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ROGER-POL DROIT Erica UMA PRIMEIRA CONVERSA ‘TRAGUGRO E ANALIA CORREIA Rios capétuto T AS AVENTURAS DE UMA PALAVRA ~“Btica’: De onde vem essa palavra esquisita? Vem do grego éthos. Mas nao é fécil exprimir 0 que éthos significava para os gregos da Antiguidade. Porque ¢ impossivel achar uma palavra tinica de nosso vocabulério atual para traduzir esse termo. Com efeito, ele tinha varios significados para os ‘quais nio temos equivalente num termo tii ‘vez que o recorte das ideias era diferente do Ethos significa, em primeiro lugar, o “habitat”, exatamente a maneira de uma espécie animal “habi- taro mundo”. O éthos dos péssaros? Voar, cantar, cis- car, fazer ninhos, botar ovos, se transportar no ar de ‘uma regido a outra ou de um continente a outro, Hoje existe uma disciplina cientifica chamada etolo- gia. Ela estuda os compor seu meio natural. Essa disciplina ¢ muito diferente dda ética, mas seu nome se formow a partir da mesma palayra, thos. E nao € 86 isso! Porque éthos, em grego, pode significar também 0 “caréter” de uma pessoa, a ma- neira como ela “habita o mundo” em fungao de suas disposicoes naturais. Ethos significa igualmente os “costuumes’, as maneiras de se comportar numa de- terminada sociedade, numa determinada época. Nes- s€ caso, € portanto a maneira como vivem 0s ho- ‘mens, 0s costumes que observam, os tipos de regras que seguem, as leis sob as quais portamento” que esti por tras dos diferentes usos do termo éthos. E vocé pode constatar que a distribui- ‘a0 dos significados nao a mesma que a nossa. Com efeito, nés no vinculamos as leis de uma so- iedade, o caréter dos individuos e as maneiras de ser de um animal. O termo, em grego antigo, cobre um dominio diferente do que se tornou hoje, mais amplo e mais diverso. ~ E verdade, esti longe daguilo a que estamos habituados. ~ E, no entanto, ainda temos que viajar para acompanhar as aventuras dessa palavra até nés, Pois falamos de éthos, mas ainda nao de ethiké, que deu origem diretamente a “ética”. Ethiké é 0 adjetivo de- tivado de éthos. Ao pé da letra, podemos traduzi-lo por “comportamental” © termo aparece no filésofo Arist6teles, que foi o primeiro a forjar a expresso -almente, “contemplacdo compor- tamental”) para designar um saber “relative & ma- neira de se comportar’”. Aqui esté a primeira das definicoes possiveis, e sem dtivida a melhor, do que é a “ética” para os gre- gos: uma forma de conhecimento que diz respeito aos comportamentos. Mas vocé vé imediatamente que hé uma distingao importante a ser feita entre dduas atitudes, duas maneiras de considerar os com- portamentos. Por um lado, podemos simplesmente descrever, dizer como as pessoas se comportam numa deter- ‘minada regio, num determinado povo ou numa determinada tribo, Nao vamos procurar julgar, sa- ber se 0 que eles fazem é bom ou mau, nem se fazem ‘melhor ou pior que seus vizinhos. Vamos nos limi- tara dizer como eles se comportam. ~£ mais objetivo! = Nao tenho certeza disso. £, em todo caso, pu- ramente descritivo. Procedemos assim, aliés, quan- do observamos uma espécie animal. Ninguém diré que é “mau.” os peixes respirarem com as branquias, ‘ou que os mamiferos fazem “melhor” respirando ‘com os pulmées. Descrevemos unicamente as suas ‘maneiras de ser. ‘Mas, observando os comportamentos, uma ou- tra atitude € possivel. Ela consiste em procurar saber como se comportar da melhor forma possivel. Tenta determinar quais sao 0s “bons” comportamentos, que vamos buscar e tentar seguir, ¢ quais sio os “maus’, aqueles que devem ser evitados, afastados, ou combatidos. Aqui se coloca a questao dos juizos rnormativos, que enunciam o que é bom ou mau. B preciso entio procurar saber em fungi do que cer- tos comportamentos so melhores ¢ outros, menos bons. Trata-se portanto de fazer julgamentos morais. sobre os comportamentos, de discernit os que so portadores de valores positivos daqueles que, pelo contririo, io amorais ou antimorais, portadores de perigos ou valores destrutivos. ~ Voce fala de julgamentos morais, do bem e do mal, dos valores, etc. A ética 6, afinal, a mesma coisa que moral? — Essa questo ja provocou numerosos debates! © problema é que é tdo correto responder “sim, é mesma coisa” quanto “nao, é diferente”, — Como resolver? —E muito facil, uma vex que esses termos so semelhantes em determinados niveise diferentes em outros. Comecemos pelo nivel em que eles se confun- dem, Acabamos de dizer: os gregos da Antiguidade usavam o termo “ética” para designar 0 que se refere aos comportamentos de uma coletividade ou de um individuo, 0 que € relativo aos costumes, bons ou ‘maus, dos seres humanos num determinado mo- em latim, Cicero tomou 0 equivalente latino de éthos, ou seja, mos, os modos ou costumes, no plural, mores. Para exprimir “o que é relativo aos costumes”, ele inventou o termo moralia, quer dizer 05 “dados morais’, construido com base no mesmo modelo que ethiké. ‘Dessa forma, “moral” diz em latim exatamente a ‘mesma coisa que ethiké em grego. Sao duas palavras perfeitamente semelhantes, mesmo tendo sido for- jadas a partir de raizes diferentes. “Moral” é a tradu- A partir desses fundamentos idénticos, je de campos semelhantes se constituiram: “atica” e“moral” se preocupam indistintamente com " 08 valores, ¢ essencialmente com 0 bem ¢ o mal, re= fletem identicamente sobre os fundamentos dessas distingdes, indagam similarmente como discernir e ‘como aplicar as regras fundamentais, Esses tramites procedem em paralelo, numa lingua ou na outra. = Entto, onde esta a diferenga? ~ Existem ainda hoje pensadores que afirmam ‘que nao existe, de fato, diferenca real entre ética e ‘moral. Quanto a mim, acredito que nao hé efetiva- mente nenhuma cisio profunda e radical entre as duas nogées. Todavia, 20s poucos foi se estabelecen- do uma diferenciagio nos usos dos dois termos. Na época moderna, considerou-se com frequén- ia que 0 termo “moral” pudesse estar reservado a0 tipo de normas e valores herdados do passado e da tradigio, ou entio da religiao. “Moral” especializou- se mais ou menos no sentido daquilo que “€ trans- mitido’, como cédigo de comportamentos e juizos jé constituidos, mais ou menos cristalizado. Nesse sen- tido, aceitamos ou rejeitamos a moral de uma familia ‘ou de um meio, seguimos os preceitos que a caracte- rizam ou os transgredimos. A moral parece consti- tuir um conjunto fixo e acabado de normas e regras. Hoje, a0 contrétio, o termo “ética” é empregado rincipalmente para os campos em que as normas ¢ 18 regras de comportamento estdo por ser construfdas, inventadas, forjadas por meio de uma reflexao que € geralmente coletiva. Por exemplo, 0 avango das téc~ nicas médicas cria na nossa época situagdes total- ‘mente desconhecidas pelas geracbes anteriores. Tor- nou-se possivel realizar fecundagdes in vitro, ou fazer que uma mulher, durante a gravidez, carregue a crianga por uma outra~o que € chamado de “barri- ga de aluguel”— ea restitua apés 0 nascimento. Em face dessas situages inéditas, é de perguntar se essas priticas devem ser autorizadas ou proibidas, se elas so boas ou més, em que casos, para que pes- s0as, sob que condigdes. Entdo, é necessério elaborar regras, moldé-las, levar em conta vérios pontos de vista, eventualmente chegar a conciliagdes. Esse & 0 trabalho da ética no vocabulé Em resumo, se nés quisermos termos, “moral” seria refer dos; “ética’, 0 trabalho de elaboracio ou de ajuste necessdrio em face das mudangas em curso, ~ Fa tinica diferenga? = Nao, 6 claro que nao. E preciso acrescentar a essa distingao o fato de que o termo “moral”, nos 9 liltimos tempos, frequentemente tem sido entendi- do de maneira pejorativa: “Nao venha me dar ligo de moral!” Supde-se, portanto, que a “moral” conte- nha forgosamente um discurso enfadonho, repres- sor, ultrapassado, muitas vezes penoso de ser ouvido e instil porque sem resultados. “Moral” parece ter-se tornado um termo pesado. Evoca reprimendas coergOes, anuncia preceitos que parecem rigidos ¢ caducos. Prefere-se deixa-lo de lado. Por essa razao preferiu-se, as vezes, voltar ao ter- ‘mo antigo, que, paradoxalmente, parecia mais novo. Comesou-se a falar em “ética” em ver de falar em “moral”: Como se disséssemos: “Nao venha me dar ligdo de moral, é enfadonho. Mas fale-me de ética, é sais interessante” Seria apenas um truque, uma troca de palavras e nao de pontos de vista, a0 menos se n6s admitirmos que os dois termos designam 0 mesmo tipo de reflexio. ~ Para vocé, existe ou nao uma diferenga entre es- ses dois termos? —Por muito tempo, no existiu praticamente di- ferenga nenhuma. Em seguida, como eu disse, 0 ter- mo “ética” passou a ser utilizado, numa época recen- te, para falar daquilo que esté por ser inventado no dominio moral. A ética se tornou o nome da moral 20 em via de se fazer, de se buscar, em particular a respeito de assuntos novos. Esses novos casos nao se restringem ao dominio médico, ao qual ja fiz alusao. O casamento homossexual, a protego dos menores na internet, a livre difusdo da pornografia, a legali- zacao das drogas leves e varios outros assuntos s0- ciais nao sto objeto de uma unanimidade da opi- nito piblica. Portanto, a discussao esté aberta, e as opinives, divididas. Mas é preciso ter consciéncia de uma coisa: to- dos esses debates, cada vez mais numerosos e que no futuro se multiplicarao ainda mais, estao ligados a0 fato de nossa época ja ndo viver sob a influéncia de uma moral dominante capaz de reger tudo. Pelo contrério, © que domina, na maioria das vezes, sto diividas sobre as regras a