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VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Historia Geral do Brasil. In: ODALIA, Nilo. Varnhagen. Sao Paulo: Atica, 1979, p. 33-108. |. HISTORIAGERAL DO BRASIL 1. DESCRICAO DO BRASIL Terra do Brasil ou somente Brasil foi o nome dado pelos portu- gueses A parte mais oriental do novo continente, em virtude de haverem a{ encontrado, em abundancia, certo lenho, que subministrou ao comér- cio uma tinta vermelha anéloga a que até ent&o, com esse nome, a Europa importava da Asia. O novo pau-brasil, que neste novo pais era conhecido com o nome de ibirapitanga ou pau-vermelho, acha-se classificado pelos botanicos no género Caesalpinia. Mais tarde a deno- minag&o de Brasil veio a fazer-se extensiva ao conjunto de todas as colénias portuguesas neste continente, as quais, emancipando-se, vieram a constituir o atual império brasilico, hoje em dia um dos Estados de maior extenséo no globo, de cuja superficie terrestre abrange proxi- mamente a décima quinta parte. Dilata-se desde as cabeceiras mais setentrionais do caudaloso Amazonas até quase as margens do Prata, alargando-se muito mais para as bandas do norte, A fei¢dio do continente meridional a que pertence, e do qual constitui quase a metade. (...) Numa extensfo téo vasta e com tao diferentes elevacdes sobre o mar, como tem o Brasil, claro esté que varios devem ser os climas e varia a ordem das estacdes, se estas, com os seus nomes inventados para as zonas temperadas, os podem ter correspondentes na zona térrida; embora haja, até debaixo da equinocial, nao sé climas tempe- rados, como até frigidissimos e de neves perpétuas, bem que nao dentro dos limites do territério brasilico. (...) Apesar de tanta vida e variedade das matas-virgens, apresentam elas um aspecto sombrio, ante o qual o homem se contrista, sentindo que o coragio se lhe aperta, como no meio dos mares, ante a imensidade do oceano. Tais matas, onde apenas penetra o sol, parecem oferecer mais natural guarida aos tigres e aos animais trepadores do que ao homem; o qual sé chega a habité-las_satisfatoriamente depois de abrir nelas extensas clareiras, onde possa cultivar os frutos alimentfcios ou preparar prados e pastos, que déem sustento aos animais companheiros inseparaveis da atual 36 civilizagdo. Ainda assim, o brago do homem, com auxilio do machado, mal pode vencer os obstdculos que de continuo encontra na energia selvagem da vegetagao. (...) Se as plantas do Brasil tém alguma paridade com as do continente da Africa fronteiro, nfo sucede.assim com os animais: todos eles so especiais americanos, sem .relagio, em geral, com os da zona térrida nos outros continentes, exceto na circunstincia de serem, como ali, mais perfeitos do que og das zonas temperadas e frias, e em maior numero os trepadores. (...) Para ser mais original, oferece o pais varios contrastes originais. A par das plantas de muita virtude medicinal, 4 frente das quais citaremos a copaiba, a ipecacuanha, o mate e o guarand, -produz, também, venenos’ atrocissimos. Ao perseguirdes a inofensiva anta, a anfibia paca, a meiga cutia, o corredor veado campeiro ou do mato, estais em risco de encontrar um faminto jaguar, ou uma medonha carigugu que poderiamos talvez chamar a hiena do Brasil. Ao apontardes a gil sariema que avulta no campo, ou ao gordo macuco que rastolha no mato, ou ao astuto jacu, escondido na ramagem. da ipetiva, podereis ver-vos surpreendido pela picada pegonhenta do insidioso réptil que, num instante, decidiré do fio da vida que havieis recebido do Criador; e-achando-vos & beira de um rio, nao estais livre de que vos esteja tocaiando algum traidor jacaré ou medonha’ sucurit. . . Mas 4nimo! que tudo doma a industria humana! Cumpre & civi- lizagéo aproveitar e ainda aperfeicoar o bom, e prevenir ou destruir © mau. Tempos houve em que nalgumas das terras, hoje cultivadas ou povoadas de cidades na Europa o feroz urso se fazia temer... Eo lobo carniceiro surpreende ¢ devora ainda a ovelha descuidada pelo tafeiro do pastor; e a peconhenta vibora, e os lacraus ¢ as tarAntulas, € as nojentas osgas e salamandras, ainda se nao extirparam dos mais belos jardins das peninsulas banhados pelas aguas do Mediterraneo. . . Para em tudo o pais ser de contrastes no estado selvagem, achava- -se ele, com toda a riqueza do seu solo e a magnificéncia de suas cenas naturais ¢ a bondade dos seus portos, t&o prestantes ao’ comércio, possuido pelas gentes que passamos a conhecer. 