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A tradicao viva A. HAMPATE BA “A escrita é uma coisa, e 0 saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas no o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A heranca de iudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobd jd existe em potencial em sua semente.” Tierno Bokar? Quando falamos de tradigao em relagdo A histéria africana, referimo-nos a uadicio ors), e nenhuma tentativa de penetrar a histéria e 0 espirito dos povos africanos tera validade a menos que se apéie nessa heranga de conheci- mentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discipulo, ao longo dos séculos. Essa heranga ainda nao se perdeu e reside na memoria da wltima geracdo de grandes depositérios, de quem se pode dizer séo a memoria viva da Africa. Entre as nagdes modernas, onde a escrita tem precedéncia sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal vefculo da heranca cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente, esse conceito infundado comecou a desmoronar apés as duas iltimas guerras, gracas ao notavel trabalho realizado por alguns dos grandes etndlogos do mundo inteiro. Hoje, a agio inovadora e corajosa da Unesco levanta ainda um pouco mais 0 véu que cobre os tesouros do conhecimento transmitidos pela tradigdo oral, tesouros que pertencem ao patriménio cultural de toda a humanidade. Para alguns estudiosos, 0 problema todo se resume em saber se é pos- sivel conceder a oralidade a mesma confianga que se concede a escrita quando se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, nao ¢ esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim nao é mais que testemunho humano, e vale o que vale 0 homem. Nao faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no préprio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, 1 Tierno Bokar Satir, falecide em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande mestre da ordem mugulmana de Tijaniyya, foi icualmente tradicionalisia em assuntos africanos. Cf. HAMPATE BA, A. e CARDAIRE, M., 1957. 182 Metodologia ¢ pré-histéria da Africa 0 escritor ou o estudioso mantém um didlogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como Ihe foram narrados ou, no caso de experiéncia prdpria, tal como ele mesmo os narra. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geragao a geracio. As crénicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz (na Africa), cada partido ou nacéo “enxerga o meio-dia da porta de sua casa” — através do prisma das paixdes, da mentalidade particular, dos inte- resses ou, ainda, da avidez em justificar um ponto de vista. Além disso, os préprios documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificacoes ou alteragdes, intencionais ou nao, ao passarem sucessivamente pelas maos dos copistas — fendmeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as “Sagradas Escrituras”. O que se encontra por detras do testemunho, portanto, é © préprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissao da qual ele faz parte, a fidedignidade das memGrias individual ¢ coletiva e o valor atribuido @ verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligacao entre o homem ¢ a palavra. E, pois, nas sociedades orais que nao apenas a fungao da meméria é mais desenvolvida, mas também a ligacéo entre 0 homem e a Palavra é mais forte. La onde nfo existe a escrita, 0 homem esta ligado a palavra que profere. Esta comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A prépria coes%o da sociedade repousa no valor ¢ no respeito pela palavra. Em compensacio, ao mesmo tempo que se difunde, vemos que a escrita pouco a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando-se a tinica prova e o tinico recurso; vemos a assinatura tornar-se 0 tinico compromisso reconhecido, enquanto 0 lago sagrado e pro- fundo que unia 0 homem a palavra desaparece progressivamente para dar lugar a titulos universitarios convencionais Nas tradigées africanas — pelo menos nas que conheco e que dizem respeito a toda a regidio de savana ao sul do Saara —, a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um cardter sagrado vinculado a sua origem divina e As forgas ocultas nela depositadas. Agente magico por exceléncia, grande vetor de “forcas etéreas”, nao era utilizada sem prudéncia. Inameros fatores — religiosos, magicos ou sociais — concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissio oral. Pareceu-nos indispensavel fazer ao leitor uma breve explanacio sobre esses fatores, a fim de melhor situar a tradico oral africana em seu contexto e esclarecé-la, por assim dizer, a partir do seu interior. Se formulassemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista * airicano: “O que é tradigao oral?”, por certo ele se sentiria muito embaragado. Talvez respondesse simplesmente, apés longo siléncio: “Eo conhecimento total”. *O termo tradicionalista significa, aqui, detenior do conhecimento iransmitido pela tradi¢ao oral (N. do T.) A tradigdo viva 183 O que, pois, abrange a expressdo “tradi¢ao oral”? Que realidades veicula, que conhecimentos transmite, que ciéncias ensina e quem sao os transmissores? Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradigao oral africana, com efeito, nao se limita a historias ¢ lendas, ou mesmo a relatos mitolégicos ou hist6ricos, ¢ 0s griots esto longe de ser seus tnicos guardiaes e trans- missores qualificados. A tradigao oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer cadtica aqueles que nao lhe descortinam o ntwne nin cS SMMICMMACMESMONGMEOEIAMOEN Ao passar do esotérico para 0 exotérico, a tradico oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com 0 entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptiddes humanas. Ela é ao mesmo tempo religido, conhecimento, ciéncia natural, iniciacdo A arte, historia, divertimento e recreagao, uma vez que todo por- menor sempre nos permite remontar 4 Unidade primordial. Fundada na iniciagdo e na experiéncia, a tradig¢do oral conduz o homem A sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana. Uma vez que se liga 20 comportamento cotidiano do homem e da comu- nidade, a “cultura” africana nao é, portanto, algo abstrato que possa_ ser isolado da vida. Ela envolve uma visao particular do mundo, ou, melhor dizend), TOES; — um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem ‘A tradicao oral bascia-se em uma certa ETC SACIGMMGRIER do seu Para situd-la melhor no global, antes de estudé-la em seus varios aspectos devemos, portanto, retornar 20 proprio mistério da criacdo do homem e da instauracao primordial da Palavra: o mistério tal como ela o revela ¢ do qual emana, A origem divina da Palavra Como nao posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradigdes que nao tenha vivido ou estudado pessoalmente — em particular as relativas aos paises da floresta — tirarei os exemplos em que me apdio das tradicées da savana ao sul do Saara (que antigamente era chamada de Bafur © que constitufa_as regiées de savana da antiga Africa ocidental francesa). \ NE eosin que a Pala. Kuga, é uma forca fundamental que emana do proprio Ser Supremo, ee cisco: de todas as coisas. Ela é 0 instrumento da criagao: “Aquilo quetMaa Neula diz, é”, pfoclama o chantre do deus Komo. (© mito da criacdo do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que € sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revelacnos que quando, Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou 0 2Uma das grandes escolas de iniciagio do Mande (Mali). 184 Metodologia e pré- Antigamente a historia da génese costumava ser ensinada durante os 63 dias de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em seguida, passavam mais 21 anos estudando-a cada vez mais profundamente Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro circuncidado entoava ritmadamente as seguintes palavras: “Maa Ngala! Maa Neala! Quem ¢ Mag Neala? Onde esta Maa Negala? © chantre do Komo respondi “Maa Ngala é a Forga infinita Ninguém pode situd-lo no tempo e no espaco. Ele € Dombali (Incognoscivel) Dambali (Incriado — Infinito)”. Entao, aps a iniciagdo, comecava a narracéo da génese primordial: “N&o havia nada, senéo um Ser. Este Ser era um Yazio vivo, a incubar potencialmente as existéncias possiveis. O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um O Ser-Um chamou-se de Mag Ngala. Entao ele criou Bay’, Um Ovo maravilhoso com nove divis6es No qual introduziu os nove estados fundamentais da existéncia. Quando .9_Ovo_ primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que constituiram a totalidade do universo, a soma total das forcas exis- tentes do conhecimento possivel Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se Quinterlocutor (kuma-nyon) que Maa Negala havia desejado para si. Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e€ misturou-as; entéo, insuflando na mistura uma centelha de scu prdprio hilito igneo, criou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de seu proprio nome:_Mag. E assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do proprio Maa Ngala”. Sintese de tudo 0 que existe, receptaculo por exceléncia da Forca supre- ma e confluéncia de todas as forgas existentes, Maa, 0 Homem, recebeu de heranga uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra. Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos os elementos do cosmo foram formados e continuam a existir. Ele o intitulou guardigo do regou de zelar pela Harmonia_universal. Por isso é penoso ser J ST niiado por set criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descendentes tudo 0 que havia aprendido, e esse foi o inicio da grande cadeia de trans- missao oral iniciatéria da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, eic., no Mali) diz-se continuadora. Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, 20 mesmo tempo, dotava-o da capacidade de responder. Teve inicio 0 didlogo A tradigao viva 185 entre Maa Ngala, criador de todas as coisas, ¢ Maa, simbiose de todas as coisas. iS oe Como provinham de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas porque ainda nao haviam entrado em contato com a materialidade. Apds © contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por Sua_vez a conponsicede emitiu vibragoes sagradas que estabeleceram a comu- nicagao com Maa Negata. A tradigao africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus. Fla é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido aseendente. A fala humana como poder de criacdo Maa Negala, como se ensina, depositou em Maa as trés potencialidades do poder, do querer e do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi composto, Mas todas essas forcas, das quais é herdeiro, permanecem silen- ciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante cm que a fala venha colocé-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, cssas forgas comegam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a materializagdo, ou a exteriorizagio, das vibragdes das forcas. Assinalemos, entretanto, que, neste nivel, os termos “falar” e “escutar” referem-se a realidades muito mais amplas do que as que normalmente thes atribuimos. De fato, diz-se que: “Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala”. Trata-se de uma percepcio total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade. Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorizagdo das vibracdes das forcas, toda manifestacio de uma sé forca, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como sua fala, E por isso que no universo tudo fal tudo € fala que gahhou corpo ¢ forma. Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal hal, cuja idéia 6 “dar forea” e, por extensdo, “materializar’. A tradi¢do_ peul ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu forga a Kiikala, o primeiro ho- mem, falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peul). Se a fala é forga, € porque cla cria uma ligacio de vaivém, (yaa-warta, em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida € a¢a0. Este movi- mento de vaivém € simbolizado pelos pés do tecelao que sobem e descem, como yeremos adiante ao falarmos sobre os oficios tradicionais. (Com efeito, © simbolismo do oficio do teceléo baseia-se inteiramente na fala criativa em acao.) A imagem da fala de Maa Ngala, da qual é um eco, a fala humana coloca em movimento forgas latentes, que sdo ativadas e suscitadas por ela — como um homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome. A fala pode criar a paz, assim como pode destrui-la. E como 0 fogo. Uma nica palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incéndio. Diz o 186 Metodologia e pré-historia da Africa adagio malinés: “O que é que coloca uma coisa nas devidas condigdes (ou seja, a arranja, a dispde favoravelmente)’? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala, O que ¢ que mantém uma coisa em seu estado? A fala”. A tradicdo, pois, confere a. Kuma. a Palavrg, nio s6 um poder criador, mas também a dupla fungao de conscrvar ¢ destruir. Por essa razdo a fala, por exceléncia, ¢ 0 grande agente ativo da magia africana. agente ativo da magia Deve-se ter em mente que, de maneira geral, igdas_as_tra postulam uma visdo religiosa de mundo. O universo visivel é concebido ¢ sentido como o sinal, a.conerebizacio Quo cpvolierio de uo uaiversouinvisivel € vivo, constituido de forcas em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade césmica, tudo se liga, tudo é solidério, e 0 comportamento do ho- mem em relacio a si mesmo e em relagdo ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) sera objeto de uma regula- mentagao ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regides. ‘A violagio das leis sagradas causaria uma perturbacao no equilibrio das forcas que se manifestaria em distarbios de diversos tipos. Por isso a acao magica, ou seja, a manipulagao das forgas, geralmente