seguir, perplexidades sobre 0s principio a serem aplicados. ~Aonde vocé quer chegar? Imagine uma sociedade inteiramente domina- da por uma religito. S6 esta define 0 que deve ser feito. Sua tradicio dita as maneiras de se comportar € os valores a seguir. Neste caso, quase nio hé espago para refletir. Certamente podemos nos perguntar como aplicar a regra neste ou naquele caso dificil, mas no geral é s6 seguir: a solugao existe, indepen- a dentemente de qualquer reflexdo, A verdade jé é dada, presente, conhecida. Nao esté por ser elabora~ da ou construida. Esse ndo € 0 caso das sociedades desenvolvidas contemporaneas. As evidéncias morais sio menos claras, pois ha sempre varias maneiras de encarar as questées morais. As respostas ja ndo so tinicas. Li- damos com uma pluralidade de eritérios de moral, com uma espécie de policentrismo ou de estrutura em arquipélago que manifesta a stibita eclosio dos valores e das manciras de avaliar o que é bom e o que é mau. Diante dessa pluralidade de morais, a reflexéo ética como pesquisa torna-se necessariamente mais ativa. Revela-se até indispensével na medida em que, numa sociedade em vias de globalizagio, trata-se de inventar a coabitagdo de varios sistemas de valores que em outras épocas se ignoravam uns a0s outros ¢ tinham poucas ocasides para se confrontar no coti- diano, Jé nao vivemos sob o reinado de uma moral \inica capaz de tudo dominar e controlar. A partir de agora nos encontramos, ao cont ios pontos de vista, varios focos desafio atual consiste em fazé-los se encontrarem, em tentar equilibré-los, em propor solugoes que 2 ossam suscitar um consenso ou, pelo menos, um acordo aceitavel por todos. Nesse sentido, poderia- mos dizer que a nova tarefa da ética é, de alguma ‘maneira, organizar a vida comum das diferentes morais. = Para consegui-lo imagino que seja preciso co- nhecé-las bem. ~ Com certeza. Em todo caso, € preciso ao me- nos ter compreendido as principais atitudes que or- ganizam 0 panorama. E, para isso, ainda temos um bom caminho a percorrer. Capttute 2 UM DOMINIO SEM FRONTEIRAS —Afinal, do que trata a ética? ~ De todos os nossos atos! Desde as pequenas ocupagées do dia a dia até as grandes decisoes que tomamios apenas raramente na vida, Mas essa res- posta nao esté completa, pois falta definir de que ‘maneira particular a ética considera nossos diversos feitos e gestos. Pois hé muitas maneiras de examinar nossos comportamentos... Por exemplo, pelo angu- Jo da energia muscular desp (gostar mais de leitura do que de exe ‘ou vice-versa), ou ainda pelo angulo do sendimete ‘econémico (entregar uma encomenda no quinto an- dar pode render alguma coisa, ler este capi tamente enriquecedor, mas em outro sentido). Qual 6, entdo, o Angulo espectfico sob 0 qual a ética analisa nossos comportamentos? Para chegar 25 @ essa resposta, devemos lembrar que estamos sem- re nos perguntando “como agir”. Pois nao somos ‘miéquinas, robés programados para executar uma tarefa sem refletir. Ao contrério, a0 longo do dia, ¢ a0 longo da vida, nés decidimos. Assumimos res- onsabilidades, mesmo nas coisas mais simples que fazemos. Quando criangas, perguntamo-nos se é melhor desobedecer ou obedecer as ordens que nos dio. Po- demos indagar se devemos denunciar quem come- teu uma besteira e provocou uma catéstrofe. Quan- do adolescentes, indagamos se devemos guardar os segredos dos melhores amigos ou se, as vezes, sob determinadas circunstancias, ¢ preferivel revelé-los, Quando adultos, teremos milhares de oportunida- des para deliberar se é bom ou mau dizer determi- nada verdade aos nossos filhos, 20s noss0s pais, aos 1nossos préximos, aos nossos amigos ou a0s nossos colegas. Ja velhos, poderemos nos perguntar se de- vemos esperar a morte quaisquer que sejam as doen- {£28 € 08 sofrimentos que nos esperem, ou se & poss{- vel escolher o dia e a hora de nossa partida. £Esses so apenas alguns exemplos. Na verdade, ‘nds agimos sempre nos perguntando qual a“melhor ‘maneira’ de agir. Iso permite dar uma nova resposta, 26 sempre muito simples, & sua pergunta:a ética é, an- tes de tudo, o conjunto de reflexdes ligadas a ques- es do género “O que devo fazer? Como devo me comportar®” = Queremos fazer sempre 0 melhor? Na realidade, sim. Mas o que complica situa~ Go € que esse “melhor” ndo & necessariamente ‘mesmo para todos. Nao é sempre aquilo que é con- siderado “bem” para a maior parte das pessoas. Ima- gine que alguém se pergunte: “O que eu poderia fazer para agir da pior manei pode aconte- cer: quando queremos nos vingar, quando somos levados pelo édio, animados pela vontade de preju- dicar. Vocé pode ver imediatamente que ao fazer essa pergunta estamos pensando de fato que esse “pior” sera o que ha de... melhor! © melhor sera “o ‘que é mais maldoso”, Assim, mesmo nesse caso, que- ‘emos sempre, no fim das contas, fazer “ber”, SGcrates, mestre filésofo que vivia em Atenas no século V antes da nossa era, foi o primeiro a subli- nar esse paradoxo: mesmo 0 ladrao, criminoso, 0 ditador querem o bem. Simplesmente, eles se enga- nam de bem, Aos olhos de Sécrates, nao existe, por- tanto, vontade inteiramente negativa: nao podemos querer 0 mal pelo mal. Parecemos escother 0 mal, ‘mas de fato queremos o bem. Nés apenas nos des- vviamos, enganando-nos de bem. — Isso parece um pouco estranho... ~A primeira vista, certamente. O que é preciso terem mente, por enquanto, é que por tras de nossas decisées cotidianas, aparentemente banais, varias questées se delineiam. No fundo, ha uma grande quantidade de reflexdes que se tornam rapidamente necessirias para saber como devemos agit. Quer se trate de escothas simples ou de decisoes fundamentais, de preferéncias sentimentais ou polt- ticas, de tomadas de posigao individuais ou coletivas — em associagoes, em empresas, em instituigdes -, sempre essa interrogagdo ética esté envolvida. Aliés, seu alcance no termina af. £ ainda mais vasto, uma vex que a ética diz respeito igualmente as decisoes da vida internacional, & guerra e & paz, luta contra as desigualdades entre as regides do mundo. Podemos até aumentar essa lista, pois hé tam- bém uma dimensao ética nas agées para a manuten- <0 dos equilibrios naturais, a preservagao das con- digdes de vida das geragdes futuras, a reparacio dos saques ao planeta, ete. Como voce vé, o campo das interrogagdes éticas ndo tem fronteiras. Elas se en- 28 ‘contram em toda parte, em todos os setores da ativi- dade humana, individual ou coletiva. —Em todos esses campos, ent, a ética deveria nos {fornecer pardmetros de como agir? Ela deve nos dizer 0 que devemos fazer? — Nao exatamente. £ ao mesmo tempo mais simples e mais sutil Pois nao se trata apenas de saber 0 que devemos decidir nos préximos quinze minu- tos, em fungao da situasdo particular em que esta- ‘mos. Trata-se de saber em nome do que vamos tomar ‘uma decisio em vez de uma outra, quais sio 0s valo- res aos quais vamos nos referir, quais sio os critérios de nossa escolha. A questo mais importante nao € necessariamente saber que decisio vamos tomar. O cessencial ¢ entender em fungao do que escolhemos uma solugdo entre as duas — ou entre as quatro, as cinco ou as dez—possibilidades que se apresentam. Em outras palavras, a ética nao é uma atividade pratica em que possamos nos limitar a aplicar regras de maneira mecanica. E preciso também refletir so- bre © que justifica essas regras, sobre o que funda- ‘menta as escolhas de agdes, sobre o ponto de partida que adotamos, os métodos que queremos colocar ‘em pratica, os resultados que queremos atingir... E as raz®es que legitimam tudo isso! 29 ~ Entretanto, muitas vezes decidimos alguma coi- sa sem refletir. Quando agimos de pronto, espontarea- ‘mente, estamos agindo fora da ética? — Nao obrigatoriamente. Na verdade, quando agimos sem verdadeiramente refletir, decidindo ra- pidamente, sem ponderagbes, também nesse caso fornecemos um modelo aos outros. Mesmo sem pensar nisso, sem querer, construimos uma ética. ~~ Vocé pode explicar isso? Se resolvo agir de uma determinada maneira e no de outra, é porque julgo a minha maneira de agir a melhor, ou a menos mé. Fago o que acho que deve ser feito. Isso continua sendo verdade inclusive quando tenho a impressio de estar “agindo sem pensar”, automaticamente, Mesmo que eu ndo me faca muitas perguntas, ofereco aos outros, apenas or agir, uma espécie de modelo, ssa ideia foi defendida especialmente pelo fil6- sofo francés Jean-Paul Sartre, morto em 1980. “Es- colhendo-me, escolho o homem’, ele afirma. O que significa isso? Imagine que alguém trapaceie no jogo entemente ndo pode ser vocé e muito menos sa pessoa que trapaceia dird, sem duivida: “Sei que isso nao se faz, que nao devemos trapacear, porque isso falseia 0 jogo. Mas, desta ver, estou esco- a0 voct esté dizendo: ‘deve-se trapacear. Voce est sugerindo que isso € certo, que tabelece um modelo. Nesse sentido, voce escolhe que o homem seja um trapaceiro. Bis 0 que voce dé como modelo & humanidade. Voce afirma que isso nao diz respeito a0s outros? E uma hist6ria que voce cst inventando para escapar a sua responsabilidade.” Ent, se entendi bem, quando fago alguma coi- ‘a que aparentemente s6 diz respeito a mim, na reali- dade estou dando wm exemplo para todos os outros? ~ Sim, €iss0 mesmo. E justamente isso que Sar- tre quis dizer. Nas nossas acoes, nunca agimos uni- ‘camente por nossa conta, também decidimos, indi- retamente, pelos outros, por todo © mundo, E 0 que resume esta formula: “Escolhendo-me (ou ‘mando decisoes que parecem dizer respeito somente a meu caso particular, a minha existéncia pessoal), estou