2. SOBRE OS INDIGENAS Por toda a extenséo que deixamos descrita nfo havia povoagdes fixas e que descobrissem em seus habitantes visos de habitagdo perma- nente. As aldeias se construfam de-modo que apenas duravam uns quatro anos. No fim deles, os esteios estavam podres, a palma dos tetos j4 os nfo cobria, a caga dos contornos estava espantada; e, se a tribo ou cabilda era agricultora, as terras em grande distancia pelo arredor estavam todas roteadas e cansadas, pelo que era obrigada a mudar de residéncia. Os lugares das aldeias abandonadas se ficavam denominando taperas. Tais aldeias nfo eram em grande nimero; e muitas cabildas, nem sequer em povoagées provisérias se juntavam; pelo que o pais vinha a estar mui pouco povoado. (...) (...) Assim, orgando como dissemos, apenas caberiam dois indi- viduos por cada légua quadrada no Brasil; e noutras paragens deste continente, menos favorecidas pelo Criador, o seu nimero era muitissimo menor, As guerras de exterminio, que mantinham entre si, eram causa de que as tribos ou cabildas se debilitassem cada vez mais em nimero, em vez de crescerem. Além de que, essas mesmas pequenas cabildas que existiam, mantinham-se por lagos sociais tio frouxos, que tendiam a fracionar-se cada vez mais e a guerrear-se, ficando inimigos acérrimos os que antes combatiam juntos. (...) Nos selvagens nao existe o sublime desvelo, que chamamos patriotismo, que nfo & tanto o apego a um pedago de terra ou bairrismo, que nem sequer eles como némades tinham bairro seu, como um sentimento elevado que nos impele a sacrificar o bem-estar e até a existéncia pelos compatriotas, ou pela gléria da patria. Nem poderiam possuir instintos de amor de patria gentes que, como némades, a nao tinham, e que limitavam a t&o curtos horizontes a idéia da sociabilidade, que geralmente a nao estendiam além dos da sua tribo ou maloca, a qual nao dominava mais territério que o dos contornos do distrito que provisoriamente ocupavam. Essas gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoavam o terreno que 38 hoje é do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras emanagdes de uma s6‘raca ou grande nacio; isto é, procediam de uma origem comum, e falavam dialetos da mesma lingua, que os primeiros*colonos do Brasil chamaram geral, e era a mais espalhada das principais de todo este continente. Essa unidade de raga e de lingua, desde Pernambuco até o porto dos Patos, e pelo outro lado quase até as cabeceiras do Amazonas, e desde Sao Vicente até os mais apartados sertdes, onde nascem varios afluentes do Prata, facilitou o progresso das conquistas feitas pelos colonos do Brasil que, onde a lingua se lhes apresentou outra, nio conseguiram tao facilmente penetrar. (...) Divididos, pois, os tupis em cabildas insignificantes que umas as outras se evitavam, quando no se guerreavam, apenas podiam acudir aos interesses ditados pelo instinto da conservacdo vital; e, numa tio grande extensdo de territério, nfo aparecia um s6 chefe que estabele- cesse um centro poderoso, como havia no Peru, cuja aristocracia, livre de cuidar s6 em resguardar-se das intempéries e em adquirir diariamente o necessdrio alimento, pudesse pensar no bem dos seus semelhantes, apaziguando as suas contendas, e civilizando-os com o exemplo, ¢ servindo-lhes de estimulo, para se distinguirem e procurarem elevar-se. Assim tais rixas perpetuariam neste abengoado solo a anarquia selva- gem, ou viriam a deixd-lo sem populacéio, se a Providéncia Divina no tivesse acudido a dispor que o cristianismo