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A verdadeira unidade sociedade-espaco é his- torica (contraditéria) e nfo ecolégica (de con- tetido natural). Se a cidade nao é uma sim- ples ampliacao dos lugares, também a relacio contempordnea sociedade-espaco nao pode ser reduzida a uma reproduco bisonha dos anti- gos géneros de vida. Nesse capitulo tentamos, assim, estabelecer, em termos gerais, 0 que consideramos como as manifestacées histéricas mais centrais & anilise que estamos desenvolvendo. Esboca- mos, apenas, alguns pressupostos necessdrios ao prosseguimento da argumentacao. Avan- gé-la implica 0 exame mais cuidadoso de ou- tras teorizacdes do materialismo histérico e dialético, notadamente a andlise da teoria marxista do valor. 7 VALOR E ESPAGO A compreensio do processo de valorizagio do espaco e a construcao de uma teoria a respeito, exigem 0 recurso e o esclarecimento de uma categoria central do pensamento marxista que 6 0 valor. Marx realiza a reconstituicao criti- ca dessa categoria, examinando as diferentes concepgdes a0 longo da Economia Polftica classica, de inspiracao burguesa, desde o sé- culo XVII, Os resultados desse seu trabalho estio expostos, em particular, na sua obra Teorias da Mais-Vatia. ‘Ao contrério das ciéncias sistematicas espe- cializadas dos dias atuais, a Economia Politica classiea desenvolveu-se enquanto ciéncia vol- tada para uma anélise global da sociedade de sua época, preocupada com a totalidade da vida econdmica e social. Impulsionada pelos objetivos mais gerais de uma classe social em ascensdo (a burguesia), seus principais ted- ricos expressaram, de um lado, a necessidade de formular um éonhecimento cientificamente valido para os fenémenos préprios de um sis- tema econémico inteiramente novo e bastante complexo. De outro, a necessidade de, sutil ou explicitamente, justificar ideologicamente a 93 “senfreada por metais preciosos, relevancia e justeza de um modo de produ- cdo centrado na exploracao do trabalho alheio e na apropriacdo privada dos lucros. Essa jus- tificativa impelia-os a tematizar a questao da origem do valor. Explicd-la, significava, em Ultima instancia, captar a esséncia do modo como a riqueza era produzida e transformada em excedente para a acumulagao. Marx, en- tretanto, aponta o problema de que os gran- des economistas que o precederam, nem sem- pre se dedicaram explicitamente a essa ques- tao, preferindo tangencié-la ou mesmo enco- bri-la em suas dedugées tedricas. Por isso, as suas concepeoes sobre o valor nao raro tém de ser obtidas nas extensas andlises que desen- volveram, por exemplo, a respeito das formas de renda, de juros e do luero em geral. De todo modo, é preciso salientar a importancia que Marx atribuiu aos representantes da cha- mada Economia Politica cldssica ou burgue- sa, Sem deixar de desvendar criticamente o seu contetido ideolégico, reconhecia em muito de seus autores, a validade cientifica das teo- rias elaboradas e 0 rigor com que procuravam explicar a natureza dos processos de sua época. Coineidindo com o grande surto comercial europeu no século XVIT, desenvolve-se a0 nivel da Economia Politica, a chamada escola mer- cantilista. De maneira geral, o que caracteri- zava os diversos autores dessa época (Ortiz, A. Montchrétien, Tomas Mun e W. Petty, en- tre outros), era a idéia central de que o valor confundia-se com a moeda. Dai a procura de- principal- mente 9 ouro. Paises como a Espanha, que podiam contar com grandes quantidades desse metal de suas colénias, entraram em franco processo de entesouramento; outros, como a Franca e a Inglaterra, recorreram ‘aos seus respectivos Estados a fim de se regulamentar 0 coméreio sob formas monopolistas e, com isto, exporfarem os seus produtos por maior preco possivel e assim acumularem moedas. Em su- ma, a riqueza de um pais media-se pela sua capacidade de acumulagao de ouro e prata. Nesse contexto, sustentavam os mercantilis- tas que era a circulacdo de mercadorias e moe- das 0 fundamento de toda riqueza. Nao Ihes interessava a origem do valor, em si, mas 0 lucro, enquanto um excedente ‘acima do valor do produto, normalmente definido arbitraria- mente pela classe dos comerciantes e pelo Es- tado, organizados sob forma de monopélio. Dentre os economistas do século XVII, Marx destaca W. Petty, por ele considerado o pai da Economia Politica, cuja obra contém varias passagens importantes sobre a origem e a evo- lugao do valor. Distintamente de seus con- temporaneos, Petty atribui grande importancia aos mecanismos que determinam os precos das mercadorias. Para ele, toda mercadoria tem, além do prego arbitrado, um “prego natural”, ou seja, um valor real. A determinagdo desse preco natural sera dada pela quantidade de trabalho necesséria & producdo de uma dada mereadoria e pela variacdo do valor desse tra- batho em funcao do custo real de satisfagtio das necessidades do trabalhador. Reconhece, ainda, duas formas de mais-valia (lucro): a renda do solo e os juros de dinheiro. A mais- -valia, para ele, serd aquela parte em produto que sobra, apés a deducao dos gastos com o cultivo e com o trabalho necessario & subsis- téncia dos produtores. Nesse sentido, o lucro ser igual ao trabalho excedente. E qual sera © prego (natural) desse produto excedente? © equivalente a outro produto excedente em outro local, incluindo-se af o préprio ouro. 95 ae — Assim, todos os lucros tém a sua origem no preco natural dos produtos, ou seja, no tra- balho. ¥ a primeira formulacéo explicita da eategoria valor enquanto valor-trabalho. A escola mercantilista caracteriza-se pela defesa do coméreio em escala internacional, como o fundamento da riqueza. Apenas um ou outro de seus autores se dedicou A origem do valor ao nivel da producao. Entendiam a rea- lidade econémica centrada na participacio do Estado e no entesouramento de moedas sob organizacdo monopolista. Expressavam a idéia de uma sociedade econémica impulsionada pela circulacao na escala das nagdes. Nao era a