escolhendo o homem (na realidade estou de- cidindo, no limite, pela humanidade inteira).” Isso me parece exagerado! Sem diivida € um raciocinio limite. Mas € uma ‘maneira de fazer compreender que nunca estamos a1 completamente sozinhos. As escolhas que fazemos, ‘mesmo que paresam egofstas, também envolvem os outros. ~Entretanto, se eu decidir, por exemplo, s6 cuidar de mim mesmo, viver no meu canto sem me preocupar com os outros, nao se poderd dizer que estou thes pro- pondo um modelo! —Pense! —No qué? — No que acabou de dizer. Acho que voce caiu numa armadilha sem perceber. Voce afirma, se nao ‘me engano, que ficando no seu canto e vivendo de ‘maneira egoista, sem compartilhar nada com nin- guém, nao se oferece exemplo nenhum a ninguém, muito menos a humanidade. £ isso mesmo? — Sim, e iso me parece evidente! —Pois bem, eu repito: pense! Se voce escolhe vi- — Julgando desse modo, voct pensa: “Cada um precisa viver por si,esse &0 segredo, 6a melhor saida.” = Isso € logico... = Entao também ¢ l6gico concluir que, pensan- do desse modo, na verdade vocé prope como mo- delo para a humanidade a vida ego‘sta, 0 “cada um por si”... Eaqui voltamos ao ponto de partida: voce pode escolher ser egoista ou ser altruista, viver s6 para si ou se ocupar dos outros. Mas sempre, de fato, voc’ também propée aos outros aquilo que escolhe. — Entendi! Quer dizer que 0 her6i ou o traidor, 0 bom ou 0 mau falam por meio de suas agdes “deve-se ser her6i’, “deve-se ser traidor’ etc. ~ Bfetivamente, Se agimos da maneira que nos parece a melhor (seja qual for essa maneira, voce entendeu), criamos uma regra, usamos critérios de escolha, O problema é que quase sempre nao 0 sabe- ‘mos claramente, Poderfamos dizer que a ética con- siste em fazer o esforgo de depreender essas regras ¢ esses critérios. E a reflexdo que indaga segundo que regras agimos e segundo que critérios avaliamos as ages dos out Dizendo isso, ndo chegamos ainda ao fim do ca- minho. Ao contrario, Estabelecemos apenas 0 ponto de partida. A partir daf, com efeito, aparece uma in- finidade de interrogagdes: quem decide o queé bom €0 que é mau? Em nome do qué? As regras de nossas agGes nos sto transmitidas? Sao construfdas? Algum deus as teré formulado e entregue aos homens para ‘que s6 tivéssemos que aplicé-las? Ao contrario, sera ‘que os préprios homens forjaram suas regras de conduta e criaram as nogdes de bem e mal? Seré a natureza a verdadeira fonte dessas nogoes ¢, portanto, da ética? Em todo 0 mundo, encontra- ‘mos os mesmos pontos comuns na sen: seres humanos: ninguém julga que yom crian- «gasserem mortas debaixo dos olhos: emocionam por aqueles que sofrem injustamente, cada um € levado a socorrer desconhecidos em des- sgraca. Isso se constata, por exemplo, quando ocorre uma catastrofe — terremoto, tsunami, inundagao, fome, epidemia... ‘Nesses casos, uma corrente de solidariedade se organiza. Aqueles que dao tempo ou dinheiro para organizar 0 socorro nao conhecem as vitimas. As ve- zes, nada sabem sobre o pais. Mas ficam transtorna- dos com o softimento de seus semelhantes. Os fl6- sofos destacaram essa “tendéncia do coragio” que leva os eres humanos a se comover espontaneamen- te coma desgraga dos outros. Esse sentimento existe independentemente da reflexdo, Ele atravessa épocas e culturas. Quer o chamemos de “amizade” (Arist6- teles), “humanidade” (Cicero), “piedade” (Rousseau, Schopenhauer) ou ainda “compaixio’, parece ser um sentimento natural ¢ universal, Nés 0 encontramos igualmente na China, onde o filésofo Méncio 0 con- sidera 0 ponto de partida da moral. ‘Seja qual for nossa idade, nosso sexo, nossa reli- ido, nossa lingua € mesmo nossa época, ha nume- rosas situagdes de urgéncia nas quais, afinal, todos ‘concordamos, enquanto seres humanos, em chamar de “bem” um determinado tipo de agao. Trata-se de ? De uma aparéncia? A que conclusdes chegar? Em meio aos problemas da reflexao sobre a ética, & preciso se perguntar se exis- tem impulsos ou sentimentos completamente uni- versais e se podemos extrair deles regras verdadeira- ‘mente validas em todos os lugares e para todos. ~E por que no seria 0 caso? ~ Porque, a0 mesmo tempo, constata-se uma grande diversidade de regras éticas. regras variam conforme as époc: ‘grupos sociais, as crencas. O que é ‘em determinado lugar e em determinado tempo tal- vez seja condenado em outro lugar e outro tempo. Isso significa que tudo € relativo? Atos que hoje hor- rorizam a maioria das pessoas ~ 0 canibalismo ou a pena de morte, para tomar dois exemplos bem di- vversos — so considerados nobres, valorosos e dignos em outras épocas ou outras regides. Levar 0s avés idosos, numa noite gelada, para Jonge de qualquer habitagao e abandoné-los é um comportamento que nos parece absolutamente cri- minoso, Na sociedade tradicional dos inuites, isso era considerado justamente 0 oposto, um gesto de piedade, de respeito, uma ago moral que permitia a0 grupo sobreviver parando de alimentar bocas inditeis, Poderiamos multiplicar os exemplos. O resulta- do é facil de prever: 0s costumes mais contradi j4 foram considerados legitimos. Até hoje, muitas vvezes basta mudar de pais para que o mesmo ato seja julgado de maneira diferente. Vemos tudo coexistir com seu contriio. © que é ético aqui ético em outro lugar, e vice-versa. A verdade de on- tem revela hoje ser um erro. —Eentao? — Se fosse exatamente assim, tudo seria comple- tamente relative. As normas e as regras depende- riam unicamente do lugar e da época em que se vive. Estariamos entao no caso exatamente oposto a0 precedente: nada seria universal, tudo dependeria do momento e do lugar em que nos situamos. Nesse caso, seria preciso renunciar a procurara verdade da ética, Bastaria nos informarmos sobre os costumes do lugar em que nos encontréssemos. Por defini¢ao, esses costumes nao seriam nem melhores nem pio- res que quaisquer outros. —Apesar de tudo, nao vislumbramos um denomi- nador comum? — Podemos afirmar que existem regras gerais. Por exemplo: respeitar a dignidade humana, nao hu- milhar nem usar de violéncia sao exigéncias que nos parecem insepardveis da ética, Entretanto, podere- ‘mos sempre responder que so as “nossas” evidén- cias e a“‘nossa” maneira de ver, que projetamos sobre idade da hist6ria e das culturas. Nessa éptica, sublinharemos também que pontos-chave das nossas concepsdes — dignidade, integridade fisica, respeito pela autonomia dos individuos — nao existem neces- sariamente sob essa forma em todas as sociedades. = Entio nao tem saida? — Felizmente, sim. Se estamos procurando um primeiro denominador comum, ao mesmo tempo simples e exato, parece-me possivel encontré-lo. Aqui ‘std o que proponho: a ética é, antes de tudo, a preo- ‘cupagao com o outro. Porque a existéncia dos ou- ‘10s, as miltiplas relagdes entre eles ¢ eu constituem ‘© ponto de partida mais universal de todas as formas de ética, iginemos que 05 outros nao existissem. Se eu estivesse, ou se voce estivesse, com- pletamente sozinho no mundo, praticamente existiria nenhum problema de ética. O que significa- ria agir bem ou mal para consigo mesmo se voce es~ tivesse completamente sozinho? Seria 0 mesmo que perguntar o que Ihe pode fazer bem ou mal, o que é positivo ou nocivo para sua satide ou sobrevivencia, Mas, além dessas questdes elementares, vocé no te- ria problemas éticos reais: eles existem apenas em fungao de nossas relagdes com os outros. Esse € 0 ponto central que se deve ter em mente. Quando perguntamos: “Quais agdes so as melho- rest” ou “Que principios permitem discernir as me- Ihores ages; essas perguntas sempre dizem res to as relagdes entre “nds e 0s outros” € entre “os ‘outros ¢ nds" A ética é em primeiro lugar a proble- mitica dos outros, a preocupagéo que temos com, sua existéncia, com sua presenca, com seus desejos, com suas esperangas, com sua dignidade e com sua liberdade. —“Amar o préximo como a si mesm — Nao exatamente. Essa méxima crista pressu- poe uma espécie de herofsmo sublime. Nao € isso necessariamente que a ética exige. Amar todos os isso? 38 seres humanos tanto quanto amamos a nés mesmos; € um objetivo que ninguém tem muita certeza de conseguir atingir. A ética € mais modesta e mais acessivel. Ela diz aproximadamente: “Pense que os ‘outros existem. Comece por nao fazé-los passar por aquilo que vooé nao gostaria que Ihe fizessem.” An- tes de amar, antes mesmo de ajudar, trata-se em pri- meiro lugar de nao prejudice “Nao fazer aos outros aquilo que ndo queremos ‘que nos fasam’; essa foi chamada a “regra de ouro’. Sob uma forma ou outra, ela aparece em todas as culturas. De alguma maneira, ela éa base do respeito pelos outros. Assim, 0 cerne da reflexdo ética esta ligado ao fato de que os seres humanos so milti- plos, de que eles tém entre si numerosas interagoes. ‘Trata-se sempre de elaborar regras para melhor vi- ver em conjunto. — Una vez que nds tenhamos essas regras, tudo dé certo? — Nao é assim tdo simples, Primeiro porque as regras podem ser diferentes de uma cultura para ou- tra, como acabamos de ver. Mas também porque po- dem existir conflitos entre diferentes regras, depen- dendo das circunstinci Imagine um jogador de pOquer. Convencido de que nao se deve trapacear, cle ve nessa regra uma evidéncia, um dever funda- ‘mental. Mas seu filho fica gravemente doente ¢ ele no tem dinheiro para uma operagao de emergen- cia, Salvar a vida do filho também é seu dever, é ou- tra regra fundamental. Fle deverd escolher, portanto, entre duas formas de dever, entre duas regras que entram em conflito. Na verdade, a maior parte dos chamados “casos