viesse ter’ mio a tao triste e degradante estado! Para fazermos, porém, melhor idéia da mudanga ocasionada pelo influxo do cristianismo e da civilizagdo, procuraremos dar uma noticia mais especificada da situagdo em que foram encontradas as gentes que habitavam o Brasil; isto é, uma idéia de seu estado, néo podemos dizer de civilizagéo, mas de barbdrie e de atraso. De tais povos na infancia nao hé histéria: hd s6 etnografia. A infancia da humanidade na ordem moral, como a do individuo na ordem fisica, é sempre acompanhada de pequenez e de misérias. — E sirva esta prevencdo para qualquer leitor estrangeiro que por si, ou pela infancia de sua nag&o, pense de ensober- becer-se, ao ler as pouco lisonjeiras paginas que vao seguir-se. (...) Afora a lingua, e certo progresso material na industria, nenhum cardter essencial, nem corpéreo, distinguia os tupis das ragas limitrofes. Eram todos de estatura ordindria, reforgados e bem feitos; de aspecto tristonho, olhos pequenos, com freqiiéncia negros, encovados e erguidos, por via de regra, no Angulo exterior, como na raga mongélica; sobrolhos 39 estreitos e mui arqueados: orelhas grandes, cabelo liso, seguro e sempre negro, bem como as barbas, que arrancavam por costume, e bem assim os cabelos do corpo, pestanas e sobrancelhas, ficando lampinhos; dentes alvos e persistentes, e pés pequenos. Havia, sobretudo entre as mulheres, tipos .de feigSes mitidas, que os europeus elogiavam como formosuras. Porém todos esses atributos do corpo se achavam, em geral, horrivelmente desfigurados de intento entre os homens. (...) A tudo isto hé que ajuntar nos homens as armas, que estimavam sobre todas as coisas, como instrumentos que saciavam os dois primeiros estimulos mais fortes para todo barbaro: — a fome e a vinganga, Consistiam as armas em uma pesada clava ou maga, de quatro faces, com ornatos, e mais delgada e arredondada no cabo; algumas cabildas chamavam-lhe tamarana, e quando eram em forma de remos ou pés e com gumes, as denominayam tangapemas, e no Amazonas cuidarus. Seguia-se um grande arco, que chamavam uirapara, tal que, assente no chao e firmado no pé esquerdo, com a ponta entre o dedo grande e o imediato (de ordinério por isso mui separados um do outro) ficasse o meio dele correspondente ao peito, com as competentes flechas grandes e pequenas, ao lado direito. Demais: na mao esquerda ia o maracd correspondente ao sistrum dos antigos, formado de uma cuia ou cabaca cheia de pedrinhas, enfiada em um cabo de pau e coroada de penas de guards: quando a moviam ou chocalhavam fazia um rufdo, como o da matraca das nossas igrejas, que no proprio som e nome, se parece Aquele instrumento. (...) O trabalho se repartia segundo os sexos, como passamos a expor. Os homens aprestavam as armas, iam A guerra, assentavam e construfam as tabas ou povoacGes, e tratavam da caga, e da pesca, e de fazer a roca. As mulheres se ocupavam das sementeiras e plantagées, fabricavam a farinha e preparavam as bebidas; carregavam nas transmigragdes os fardos e as criangas, faziam os utensflios caseiros, e cuidavam das aves e animais criados em casa para regalo, os quais nunca matavam para comer, dando-lhes o nome de seus mimbaba. (...) A guerra ofensiva precediam sempre calorosas exortagdes dos chefes e dos maiores oradores; e s6 era definitivamente decidida por um conselho, em que tomava parte toda a comunidade. Neste conselho guardavam a melhor ordem; falava cada um por sua vez, e quase sempre conclufam por safrem todos concordes na opinido manifestada por algum mais influente, isto 6, melhor falador. 