produgio que estava em jogo, mas sim o dinheiro obtido num excedente nacional, re- sultante das trocas. A idéia de um comércio regulamentado pelos Estados (monopélio) e da criac&o de riqueza (valor), enquanto uma certa quantidade de moedas ‘acumuladas na circulacao, definia, de maneira geral, o siste- ma dos mercantilistas. No contexto do desenvolvimento da. indis- tria e da agricultura, em particular na Ingla- terra e na Franca, durante o século XVIII, novas idéias econémicas maream a economia politica da época, Em primeiro lugar, desta- cam-se as teorias de Adam Smith na Ingla- terra. Estas abordavam tanto a livre-concor- réncia e as “forcas de mercado” quanto os direitos individuais do produtor e do comer- ciante, contrapondo-se, assim, ao intervencio- nismo estatal do pensamento anterior. Opu- nha-se, frontalmente, A concepe’o dos mer- cantilistas. Em segundo, surge na Franca a escola dos fisiocratas (Quesnay, Turgot e ou- tros) que promovem uma verdadeira inflexdo nos rumos da anilise econdmica até entao, quando, abandonando a ética da circulacao, 96 tram a sua anélise na produgdo. Segundo Marx, os fisiocratas foram os primeiros a ana- lisar o ‘capital em todos os seus elementos e manifestagées durante o processo de trabalho. Por isso, os considera os “verdadeiros tunda- dores da moderna economia”. Interessava- cIhes, antes de tudo, a andlise empirica dos elementos constitutivos do funcionamento eco- nomico, a verdadeira fisiologia da economia, independentemente de consideracoes acerca do papel do Estado, da vontade dos individuos ou outras injungées externas. Segundo M. Dobb, em excelente estudo sobre 0 tema, tratava-se de descobrir e enunciar as “leis naturais”, de uma ordem econémica, capaz de regular a si propria. Essas leis “objetivas” podiam ser ra- cionalmente conhecidas, e regulavam nao s6 aordem econémica, como a ordem social como um todo. Nesse sentido, para os fisiocratas, a ordem burguesa, no plano econémico, era uma “lei natural”. ‘Uma segunda grande tendéncia tedrica que os caracteriza, 6a de que s6 a producdo na agricultura pode proporeionar um produto liquido (nato) ou excedente. Por isso mesmo, a industria e 0 comércio séio atividades supér- fluas, visto nfo serem produtivas. Salientam que 0 tmico trabalho produtiyo ¢ aquele que gera mais-valia, com 0 que concorda toda a economia classica (ourguesa). Relacionada a esta concepcio (a importancia da agricultu- ra), tem-se também o privilegiamento que os fisiocratas fazem sobre o papel da natureza no processo produtivo e na acumulacio. Dado © seu pressuposto de que a agricultura sempre produz uma renda liquida, ou seja, uma certa quantidade de produto além das necessidades do produtor, a explicacio desse fato, para eles, s6 pode ser buscada no papel da natureza 97 industria, por isso, nao adicionam matéria, apenas a modificam. Além disso, nao produ- zem eles proprios os seus meios de vida, Sendo. 9 valor das matérias-primas uma dada magni- tude fixa e o salério também prefixado, o va~ lor a mais, obtido pelo proprietario da fabrica, nao sera uma certa quantidade excedente de valores de uso (como na agricultura), mas apenas uma adigao de valor resultado de uma adigao de trabalho. A fonte primeira de valor continuaré sendo a agricultura, aquela que fornece um excedente fisico. Por isso, para Quesnay, a tinica classe pro- dutiva é a dos trabalhadores agricolas, sendo supérfluos os proprietarios, comerciantes e in- dustriais. Vé-se que os fisiocratas defendem a idéia de um valor fisico, indissociavel da ma- teria. No fundo, uma concepcdo naturalista de valor. Dai a observacéo de Marx, segundo © qual, para os fisiocratas, “a mais-valia é uma dadiva da natureza”. Por isso mesmo, 40 con- trario dos mercantilistas, 0 juro do ‘dinheiro nao constitui para eles um valor novo, pois ele nao se reproduz a si proprio, sendo apenas um equivalente invariével. O incremento do volu- me de produtos agricolas, este sim, constitui um novo valor. Como se vé, os fisidcratas re- jeitam a idéia de valor como uma forma de trabalho social ¢ da mais-valia como trabalho excedente, ainda que tenham o mérito de re- conhecer a apropriacao privada do trabalho alheio. A critica marxista a esse conjunto de 98 sobre a produtividade do trabalho. O valor puro e a mais-valia (0 lucro), somente obtidos na produgao agricola, tém, portanto, um fun- damento natural. Para eles, na atividade ma- nufatureira, por exemplo, ocorre apenas uma. transferéncia ao produto do valor das maté- tias-primas e do trabalho. Os trabalhadores na idéias reside justamente na sua concepeio fi- sica ou natural do valor (produto nato) ao seu apego ao valor de uso (matéria) e & con- cepeao de trabalho unicamente como trabalho conereto. Em resumo, se para os mercantilis- tas a mais-valia é sempre relativa (uns per- dem outros ganham), sendo o lucro resultado das flutuagdes do mercado, para os fisiocratas ela é absoluta, isto é, tem existéncia concreta, porém expressa sempre num produto nato: um resultado do trabalho concreto e das benesses do conjunto das foreas naturais. Em ambos os casos, uma concepcao metafisica de valor: a mais-valia 6 sempre resultado inerente ao funcionamento de uma certa ordem natural propria do sistema econémico.? _ . Outro grande autor da economia politica classica, preocupado com a origem do valor, foi Adam Smith. E verdade que ele nfo pode ser considerado como um tipico representante dos fisiocratas. Entretanto, dado o contexto historico comum, muitas de suas idéias coin- cidem com as daqueles. Em particular, no to- cante a uma “ordem natural” regulando a vida econémica. A contribuigio de A, Smith é notdvel e bastante original para a época. Afora a sua conhecida idéia geral acerca da chamada _livre-concorréncia, assentada nas forgas de mercado e da flutuacéo dos precos em fungo da lei de oferta e procura, é pre- ciso destacar, para o que nos interessa em particular, as suas idéias sobre o valor. Desde logo, Smith entende o valor como