de consciéncia” nasce de um con- flito entre regras éticas. Eis que comegamos a responder a sua pergunta, Pois a dificuldade da reflexao e da decisio éticas é que, mesmo quando temos regras gerais, estamos indo com casos particulares. Na verdade, por de- finicio, todos 0s casos sao particulares. Vai ser ne- cessirio, portanto, distinguir a “ética geral” da“ética aplicada”. A primeira reflete sobre os principios, as normas, os valores, sem entrar nos detalhes de situa- ‘gOes concretas nem de casos concretos. A segunda trabalha com o ajuste entre as regras gerais e as si- tuagées individuais, sempre particulares. A ética aplicada é constantemente sob medida. preciso criat, ajustar ponto a ponto ~ como pontos de costura ~, verificar se nao esquecemos algum as- ecto da situagao, se pesamos todos os elementos. = Isso me faz pensar nas decisoes dos tribunais —Vocé tem toda razdo, ¢ intimamente comparé- vel. De fato, por definigao, nunca uma lei prevé 0 caso de X, que roubou uma moto ontem a noite na esquina da rua Y, na cidade Z, Nao existe uma lei es- pecifica para os roubos de motocicletas ¢ as criancas dessa cidade, muito menos para uma determinada motocicleta ¢ uma determinada crianca. Existe uma lei que preve sangbes diversas em caso de roubo. trabalho do juiz adaptar esse quadro geral fornecido pela lei ao caso especifico que ele esta julgando. Aristételes, 0 fil6sofo grego, jé sabia disso, Ele dizia que os jutzes deveriam usar a mesma régua* ‘que os arquitetos.£ preciso dizer que a régua de me- dida, entre os arquitetos gregos, nao era rigida como as réguas de madeira. Era uma régua de chumbo, portanto flexivel, capaz de se adaptar a diversas for- ‘mas, por exemplo para medir a curva de um pértico ‘ou 05 relevos de uma coluna. Como o arquit juiz. deve adaptar o julgamento ao caso especifico que the é submetido. A ética segue o mesmo modelo, Também no seu caso temos regras gerais ¢ casos particulares. A adap- tagdo deve ser feita por meio da reflexdo e da discus- Em francés, usa-se a mesma palavra (rile) para regra € régua. (N.daT) ‘so — muitas vezes tateando e hesitando. Pois, em Gtica aplicada, nunca existe uma solucao pronta e definitiva. £ preciso inventar, testa, retocar, Ha en- fim, no sentido mais preciso do termo, um artesana~ to da ética aplicada, — Com que tébuas, que ferramentas? = Iss0 nds vamos ver... E FILOSOFIAS ~ Onde se encontrant as grandes disposigdes éti- cas? Nas religides do mundo? Nas obras dos filésofos? — Nos dois! B preciso, no entanto, entender os pontos comuns e as diferengas entre moral religiosa moral leiga, ética da religido e ética da filosofia. ‘Trata-se sempre, ao final das contas, de saber como se aperfeigoar, de dizer como tornar 0 mundo me- Ihor, de estabelecer com que critérios julgar os atos dos seres humanos. Entretanto, se as questées so sempre mais ou menos as mesmas, as respostas sto muitas, e muito diferentes. Sio até to numerosas e diversas que nao seria 0 caso de mencioné-las todas. — Entido, o que fazer? — Em primeiro lugar, trata-se de ver como elas se dividem em alguns grupos. O importante é compreen- der 0 que chamarei de grandes posicionamentos que ‘onganizam todas essas respostas. Se consegussemos 4a ‘mostrar trés ou quatro esquemas fundamentais, isso pois nos permitiria uma visio mais lara, ~Podemos simplesmente procurar de onde vem a ética? —E um bom ponto de partida. Mas essa questo contém muitas outras. Ela pode querer dizer: “Qual 2 origem dos valores morais que tentamos seguir?” ‘ou também: “De que maneira sabemos 0 que deve- ‘mos fazer? Como conhecemos o que chamamos de “bem e de ‘mal’ que nos leva a nos Preocupar com nossos comportamentos dessa for- ma?” Essas diferentes questoes se justapdem, mas indo so totalmente idénticas,e... ~ Pare! Se vocé continuar, vai terminar esquecen- do o que buscamos em primeiro lugar: “De onde vert aética?” ~ Entao vou Ihe dizer, diretamente, que hé trés grandes tipos de resposta a essa pergunta, ‘Um primeiro tipo de resposta considera que os valores morais (o bem, a justisa, a honestidade, a probidade, a solidariedade, a gratidao, etc.) existem or si s6s, Eles nao foram criados pelos seres huma- nos. Independentemente de nossa vontade, esses va- lores existem num mundo que lhes é préprio, uma espécie de universo paralelo. Essa concepgdo se encontra evidentemente nos pontos de vista religiosos. O Bem, a Justiga consti- tuem verdades eternas que existem no espirito de ‘Deus, ¢ Deus as transmite aos seres humanos. Para 5 judeus, foi Deus quem entregou a Moisés, no monte Sinai, as Tébuas da Lei, os célebres “Dez ‘Mandamentos” Foi Deus, para os cristaos, que indi- cou através de Cristo, que falou em Seu nome, os preceitos de uma moral eterna semelhante funda- mentada no amor € no perdao. Foi Deus, para os ‘mugulmanos, que transmitiu a Maomé, que trans- creveu no Alcorao as regras de moral e de compor- tamento que os figis devem observar. £ sempre Deus quem inventa as regras morais, ‘quem cria aética tal como cria o mundo, E ele trans- ite essas leis aos seres humanos. —Imagino que para os filésofos seja diferente! — Depende de quais filésofos. Porque alguns de- les, mesmo sem acreditar verdadeiramente no Deus ‘inico, eterno e todo-poderoso do monotefsmo em suas diferentes interpretagdes, pensam que as ideias da ética ndo sao invengao humana, Plata, por exem- plo, grande filésofo grego que viveu no século Va.C., desenvolveu uma concepgao desse género. Segundo ele, 0 “Bem” existe no mundo das Ideias, assim como 0 Sol existe no mundo fisico: é a Ideia suprema, que ‘lumina todas as outras. Essa Ideia é eterna, ind tr la nao tem relagéo direta com nossas his- t6rias humanas. Permanece idéntica em qualquer época, sociedade ou lingua. Os seres humanos po- dem se voltar para essa realidade ideal por meio do pensamento, mas ela nio depende de seus julga- mentos nem de suas agoes. pensamento de Platao pertence a filosofia mas, em certo sentido, compartilha uma concepgao com- pardvel & das religides reveladas. Nao ¢ idéntica, mas é préxima, Nos dois casos, com efeito, o cerne da éti- ca, por assim dizer, nao ¢ forjado pela imaginacao humana nem criado por regulamentagdes culturais. Voce vé que a fronteira nao separa forgosamente as religides das filosofias. De fato, o primeiro tipo de resposta & pergunta “de onde vem a ética?” consiste Ja nao vem dos seres humanos”, Quer se ou filosofia, os valores da ética, nes- sa perspectiva, sao realidades que existem por elas mesmas, em um mundo préprio. Para Plato, é 0 mundo das Ideias. Para as religides, 6 0 esptrito de , os humanos nao so 0s autores das leis morais. Eles conseguem con- templar essas verdades eternas por meio de sua azo, ou entao elas Ihes sao transmitidas por Deus, por intermédio de um enviado ou de um profeta. — E se nao quisermos recorrer a Deus nem ao mundo das Ideias? —Pois bem, estamos diante de outra perspectival Euma ontra atitude, uma maneira de ver distinta. Ao contrério da precedente, esse segundo tipo de respos- ta consiste em dizer que os valores morais nao resi- dem em uma realidade diferente da nossa. Eles nao se encontram num além-mundo, num nivel superior, ‘num lugar celeste qualquer. Fazem parte da realidade terrestre, habitam nosso mundo. Esses valores pro- vveem das realidades naturais e das realidades huma- ras, € nfo necessariamente de uma ordem divina. ‘Uma boa ilustragao dessa atitude encontra-se na ideia de que a ética vem da natureza, Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, desenvolveu particular- mente esse tema, Segundo ele, os principios da mo- ral falam espontaneamente no nosso coracio, na nossa sensibilidade, A “vor da consciénci indica o bem ¢ o mal, que nos torna orgulhosos ou envergonhados de nossos atos, ¢ a voz da propria natureza. Assim, desse ponto de vista, para conhecer © que é bem e o que é mal nao precisamos refletir Jongamente, fazer dedugdes complicadas nem cursos, de ética, Sentimos tudo isso espontaneamente, por um movimento natural. O principal mével dessa ética natural € a pieda- de, Rousseau nao € o tinico filésofo a dizé-lo, Acha- ‘mos a mesma ideia na China, onde o filésofo Mén- if consideravaa piedade ara ilustrar esse senti- cio, no comego de nossa e © ponto de partida da mo: mento espontineo, Méncio toma o exemplo, que se tornou célebre, de uma crianga que esté a ponto de cair em um pogo. Ao ver essa crianga prestes a sofrer uma queda mortal, qualquer passante se precipita- ria, tentaria salvé-la, impedi-la de cair. E ninguém vai se perguntar, antes de socorré-la, quem ela é, quem so seus pais, onde eles moram... As pergun- tas desse tipo vém depois. © movimento de socorro € imediato, esponténeo. E praticamente instintivo e, portanto, natural ‘A mesma ideia € encontrada em outros pensa- dores, como Schopenhauer. Sempre a piedade serve para mostrar que a ética € um movimento natural. De fato, todos nés experimentamos, em face da infe- licidade dos outros, uma emogdo que nos faz com- partilhar sua pena, que nos torna solidérios com o seu softimento. Nao existe nada refletido. f impulsi- Yo, aquilo aparece e nos submerge. Nao podemos fazer nada, éinato. E isso acontece seja qual for nos- 0 pafs, nossa educagio, nossa idade... Essa emogio existe em cada um de nés. = No entanto, dizemos que ha pessoas que nito sentem nenhuma piedade... Nao quer dizer que elas ndo sintam nada, mas ‘que elas se habituaram a jé ndo prestar atengdo naqui- lo que sentem. Nao sio desprovidas de piedade, mas treinaram para se tornar indiferentes e insensiveis. Rousseau diz que elas sufocaram a vor da