40 O fim da guerra era mais fazer prisioneiros, para os escravizar, ou para tomar vinganga, que invadir um pais para prear as povoagdes: o que sem embargo também sucedia. Se nao podiam fazer outro mal, deitavam fogo & taba inimiga e se retiravam. As vezes somente 0 desejo que tinha uma cabilda de possuir alguma ou algumas mulheres de seus contrarios, ou de as reivindicar, dava motivo a uma campanha; do que nos nfo devemos admirar, quando outros selvagens, no dizer de Hordcio, brigavam sé pela posse de uns covis ou de algumas bolotas. (...) A abundancia da terra, em caga ou pesca, contribufa, mais que nenhum outro motivo, para que uma cabilda se decidisse a assentar povoacao e a levantar sua taba — ordinariamente de grandes casardes ou abarracamentos (ocas) de paus e algum barro, cobertos em forma convexa de folha de pindoba. Eram estes de uns cento e cingiienta pés de comprido, quatorze de largura e doze de altura. Junto ao teto tinha cada oca, ou grande casardo, juraus ou alpendradas, onde se guardavam os utensilios e recolhiam os comestiveis. As vezes toda a povoacao construfa para si um sé rancho em que-cabiam duzentas pessoas. Dentro n&o havia repartigdes feitas de tabiques, nem de esteiras, nem de nada, e somente esteios para as redes. No meio da oca ou casarao, sem chaminés, acendiam a fogueira para cozinhar e para os alumiar. de noite, aquecé-los e livré-los dos morcegos. Eram as ocas dispostas deixando no céntro uma drea (ocara). para a qual de cada rancho havia trés vdos ou portais baixos, ordinariamente sem porta ou postigo. A taba, quando préxima de inimigos, era cercada de uma tranqueira de palancas, de forma quase sempre pentagonal. As vezes esta cerca, que chamavam cahigara, feita’sem fosso, era de. gissara, ou de taboca. A entrada dela espetavam, em paus-a-pique, as caveiras dos inimigos; e a esplanada em redor tinha algumas vezes fojos estripados. As tabas ou aldeias abandonadas, segundo antes dissemos, se dava o nome de tapera: de taba-cera, aldeia que foi,.o que se aplica hoje a um simples sitio ou roga que ndo tem dono. (...) Passando aos trabalhos que estavam a cargo das mulheres, dire- mos que elas viviam menos ociosas que os homens, entre as cabildas agricolas. — Rogada pelos tltimos a terra, Aquelas pertenciam a plan- tagdo do aipim e da mandioca, a sementeira do milho’e do mandubi; e para que elas o nao estranhassem, lhes explicavam tal uso pela razio de que era o sexo fecundo ou prolifico o que devia entender-se melhor com a madre terra. (...) a“ As mulheres mais velhas eram destinadas a oleiras, Misturavam ao barro cinza de certas corticas, e depois faziam-no em torcidas, e assim 0 iam unindo e achatando; logo coziam-no em uma cova a fogo brando por cima, e afinal o pintavam e envernizavam por dentro com resinas, que por algum tempo equivaliam ao vidrado. As velhas prepa- tavam também os vinhos, as farinhas e os venenos, operacio:em que morriam algumas. No fabrico dos vinhos faziam-se ajudat das mais mMogas, que trituravam os frutos com os préprios dentes, concorrendo a saliva para facilitar a fermentagao. (...) A sorte da mulher era julgada téo inferior 4 do homem que muitas mies afogavam as filhas ao. nascer. Como também sucedia entre os povos gentios da Europa antes do cristianismo, as mulheres quase no eram mais que escravas. E com mais razio assim deviam ser consi- deradas pelos tupis, quando, na América, as suas primeiras mulheres haviam sido tomadas 4 forga, como verdadeiras escravas. (...) Podemos dizer que a Gmica crenga forte e radicada que tinham era a da obrigagio de se vingarem dos estranhos que ofendiam a qualquer de sua alcateia. Este espirito de vinganga levado ao excesso constituia a sua verdadeira fé. — Era o ddio excessivo contra os inimigos o principal estimulo que os conduzia até 4 antropofagia, fato que, segundo alguns historiadores, se dava igualmente no Velho Continente, entre os citas, dos quais pareciam proceder. A antropofagia nfo era, pois, motivada pela gula, senao algumas vezes por aberragio; era-o pelo prazer que sentiam na desafronta, cujos efeitos faziam extensivos a todas as geragdes. O instinto de se vingarem era t&o excessivo que se julgavam obrigados a trincar todo animal que antes os molestara, ainda que fosse sevandija. E se nfo o podiam conseguir as claras, o obteriam por meio da traigfo e dos venenos. Aos cativos de guerra sacrificavam solenemente no meio de um terreiro, e