valor-trabalho. Para ele, o trabalho é a medida real do valor de troca de todas as mercado- tias, Trabalha com a idéia de um preco natu- ral, definido como sendo “igual & soma das taxas naturais dos salarios, lucro e renda”, em suas proprias palavras. De acordo com a { } 4 99 Eee idéia de mereado do autor, também os salarios, luero e renda sfo “taxas correntes ou médias”, determinadas pela oferta e procura de “tra. balho, capital e terra”. Isto significa que, as- sim como os bens em geral, esses bens “es- peciais” tém a sua disponibilidade determi- nada pela légica da concorréncia. Isto quanto ao funcionamento global da economia, Especificamente quanto a origem do valor e da mais-valia, Smith desenvolve duas teo- rias, para ele de validade dupla: a primeira quanto origem do valor em si (valor em geral, em sua forma pura); a segunda que teria uma validade para o caso particular do capitalismo. Na primeira formulacdo, parte do pressuposto de que todo valor de troca de uma dada mercadoria é igual & quantidade de tra- batho que ela contém. Por isso, sempre que se coneretiza um ato de troca, 0 consumidor estaré, em verdade, adquirindo por um certo equivalente em dinheiro, uma certa quanti- dade de trabalho. Esta, é a medida real do valor. A segunda formulaeao pode ser aplicada ao caso do capitalismo. De acordo com o autor, © fato de individuos lograrem realizar uma certa acumulacao de capital torna-os aptos a adquirir meios materiais para a producao e a contratar trabalho alheio, pago em salario. © que ocorre, neste caso, é que o total de tra- batho incorporado ao produto, divide-se ao final da producéo, em duas partes: uma que representa os salarios e outra que constitui 0 lucro. Como se vé, o lucro para Smith 6 ape- nas uma dedueSo natural do produto do tra- _ balho. De qualquer modo, sera sempre o tra- balho a verdadeira e mais segura medida do valor, Isto porque, para o trabalhador, o tra- balho tem valor invarldvel: é sempre uma dada quantidade necessdria A sua reprodugao 100 enquanto trabalhador. O que muda é 0 valor desse trabalho para o capitalista, pois nesse 0 ele varia em fungao do prego, por exem- plo, dos alimentos (de grande peso no custo da reproducao). Dai, que para o autor, ao con- trario do dinheiro, que varia conforme a in- flac, o valor do trabalho é invariavel, o que 0 qualifica como a medida real do valor. Disso esulta que todas as mercadorias sao sempre vendidas pelo seu valor real, nunea abaixo ou cima dele, Como, entao, o capitalista se apro- pria da mais-valia? Segundo Smith, vendendo sempre uma certa quantidade de trabalho, além daquela pela qual pagou. O luero sera, assim, sempre 0 equivalente a parcela de tra- balho nao pago. Marx observa, a respeito, que Smith, neste ponto, nos aponta a verdadeira origem da mais-valia. A mais-valia. para o autor, porém, néo se reveste apenas na forma lucro. Tal qual para 0s fisiocratas, ela aparece também sob a forma de renda do solo. Sé que, ao contrario daque- les, esta nao é, evidentemente, a fonte exclu- siva de valor. Assim, nao s6 o capital aparece coro posse privada frente ao conjunto dos trabalhadores. Também os proprietarios de terras aparecem como um contraponto do tra- balho. Estes representam o papel de alguém que apés assenhorear-se, de diversas manéiras, das terras disponiveis surge no mercado “exi- gindo uma parte da colheita sem haver se- meado”. O trabalhador, face ao proprietério, yé-se entéo obrigado a transferir uma parte do produto de seu trabalho a ele, uma “renda do solo”. Na verdade, o que o produtor esta pagando ao proprietério é uma parcela do seu trabalho excedente (acima do equivalente ao custo de sua reproducio). Como a maior parte dos trabalhadores agricolas néo possui terras, 101 — acaba submetendo-se ao capitalista arrenda. tdrio, que o emprega e Ihe adianta capital, mas quer recebé-lo de volta, adicionado de uma parcela que deduz do trabalho excedente do cultivador. Os juros sio, também, a ter- ceira forma que se reveste a mais-valia. O “sistema” de Smith se completa quanto ao que se refere 4 sua teoria sobre a origem do valor: O valor 6 visto como valor-trabaino, © trabalho como fonte tnica e equivalente verdadeiro (a medida real) do valor. A apro- priagéo é vista como excedente de trabalho, formas de mais-valia, A mais-valia como lu- cro e renda do solo, a renda do solo como parcela do excedente paga ao proprietario e parcela apropriada pelo arrendatério capita- lista. Como observa Marx, Smith representa. um consideravel avango em relacdo aos fisio- cratas, quando reconhece a mais-valia como uma apropriacéo do sobretrabalho, tanto na industria como na agricultura. Entretanto, tal qual os fisiocratas, nao concebia a mais-valia como categoria especifica, confundindo-a com as formas por ela assumidas. Como se vera adiante, Marx, distintamente, examinaré a mais-valia como categoria real, em sua exis- téncia propria, independentemente de suas modalidades concretas. _No contexto da evolucio do capitalismo, o século XIX certamente se relaciona com o de- senvolvimento da grande industria. Do ponto de vista da Economia Politica, este século se- r4 marcado pela intensificacio do debate, da producio tedrica e pela grande projecio de alguns dos autores do periodo. Dentre esses, destacamos David Ricardo, o representante maior do perfodo dureo do capitalismo e da economia politica classica ou burguesa. Com Ricardo, diz M. Dobb, surge “uma teoria in- 102 tegrada do valor, do lucro e da renda”. Ele revoluciona © modo como até ento se expli- cava a origem do valor. Ao contrario de seus edecessores, a0 defender a idéia de que o ‘ponto de partida” e o fundamento do valor na produgdo burguesa € 0 tempo de trabalho. Do mesmo modo que Smith, parte do valor- -trabalho e do valor-de-troca, ou “a capaci- dade para adquirir outros bens”. Como o valor 6 determinado pelo tempo de trabalho, ele 6 sempre, para Ricardo, um valor relativo. Para diferencié-lo daquele valor relativo referente a variagdo dos