natureza dentro delas. Para consegui-lo, é preciso se convencer “Isso esté aconte- endo com os outros e ndo comigo, qual a razio para ‘eu me emocionar dessa maneira? Nenhuma.” — Mas, de fato, se & a natureza que fala, a ética ‘continua nao sendo uma invengao humana! — Voce esté absolutamente certo. Essa segunda resposta considera que as bases da ética nao esto no céu, mas em nés mesmos, na terra, na natureza. E é certo dizer que no sao os humanos que falam. Essa voz da natureza diz sempre a mesma coisa, eterna- mente, mesmo no sendo ela necessariamente so- brenatural ou divina. Os homens Ihe obedecem ou Ihe resistem, eles a seguem ou a refutam, mas no acriam, ~ Entaio nao ha ninguém que acredite que os ho- ‘mens, sozinhos, podem inventar a ética? — Claro que sim. Essa terceira possibilidade exis- te. Ela éradicalmente diferente das precedentes, por- que consiste em dizer que rigorosamente nenhuma regra, nenhuma norma, nenhuma ética existem por si s6s, quer sejam divinas ou terrestres. A resposta, dessa vez, é que os seres humanos de cada sociedade, de cada época, de cada cultura criam suas normas € seus valores morais. De fato, dessa perspectiva, se levarmos ao extre- mo, na verdade nao hé sentido na existéncia da es- pécie humana nem na existéncia do mundo. Muito menos ha sentido em nossos atos. Pelo menos de >. Somos apenas nds, seres humanos que vive- ‘mos em sociedade, preocupando-nos uns com os: outros, que criamos os valores num mundo despro- vido de valores. Somos nés, ¢ apenas nés, que forja- ‘mos um sentido para uma realidade por si mesma insensata. Aqui, a ideia central € que a humanidade cria sentido para atribui-loao mundo. £ somente ela que forja valores. Nessa 6ptica, €a razao ea sensibilidade dos homens que inventam a ética, para sua propria sobrevivencia ¢ serenidade. Neste caso, nao se trata de forma alguma de uma realidade que encontraria- mos no céu ou na terra, sem a termos construido. Hé numerosos exemplos dessa atitude entre os filésofos contemporineos. Jean-Paul Sartre afirma, por exemplo: “Decidimos sozinhos ¢ sem descul- pas.” © céu esta vazio, a natureza se cala, ¢ € a nés mesmos que cabe decidir as nossas regras de agio. Essa liberdade pode parecer arrasadora. Ela o € efe- tivamente, Mas reflete 0 cardter ao mesmo tempo trdgico e grandioso da condi¢ao humana. Outro exemplo: Albert Camus, Para ele, o mun- do ea existéncia sdo radicalmente absurdos, despro- vidos de significado por si s6s. Mas os humanos se revoltam diante de tal absurdo, bem como diante da crueldade de sua condigio, e também diante da ar- bitrariedade da dominagao e da servidio, diante do horror da violéncia, das relagdes de forga. Nessa re- yolta, uma norma ética se formula. Com efeito, 0 sentimento que experimentamos quando nos revol- tamos, a crenga de que “isso ndo pode continuar as- sim’, trazem consigo uma ética. —Mas por qué? ~ Se dizemos: “tanta violencia j4 nao é suporté- vel, tanta arbitrariedade j4 nao € possivel, tanta ser- vidio é intolerdvel’, € necessariamente em nome de uma determinada representagao da dignidade do homem, da liberdade do individuo. A revolta contra a injustica ea arbitrariedade traz em si uma ideia de dignidade, de bem, de justiga — portanto, de ética. — Portanto, existem entre os filésofos opinides mui to diferentes... —Vocé ainda nao viu nada! capitate & VIRTUDES, DEVERES OU CONSEQUENCIAS = 05 filésofos refletem 0 tempo todo sobre ética? ~ Sim, sem diivida nenhuma, Cuidado, isso nio quer dizer que toda a filosofia trate apenas de ética! Mas encontramos essa preocupacdo, em proporcoes varidveis e segundo diversas perspectivas, em todas as épocas, em todos os grandes sistemas. Assim, 0 livro mais célebre de Espinosa, filésofo que viveu na Holanda no século XVI se intitula simplesmente Erica, ¢ nesse texto célebre, ele elabora um sistema do mundo completo, para explicar como viver a vida mais perfeita possfvel. Mas essas reflexdes ja vém de muito tempo atrés! Foi o grego Zenao de Citio, fundador do estoicismo, © primeiro a propor a divisdo da filosofia em trés artes principais: fisica, ligica ¢ ética. Tratava-se, em resumo, de saber como funciona o mundo da natu- teza e dos corpos (fisica), como se organizam as fra- ses e 05 raciocinios (légica) e como se pautam os ‘nossos comportamentos € nossas ages (ética). Outra origem da meditagao ética, na Antiguida- de, foia medicina, Muitas vezes nos esquecemos dis- s0. Porém os médicos, como Hipécrates de Cés, que eram também filésofos, ou seja, homens de saber ¢ reflexao, tiveram papel decisivo. De fato, eles tinham nas maos a vida ea morte de seus pacientes. Tiveram que definir seus deveres, estabelecer regras para nao abusar da fraqueza dos doentes. Também contribui- ram para definir a unidade do género humano, res- saltando, por exemplo, que 0 “bérbaro” respira exa- tamente como o grego, mostrando que todos os seres humanos tém um corpo que funciona da mes- Esse um ponto importante, pois atualmente, com a bioética, a reflexdo médica e a filosofia se en- ‘contram novamente. E dessa vez em assuntos essen ciais para 0 nosso futuro. Voltaremos falar sobre isso, nao tenha diivida. Por enquanto, vamos tentar nos situar entre os filésofos. Mais uma ver, atenho-me as linhas gerais. Poderfamos comecar pela felicidade. — Felicidade? Como ela veio parar aqui? — Ela esté no lugar certo! Ha uma ligasao direta € fundamental entre a ética e a felicidade. Quando ‘nos perguntamos como nos comportar ~ na vida pessoal, na vida em comunidade -, nao € para au- mentar a infe filosoficas da At ve lade do mundo! Quando as escolas, de se perguntam “como vi- ”,evidentemente estao pensando “como viver de ‘maneira feliz?” Em todas as quest0es formuladas sobre a ética pelos ildsofos da Antiguidade, a felicidade esté sem- pre no horizonte. Que estilo de vida adotar? Como transformar nossa existéncia para aleangi-lo? Como governar a si mesmo? Como sufocar as préprias pai- xes? Como atingir a serenidade do sébio? Como se curar das perturbagoes do desejo? Como apaziguar a “tempestade da alma”? Essas interrogacées que atra- vessam a filosofia antiga e constituem em grande parte seu arcabouco levam também a uma vida feliz. tema principal ¢ que a virtude traz S6crates o repete sempre, Plato explica que é pr6- prio do homem virtuoso viver em harmonia com 0 universo, Aristételes, em a Btica nicomaqueia, tenta compreender no que se baseia a felicidade humana, ‘¢ quais as virtudes que melhor contribuem para ela. s estoicos fazem da vida segundo a natureza e do controle de si mesmo as formas supremas da vir- tude e da serenidade do sabio, que escapa defi mente a infelicidade. Epicuro e seus discipulos, 20 uma vida austera, 0 proprio signo da virtude e da sabedoria que asseguram a felicidade e permitem vi- ver “como um deus entre os homens’. Os cinicos, que vivem “como cachorros” (€ 0 ‘que significa o nome deles), abandonam 0 conforto eas comodidades da civilizagao. B também para en- contrar a ide que eles tentam retornar a for- ma de vida verdadeiramente livre e natural, para além das leis, coergées ¢ proibigdes. Os céticos, por sua vez, acreditam que no somos capazes de atingir a verdade e suspendem seu julgamento, Mas tam- bém eles fazem dessa suspensio de julgamento uma cespécie de virtude que conduz a uma vida serena. ‘A preocupagao com a ética anima o interior de todas essas escolas filos6ficas. Constitui seu esquele- {o, sua estrutura, seu suporte interno. E, para ser fe- liz, a palavra-chave é a virtude. — O que € iso, exatamente? — Falamos “da” virtude para designar a existén- cia justa, de acordo com a ética. O ser humano que vive de acordo com a virtude se comporta bem: cumpre suas promessas, nao trai a confianga que se tem nele, socorre os necessitados, no mente, obedece as leis, ete. Todos esses atos, que séo do Ambito “da? virtude, encarnam “as” virtudes que siio, por exemplo, a franqueza, a solidariedade, a fidelidade. Foram constituidos como que catdlogos de vir- tudes. Trata-se portanto de comportamentos opos- tos a0 “vicios’ As virtudes sto “qualidades”, os vicios sto “defeitos’, Estamos numa perspectiva em que a ética € concebida sob um angulo psicolégico: para se comportar bem, € preciso colecionar virtu- des, Tornamo-nos “virtuosos” possuindo um mime- ro suficiente de qualidades. Em todo caso, desde a Antiguidade, a reflexao sobre as virtudes tornou-se ‘um dos principais caminhos da ética. Isso conti- ‘nuou até nossos dias, uma vez que o filésofo francés Vladimir Jankélévitch escreveu, em 1947, 0 Tratado das virtudes. — Qual é a diferenca entre as virtudes e a virtude? = Quando falamos “das” virtudes, distinguimos elementos psicoldgicos e éticos diferentes. A fran- ‘queza nao é 0 pudor, a honestidade é diferente da fidelidade, a modéstia nao se confunde com a grati- a0, Quando falamos “da” virtude, estamos pensan- do mais numa disposigao interior tnica que permite que se tenham todas essas qualidades. Nesse caso, essa virtude tinica, que contém todas as outras, é su- ficiente para que se tenha um bom comportamento. Entte os flésofos gregos e romanos, muitos de- fendiam que havia apenas uma virtude. Todavia, com 0 advento do cristianismo, essa questdo vai as sumir outra forma. Certas virtudes antigas so pri- vilegiadas — a caridade, a humildade, a piedade —e tem seu significado modificado. E, sobretudo, o lu- gar central é atribuido ao amor. Uma frase célebre de Agostinho, que foi a0 mesmo tempo santo ¢ fil le diz. © puro amor, por si 6, substitu toda forma de lei, faz as vezes de norma ética, Trata-se para Agostinho, € claro, do