meia centuria. Dos ilhéus é ele o mais festeiro” (id.: 323), como 0 mostrariam as touradas corda ou 0 culto do Divino Espirito Santo. Finalmente, 0 Picaroto — que Nemésio afirma ser “a nata das ilhas” — caracterizar-se-ia por “uma concepgdo séria da vida, temperada embora por uma ingenuidade que é 0 segredo do seu triunfo nas lides a que se entrega” (id.: 325). Vimos no inicio deste artigo que a conceptualizacio dos Acores como um. espaco de diferenca exigia, entre outros requisitos, uma gestio integradora das diferengas existentes entre as ilhas do arquipélago, susceptivel de o constituir num todo dotado de unidade e homogeneidade. Foi entéo observado que essa operacio se poderia revelar particularmente delicada, dada a descontinuiidade geografica do arquipélago, a real diversidade cultural das ilhas e a inexisténcia, durante 0 perfodo considerado, de um sentimento generalizado de identidade regional, substituido frequentemente por aquilo que varios autores tém designado de “bairrismo” insular. De aiguma forma, este primeiro ensaio de Nemésio consagrado & conceptualizacao da especificidade acoriana é um dos melhores exemplos das dificuldades inerentes a essa gestio integradora das diversidades do arquipélago. Embora todo o artigo esteja construido no sentido da demonstragao da singularidade dos Acores tal como esta se expressaria numa “ética propria, numa vida [...] em muitos pontos especializada e diferenciada” (id: 317), ao tentar aprofundar 0 tema, designadamente do ponto de vista da psicologia étnica, Nemésio vé-se confrontado com a necessidade de uma descricao relativamente mais pluralista da realidade insular. Dada desta forma contradi ia no texto de 1929, a ideia de uma unidade psicolégica do Acoriano reencontra-se entretanto no texto de 1932. Definindo af de novo os Acores como “um corpo auténomo de terras portuguesas, um. auténtico viveiro de lusitanidade quatrocentista” (Nemésio 1986c: 401), Nemésio esté agora sobretudo interessado numa caracterizagao de conjunto das particularidades da psicologia insular ancorada nas especificidades da geografia acoriana. “A geografia vale outro tanto que a histéria” (id.: 401 e 402) e seria, portanto, a partir de factores geograficos como o isolamento — "a embriaguez ‘Nemésio tem sobretudo em vista a Tercera ~ sua iha natal —, sendo praticamenteineistentes as referencias concetas ® xr has, com exepoio do Pico, que Nemésio considera enttetanto como um caso & pate 208 Joao Leal do isolamento”, como escreve Nemésio (id. 401) —, a proximidade do mar, a penetragao da alma pelo clima e pela terra vulcanica que se poderia perceber a especificidade da psicologia colectiva acoriana. Dando particular visibilidade ao factor geografico na argumentagio da especificidade da psicologia étnica acoriana, 0 texto de 1932 — um ensaio curtissimo, escrito num tom impressionista e literério —, ao mesmo tempo que corrige a aproximacéo mais pluralista de 1929, retira sobretudo a sua impor- tancia do modo como dé um nome a essa unidade psicoldgica exclusivamente agoriana: “agorianidade”. Na sequéncia de varias tentativas empreendidas no decurso dos anos 20, construidas principalmente em torno da expressio “ago- rianismo” (cf. Cordeiro 1995), estava finalmente encontrado um nome para a especificidade dos Acores Conjugando O Acorianos e os Agores e Agorianidade, vemos entao fixar-se em Vitorino Nemésio um modelo de reflexao sobre a identidade dos Acores que a pensa por referéncia a dois registos principais: a etnogenealogia — o Acoriano como um portugués de Quatrocentos — e a psicologia étnica — ainda o portugues de Quatrocentos, mas, simultaneamente e sobretudo, a valorizacao dos factores de especificidade introduzidos pelo “viveiro insular” enquanto realidade geogréfica na configuracao da cultura agoriana como um estado de espirito proprio. De novo Luis Ribeiro: a “geografia” da alma acoriana Insuficientemente desenvolvidos — mais impressionisticamente suge- ridos do que propriamente demonstrados de forma exaustiva — no texto de 1932, estes