equivalentes entre mercadorias ele o chama de valor real ou valor. A idéia de que o tempo de trabalho determina o valor das mercadorias, deve ser aplicada nao apenas ao trabalho invertido na produgéo das merca- dorias (trabalho novo), mas igualmente na- quele j contido previamente nas matérias- -primas e nas méquinas e equipamentos. A este denomina capital constante (trabalho pretérito). Justamente ai reside a contribui- cdo revolucionéria de Ricardo. Ele retira a origem do valor dos limites estreitos da pro- ducéio imediata, do seu funcionamento “natu- ral”, O tempo de trabalho e a mais-valia pas- sam a ser vistos como o “ponto de partida” de toda acumulaciio. Além daquela parcela que € retribuida pelo salario, existe outra j4 con- tida nos meios de produgdo. & essa a conexio intima que ele descobre, entre a mais-valia e 0 proceso geral de producao capitalista. Como diz Marx, com isto ele distingue e aponta a contradicdo entre o “funcionamento real” e o “funcionamento aparente” do sistema. Entre o valor das mercadorias determinado pelo tra balho invertido no ato de sua producao (apa- réncia) e 0 trabalho global, empregado tanto na produgao imediata, quanto aquele prévio, 103 despendido na produgio dos instrumentos, méquinas, edificios ete. (o valor real). Para Ricardo, a proporcao de capital constante nao afeta diretamente o valor das mercadorias nem a quantidade relativa de trabalho para produ- zi-las, mas determina uma variagdéo na quan- tidade de mais-valia, o que resulta em precos diferentes dos valores. Ao contrario de Smith nao existe, para Ricardo, um equivalente invaridvel de valor, uma medida real. Isto porque todos os ele- mentos que compéem o valor possuem quan- tidades varidveis de trabalho. Isto é valido para todas as mereadorias, incluindo o dinhei- Fo como tal. O resultado é um sistema com- plexo de precos relativos, seja de mercadorias, seja de salarios, cujas flutuages dependem da variag&io dos precos dos cereais. Essa variacio, por seu turno, depende da flutuacao dos pre- Gos de produgdo que, para o autor, devem ser examiniados segundo a produtividade média do trabalho de um especifico famo de producéo como um todo. Chega-se, assim, a um preco médio de produgao em cada ramo. Por isso 0 valor das mercadorias serd sempre relativo. Alguns membros de um dado ramo produzem segundo condigées médias de produtividade e seu preco final seré entdo um preco que coin- cide com a média geral do ramo; outros pro- duzem em condicées acima da média, sendo o valor individual de suas mercadorias inferior a0 valor médio; finalmente, outros produzem em condigées abaixo da média, sendo o valor individual superior 4 média, Assim, 0 preco de mercado das mercadorias desse ramo néo coincide com o seu valor real, a0 nivel de cada produtor em particular. O que se tem é um preco absoluto para valores relativos, um prego de mercado definido pela preponderan- 104 cla de um dos trés grupos de produtores alu- didos. Os lucros serao, assim, sempre diferen- ciais. ‘Como se vé, Ricardo estabelece uma intima relaco entre a sua teoria sobre a renda dife- rencial (do solo) e os lucros diferenciais, na producao de mercadorias em geral. Neste as- pecto, a teoria do valor ganha contornos bas- tante distintos quando comparada com os predecessores de Ricardo: o prego de mercado das mereadorias nao é determinado (como afirmava Smith) pela lei da oferta e procura, mas pelos precos de produgéio. Além do mais, nao é diretamente o valor que determina esse prego, mas as variagdes de produtividade (tem- po de trabalho) em sua determinacdo sobre os pregos de producio. A idéia do tempo de trabalho acumulado sob forma de capital cons- tante é fundamental para Ricardo. » Quanto & mais-valia, também Ricardo néio a examina em sua forma categorial especifi- ca. Ela nunca é dissociada de suas modalida-* des: lucro, juuros e renda do solo. Segundo Marx, quando Ricardo tenta examinar a mais- -valia em si, a confunde com o lucro. Isto por- que, quando trata da taxa média de lucro, ele a relaciona, nao com o tempo de trabalho, mas com a quantidade de capital investido na produeao. De todo modo, ele toca no ponto central da origem da mais-valia. Afirma que 0 valor do trabalho é sempre inferior ao valor do produto por ele criado. Em outras palavras, 0 valor do trabalho devolvido aos operdrios, em forma de salarios, é apenas uma parcela do valor total. A diferenca restante é, para ele, a mais-valia, sendo sua a afirmacao: “O lucro 6a sobra dos salarios”. Esta, por sua vez (& taxa de lucro), varia conforme 2 maior ou menor produtividade do trabalho, dada uma 105 jornada fixa, pois isto afeta a quantidade de trabalho necessario para a producdo dos meios de subsisténcia e, evidentemente, a quantidade de trabalho excedente nao pago. Segundo Marx, Ricardo no ultrapassa, assim, a mais- -valia em sua forma relativa. Nao chega na mais-valia em sua forma geral (absoluta), contida também no capital constante (meios de producao). Ele apenas a concebe enquanto lucro proveniente da variacao da quantidade de trabalho (produtividade), que define as parcelas de trabalho pago e néo pago, parce- Jas do valor repartidas entre os operarios e os capitalistas. Como conseqiiéncia geral, tem-se que, na producao capitalista, sob a dtica de Ricardo, todo 0 chamado progresso técnico, em particular na industria, é sempre um meio que os capitalistas encontram para diminuir a quantidade de trabalho vivo contido no va- lor final das mercadorias, visando, assim, au- mentar a quantidade de sobretrabalho e, com isso, os lucros. Nesse sentido, 0 avanco de Ri- cardo é realmente notavel. A segunda forma de mais-valia (de lucro) examinada por Ricardo, 6 a renda do solo. A famosa renda diferencial, ou “renda ricardia- na”, também revoluciona 0 modo como essa questdo vinha sendo posta. Por duas razées Principais: primeiro, porque concebe a renda nao como um produto excedente de uma pro- ducfo em si, isolada do circuito capitalista, mas como um excedente