todos deviam provar sua carne, para desta forma vingarem os amigos e os antepassados, mortos ou ofendidos pelos do prisioneiro. Nesta expiagdo tomavam parte homens e mulheres, velhos e criangas; © até para os ausentes se guardaya, moqueado, algum pedaco. — E tanto era 0 pensamento de desafronta e expiagio o que nestes sacrificios dominava, que de um inimigo desenterravam o corpo ao cabo de muitos anos, ‘para no cadaver, quebrando-lhe a caveira, dele se vingarem, adquirindo com isso novo troféu. (...) A vinganga, ainda além dos umbrais da eternidade, se por um lado nfo prova bons dotes de coragio, descobre que estes povos, ou 42 antes, seus antepassados, tinham idéias superiores as do instinto brutal dos gozos puramente positivos do presente. Estas idéias se justificavam melhor pelo respeito escrupuloso que todos guardavam as sepulturas dos seus, nem que do Velho Mundo tivessem recebido, conforme parece confirmar-se por tantas outras indugdes que em outro escrito apresen- tamos, as crencas das penas que sofriam no Averno as almas dos desgracados que nao haviam tido quem na terra lhes sepultasse os corpos.. O mesmo uso dos. banquetes antropdéfagos talvez tivesse, em quem os inventou, origem na crenga de que a vinganca do inimigo passaria além desta vida, impedindo-se por essa forma que o cadaver tivesse jamais enterro. (...) Antes de infligirem a morte a vitima, atavam-na pela cintura com a corda mugurana, cujas pontas se liavam ou sustinham a certa dis- tAncia; depois dangavam todos e todas em redor, de axorcas dé cascavéis nos pés, fazendo acompanhamento com os religiosos maracas. Nesta danga s6 nao tinham parte as criangas e os velhos, que ficavam senta- dos para batucarem o tambor, que era oblongo, como o dos antigos egipcios, e se ouvia a grande distancia. Ao som deste iam todos a fio andando 4 roda, dando patadas e entoando o seu monétono eh! eh! Além do tambor e do maracé, tinham por instrumento o mimbi ou flauta simples, feito de algum fémur ou tibia, e o toré ou flauta dobre ou triple, feita de taquara, e o bizio uatapu, instrumento de que também havia feito uso a antiga Europa, sendo até na fabula o simbolo dos tritées. No tocar guardavam o compasso, andando juntos, e com uma das maos sobre 0 ombro do companheiro. (...) O sacrificador tinha o direito de lavrar no corpo, com riscos indeléveis, a meméria deste feito, Era este evidentemente outro uso do paganismo do antigo continente. Moisés o proibiu de parte do Senhor, no Levitico (cap. 19, vy. 28) com estas palavras: “Nao fareis por algum morto incisdes em vossa carne, nem figuras nem signos indeléveis”. (...) A jurisprudéncia indiana, se assim lhe podemos chamar, reduzia-se a mui poucos principios. A gerac&o se regulava pela do pai, em opo: ¢4o com o que se nota em alguns povos barbaros.da Africa. A mie sé era considerada, 4 maneira dos antigos egipcios, como guarda ou depo- sitdaria do feto, até o dar a luz, e nenhuns deveres contrafa com ela o filho que amamentava. O pai denominava ao filho ‘afra ou “o proce- dente do seu sangue”; e a mae chamava-lhe membira, “o seu parido”, © procedente de seu seio. Assim as escravas que os tupis tomavam por mulheres no eram somenos das demais, e aos filhos delas s6 passava a condigéo do pai. — Filho de escravo ficaria escravo: e se o pai havia a3 sido inimigo, ainda que a mae fosse filha de um principal, havia de ser sacrificado, Assim, exceto os cativos em guerra e seus filhos, e os estranhos que escravizavam por causas acidentais e também os seus filhos, todos nasciam livres, ou gozavam de liberdade individual — com a sujeicfio aos mais fortes. (...) Os lacos da familia, primeiro elemento de nossa organizagaio social, eram mui frouxos. Os filhos nfo respeitavam as mies, e sé temiam, enquanto os temiam, os pais e os tios. No amor nao havia que buscar sentimentos morais. As delicias da verdadeira felicidade doméstica quase nfo podem ser apreciadas e saboreadas pelo homem no estado selvagem. Rodeado de feras, ou de homens-feras, mal