amor ao préximo que Deus inspira nos seres humanos. que est em questio, nessa aboli¢ao procla- mada da lei moral e dos cédigos éticos pelo amor, é no fundo a relagao entre cristianismo e judaismo. A contribuigdo essencial da ética judaica é a ideia de uma ei divina que os homens devem cumprir, custe ‘© que custar. Essa lei se baseia, de inicio, nos Manda- mentos divinos, os Dez Mandamentos transmitidos a Moisés no monte Sinai, Trata-se de regras que dicam como se comportar em relagao aos out ‘Nao roubarés “Nio mataris Essa ética da lei, que estabelece © que devemos fazer e nao fazer, pode parecer rigida, muito detalha- da, demasiado coercitiva, penosa, como 0 sio as coergdes juridicas. B eis que de repente tudo isso se dissolve e € substituldo por um tinico gesto de amor. Se amarmos 0 préximo, certamente ndo 0 matare- ‘mos, nao 0 roubaremos; se amarmos nossos pai entao os respeitaremos. O amor subst todas essas regras. = O que vocé acha disso? = Na minha opiniao, isso é confiar demais no amor, atribuir a ele uma sabedoria e uma virtude profundas que ele ndo tem necessariamente. Sem divida uma forma de amor divina, pura e ideal pode corresponder a esse modelo. Mas nao tem muito a ver com o amor humano real, que é na maioria das vezes impulsivo, passional, egofsta, pos- sessivo, monopolizador... e que, para mim, nao pode, por causa disso, substituir a li. De fato, a maior mudanga de perspectiva intro- duzida pelo cristianismo nao diz respeito & questo das virtudes, mas sim a questo do mal. problema do bem e do mal jé estava no cerne das reflexdes dos fil6sofos antigos, evidentemente. Mas com o cristia- nismo assume uma nova dimensio, Pois vai ser necessiio explicar por que, se Deus é bom, ele per- mite que exista tanto mal no mundo. A ética, que se indaga sobre o bem, deve também explicar 0 mal! Essa questio preocupou os fildsofos e 0s tedlogos. ‘Mais uma vez, embora os livros e as discussdes sejam inumeraveis, os principais posicionamentos nao sto tao numerosos. Ou admitimos uma origem do mal (Sata, o anjo rebelde ou um “deus mau” em oposicao 0 “deus bom”), ou atribuimos unicamente ao ser humano a responsabilidade por introduzir a desor- dem ¢ 0 softimento no mundo: Deus criou o mundo € 0 homem, ¢o homem tem a possibilidade de intro- duzir ou nao o mal no mundo, Podemos assim, mais radicalmente, negar a propria existéncia do mal. Mas como isso é possivel? —E mais simples do que vocé pensa! Basta afir- ‘mar que todas as abominagées que vemos nos pare- cem horriveis unicamente em razdo da nossa igno- rancia. Vemos apenas uma parte do quadro. Nao sabemos que os softimentos diante dos nossos olhos talvez tenham uma utilidade, ou uma fungao secreta, Portanto, nao temos condigdes de entender que essa nério como um todo, Trata-se entdo de conseguir dissolver, por assim dizer, a existéncia do mal. — Os seres hnumanos nao sao os responséveis por ele? ~£ claro que sim! Do meu ponto de vista, o mal existe de verdade, a0 contrério do que dizem esses filésofos que tentam nos convencer de que ele é ape- nas aparente. E é a inumanidade dos seres humanos uns para com os outros que é a sua causa: a inclina- 0 a destruicdo, a0 ddio, o prazer de provocar softi- ‘mento.... Pois tudo isso existe realmente, lado a lado ‘com a generosidade e o desprendimento, com a soli- dariedade ea ajuda miitua. Vocé também acabou de pronunciar uma pala- vra essencial, que ainda nao examinamos: “respon- séveis”. No cere de quase todas as reflexdes sobre ética, hd de fato a ideia de que nés criamos nossas préprias agves, de que decidimos fazer isto ou aqui- lo, , portanto, de que somos responsaveis. Em toda forma de ética hé uma concepgao de responsabilida- de. que fazemos de bom ou de mau somos nés que decidimos. ~E se nao sabemos o que € bem ou mal, se ignora- ‘mos 0 que deversos fazer? — Isso ¢ impossivel, segundo Kant. = Como? E quem é esse Kant? necessirio explicar por que, se Deus é bom, ele per- mite que exista tanto mal no mundo. A ética, que se indaga sobre o bem, deve também explicar o mall Essa questo preocupou os filésofos e os teslogos. Mais uma vez, embora os livros eas discussoes sejam inumeréveis, os principais posicionamentos nao sio to numerosos. Ou admitimos uma origem do mal (Sata, 0 anjo rebelde ou um “deus mau” em oposigao a0 “deus bom”), ou atribuimos unicamente a0 ser humano a responsabilidade por introduzir a desor- dem ¢ 0 softimento no mundo: Deus criou o mundo € 0 homem, ¢ o homem tem a possibilidade de intro- duzir ou no o mal no mundo, Podemos assim, mais radicalmente, negar a propria existéncia do mal. —Mas como isso é possivel? —E mais simples do que vocé pensa! Basta afir- mar que todas as abominagdes que vemos nos pare- cem horriveis unicamente em razao da nossa igno- rncia, Vemos apenas uma parte do quadro. Nao sabemos que os softimentos diante dos nossos olhos talvez tenham uma utilidade, ou uma fungao secreta. Portanto, nao temos condigdes de entender que essa infelicidade aparente tem um papel a cumprir no ce- nario como um todo. Trata-se entio de conseguir dissolver, por assim dizer, a existéncia do mal. = Os seres humanos nao sao os responsdveis por cle? ~E claro que sim! Do meu ponto de vista, o mal existe de verdade, 20 contraio do que dizem esses fil6sofos que tentam nos convencer de que ele éape- nas aparente. E é a inumanidade dos seres humanos ‘uns para com os outros que é a sua causa: a inclina- 40 a destruigao, a0 ddio, o prazer de provocar sofri- mento... Pois tudo isso existe realmente, lado a lado ‘com a generosidade e 0 desprendimento, com a soli- dariedade e a ajuda miitua. Vocé também acabou de pronunciar uma pala- vra essencial, que ainda nao examinamos: “respon- siveis”, No cerne de quase todas as reflexdes sobre ética, hé de fato a ideia de que nés criamos nossas proprias agdes, de que decidimos fazer isto ou aqui- Jo, , portanto, de que somos responsiveis. Em toda forma de ética ha uma concepgao de responsabilida- de, que fazemos de bom ou de mau somos nés que deci Ese nao sabemos 0 que é bem ou mal, e ignora- ‘mos o que devemos fazer? ~ Isso é impossivel, segundo Kant. — Como? E quem & esse Kant? = E sem diivida o fil6sofo mais importante da histéria da filosofia moral. Pois transformou pro- fundamente o pensamento nesse dominio. Ele vivew na Alemanha, no século XVIII, na época da Revolu- ral est em cada ‘so Francesa, Segundo ele, a lei uum de nés e se faz compreender imediatamente, in- dependentemente da idade, do grau de instrugao ou do pais em que vivemos. ‘A lei moral, para todo ser humano, é sempre 0 ‘que ha de mais claro e nitido, Nada é mais facil do ‘que saber qual é meu dever: basta refletir por apenas alguns segundos! —E por que afinal? — Porque o dever se baseia apenas numa coisa: a universalidade da regra que guia meus atos. Imagi- ne, por exemplo, que eu me pergunte se devo ou nao devolver uma quantia em dinheiro que me foi em- prestada. A resposta nao depende das circunstancias. ‘A tinica resposta €: devo devolver o dinheiro. Se eu achasse que nao deveria devolvé- ‘mo que dizer que aquilo que emprestado ora deve ser devolvido, ora nao deve... Nao existiria mais ne- nhum empréstimo! Para que meu ato seja moral, é preciso que a re- sso seria o mes- gra segundo a qual eu ajo possa ser transformada 62 em regra universal. Se eu ndo devolvo o dinheiro, no posso fazer da regra “nao é preciso devolver aquilo que nos emprestam” uma regra valida sempre € em toda parte. Saber o que devemos fazer € por- tanto muito simples, sob a éptica de Kant. £ uma questdo de logica elementar, que qualquer um com- preende imediatamente. No entanto, devemos distinguir claramente en- tre “saber seu dever” e “cumprir seu dever”. Vejo cla- ramente que devo devolver o dinheiro emprestado, ‘mas pode ser que eu tenha mil razdes, boas ou nao, para decidir nao fazer 0 que devo fazer. Vejo qual é 0 meu dever, mas decido agir de outra maneira. Desta vez, portanto, jd ndo é a virtude que esté no centro da reflexao ética, mas o dever.E, até, €ape- nas a forma desse dever que é levada em conta: para ser moral, segundo Kant, meu ato deve ser realizado unicamente por conta do dever, por puro respeito lei moral. Se eu agisse como se deve por outros mo- tivos que nao o puro respeito lei moral - por medo de um castigo, pelo desejo de ter uma boa reputacdo ou apenas pela satisfagdo de ter a consciéncia tran- quila —, nao seria um ato moral! ~ Entao jé nao se trata de ser feliz! 