de valor, expresso nos precos agricolas e também nos lucros do agricultor, do comerciante ou fabricante. Se- gundo, porque interpreta esse produto exce- dente & luz da “produtividade marginal do trabalho” na atividade agricola, onde a renda 6 a diferenca entre a producao “obtida pelo emprego de duas quantidades iguais de capital 106 ¢ trabalho”. Em outros termos, a diferenca de produtividade do trabalho em terras de dife- rentes graus de fertilidade. Mais que isso, se- gundo Dobb, pois Ricardo também concebe a renda como diferenga de produtividade obtida pela aplicagéo sucessiva de capitais numa mesma terra. De um lado, a maior fertilidade da terra nova em contraposicao a terra an- tiga; de outro, a produtividade obtida pela aplicdcdo de mais capital a terra, A sua renda, portanto, tem como suposto uma margem ex- tensiva e intensiva de cultivo. ame ‘A esséncia da renda diferencial esta, assim, associada & expansio da agricultura capita- lista, Além disso, como os salarios em geral (tanto na agricultura como nos outros ra- mos) séo pagos sob a forma de um equiva- lente geral (os cereais), a renda obtida na margem afeta todo o sistema econémico, a0 determinar nao s6 o valor dos salérios como, conseqiientemente, dos lucros em geral. Assim, quanto maior a renda do solo agricola (ob- tida, por exemplo, numa terra mais fértil) menor o lucro, pois parte do rendimento li- quido do capital é transferido ao setor agri- cola. Como a renda equivale aos ganhos adi- cionais, obtidos na diferenca entre precos iguais de venda para rendimentos desiguais no cultivo, os lucros globais acabam depen- dentes deste mecanismo geral. Tais teoriza- cées de Ricardo séo sobremaneira importan- tes para a discussio propria da Geografia, Com Ricardo, encerra-se um perfodo da Eco- nomia Politica. O que representa, nesse campo especifico de reflexdo, o que Lukes denomi- nou “fase herdica” do pensamento burgués. Superar suas idéias implicaria, segundo o pr6- prio Marx, ultrapassar a concepcdo burguesa de mundo. A prépria “reacdo contra Ricardo”, 107 demarca bem a solidificagdo do dominio bur- gués sobre toda a sociedade. Encerrado 0 ciclo das revolugdes burguesas, 0 pensamento eco- némico perderé, cada vez mais, 0 seu compo- nente critico. A nova classe dominante nio interessava mais “desvendar” as relagdes ca- pitalistas. O que se viu, a partir’ dai, foi um progressivo distanciamento da Economia, ago- ra entendida como ciéneia econémica, dos pro- blemas globais da sociedade, logo, da politica, A recuperacio critica da obra de Ricardo sera efetuada, ent&o, pelo proprio Marx. Antes de entrar na teoria marxista do valor, cabe retomar alguns aspectos acerca dos au- tores até aqui apresentados. A trajetéria da economia politica classica expressa uma pro- gressiva desnaturalizacdo no entendimento do valor. Em primeiro lugar, passa de uma idéia fisica do produto do trabalho, para uma con- cepcao social do valor, em que este é medido pelo tempo de trabalho. Em segundo lugar, o peso das forcas naturais na explicacao do pro- cesso de produgio cede lugar A primazia da produgao social. A desnaturalizagio do valor é, assim, uma expressdo, no plano do pensa- mento, do processo material de “desruraliza- 80” da propria producdo: a consolidacéio do dominio da atividade industrial. Iustra esse proceso a ampliacdo do significado do con- ceito de recurso natural. Enquanto Smith diz: “Na industria a natureza nao fax nada, tudo € feito pelo homem"; Ricardo retruca:’ “Nao existe nenhuma industria em que a natureza n&o ajude generosa e desinteressadamente ao homem”. Assim como essa, a questao da renda também tangencia o temario geografico. A fer- tilidade absoluta do solo, por exemplo, e o seu papel na composicao do valor é problema cons- tante na exposicao dos autores. O tema do 108 valor do lugar 6, assim, destacado. Também a discussio sobre a margem de cultivo em seu papel no povoamento e colonizacao de novas terras 6 sumamente importante para a dis- cusséo dos gedgrafos. Como se vé, a ida aos classicos da Economia Politica ¢ fundamental para o estabelecimento do “‘pensamento geo- grafico” subjacente a uma teoria marxista da Geografia. # interessante notar que Massimo Quaini, ao apresentar os esforcos pioneiros de discussdo de uma “Geografia Humana” (nos séculos XVII e XVIII), n&io faz menco aos economistas politicos desse periodo. A postura que Marx assume diante do legado tedrico da Economia Politica classica contém para os gedgrafos criticos uma série de en- sinamentos. Em primeiro lugar, destaque-se o respeito que Marx demonstrou ter com a obra de seus antecessores. Ele a estudou profunda- mente. Em suas leituras, apesar do teor cri- tico previamente assumido, resgata as formu- lagdes mais avancadas, numa permanente dia- Iética de superacao: negacao com assimilacao. © proprio subtitulo de sua obra principal, O Capital — Critica da Economia Politica, bem revela o significado preciso da critica em Marx, tida como a real ultrapassagem tedrica. A re- novagio critica de qualquer ciéncia particu- lar demanda, portanto, o emprego de tal pos- tura tedrica. O exemplo de Marx é, assim, ex- tremamente rico para todos os que pretendem construir uma Geografia nova, pelo menos na érbita do marxismo. Marx nio parte da Economia Politica e é isso que o distingue fundamentalmente dos demais. Vai buscé-la tendo realizado previa- mente uma longa reflexao filoséfica, em que compreendeu o papel da determinagao do eco- némico sobre o movimento da totalidade so- 109 cial. Obras como Critica da Filosofia do Esta- do de Hegel, Critica da Filosofia do Direito de Hegel, A Sagrada Familia, Manuscritos Eco- némicos e Filoséficos e Ideologia Alemé, séo anteriores a seus estudos sistematicos sobre a Economia Politica. Ao chegar a esta, ele jé possui, por exemplo, uma concepgdo ‘explici- tada das classes sociais e da luta de classes. Traz também em sua bagagem uma conside- rdvel experiéncia na militéncia politica revo- lucionéria. Exilado