almejava restau- rar 0 equilibrio perturbado e restabelecer a harmonia, da qual o Homem, como vimos, havia sido designado guardido por seu Criador. Na Europa, a palavra “magia” € sempre tomada no mau sentido, en- quanto que na Africa designa unicamente o controle das forcas, em siuma «coisa neutra que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direcao que se lhe dé. Como se di ‘Nem a magia nem o destino sdéo maus em si. A utilizagdo que deles fazemos os torna bons ou maus”, A magia boa, a dos iniciados e dos “mestres do conhecimento”, visa purificar os homens, os animais e os objetos a fim de repor as forcas em ordem. aqui é decisiva : als Assim como @ fala divina de Maa Ngala animou_as forgas_ cosmicas que lormiam, estaticas em Maa, assim também a fala humana~anima, coloca em movimento e suscita as forgas ug estéo estaticas nas coisas. Mas para que a ‘oduza_um_efeito total, as_palavr ptoadas ritmicas ie O _Movimento precisa de ritmo, estando cle ‘lao soap eee ‘A fala deve reproduzir o valvem que & a essen- cia dorie. Nas cangdes rituais e nas férmulas encantatérias, a fala é, portanto, a materializacao da cadéncig. E se é considerada como tendo o poder de agit sobre os espiritos, € porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram fotcas, forcas que agem sobre o$ espiritos que sito, por sua vez, as poténcias da acao. Na tradicao africana, a fala, que tira do sagrado 0 seu poder criador ¢ operativo, encontra-se em relacao direta com a conservacdo ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que © cerca. Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera amentira uma verdadeira lepra moral. Na Africa tradicional, aquele que falta A tradigao viva 187 4 palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo ¢ da sociedade. Seria preferivel que morresse, tanto para si proprio como para o$_seus. OMB do Komo Dibi de Kulikaro, no Mali, cantou em um de seus poemas rituais “A fala € divinamente exata, convém ser exato para com cla”. “A lingua que falsifica a palavra vicia o sangue daquele que mente.” O sangue simboliza aqui a forga vital interior, cuja harmonia € periur- bada pela mentira. “Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si pré- prio”, diz 0 addgio. Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa-se de si mesmo. Rompe a unidade sagrada, reflexo da unidade césmica, criando desarmonia dentro e ao redor de si. ‘Agora podemos compreender melhor em que contexto = cialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de_ancest de pessoas idosas. O que a Africa tradicional mais preza é a apego religioso ao patriménio transmitido exprime-se em frases como: “Aprendi com meu Mestre”, “Aprendi com meu pai”, “Foi o que suguei no seio de minha mae”. Os tradicionalistas Os grandes depositarios da heranca oral so os chamados “tradicionalistas”. Memoria viva da Africa, eles sao suas melhores testemunhas. Quem sao esses mestres? ome chamam-nos del MASUESBMIAE os “Conhecedores”, ou “fazedores de conhecimento”; em fulani, segundo a regiao, de palavras que possuem o mesmo sentido de “Conhecedor”. Podem ser Mestres iniciados (¢ iniciadores) de um ramo tra- dicional especifico (iniciagdes do ferreiro, do tecelao, do cacador, do pes- cador, etc.) ou possuir 0 conhecimento total da tradigdéo em todos os seus aspectos, Assim, existem Domas que conhecem a ciéncia dos ferreiros, dos pastores, dos tecel6es, assim como das grandes escolas de iniciagio da_savana — por exemplo, no Mali, etc. Mas nao nos iludamos: a tradicao africana nao corta a vida em fatias e raramente 0 “Conhecedor” é um “especialista”. Na maioria das vezes, é um “generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conhecer4 nao apenas a ciéncia das plantas (as propriedades boas ou més de cada planta), mas tam- bém a “ciéncia das terras” (as propriedades agricolas ou medicinais dos dife- rentes tipos de solo), a “ciéncia das aguas”, astronomia, cosmogonia, psico- Togia, ete. Trata-se de uma INN cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilizagao pratica. E quando falamos de ‘cienta iniciatsrias™ [SUEEGGHIEY, termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se_sem- pre, para a Africa tradicional, de uma 188 Metodologia e pré-historia da Africa consiste em saber como entrar em relacdo apropriada com as forcas que sustentam 0 mundo visivel e que podem ser colocadas a servico da vida. Guardiao dos segredos da Génese cOsmica e das ciéncias da vida, © tradi- cionalista, geralmente dotado de uma memGria prodigiosa, normalmente tam- bém € 0 arquivista de fatos passados transmitidos pela tradicao, ou de fatos