83 ~Bem observado! Voce entendeu perfeitamente, De fato, com essa ética do dever, a moralidade e a felicidade estao completamente dissociadas. Pode- ‘mos até imaginar facilmente que um ato moral, rea~ lizado por puro respeito a lei moral, gera a in dade do seu autor. Vejamos este exemplo emprestado de Kant: um homem é levado por seu principe a denunciar um inocente, ¢ portanto a prestar falso testemunho. Seu dever Ihe aparece de maneira mui- to clara: nao devemos prestar falso testemunho, por- que isso arruina a prépria ideia de testemunho. Além disso, ndo se deve em caso algum contribuir para a condenagio de um inocente, porque isso ar- rruina a propria ideia de justiga. Se 0 dever esté claro, a infelicidade que se prepa- ra também esta, Em caso de desobediéncia as ordens do principe, hé ameaga de uma desgraca, talvez a prisdo, ou a morte. E também sua familia e seus fi- Ihos vao softer por essa recusa. Ao contrério, se nos- so homem presta falso testemunho, uma fortuna Ihe esté prometida, e dela desfrutardo os seus por toda a vida. O segredo esta assegurado, ninguém ficaré sa- bendo de nada... Esse homem terd, portanto, todas as razdes possiveis para renunciar a cumprir seu de- ver! Se ele agit moralmente, vai provocar sua infeli- cidade e a dos seus. E para assegurar sua sobreviven- ia, ou seu conforto, deverd renunciar a seu di Esse exemplo € evidentemente um caso limite. ‘Nao conclua dele que a ética, para Kant, gera neces- sariamente a infelicidade! Isso seria falso. A conclu- so correta é que, no seu pensamento, 0 ato moral e a felicidade ja nao estao ligados. Cumprir 0 dever € independente do fato de ser feliz. ou nao. As conse- quéncias nao devem ser levadas em conta para jul- gar 0 que é moral. ~ Entretanto, as consequéncias daquilo que faze~ ‘mos contam! —Atal ponto que uma série de pensadores con- temporineos decidiu se interessar somente pelas consequénciase fazer delas o tinico critério de julga- mento em ética. Depois das virtudes e do dever, esa € a terceira maneira de analisar 0 cardter ético ou no de nossos comportamentos. Desta vez, jf nto estamos tratando das intengoes nem das regras uni- versais. Vemios apenas se as consequéncias da agao realizada aumentam ou diminuem as possibilidades de felicidade, e para quantas pessoas. De fato, essa maneira de ver se baseia num cAl- culo inevitavelmente aproximado. Trata-se de dis- cernir 0 que tem mais chance de tornar possivel uma vida melhor para um grande mimero de pessoas. ‘Uma invengao médica, por exemplo, serd titl se per- itir prolongara vida de muitos pacientes, ou salvar mGiltiplas vidas humanas. Nesse caso, poderemos julgé-la boa, do ponto de vista da ética que denomi- ‘amos utilitarista, mesmo que a intengao pessoal de seu inventor tenha sido unicamente fazer fortuna, ou assegurar sua reputagao e sua carrera. Consideramos, portanto, unicamente a utilida- de dos atos e dos comportamentos, suas consequén- cias priticas na sociedade (fala-se de utilitarismo, mas também de “consequencialismo”). Essa manei- ra de ver, que se desenvolveu a partir do século XVII, em particular no mundo anglo-saxao, volta a vincular a ética & questo da felicidade. Mas ja de maneira alguma a felicidade serenidade da alma. Neste caso, trata-se antes da fe- idade material, dos fatores de bem-estar ~ tudo 0 que diminui a pobreza, prolonga a duragao da vida, melhora a qualidade dos cuidados médicos ou dos transportes, as condigdes de vida em geral. £ uma mudanga de perspectiva importante, porque leva em conta a dimensao ética das realida- des sociais e econdmicas... — Voce pode dar um exemplo? ~ Existem doengas extremamente raras que sa- bemos tratar hoje. Mas, como muito poucas pessoas ‘io afetadas por ela, os tratamentos podem ser extre- mamente dispendiosos. Imagine isto: para manter viva uma crianca que apresenta uma dessas afecgies, preciso gastar, todo ano, um milhdo de euros. Com a mesma quantia, € possivel curar completamente mil outras criangas afetadas por doengas igualmente graves, mas menos raras. O que deve ser feito? Do ponto de vista de Kant, esse problema é inso- havel. Temos o dever de cuidar identicamente de cada crianga, de salvar cada pessoa humana. E impossivel dizer aos pais da crianga que tem uma doenca rara:“a sobrevivéncia de seu filo € muito cara, decidimos deixé-lo morrer, para salvar os outros”, Pois essa crianga € uma pessoa humana tanto quanto cada uma das outras, Inversamente, nao podemos dizer as outras mil: “Vocés no serdo tratadas porque esco- hemos gastar todo o orgamento do hospital com ima 86 crianga,” Flas também slo pessoas humanas, que tém o dieito de ser tratadas. Do ponto de vista do dever, nao ha nenhuma safda para esse dilema, Ao contrério, do ponto de vista utilitarista ¢ consequencialista, nenhuma diivida € permitida: € ético escolher tratar as mil criangas que podem sé-lo € ndo tratar aquela que tem a doenga mais rara mais dispendiosa. Pois a consequéncia é que mil das serdo salvas em vez de uma, Mais uma vez, isso no significa que uma decisio desse tipo seja ficil de ‘tomar, nem fécil de assumir. Aids, em muitas situagdes préticas cotidianas, a ética nao se constr6i facilmente, Ela esbarra em he- sitagoes, tensdes, labirintos, de certo modo. Mesmo quando enxergamos claramente as linhas diretrizes € 08 principios segundo os quais devemos agit, nao vemos necessariamente, em cada caso particular, como conseguir aplicé-los. F dessa dificuldade que precisamos falar agora. capitate 5S AS DIFICULDADES DAS APLICAGOES =A ética é portanto, muito dificil de ser aplicada na vida cotidiana? = problema vem do fato que, mesmo quando as bases so claras, nem sempre sdo evidentes as de- cisbes concretas que se inferem delas. A ética geral, empenha-se em destacar sobre os valores, sobre os fundamentos do bem e do mal, sobre as regras que devem guiar a agio humana. A ética aplicada, da qual falaremos agora, tenta eliminar o abismo entre 605 principios gerais e os casos concretos. Essa refle- xo aplicada € uma casuistica, Essa palavra antiga vem do latim casus, “caso”, “Casuistica” quer dizer “teflexio sobre 0s casos”. Na pritica, munca pode- ‘mos aplicar uma regra geral sem levar em conside- ragdo as circunstancias particulares. Pois, na realidade, nenhuma questio de ética se coloca de maneira geral e abstrata. A questdo sempre 69 diz respeito a uma pessoa real, com seu passado pr6- prio, sua estrutura psicol6gica, sua idade, seu meio social, seu nivel de instrucio, sua situagao econémi- ca, suas relagdes com os pais, com os filhos, com os conhecidos... No lugar de uma aplicagao mecanica cde uma regra,a cada vez nos vemos obrigados a uma espécie de ajuste a um caso particular, onde é preciso levar em conta uma grande quantidade de variaveis. £ af exatamente que as dificuldades comegam! Descobrimos, gradualmente, que a decisao concreta ‘muitas vezes é um quebra-cabera. Pois a casuistica (0 estudo dos casos) deve levar em conta a comple- xidade das situagbes indi mas também da idade, os prin: as consequéncias de cada decisio. £ por isso que nao ¢ ficil, — Essa dificuldade sempre existiu, niio 6? —De fato, sempre houve, vocé tem toda a razo, 108 “casos de consciéncia’, como os chamamos, as si- ‘tuagdes particulares que confundem nosso senso de dever, Para decidir 0 que iremos fazer, ficamos num, estado de incerteza extrema, Nao sabemos qual é a boa solucio, nem mesmo a menos ruim, ao passo que € necessério fazer uma escolha, Essa dificuldade surge muitas vezes nas questoes de ética aplicada. Nesse campo, nada é automético, nada esta definido antecipadamente, E nada pode ser resolvido de ma- neira simples. Mais uma vez, voce vai me dizer que esse tipo de dificuldade existe desde que os homens agem e refle- tem sobre suas agdes. Bu Ihe responderei que nossas vidas se tornaram mais intensas, mais numerosas, ais diversas. = Por que a situagto é hoje mais complicada que antigamente? ~ Em que medida nos confrontamos hoje com um estilo de reflexao ética que as geragtes preceden- tes ndo conheceram? O que nos aconteceu de espe- cial? Por que a ética, nos anos 2000, € mais impor- tante que nunca, e importante por razdes distintas? ara chegar a essa resposta, é preciso levar em consi- deragdo quatro motivos principais. O primeiro é a hist6ria do século XX. Massacres sem precedentes foram perpetrados em nome da construcdo de um “homem no igualdade, a supressio da exploragao do homem pelo homem, a elaboracio de um mundo diferente so valores generosos. Porém, em nome desses valo- es, 0 totalitarismo comunista deportou, assassinou, denunciow, traiu e massacrou varias dezenas de mi- hoes de seres humanos, O totalitarismo nazista, por sua vez, era animado por valores muito diferentes: dominacio da raga ariana sobre as racas considera~ das inferiores, vontade de riscar do mapa dos vivos a totalidade do povo judeu. Mas tratava-se, também af, de construir um “homem novo", e esses valores mortiferos conduziram ao assassinato de seis mi- hoes de judeus. Sem lembrar esses fatos, &impossivel compreen- der a intensificagao da reflexao ética contempora- nea, Pois esses massacres sem igual levaram & cons- tatagdo de quea cultura nao constituia uma muralha contra a barbétie, O povo alemao era instruido, educado, cultivado, refinado. Isso ndo impediu que um grande mémero de seus componentes tenha se conduzido de maneira absolutamente inumana, Descobrimos portanto que nem a cultura, nem a educagao, nem a fortiori a indtstria, as téenicas e 0 desenvolvimento constituiam diques suficientes contra a indignidade e o horror. Em consequéncia, tornou-se indispensavel, apos a Segunda Guerra Mundial, tornar a dar um funda- mento a ética, Era necessério reconstruir muralhas contra os instintos assassinos que conduzem a abo- ligdo de toda forma efetiva de moral. E constatamos efetivamente, desde 1945, vérias tentativas nesse sentido. Em Nuremberg, aps os julgamentos dos dirigentes nazistas em que foi elaborada a nogao de “crime contra a humanidade’, 0 Cédigo de Nurem- berg edita as principais regras a serem observadas nos experimentos com seres humanos (consenti- ‘mento esclarecido, parada imediata em caso de peri- 80, etc.). A ctiago da Unesco, em 1945, vai no ‘mesmo sentido, uma vez.que ela tem como obj “levantar as barteiras da paz no espirito dos ho- mens’ ¢ evitar o retorno a barbarie por meio da des- coberta reciproca dos diferentes povos do mundo. Em 1948, a Declaragio universal dos direitos do ho- ‘mem marca igualmente essa reelaboragio ética das regras da vida comum, = Imagino que hé também todas as novas desco- bertas cientificas, porque elas conduziram @ reflexdo sobre suas consequéncias. = De fato. O segundo fator para 0 renascimento