alemao na Franca, parti- cipa das jornadas de 1848, analisando-as pos- teriormente em O Dezoito Brumdrio de Luis Bonaparte e As Lutas de Classe na Franca. Com a derrota do movimento revolucionério, emigra para a Inglaterra e ai, num trabalho de quase uma década, realiza uma longa pes- quisa sobre a Economia Politica (expressa mais diretamente em Teorias da Mais-Valia) @ qual fundamentaré a sua principal produ- go, aguela precipuamente econémica: Ele- mentos Para a Critica da Economia Politica (Grundrisse), Contribuigéo @ Critica da Eco- nomia Politica e O Capital. Para Marx, o valor é, antes de tudo, uma categoria social. Nao ha valor sem trabalho. Coneebe-o em seu duplo significado: valor de uso ¢ valor de troca. O primeiro expressa a substancia mesma do valor, o seu fundamento material. Ele exprime a utilidade dos produ- tos para a satisfacdo das necessidades huma- nas, sendo a materializagio mesma do tra- balho humano. A medida real do valor de uso sera, entéo, a quantidade de trabalho (expres- sa em tempo de trabalho) socialmente neces- séria para sua obtenciio, Nesse sentido, a his- toria humana, até o advento do capitalismo, é marcada basicamente pela produgao de va- Jores de uso. Com a intensificacio do comér- 110 cio e da produgio de mereadorias, a énfase passara a ser a produco de valores de troca. Contudo, o valor de uso continua tendo uma existéncia real, sé que agora como veiculo do valor de troca. Este, fundamenta-se na utili- dade do produto para o consumo alheio, o que o torna apto a troca, a possibilidade de uma equivaléneia geral entre os valores de uso que permite a generalizacao da troca. Tal equivalente, para Marx, 6 a quantidade de trabalho. Assim a mercadoria, na sociedade ca- pitalista, aparecera como a unidade contradi- toria entre o valor de uso e o valor de troca. No valor de troca nfo importam mais as qui lidades intrinsecas dos produtos, mas exclusi- vamente a sua virtualidade para a circulacdo. A possibilidade da troca reside na existén- cia de uma equivaléncia geral entre as mer- cadorias. Esse equivalente é 0 trabalho huma- no em geral (abstrato), contido nas mercado- rias. Nesse sentido, nao importam as qualida- des intrinsecas de’ cada trabalho ou de cada mercadoria em particular, mas o trabalho humano homogéneo, “forca média de traba- Iho social”. 0 valor de uma mereadoria, como expressio do tempo de trabalho, agrega nfo apenas o trabalho (vivo) despendido na sua produgdo imediata, como também o trabalho (morto), contido nos meios de producao. A relacdo en- tre esses dois fatores, no processo de producto, manifesta-se mediada pela produtividade do trabalho, para Marx também uma medida so- cial. Na definicéio da equivaléncia, nao se tra- ta, portanto, da produtividade dessa ou da- quela produciio individual, mas da produtivi- dade social média. Isto também é valido para a determinagao dos salarios e do dinheiro. Nas palavras de Marx, “a produtividade do tra- it balho é determinada pelas mais diversas cir- cunstancias, entre elas a destreza média dos trabalhadores, 0 grau de desenvolvimento da ciéncia e sua aplicacao tecnologica, a organi- zagio social do processo de produgio, 0 vo- Tume e eficdcia dos meios de producio e as condigées naturais”. Na economia capitalista, as mercadorias apresentam-se em sua dupla forma: a fisica ea de valor, Marx desnaturaliza ou descoi- sifica 0 valor, quando parte do valor como valor de troca. Bste é uma “realidade social”, na medida em que se manifesta “na relacdo social em que uma mercadoria se troca por outra”, na circulagdo. O valor das mercado- rias, enquanto expressdo de uma dada quan- tidade de trabalho, possui uma equivaléncia entre sie tem na forma dinheiro — uma mer- cadoria especial — o seu equivalente universal. © capitalismo produz, assim, exclusivamente para a cireulagao. Nesse sentido, para este mo- do de produciio s6 sera produtivo o trabalho que produzir valores de troca. ‘Assim como o valor, o capital, para Marx, também é entendido como categoria social. Em suas palavras, “o capital ndo é uma coisa, mas uma relac&o social expressa em coisas”. A re- lagéio entre valor e capital deve ser explicada pelo circuito das mercadorias e do dinheiro, um circuito social de trocas. O dinheiro se transforma em capital pela forma especifica de seu movimento em tal circuito. A for- ma antiga (mercadoria-dinheiro-mercadoria), contrapée-se a nova (dinheiro-mercadoria- -dinheiro). Isto 6, investe-se dinheiro na pro- dugao de mercadorias para obter-se mais di nheiro. O capital é, assim, 0 consumo produ- tivo do dinheiro. No capitalismo, 0 dinheiro 6, entao, “o ponto de partida e a meta final 112 do movimento”, o que seria, para ele, a vida do cireuito econémico. © capital, segundo Marx, compée-se de duas fragdes: capital constante e capital va- ridvel. O primeiro representa a massa de di- nheiro que o capitalista tem investido em meios de produc&o. Estes representam as ma- térias-primas (capital circulante) e as insta- lagdes e maquinarias (capital fixo), ambos depositarios de trabalho morto. O segundo (capital variével) consiste na massa de di- nheiro que o capitalista despende na compra de uma mercadoria especifica: a forca do trabalho, O consumo de tal mercadoria vivi- fica, por sua vez, todo o processo de produ- cdo. O preco dessa mereadoria (a forca de trabalho) seré determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessario para a repro- duco do trabalhador: definem-se, assim, os salarios, Contudo, ela é a tinica mercadoria que, em seu consumo, cria valor. Marx des- venda, assim, a esséncia da producio capi- talista. ‘A mais-valia para ele 6, desta forma, uma categoria especifica, Expressa um sobrevalor oriundo do trabalho excedente, nao pago. Dis- tingue duas formas de mais-valia. A primeira, denominada absoluta (até entéo desconheci- da pela Economia Politica), cuja origem emer- ge do capital variavel, diretamente do trabalho nao pago. Quanto maior a diferenca entre o preco da forca de