Você está na página 1de 4
HOMERO EO MUNDO MITICO DOS HEROIS Onde mito nao é mito, heréi nao é her6i e mundo nao é mundo Por André Malta Campos Jo € tarefa fécil para o Inelenistarestabelecero valor original que tinham para os sregos antigos idéias hoje tho bati- das e to largamente empregadas como as de mito, heréi e mundo (ou cosmos). A tarefa se revela ainda mais ingrata - e aparentemente desprovida de sentido - quando consideramos que os gregos antigos jamais tentaram estabelecer qual- ‘quer conceito a partir dessestermos. Desde Homero os significados de ‘mito: mythos; her6it heros e de ‘mundo: kosmos, eram to popu- lares, a ponto de todos os gregos ;poderem compreendé-los de manei- ‘a concreta eimediata. Nao passava pelo cabeca de ninguém formulas, a partir desses substantivos, nenhum tipo de abstrario tetrca. A despeito disso, ndo ¢ possvel negar que essas alavras tiveram uma vasta fortuna ‘semifntica, avos que foram, e con- tinuam sendo, das apropriagbes ‘mais diversas, em miitiplas refle- x0es eruditas, Nao possivel negar, sobretudo, a riqueza promovida por ‘essasreflexSes, multas delas capazes de iluminar, ainda que pelo inevité- vel expediente da abstracao e da focalizacdo especialissima, aquilo ‘que para outra cultura era dado vivi- doe em nada mais discernivel do ‘que muitos outros dados afin. essa forma, ainda que para os sgregos mito, mundoe herdindo ten- hham sido nada do que se vai afiemar ‘aqui ~ pelo simples e evidente fato de que 0 universo grego nto era para cles 0 que € para nés -, ainda assim, uma teorizacao sobre essas idéias obviamente pode, de manei- ‘a muito contundente e paradoxal, resgatar aquele sentido que nos escapa. E, no caso presente, talvez 0 ‘melhor ponto de partida para uma répida teoriracio e exposiglo se situe exatamente no entendimento do sentido concreto e nada notével desses termos em Homero. Na épica grega, mito, herdi e mundo queriam dizer, muito simples- mente: fala, guerreiro e arranjo. Na ‘Miada e na Odisséia, quando qual- ‘quer personagem se manifesta, seja um deus ou um homem, a sua fala é quase sempre designada por essa Palava, mythos discurso, Esse dis- ‘curso, por sua vez, pode ser pro- nunciado com ordenacéo, e nesse caso ele € clasiicado pelo inter- Jocutor como de acordo com 0 kos- ‘mas. Nesses poemas, quem fala ou age pode muito bem ser apresenta- Discutindo Literatura 9 ENTRE GREGOS E ROMANOS do pelo poeta como um “her6i’seja ‘ele o homem mais ilustre, como ‘Aquiles, ou mais desprezivel, como Tersites. Esses so evidentemente, para rn6s, sentidos fracos, banais, de mito, herbie cosmostmundo~ senti- dos que, a bem dizer, como que se ‘eolocam contra os sentidos que atribuimos presentemente a cada uum desses termos. Como 0 Mito pode ter sido, na origem, uma fala qualquer, muitas vezes nada fabu- losat Como em Homero o mais inexpressivo dos homens era Her6i? E como a idéia de Universo pode se ‘conciliar com a de um mero arranjo verbal? £ pelo desenvolvimento — ‘mesmo que breve ~ dessas idéias ‘primeiras, comuns, que talvez con- sigamos estabelecer-thes um senti- do prOprio, particular, que as ponha ‘em relevo, e dessa forma ponha também em relevo o sentido geral da poesia homérica. Comecemos pelo termo fundamental: mito. Qualquer personagem homérica, ‘como dissemos, quando fala, real ‘za um mito, Ora, essa fala, na cul- tura homérica, era uma fala de fato, {sto é: era uma emissio de voz, uma ‘vez que a cultura grega nessa época era fundamentalmente oral. Portanto, pela boca do cantor e pelo ‘ouvido do espectador (nuunca pelos olhos do leitor pela pena do escritor), cada personagem de fato falava ~ talvez até mesmo com ‘entonagao e gestual caracteristicos. ‘Ao mesmo tempo, todas essas falas de todos os personagens, mais 0s trechos narrativos que a elas se jun- tavam, correspondiam & grande fala do cantor, que era por sua vez visto ‘como um porta-voz das deusas da fala cantada, as musas. Portanto, cada poema era, em primeira instincia, uma fala, um discurso divino ~ com tudo que uma vocal- iragdo encantadora recorrente © presente (“ao vivo", diriamos) repre- sentava. Enesse sentido, ento, que podemos entender mito, e por esse sentido cada um dos poemas de Homero ¢ legitimamente um mito, Mas do que trata esse discurso? ‘Em termos bem genéricos, os poe- ‘mas apresentam agves entrelacadas dde Deuses e de homens, de seres mortais e mortais. A esses mortais, entretanto, por sua condicio ‘mesma, s6 0 canto ou a celebracao verbal facultavam acesso a uma espécie de imortalidade divina ~ e portanto todos os homens que aparecem nomeados em Homero sto herbisnesse sentido de homens sobre-humanos, que transcende- ram pela palavra a finitude hu- ‘mana. O herdi (em sentido homéri- co estrito}, ou seja, um guerreiro, ‘mesmo 0 mais obscuro e inativo dos guerreiros, é her6i (em sentido desenvolvido) porque se diferen- ciou dos demais mortais pela gloria. de ser cantado ¢ de seu nome no morrer. Sua existéncia, mesmo que ppossa por um lado n&o ser expo- nencial, por nfo ser marcada por grandes feitos, se insere de todo ‘modo num tmbito que ¢ indiscu- tivelmente exponencial. A palavra de Homero transformou seu sim- ples heros em herd. Finalmente, essa fala divina, que ‘conta as agbes dos deuses e desses homens que sao exponenciais (ain- dda que apenas pelo fato de nela apa- recerem), apresenta uma organiza- fo, uma ordem significativa, que atinge diretamente seus ouvintes. Nao ¢ ficcdo passada ou mera dis- tracio a poesia épica de Homero. Bla ¢ beleza profunda, presente e ‘atuante, & qual tudo 0 mais pode e deve se subordinar. Trata-se, por- tanto, de um mundo e de um cos- ‘mos que se descortina diante de ‘cada um deles, de uma significativa © complexa organizagio discursiva da realidade que se impée como a prépria realidade, por ser arranjo divino que extrapola o tempo ¢ 0 espago. Assim entendidos, muito breve- ‘mente, esses termos do mundo :itico dos herdishoméricos podem significar algo menos vago para nés readquirir nova luz: trata-se de uma ordenagio dramstica oral ~ pelo poder inigualavel da voz divina = em que homens extraordinérios do passado se relacionam com os ‘magnificos deuses, transportando seus ouvintes, homens comuns sem_ voz nem vez, para uma harmonia luminosa, prenhe de significados presentes, que para eles e abriam e reabriam a cada novo canto do mesmo canto. Nesse contexto, mito, ‘mundo € heréi sao realidades 80 ‘concretas que 56 podem ser vistas e vividas pelos sentidos - e no com 1s olhos da mente com os quais as Discutindo Literatura A1

Você também pode gostar