contemporaneos. Uma historia que se quer essencialmente africana devera necessariamente, portanto, apoiar-se no testemunho insubstituivel de africanos qualificados. “Nao se pode pentear uma pessoa quando ela esta ausente”, diz o adagio. MGSESERGESMDSAME os de conhecimento total, eram conhecidos e vene- rados, e as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu conhecimento ¢ a sua sabedoria. WE, que me iniciou nas coisas fulani, era um Doma peul (um Silatigui). Hoje ¢ falecido. Ali Essa, outro Silatigui peul, ainda vive. Danjo Sine, que freqiientava a casa de meu pai, na minha infancia, era um Doma quase universal. Nao somente era um grande Mestre iniciado do Komo, mas também possuia todos os outros conhecimentos de seu tempo — hist6ricos, iniciatérios ou relativos as ciéncias da natureza. Era conhecido por todos na regio que se estende de Sikasso a Bamako, isto é, os antigos reinos de Kenedugu e de Beledugu. Seu irm&o mais jovem, Latif, que havia experimentado as mesmas ini- ciacdes, era também um grande Doma. Além do mais, tinha a vantagem de ler e escrever arabe ¢ de ter prestado o servigo militar (nas forgas francesas) no Chade, 0 que Ihe permitira coletar grande quantidade de conhecimentos na savana chadiana, que se revelaram andlogos aos ensinados no Mali. wa, pertencente a casta dos griots, é um dos maiores tradicionalistas do Mande vivos no Mali, assim como Banzoumana, 0 grande misico cego. Neste ponto € preciso esclarecer que um griot nao ¢ necessariamente um tradicionalista “conhecedor”, mas que pode tornar-se um, se for essa sua vocacao. Nao poderd, entretanto, ter acesso A iniciacao do Komo, da qual os griots sio excluidos ". De maneira geral, os tradicionalistas foram postos de parte, sendo perse- guidos, pelo poder colonial que, naturalmente, procurava extirpar as tradigdes locais a fim de implantar suas préprias idéias, pois, como se diz, “Nao se semeia nem em campo plantado nem em terra alqueivada”. Por essa razio, a iniciagao geralmente buscava refagio na mata c deixava as grandes cidades, chamadas de Tubabudugu, “cidades de brancos” (ou seja, dos colonizadores). No entanto, nos diversos paises da savana africana que formam o antigo Bafur — e, sem diivida, outras partes também — ainda existem “Conhece- dores” que continuam a transmitir a heranga sagrada aqueles que aceitam aprender ¢ ouvir ¢ que se mostram dignos de receber os ensinamentos por sua paciéncia e discrecao, regras basicas exigidas pelos deuses. Dentro de 10 ou 15 anos, os tiltimos grandes Doma, os tiltimos anciaos herdeiros dos varios ramos da Tradicdo provavelmente terao desaparecido. Se nao nos apressarmos em reunir seus testemunhos e ensinamentos, todo A respeito dos griots, ver mais adiante. A tradigao viva 189 © patriménio cultural ¢ espiritual de um povo cairé no esquecimento junta- mente com eles, ¢ uma geracio jovem sem raizes ficaré abandonada a prépria sorte. Autenticidade da transmissao Mais do que todos os outros homens, os tradicionalistas-doma, grandes ou pequenos, obrigam-se a respeitar a verdade. Para eles, a mentira nao é simples- mente um defeito moral, mas uma interdi¢do ritual cuja violagao |hes impos- sibilitaria 0 preenchimento de sua funcao. Um mentiroso néo poderia ser um iniciador, nem um ‘Mestre da faca”, e muito menos um Doma. Se, excepcionalmente, acontecesse de um tradi- cionalista-doma revelar-se um mentiroso, jamais voltaria a receber a confianca de alguém em qualquer dominio e sua funcio desapareceria imediatamente. De modo geral, a tradicdo africana abomina a mentira. Diz-se: “Cuida- -te para nao te separares de ti mesmo. E melhor que o mundo fique separado de ti do que tu separado de ti mesmo”. Mas a interdicdo ritual da mentira afeta, de modo particular, todos os “oficiantes” (ou sacrificadores ou mestres da faca, etc.) 4 de todos os graus, a comegar pelo pai de familia que é 0 sacrificador ou o oficiante de sua familia, passando pelo ferreiro, pelo tecelao ou pelo artesdo tradicional — sendo a pratica de um officio uma atividade Sagrada, como veremos adiante. A proibicao atinge todos os que, tendo de exercer uma responsabilidade magico-religiosa e de realizar os atos rituais, sao, de algum modo, os intermediarios entre os mortais comuns e as forcas tutelares; no topo estado o oficiante sagrado do pais (por exemplo, 0 Hogon, entre os Dogon) e, eventualmente, o rei. Essa interdi¢ao ritual existe, de meu conhecimento, em todas as ‘tradigoes da savana africana. A proibigao da mentira deve-se ao fato de que se um oficiante mentisse, estaria corrompendo os atos rituais. Nao mais preencheria o conjunto das condigées rituais necessdrias A realizagéio do ato sagrado, sendo a principal estar cle proprio em harmonia antes de manipular as forcas da vida. Nao nos esquecamos de que todos os sistemas magico-religiosos africanos tendem a preservar ou restabelecer o equilibrio das forcas, do qual depende a har- monia do mundo material e espiritual. Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam-se a esta obrigacdo, pois, enquanto Mestres iniciados, sao os grandes detentores da Palavra, prin- cipal_agente_ativo da vida humana e dos espiritos. Sao_os_herdeiros das ‘0 primeiro homem. (SSRSHARCSNAOMAEMOMAANPAIVEA os demais homens sio os depositarios do palavrério. .. 4Nem todas as cerimOnias rituais inchifam necessariamente o sacrificio de um animal. © “sacrificio” podia consistir em uma oferenda de paingo, leite ou algum outro produto natural, 190 Metodologia e pré-histéria da Africa Citarei 0 caso de um Mestre da faca dogon, do pats de Pignari (departa- mento de Bandiagara) que conheci na juventude e que, certa vez, foi forcado a mentir a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que ele havi escondido em sua casa. Apés o incidente, renunciou espontaneamente ao cargo, supondo que ja nao mais preenchia as condicoes rituais para assumi-lo lidimamente. Quando se trata de questdes religiosas e sagradas, os grandes mestres tradicionais no temem a opiniao desfavoravel das massas e, se acaso come- tem um engano, admitem o erro publicamente, sem desculpas calculadas ou evasivas. Para cles, reconhecer quaisquer faltas que tenham cometido é uma obrigagao, pois significa purificar-se da profanacio. Se o tradicionalista ou “Conhecedor” € tio respeitado na Africa, é por- que ele se respeita a si proprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um homem “bem equilibrado”, mestre das forcas que nele habitam. Ao seu redor as coisas se ordenam e as perturbagdes se aquietam. Independentemente da interdigio da mentira, ele pratica a disciplina da palavra e nao a utiliza imprudentemente. Pois sc as mente, a forca interior nasce da interiorizagao da fala. A partir dessa 6ptica, pode-se compreender melhor a importancia que a educacgao tradicional africana atribui ao autocontrole. Falar pouco é sinal de boa educacao e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a manifesiagio de suas emogdes ou de seu sofrimento, aprende a conter as forcas que nele existem, 4 semelhanga do Maa primordial que continha dentro de si, submissas ¢ ordenadas, todas as forcas do Cosmo. Dir-se-4 de um “Conhecedor” respeitado ou de um homem que € mestre de si mesmo: “E um Maa!” (ou um Neddo, em fulfulde), quer dizer, um homem completo. Nao se deve confundir SQM QUeTSwai aie ig uence senmacneinan que em geral pertencem ativos de casa”) *. Para estes a casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso ( nio_existe; yeremos_adiante, a concede o direito de travestita ou _de_embelezar_os Tatos,; mesmo que gros- seiramente, contanto que consigam divertir_ou interessar 0 ptiblico. “O grior” como se diz — “pode ter duas linguas™ Ao contrario, nenhum africano de formagao tradicionalista sequer sonha- ria em colocar em dtvida a veracidade da fala de um tradicionalista-doma, especialmente quando se trata da transmissio dos conhecimentos herdados cadeia dos ancestrais. Antes de falar, 0 Doma, por deferéncia, dirige-se as almas dos antepas- sados para pedir-Ihes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a lingua troque as palavras ou que ocorra um lapso de memoria, que o levaria a alguma_omissao. 5 Os Woloso (literalmente “os nascidos na casa"), ou “cativos de casa”, eram empregados ow familias de empregados ligados hd geracées a uma mesma familia. A tradigao conce- dia-Ihes liberdade total de ago e expressio bem como considerdveis direitos materiais sobre os bens de seus senhores. 1 Misico tukulor tocando © “ardin” (Kayes, Mali, N.° AO-292), Cantor Myet (Documentation Frangaise). 192 Metodologia e pré-histéria da Africa Danfo Sine, 0 grande Dieu bambara que conheci na infancia em Bou- gouni e que era o Chantre do Komo, antes de iniciar uma histéria ou ligio costumava dizer: “Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké! Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos teceldes, Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste! Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou Na trombeta do Komo, Vindo sobre o Jeliba (Niger)! Acercai-vos e escutai-me. Em concordancia com vossos dizeres Vou contar aos meus ouvintes Como as coisas aconteccram, Desde vos, no passado, até nés, no presente, Para que as palavras sejam preciosamente guardadas E fielmente transmitidas Aos homens de amanha Que serao nossos filhos E os filhos de nossos filhos. Segurai firme, 6 ancestrais, as rédeas de minha lingua! Guiai 0 brotar das minhas palavras A fim de que possam seguir e respeitar Sua ordem natural”. Em seguida, acrescentav: “Eu, Danfo Sine, do cla de Samake (elefante), vou contar tal como © aprendi, na presenga de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin” ® “Qs dois como eu conhecem a trama’. Eles serao a um tempo meus fiscais e meu apoio.” Se o contador de histérias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua testemunha o interromperia: “Homem! Presta atencdo quando abres a boca!” Ao que ele responderia: “Desculpe, foi minha lingua fogosa que me traiu”. Um tradicionalista-doma que nao é ferreiro de nascenca, mas que co- nhece as ciéncias relacionadas 4 forja, por exemplo, dira, antes de falar sobre cla: “Devo isto a fulano, que deve a beltrano, etc.”. Ele renderé homenagem ao ancestral dos ferreiros, curvando-se em sinal de devogao, com a ponta do cotovelo direito apoiada no chao e o antebraco erguido. O Doma também pode citar seu mestre e dizer: “Rendo homenagem a todos os intermedidrios até Nuynigyé...”, sem ser obrigado a citar todos os nomes. Existe sempre referéncia A cadeia da qual o proprio Doma é apenas um elo. Em todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissao se reveste de uma importancia primordial. Nao cxistindo transmissao regular, © Makoro e Manifin eram seus dois condiscipulos. 7 Uma narrativa tradicional possui sempre uma trama ou base imutdvel que nio deve jamais ser modificada, mas a partir da qual pode-se acrescentar desenvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiragdo ou a atengao dos ouvintes. estral dos ferreiros, A tradigéo viva 193 nao existe “magia”, mas somente conversa ou histérias. A fala é, entao, ino- perante. A palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissao original, uma forca que a torna operante e sacramental. Esta nogao de “respeito pela cadeia” ou de “respeito pela transmissio” determina, em geral, no africano nao aculturado a tendéncia a relatar uma histéria reproduzindo a mesma forma em que a ouviu, ajudado pela meméria prodigiosa dos iletrados. Se alguém o contradiz, ele simplesmente respon- dera: “Fulano me ensinou assim!”, sempre citando a fonte. Além do valor moral proprio dos tradicionalistas-doma e de sua adesao. a uma “cadeia_ de transmissdo”, uma garantia suplementar de autenticidade € fornecida pelo controle permanente de seus pares ou dos ancido; todeiam, que lene eal gamicn to paleo RLERe ROE NeMTSCMGE tron cetors e que i ]o_menor erro, coi imgs no_caso de Danfo Sine. No curso de suas excursSes rituais pelo mato, o chantre do Romo pode acrescentar as préprias meditacdes ou inspiragdes as palavras tradicionais que herdou da “cadeia” e que canta para seus companheiros. Suas palavras, novos clos, vém, enti enriquecer as palavras dos predecessores. Mas cle previne: s iniciados e os nedfitos que 0 acOmpanham aprendem essas novas palavras, de modo que todos os cantos do Komo sao conhecidos ¢ conser- vados na meméria. O grau de evolucéo do adepto do Komo nao é medido pela guantidade de palavras aprendidas, mas pela [iii iia esr anavea Se um homem sabe apenas dez ou quinze palayras do Komo, e-as vive, entao ele se torna um valoroso adepto do Komo dentro da associacao. Para ser chantre do Komo, portanto Mestre iniciado, é necess4rio conhecer todas as palavras herdadas, ¢ vive-las. A educagao tradicional, sobretudo quando diz respeito aos conhecimentos relativos a uma iniciacdo, liga-se a experiéncia e se integra A vida. Por esse motivo o pesquisador curopeu ou africano que descja aproximar-se dos fatos religiosos africanos esta fadado a deter-se nos limites do assunto, a menos que aceite viver a iniciacdo correspondente ¢ suas regras, 0 que pressupoe, no _minimo, Lembro-me de que em 1928, quando servia em Tougan, um jovem etné- logo chegara ao pais para fazer um estudo sobre a galinha sacrifical por ocasiao da circunciséo. O comandante francés apresentou-se ao chefe de can- tio indigena e pediu que tudo fosse feito para satisfazer ao etndlogo, insistindo para que “lhe contassem tudo”. Por sua vez, o chefe de cantéo reuniu os principais cidadaos e expés-Lhes os fatos, repetindo as palavras do comandante. O decano da assembléia, que era 0 Mestre da faca local, e, portanto, 0 responsdvel pelas ceriménias de circuncisdo e da iniciagéo correspondente, perguntou-lhe: “_ Ble quer que Ihe contemos tudo?” “_ Sim” — respondeu o chefe de cantao.

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