contemporineo da ética é a expansio das aplicagoes de todas as descobertas cientificas. Pois 0 extraordi- nério potencial que as ciéncias permitem as técnicas desenvolver gera situagdes radicalmente novas para a humanidade. Isto é particularmente claro no setor da biologia e da medicina ~ voltaremos a isso. Mas esse nao € 0 tinico campo em que o impacto das cigncias se manifesta. Considere simplesmente os transportes. Nunca antes os seres humanos se viram, nessa situagao: poder ir de um lado ao outro do glo- bo em menos de um dia, Essas novas possibilidades de se deslocar e de se informar, de transmitir instan- taneamente mensagens a todas as partes do planeta a partir de qualquer lugar, também constituem ele- ‘mentos que mudam a condi¢ao humana. Juntam-se a isso, como vocé sabe, 0s riscos de esgotamento das energias ndo renoviveis, de mu- danga dl de poluigao da agua, do ar, da terra. Os séculos precedentes ignoravam essas questdes. Sabemos agora que é impossivel nos com- portarmos de uma maneira qualquer. Precisamos: fazer escolhas, decidir 0 que é melhor, ou menos ‘mau, para nds € para nossos descendentes, Essas questdes novas, préprias de nossa época, tém uma dimensio ética evidente. Eniio sio as ciéncias que podem fornecer as res- postas! Uma das mudangas importantes da nossa época, de fato, 6a tomada de consciéncia dos da ciéncia, Elas engendram situagoes radi novas, sem ser capazes de fornecer solugdes aos pro- blemas que criam. Antes, nos séculos XVIII e XIX, havia a convicgdo de que todos os progressos ocor- riam juntos: avangando no conhecimento, actedita- va-se progredir igualmente na moral e na civilizagdo. © methoramento geral da humanidade caminhava ppasso a passo com 0 avango dos conhecimentos ¢ 0 progresso das técnicas. Depois disso, constatou-se {que nao ¢ assim! Cabe portanto a reflexao ética cui- dar desses problemas, specialmente discernindo os limites a serem estabelecidos para o exercicio das nnovas tecnologias. ~ Existem cada vez mais técnicas novas? ~Vocé mesmo jé esté percebendo a terceira ra- 20 para o grande aumento das interrogagées éticas nos tiltimos tempos: a complexidade crescente das sociedades contemporineas. Os negécios ~ comer- ciais, financeiros ¢ industriais ~ se multiplicaram em proporgdes gigantescas. © esporte tornou-se a0 mesmo tempo um espetdculo e uma industria. As midias, com a proliferagdo dos canais de informa <0, constituem um pilar essencial da sociedade. Em cada um desses campos, constatamos novos esfor- 50s para esclarecer as regras do jogo e as maneiras de se comportar. Nesses 108 anos, vimios portanto se consti- tuir uma “ética dos negéci “ética do espor- " uma “ética das midias”, Essas sto, a meu ver, denominacées enganosas. Pois quase sempre trata- -se apenas de lembrar 0 que é evidente. De fato, as regras basicas sio sempre muito simples. Os neg6- ios precisam de uma boa informagio sobre os clientes, de honestidade, de transparéncia, de fideli- dade & promessa feita, de respeito as regras juridicas Paralelamente, néo haverd esporte se houver dopping, trapagas, conluio sobre os resulta- dos antes de um jogo, ete. Enfim, ndo haveria jorna- lismo se ndo houvesse honestidade da informagao, verificagao das fontes, independéncia dos jornalis- tas, separagao clara entre informagao € comentério. Parece-me que abusamos do termo “ética” nesses campos, para lembrar eédigos de boa conduta que nao tém nada de novo, Lembramos 0 que é evidente na deontologia, ou seja, 08 principios que devem obrigatoriamente ser respeitados para que um setor de atividade exista como tal. Se houvesse apenas ¢s- croques e gatunos, jé ndo haveria o mundo dos neg6- ios. Se houvesse apenas trapaceiros e dopados, ja nao haveria 0 mundo dos esportes. Se houvesse ape- nas manipuladores, jé ndo haveria jornalismo! Mais frequentemente, essas pretensas éticas apenas mos- tram 0 que é evidente, com a intengao legitima de se ‘por aos desvios ligados & expansaio desses campos. De fato, essa multiplicagao de “éticas” corres- ponde & inquietude causada pela influéncia sobre a sociedade atual dos negécios, do esporte, das mi- dias, e suas interdependéncias. Existe 0 risco de que esses campos-chave se desenvolvam sem regras, que a corrupgio se instale neles. Dai a proliferagao de discursos, de pareceres e de recomendagdes éticas. De fato, eles ndo servem para muita coisa, é preciso reconhecer... — E quanto a biologia e a medicina, é a mesma coisa? —Nio, pois éum campo muito singular. De fato, pela primeira vez na hist6ria, tornou-se possivel, a0 Jongo dessas iltimas décadas, intervir no proprio cerne da transmissio da vida. A técnica médica é do- ravante capaz nao apenas de transformar a proc ‘sao dos seres humanos, mas também de modificar caracteristicas do c6cigo genético, Essas possibilida- des abrem questdes vertiginosas que se distinguem da ética médica classica. 0 que voce chama de “ética médica classica”? =O fato de que na medicina sempre houve questbes éticas a debater, porque os médicos esto sistematicamente na linha de frente, por assim di- zer, das escolhas que dizem respeito a vida e a mor- te. E muitas questdes desse tipo se colocam hoje tal ‘como se colocavam outrora. Por exempl um homem idoso, doente, que nao teria mais muita esperanga de vida e correria o risco de ficar com sequelas importantes de um tratamento doloroso. Deve-se fazer com que ele corra esse risco? Ele deve renunciar ao tratamento? Hoje, tratar-se-ia de uma operacao cirirgica ou de um tratamento quimiote- répico. Antigamente, era uma sangria ou outra coi- sa, Mas a questo, no fundo, permanece a mesma. Entretanto, ha também interrogagbes inéditas € \gbes radicalmente novas. As mudangas das téc- médicas constituem por si s6s 0 tiltimo dos motivos — 0 quarto — que explicam 0 desenvolvi- mento atual da reflexao ética, Se falamos hoje de “ética médica’, de “bioética’, de “biomedicina’, € s0- bretudo porque as po: po humano se desenvolveram de mar Realizamos hoje intervengoes que as geragdes prece- dentes nao podiam nem imaginar. Por exemplo: pegar 0 coragéo de uma pessoa que acabou de morrer e enxerté-lo no peito de outra pessoa. Congelar esperma e utilizé-lo para fecundar um 6vulo depois de varios anos. Congelar embrides antes de implanté-los no ventre de uma mulher. Produzir por meio de clonagem a cépia de um ani- mal ou de um ser humano a partir de uma célula retirada anteriormente de seu corpo. Cultivar teci- dos ou érgios de um individuo para servir como faturas pegas de reposigao. Inventar organismos no- vos, hibridos de homem e de macaco, ou de homem e de porco. ‘Como vocé logo ve, essas diferentes poss des nao estio todas no mesmo plano. E, sobretudo, preciso saber selecionar! Nem tudo o que € possivel deve ser feito necessariamente. As questies deba das sao principalmente as seguintes: quais poss dades devem ser privilegiadas, eventualmente enco- rajadas e defendidas? Quais devem ser retardadas, suspensas ou controladas? Quais devem ser proibi- das? Para responder a essas questdes € preciso ter esclarecido outras: quais sao os li es que estabele- cemos as intervengdes humanas sobre a matéria viva? Quem estabelece esses limites? E em nome do qué? Entramos aqui na mult bioe de mais fascinante, e de mais importante, nas refle- ‘dade das reflexdes as. Elas constituem o que ha provavelmente xbes éticas contemporineas. De fato, nesses deba~ isso devem ser assunto de todos. A bioética é algo sério demais para ser deixado para os especialistas. Para entendé-lo, é preciso que examinemos alguns capiute & EXEMPLOS DE BIOETICA = Quando ougo falar de clonagem, de manipula~ 0 genética, de coisas desse tipo, tenho a impressto de que se trata mais de ficgao cientfica do que da minka propria vida... ~ .». € vod se engana redondamente! Pois hoje, a0 contrério do que vocé acha, esses assuntos afetam todos nés e nossa vida do dia a dia. Amanha, se vocé softer um acidente, poderé precisar de um transplante de érgao. Alguém da sua familia pode ter problemas de fertilidade e recorrer & procriagao medicamente assistida. Por razdes médicas (ou poli- iais!), vocé pode se ver as voltas com um diagnésti- co genético. E, se voce cuida da sua satide, € muito provivel que se veja confrontado com a medicina preditiva, que indica os riscos de desenvolver essa ou aquela doenca em fungao de seus dados genéticos. ‘Todas essas técnicas médicas apareceram ao lon- go das tiltimas décadas. Seus avés nao sabiam quase isso devem ser assunto de todos. A bioética é algo sério demais para ser deixado para os especialistas. Para entendé-lo, é preciso que examinemos alguns exemplos. capitute 6 EXEMPLOS DE BIOBTICA = Quando ouco falar de clonagem, de manipula- io genética, de coisas desse tipo, tenho a impressao de que se trata mais de ficgo cientifica do que da minha propria vida... ~ ...€ voce se engana redondamente! Pois hoje, ao contririo do que vocé acha, esses assuntos afetam todos nés e nossa vida do dia a dia, Amanha, se vocé softer um acidente, poderé precisar de um transplante de 6rgio. Alguém da sua familia pode ter problemas de fertilidade e recorrer & procriagao medicamente assistida. Por razdes médicas (ou poli- iais!), vocé pode se ver as voltas com um diagnésti- >. E, se voct cuida da sua saide, € muito provavel que se veja confrontado com a medicina preditiva, que indica os riscos de desenvolver essa ou aquela doenga em fungao de seus dados genéticos. ‘Todas essas técnicas médicas apareceram ao lon- .g0 das tltimas décadas. Seus avés nao sabiam quase

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