trabalho e a quantidade de valor por ela adicionado ao produto, maior ser a taxa de mais-valia absoluta, isto 6, a proporcao de trabalho excedente. A segunda, denominada relativa, decorre da composicéio organica do capital, isto é, da proporedo de sua parcela constante. Quanto maior a inversio de capital em meios de produgao, maior a taxa 113 de mais-valia relativa, isto é, o capitalista em- bolsa um quantum maior do preco final da mercadoria. A adigdo de valor, nesse caso, 6, contudo, menor, posto ser o trabalho a tnica fonte de valor. A diminuicéo da parcela de trabalho vivo implica, porém, um consumo mais intensivo, uma superexploracdo. Com isto, Marx demole toda apologética mistifica- dora acerca da maquinaria. Sintetizando, nas palavras do proprio autor: “A producéo da mais-valia absolute. se realiza com o prolonga- mento da jornada de trabalho além do ponto em que 0 trabalhador produz apenas um equi- valente ao valor de sua fora de trabalho e com a apropriacao pelo capital desse trabalho \, excedente. Ela constitui o fundamento do sis- tema capitalista e 0 ponto de partida da pro- dugéio da mais-valia relativa, Esta pressupée | que a jornada de trabalho j4 esteja dividida em duas partes: trabalho necessario e trabalho excedente. Para prolongar o trabalho exce- dente, encurta-se o trabalho necessério com métodos que permitem produzir-se em menos (tempo o equivalente ao saldrio. A producéo da mais-valia absoluta gira exclusivamente em torno da duracdo da jornada de trabalho; a produgdéo da mais-valia relativa, revoluciona totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinagées sociais. A producéo da mais- -valia relativa pressupée, portanto, um modo de produgdo especificamente capitalista. . (© lucro capitalista, para Marx, é a manifes- taciio do processo de apropriacio das duas formas de mais-valia. Sendo esta apropriacdo assentada na propriedade privada dos meios de produgao, revela claramente o contetido social e politico dos processos etonédmicos. Por isso, 0 lucro, distintamente do modo pelo qual era tratado (uma decorréncia “natural” da \ producdo), é entendido como a manifestagao de determinada estrutura de dominaco polf- tica, O lucro capitalista possui, assim, deter- minados pressupostos histéricos: 0 trabalho livre (um mercado de trabalho), uma acumu- lagdo prévia de capital que se materializara nos meios de produgéo, a privatizacio das terras, uma certa concentracao geogrdfica da populacaio e dos demais fatores de producdo © a generalizacdo da circulacao, Marx deno- minou 0 desenvolvimento dessas_condicées prévias de “processo de acumulagéo primiti- va”. A transformacao do lucro em capital se a por sua reinser¢éo no processo_produtivo, aumentando a massa de capital. O modo de producao especificamente capitalista ultra- passa a reproduedo simples do capital, isto é, a recorréncia da producao, na mesma escala. Esse modo de produgao implica uma reprodu- edo ampliada do capital. Esta se da pela ex- panséo continua da producao, da mais-valia, logo, dos lucros. Dai o cardter essencialmente expansionista do capitalismo. Esta seria, assim, uma pequena sintese dos fundamentos da teoria do valor em Marx. Sua exposicao integral foge, obviamente, aos limi- tes do presente trabalho. Basta lembrar o nt- mero de volumes de que se compde O Capital, para nao falar de seus comentaristas poste- riores. O que tentamos resgatar aqui, isto sim, € a sua posicéo fundamental quanto a dois problemas assenciais: a génese do valor e a esséncia do capitalismo. Nesse sentido, a pré- pria exposicio feita até aqui fala por si quanto ao cardter revoluciondrio de sua teoria. No que importa especificamente ao trabalho que estamos desenvolvendo, podemos dizer que, neste ponto, j4 contamos com o instrumen- tal tedrico necessdrio tentativa de relacionar os _processos sociais ao estudo geogratico. Foi através de um trajeto no proprio estudo do marxismo que pudemos chegar a afirma- cio acima, Isto porque a problematica do valor insere-se na teoria marxista como o funda- mento da explicago sobre o movimento da totalidade social. Dai a necessidade de seu exame minucioso. Nao existe o ser social sem trabalho..Nao existe trabalho sem criacio de valor. Todo processo social explica-se assim, em Ultima instancia, pelo recurso as categorias valor e trabalho. Temos, assim, assumida uma teoria do valor. Podemos comecar a falar, por- tanto, em processo de valorizagdo do espaco. Como jA foi dito no inicio desse trabalho, interessa-nos da obra de Marx, fundamental- mente, de um lado, o seu método revoluciona- rio e, de outro, as teorias que mais se apro- ximam da discussiio de um temério geogra- fico, Reafirmamos que ndo se trata de buscar uma “geografia” na obra de Marx, mas de tra- zer, para a nossa discussdo, aquilo que em sua obra constitui tragos de um certo “pensa- mento geogrfico” de Marx. Fora a teoria do valor, j apresentada, existe uma série de teo- rizacoes mais especificas que nos interessam de _perto. Na sua anilise sobre a renda, em particular, Marx toca em questées centrais para uma teoria sobre a valorizacéio do espaco. Inicial- mente resgata de Ricardo suas idéias acerca do papel da distancia relativa e da fertilidade absoluta do solo, na determinacao da produti- vidade do trabalho. Segundo essa teoria, os produtores melhor localizados, seja em relacdo & sua distancia do mercado, seja em fungo da qualidade de seus solos, auferem uma ren- da excedente em relagaio ao conjunto dos pro- dutores. Ricardo denominou tal excedente de 116 renda diferencial, Marx expandiu essa idéia na sua teorizagéio sobre o lucro suplementar em geral. Defende a idéia da existéncia de uma tendéncia & taxa média de luero na sociedade pitalista; isto é, o lucro do capital aplicado tenderia @ ser 0 mesmo em todos os ramos da atividade econémica. Essa taxa é determi- nada pelo preco médio de producio. Quando, num tamo da produgdo, um produtor indivi- dual desenyolve algum aprimoramento técni- co do processo