factores de especificidade seréo depois mais detalhadamente trabalhados, em particular do ponto de vista etnografico, por Luis Ribeiro nos seus Subsidios para Um Ensaio sobre a Acorianidade (1983c [1936)). O ensaio comeca por incluir algumas referéncias iniciais ao tema da etnogenealogia dos Acores, marcadas mais uma vez pela preocupacao de reiterar a origem basicamente portuguesa da populagéo do arquipélago. Embora faca referencia a elementos étnicos estrangeiros — nomeadamente o flamengo — na colonizacéo dos Acores, Luis Ribeito enfatiza de novo que “o grosso da populagio é e sempre foi, contudo, portuguesa” (1983c: 520). Mas o grande objectivo dos Subsidios... € 0 de, no seguimento do ensaio de Nemésio consagrado a acorianidade, proceder a sistematizagio das particularidades da psicologia étnica acoriana. Na prossecucao desse objectivo, Luis Ribeiro retoma € amplia 0 ponto de partida geografico de Nemésio. Como € dito logo no inicio do ensaio, 0 autor procurou fixar aquilo que se lhe afigurou ‘mais caracteristico no meio acoriano — o vulcanismo, a presenga constante do mar, a insularidade ou o isolamento do resto do mundo, a humidade do ar, a nebulosidade do céu, a temperatura oscilante entre estreitos limites, a pressio atmosférica, os vendavais e tempestades, a diferenca entre as ilhas ¢ o continente pelo que respeita as condigdes geograficas e da paisagem (id.: 515), 204 | Acorianidacle: Literatura, Politica, Etnografia (1880-1940) para, a partir dai, verificar quais as qualidades morais comuns a todos os ilhéus [...] e ver até que ponto estas qualidades morais e a sua feigéo propria eram consequéncia das condigdes mesolégicas, ou, pelo menos quais as possiveis relacées entre umas e outras (id.: 515-516) Nesta procura de correspondéncias entre “condigbes mesologicas” e “qualidades morais”, o lugar de destaque vai, antes do mais, para o vulcanismo. Partindo do princfpio de que este “provoca no homem e até nos animais uma impressao de incerteza e diivida, um sobressalto constante, que deixa fundos sulcos no seu moral” (id.: 524), Luis Ribeiro considera-o responsdvel por aquilo que ele classifica de “extrema religiosidade do povo das ilhas” (id, ibid.). Essa religiosidade, embora mais marcada em S40 Miguel — como 0 mostrariam as Romarias Quaresmais e 0 culto do Senhor Santo Cristo —, reencontrar-se-ia em todas as ilhas e ganharia também — mais uma vez devido ao vulcanismo — uma feigio caracteristica, particularmente bem expressa no culto do Espirito Santo: em todas as ilhas hé no fundo das almas o receio pelo castigo divino, parecendo que a nogdo de Deus vingador e terrivel se sobrepse a de Deus misericordioso, Deus caridade e amor. Traduz este conceito o facto de o povo dizer o Espirito Santo muito vingativo e ainda 0 do eseripulo com que cumpre todos os votos © promessas (id. 526) A par do vulcanismo, outra circunstdncia geogréfica que contribuiria para a especificidade da psicologia étnica acoriana seria a humidade. Esta, combinada com variagbes pouco significativas de temperatura, seria responsavel pela indoléncia caracterfstica do temperamento agoriano. Retomando a ideia do azorean torpor, formulada no século XIX pelos irmaos Bullar (Bullar e Bullar 1986 [1841]), Lufs Ribeiro enfatiza o modo como no “ambiente morno dos Acores todas as energias se quebram", gerando essa “indoléncia peculiar dos Acorianos” (id.: 531) com miiltiplas express6es na cultura popular do arquipélago: desde o tom arrastado e lento da mésica popular jé referenciado em “Os Agores de Portugal”, até “aos movimentos rudes, desgraciosos e esforcados” (id.: 530-531) da grande maioria das dancas populares, passando pelas “falas mansas a arrastadas” (id.: 531) do modo de conversacao diério ou pelo entusiasmo contido com que os Agorianos participam em festas ou divertimentos — com “mais excitagao do que alegria” (id., ibid.) Para além da indoléncia fisica, a humidade, associada & nebulosidade, seria também responsével pelo “tom sombrio” da alma acoriana, “que é, quanto ao espirito, coisa