produtivo, conseguindo maior produtividade, ele passa a auferir um lucro suplementar. Porém, a légica do capitalismo nao é essa, e tende a atuar dentro do sistema, no sentido do rebaixamento da taxa média. O tempo de vigéneia do lucro suplementar, na érbita da industria (excetuando-se a situacio do monopélio), é assim limitado. Na agricul- tura, ao contrério, a existéncia de um lucro suplementar é perene, porque na agricultura existe uma renda. ‘Ainda, segundo as idéias de Ricardo, a pro- dutividade do cultivo nos piores solos deter- mina a taxa média da agricultura. £ a sua idéia de margem de cultivo. Marx a recupera, ao discutir a colonizacgiio dos E.U.A., em que © povoamento (agricola) vai avancando pelos melhores solos até uma determinada distancia do mercado, em que o custo do transporte co- meca a tornar vidvel a producéo em terras menos férteis, porém mais préximas. Assim, 0 jogo entre produtividade e distancia ¢ alta- mente explicativo desse processo concreto de povoamento. Ricardo, a esse respeito, ja dizia, como vimos, que a tendéncia ao rebaixamento da margem leva a que, a partir de um deter- minado momento, seja rentavel aumentar o volume de capital aplicado naqueles cultivos menos férteis. A maior aplicagéo de capital, 117 corresponde um aumento de produtividade (margem intensiva de cultivo), 0 que eleva a parcela de lucro suplementar. Marx, a isso, denominou renda diferencial IZ, a que advém da produtividade decorrenté de uma massa maior de capital. Apesar do mérito atribufdo por Marx a es- tas idéias ricardianas, cle as supera critica- mente em sua propria teoria geral da renda. Sendo a terra um bem finito e uma condicao de existéncia e de produgao para os homens, sua propriedade privada permite ao seu de- tentor auferir. uma renda absoluta. Em qual- quer caso, a propriedade de uma.dada parcela do espaco terrestre gera uma renda fundidria absoluta, O que é o “arrendamento”, senfio uma expressio da existéncia dessa renda? O proprietdrio passa a possibilidade de uso da terra a um terceiro, que vai explora-la nos moldes da empresa capitalista. O que ocorre € que, independentemente da maior ou menor produtividade de tal empreendimento, uma parcela do lucro obtido ira, inevitavelmente, para os bolsos do dono daquele espaco. A pro- priedade 6, assim, o fundamento da renda ab- soluta, Resta ainda, porém, a terceira forma de renda para Marx: a renda de monopélio. O fundamento do monopélio é a existéncia de uma situacdo privilegiada dentro das condi- g6es médias da producéo. Ocupar uma con- Gicdo desigual (e positiva) no processo de pro- ducdo. A posse de um recurso natural escasso, aufere ao seu detentor essa forma de renda. Marx dé 0 classico exemplo da queda d’4gua, propiciando um menor custo pela energia hi- dréulica no paga ao detentor da parcela do espaco em que ela esta localizada, quando este a emprega como meio de producio. Vé-se que 118 a concepedo de natureza de Marx, enquanto recursos e forcas naturais de producio, nao se restringe & forca de trabalho humano nem ao solo agricola ou A mineracio. Importou- -Ihe examinar o papel desses recursos, na sua relagéo com a propriedade e a ‘produtividade. ® evidente que Marx concebe a natureza tam- bém em sua desigual distribuicéio no Globo. Porém, a distribuicdio daqueles recursos natu- rais necessaria A producdo no ocorre de for- ma simplesmente desigual. Alguns sio abso- lutamente raros, sendo o seu dominio o fun- damento da renda de monopélio. Hé outras teorizacdes de Marx, mais espe- cificas que interessam diretamente A discus- so dos geégrafos. Preferimos, entretanto, exa- mind-las posteriormente, seja no interior da nossa propria argumentag&o no préximo capi- tulo, seja no segundo volume desse trabalho. A teoria da colonizagio moderna seria um exemplo. No capitulo anterior, procuramos apontar os fundamentos gerais de uma relag&o sociedade- -espaco. Neste, julgamos j4 ter avancado no sentido de uma argumentacdo mais precisa a respeito do nosso tema central. Nesse percur- so, descobrimos que a sociedade relaciona-se com 0 seu espaco material e todas as coisas que ele contém, através de um permanente processo de valorizacdo. O homem, com o seu. trabalho, cria e transfere valores. Parte des- ses valores se agregam ao espaco e vaio condi- cionar, assim ‘como os recursos da primeira natureza, processos futuros. Isto elimina, a priori, a, possibilidade de uma teoria marxista da Geografia que ndo discuta a origem do va- lor. Nao séo a sociedade em abstrato e o es- paco em abstrato que se relacionam. Entre eles, medeiam as determinagées de um dado 119 modo de produgdo, $6 estas, contudo, nao bas- tam. £ mister elaborar uma teoria sobre suas formas proprias de valorizar o espago. Isto é © que procuraremos desenvolver no préximo capitulo. 120 8 A VALORIZAGAO DO ESPAGO Nesse ponto de nossa investigacao, apés suces- sivas aproximaces tedricas, j4 podemos deli- near o proceso especffico de que trataria uma teoria marxista da Geografia. Esse processo, enquanto objeto, foi gradativamente se im- pondo no transcurso da propria discussio dos fundamentos do marxismo em sua relacéo com o temario da Geografia. As sociedades hu- manas, para reproduzirem as condig6es de sua existéncia, estabelecem, como visto, relacdes vitais com o seu espaco. Nas palavras eloqiien- tes de Milton Santos: “Produzir é produzir es- paco”. Este é o nosso fundamento geral: o de- senvolvimento histérico ilustra a objetividade e a materialidade dessas relacdes em suas muil- tiplas manifestagdes. Nesse sentido, ficou claro 0 papel do trabalho como mediador universal dessa relacdo. Sendo o trabalho a fonte do valor, essa. relagdio, do ponto de vista do mar- xismo, é fundamentalmente um processo de valorizacdo. ‘Ao longo dessa exposigfio, foi levantada uma série de pressupostos que o objeto devera con- ter. Em primeiro lugar, a idéia de que ele de- ve, necessariamente, ser um processo. Além 121

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