semelhante a indoléncia fisica” (id.: 532.). Esse estado de espirito seria tanto mais importante quanto para o seu reforco contribuiriam outros factores “mesolégicos” como a proximidade do mar. Esta, ao mesmo tempo que seria responsavel pela emigragéo como uma das principais constantes da historia e da cultura agorianas, ajudaria de facto a acentuar — em conjugagéo 205 Joto Leal com a “tristeza da paisagem” (id., ibid.) — essa tonalidade triste do cardcter agoriano. Retomando um argumento que jé havia empregue em 1919, Luis Ribeiro considera que seria justamente esse “tom sombrio” da alma acoriana 0 responsavel pelo exacerbamento — por referéncia a populagao de Portugal con- linental — da saudade e do saudosismo na psicologia étnica acoriana: “produto da alma portuguesa, mercé de circunstancias do meio geografico, a saudade nao 86 vicejou nos Acores, como neles se ampliou” (id.: 535). Reflectindo-se em particular no cancioneiro popular acoriano, esse saudosismo exacerbado e ampliado teria sido também influenciado por razbes de natureza histérica, entre as quais — para além da emigragao — avultariam as ligadas aos tempos iniciais do povoamento: arrancados as terras onde tinham nascido e onde viviam, os primeiros povoadores do arquipélago levaram nas ilhas uma vida dura e dificil, bem de molde a recordar-thes saudades delas [...]. A lembranca da casinha tran- guila e confortavel na provincia natal devia estar sempre presente no espirito dessa gente rude e aventurosa, Daf a saudade do tempo pasado [..] (id.: 533) Exacerbando 0 saudosismo préprio da psicologia étnica portuguesa, 0 tom sombrio da alma agoriana seria também a chave explicativa para a maior importancia — por referéncia mais uma vez a Portugal continental — que o “espitito satirico” (id.: 545) assumiria no cancioneito acoriano, em partie cular em cangdes como As Velhas, O Bravo, 0 Samacaio ou o Pezinho de Sao Miguel no & alegria que produz a sétira: é a melancolia e a tristeza. [..] A sétira nasce do espitito triste e misantropo, que disfarga a tristeza interior rindo-se dos outros € se compraz em contemplar os defeitos e desgracas alheias, na esperanca de encontrar nessa contemplagéo um lenitivo para as prdprias. O acoriano, impregnado da tristeza da paisagem, preacupado subconscientemente com os sismos e 05 vendavais sempre iminentes, abatido pelo azorean torpor, desforra- -se rindo dos outros, das suas fraquezas, dos seus ridiculos que maldosamente amplifica (id, ibid.). Finalmente, 0 isolamento — pesando “extraordinariamente sobre as almas” (id.: 537) — seria outra das circunsténcias “mesoldgicas” determinantes na configuracdo especifica do temperamento acoriano. Responsavel pela conservacio de intimeros tragos culturais arcaizantes, por um forte “apego & terra” (fd.: 542) e pela limitacao do conceito de pétria a ilha de naturalidade, ele teria sobretudo imprimido um caracter particularmente “servil e humilde” a “gente do povo" (id,, ibid), incapaz de contrariar “os desmandos e violéncias das classes ricas” facilitados pelo “enfraquecimento do poder central” ((d.: 539) Auuxiliada por factores como “a humidade do clima temperado, [...] a indoléncia peculiar do acoriano e certa tristeza que a paisagem causa” (fd.: 542), esta atitude “servil” combinar-se-ia entretanto, por um lado, com a “astiicia”, a “dissi- mulagao” e a “manha” “como forma de ladear as dificuldades” (id., ibid.). 206 Acorianidade: Literatura, Politica, Etmografia (1880-1940) E encontrar-se-ia, por outro lado, em declinio, particularmente em certas ilhas, em que — em virtude da extincdo dos morgadios e de uma maior demo. cratizagéo do acesso & propriedade — “tém mudado as condigdes econémicas de vida da gente das freguesias rurais” (id.: ibid.) 5, Desenvolvendo e ampliando algumas sugestées jé presentes em Os Acores de Portugal & luz da acorianidade de Vitorino Nemésio, Luis Ribeiro Procede, pois, nos Subsidios... a uma sistematizacao aprofundada daqueles que considera serem os elementos estruturantes da psicologia étnica acoriana. Dado © peso que nela ocupa um conjunto de correspondéncias entre “condigées mesol6gicas” e “qualidades morais”, essa sistematizacao pode ser apresentada como uma verdadeira “geografia da alma acoriana”, por intermédio da qual é retomado, reconfigurado e expandido um conjunto de temas até af dispersos na reflexéo sobre a unidade e a diferenca dos Acores ao nivel da psicologia étnica Definidos anteriormente em termos etnogenealégicos como “mais e melhores portugueses”, os Acorianos séo agora vistos, neste plano analitico mais comprometido com o enunciado de um “espirito colectivo” préprio, como “portugueses diferentes”, Simultaneamente, os Subsidios... retiram a sua importancia do modo como procedem a um trabalho de “objectificacao” (Handler 1988) da cultura popular agoriana encarada a partir dessas diferencas “morais”” Isto é ndo se trata apenas de estabelecer a influéncia que a geografia tem na formacao do cardcter étnico agoriano e de o sistematizar a esta luz, trata-se também de proceder ao levantamento, na cultura popular acoriana, dos objectos etnograficos susceptiveis de ilustrarem essa especificidade etno. cultural. Essa tendéncia encontra-se obviamente nalguns dos outros textos que passdmos em revista. Mas é aqui que ela ganha maior consisténcia. Varias expressoes da cultura popular acoriana até af tratadas de forma mais dispersa séo agora formalmente apropriadas como signos da “acorianidade”. Rituais religiosos — como as Festas do Espirito Santo, as Romarias Qua. resmais de Sao Miguel ou a Festa do Santo Cristo —, 0 cancioneiro, a miisica popular ou as dangas tradicionais deixam de ser encarados como expressOes contingentes e dispersas do viver popular nas ilhas para passarem a ser vistos como objectos embleméticos do “ser acoriano”, objectos que 86 os Agores possuem, objectos que os Acores possuem e outros nao, objectos sobre 0s quais repousa a possibilidade mesmo de demonstraco da identidade agoriana "6, ' Vales pena subinhar esta dupa especfngo feta por Las Rc "sersiidade” do carter agriano peccupesdo Go autor parece ser a de retire eficicia decrtiva & um tago de persenalidade susceptivel de intwodk eons excesivamente negatives no rtalo do Agorano 1 E esta linha de “cjctfcgio" da cultura poplar agorana que podem ser ios alguns textos de produ etogitca de Luis Reto poster aos Susi. Ct, em particular, impor de ensais como O Mar ne Cantona Pepe es Agnes (9820 (940), A Saudade na Posi Paper Agora (1982 [983} on A Ppt de Una Cane PoparTeceeore — As Velhas (1983 [1946), no tratamento mats detalhado de certo aspectos ou géners predus do canconsta eo poesia popular agoiana & luz das ideas inicialmente formladas nos Sulsins 207 Joo Leat Observacies finais Justamente porque procedem a este duplo trabalho de caracterizagao sistematizada da psicologia étnica acoriana e de objectificacao “possessiva” (Handler 1988) da “agorianidade”, os Subsidios para Um Ensaio sobre a Acoria- nidade constituem um marco decisivo no processo de construgao da aco- rianidade. Nao € que, depois deles, mais mitos de Monsieur Queimado —incluindo Le Mythe de Monsieur Queimado propriamente dito — ndo continuem a ser produzidos. O préprio Lufs Ribeiro, cuja abordagem da questao etno- genética nos Subsidios... era relativamente suméria, voltaré a ela com mais detalhe em 1941 — com A Formagiéo Historica dos Agores (Ribeiro 1983e) — ¢ em 1964 — com A Pretendida Influéncia Nordica do Povo Micaelense (Ribeiro 19836) 17. Mas, no essencial, em 1936, com os Subsidios de Um Ensaio sobre a Asorianidade, chega ao seu termo a fase mais significativa desse processo de procura de um rosto identitério para os Agores que poderiamos designar por invengao da acorianidade. A partir dai, existe antes do mais um nome para esse rosto: a “agorianidade”. Existe também um certo ntimero de consensos sobre 0 que se esconde por detras desse rosto: uma narrativa de origem étnica, um elenco de tracos psicolégicos préprios justificados em larga medida por uma ‘geografia ela prépria singular, uma cultura popular marcada por “formagoes” especificas, etc... E existe finalmente a possibilidade de prosseguir um programa de investigacdo que possa aplicar algumas destas ideias aos mais variados dominios da vida acoriana. ff justamente a essa luz que podem ser interpretadas algumas das comunicagdes apresentadas as Semanas de Estudos dos Acores tealizadas no decurso dos anos 60 e o modo como privilegiam a discussAo dos factores de unidade e diferenca do arquipélago "*. E também sob 0 signo da agorianidade que — a partir dos anos 80 — tomara corpo 0 debate, que Prossegue até aos nossos dias, sobre acorianidade e literatura. Finalmente, € ainda para a importancia da acorianidade que nos remete — nos anos 80 1 Em ambos os casos tratese de, partindo das ideiasinicilmenteafizmadas em Os Acors de Portugal, eeterar a togenealogia esencalmente portuguesa dos Asorese proceder a uma contestago mais detalhada das less que defendiam a exsténcia de infléncis estangeires na cultura popular agoriana, Em A Farmagio Hitrce do Povo os -Agores, ssa contestago incide sobre as tests que defendiam a importincia de infuénciasflamengas, espanol e cello -bretts na cultura popular das ilhas. No tocante &influéncia famenga, Luts Ribeio confee pacicalar destaque & ontestagio da tose das raizes famenga da Festa de Sto Marcos no Pio no Faia, proposta no inicio do culo por ‘Afonso de Chaves (1906. Pondo também em causa inluénca espanol nas touradas da Tere, Lats Ribera dedica Por fim particular ategio i contesta;so das tess — iiilmente frmuladas por Arruda Furtado (184), eposterinemente "efomadas por autores como Eugénio Pacheco e Herculano de Medeios — que, apoiando-senomeadamente na exstenela ‘de uma “povoacio designada Bretaa na lha de Sto Miguel” (983e- 60), defendiam a importinca de uma presumtvel Influacia celta na populagio micaelense. Surgindo na sequéncia deste ensio, A Preendida Infludnca Névdca do Povo ‘Micaclence, plo seu ld, €consagrada &contesiagéo mais detalhada desastexes que, 1a formula tical propost por ‘Arruda Furtado, devem se vistas como ur dos taroststemunhs do “celtics” na etnografia portuguesa Conese sabe, 0 celticismo — embore com prolongamentos para o século XX — teve uma pariculat voga no aéeulo XIX (cf. Chapman 1978 e 1992 para uma abordagem do cellisma). 4 Cf, em particular, Agostino 1963, ¢ Rosa 195, Una das figuras cantraisdesse debate € Onésimo Teoténio de Almeida. Ct, Almeida 198, para alguns dos texts mais relevantes 208 ‘Agorianidade: Literatura, Politica, Etnografia (1880-1940) © 90 — 0 desenvolvimento do discurso agorianista pés-autonémico, parti- cularmente na sua faceta transnacional (a respeito do conceito de transna- cionalidade, cf. Basch, Schiller e Blanc 1994) ®, Em muitos destes desenvolvimento 6 a sombra de alguns destes textos que constantemente se perfila, como nos ensaios de Onésimo Teoténio de Almeida sobre literatura e acorianidade ou em muitas das intervengoes e discursos pronunciados nas sucessivas edicdes dos Congressos de Comunidades Agorianas. Mas, saindo do ambito cronolégico que este artigo se propés cobrir, esses varios outros mitos de Monsieur Queimado aguardam o seu etndgrafo. Verificar a persisténcia e/ou as auséncias, bem como as eventuais trans- formagoes daqueles que considerémos como os temas centrais da acorianidade — uma etnogenealogia prépria, uma psicologia étnica espectfica —, perceber em que sentido é que se estendeu o trabalho de objectificacao cultural iniciado por Luis Ribeiro, si0 certamente direcgdes de trabalho a ter em conta por essa etnografia dos mitos de Monsieur Queimado que se sucedem ao Mythe de Mon- sieur Queimado propriamente dito. Simultaneamente — no seguimento das pro- postas enunciadas por Raphael Samuel e Paul Thompson em The Myths We Live By (1990) —, essa etnografia nao poderé deixar de perceber de que forma € até que ponto € que esses mitos “vivem” e qual a sua influéncia sobre os modos de construgao das identidades das pessoas e dos grupos nos Acores de hoje. 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