podem nele desenvolver-se a parte afetuosa da nossa natureza, a amizade, a gratidao, a dedicagio, Aos principais ou chefes de cada alcateia ou cabilda denominavam morubi-chabs. A forca e a audacia o elegiam, ou antes o faziam tolerar, enquanto algum rival nao vinha a disputar-lhe a obediéncia de parte dos seus, Regularmente primavam os mais bem aparentados; e algum tanto influfa também que fosse parente do anterior, o qual de ordinario, j& em vida, como que apontava por sucessor o individuo em quem depositava mais confianga, destinando-lhe empresas arriscadas e de prova. Na guerra comandava o chefe com poder supremo; porém, para ela se decidir, ou para se decidirem casos mais diffceis, como uma transmigracao, ou as dividas sobre a morte de algum prisioneiro, era convocada toda a cabilda, que se reunia no terreiro da taba, fazendo roda em duas ou trés ordens, segundo o nimero dos que assistiam. A estas reuniSes ou conselhos denominavam Nhemongaba, palavra que equivale a parlamento, Havia entre os da mesma tribo uma verdadeira fraternidade comu- nista. Nenhum comia ou bebia sem que o fizesse os outros participantes, Assim mal podiam negociar; e bem que alguns indicios de comércio antigo encontremos no Amazonas, parece antes devido a influéncia do trato com os quichuas vizinhos, e porventura o uso se generalizou mais com as necessidades que trouxe o trato da Europa. Os maués do rio Negro faziam negécio em canoas e armas, e preparavam guarand; e os mundrucus em ornatos de penas; e uns e outros vendiam aos brancos farinhas e salsaparrilha. A idéia de roubo era quase desconhecida, e muitas vezes tirar 0 que o outro sem usar possufa nem se considerava delito. Os parentes tinham direitos de retaliagio. Na hospitalidade e generosidade nao havia limites, até para os mesmos inimigos, a quem, 44 s6 depois de ser concedida, se tomavam as contas de se o eram efetiva- mente ou nao. (...) Tais eram os vindicos alienfgenas que 4 matroca percorriam, ha mais de trés séculos, todo o atual territério do Brasil, e que em parte percorrem ainda alguns distritos dele, cobertos de matos-virgens, onde por ora nao péde penetrar a luz da civilizagao e do evangelho. Nao constitufam uma nag&o, nem mesmo pequenas nagdes, na acepgio em que mais geralmente, em direito universal, se toma hoje esta palavra. Formavam antes muitas cabildas, pela maior parte, procedentes dos Ultimos invasores do territério. A pintura que fizemos dessas gentes, que mais ou menos errantes desfrutavam, sem os beneffcios da ‘paz nem da cultura do espirito, do fértil e formoso solo do Brasil — antes que outras mais civilizadas as viessem substituir, conquistando-as e cruzando-as com elas, e com outras trazidas d’além dos mares pela cobica — essa pintura, dizemos, bem pouco lisonjeira é na verdade. A vista do esboco que tragamos, sem nada carregar as cores, nao sabemos como haja ainda poetas, e até fildsofos, que vejam no estado selvagem a maior felicidade do-homem; quando nesse estado, sem o auxilio mituo da sociedade, e sem a terra se cultivar suficientemente, hd sempre, numa ou outra época, privacdes ¢ fome; ¢ esta ultima aos mais civilizados converte em canibais, como nos provam as histérias de tantos sitios e naufrdgios. Desgracadamente ©. estudo profundo da barbérie humana, em todos os paises, prova que, sém os vinculos das leis e da religido, o triste mortal propende tanto & ferocidade, que quase se metamorfoseia em fera... As leis a que o homem quis voluntariamente sujeitar-se, depois de mui tristes sofri- mentos do mesquinho género humano antes de as possuir, néo tém outro fim senao fazé-lo mais livre e mais feliz do que seria sem elas. (...) Necessitévamos ajuizar o mais justamente possfvel os usos e costu~ mes dos antigos habitantes, para estarmos no caso de melhor apreciar ao diante os fatos. — Nem nos humilhe essa triste condigaéo dos habi- tantes desta terra, noutfas eras: com pouca diferenga seria a mesma das terras da Europa, hoje tao florescentes, quando os fenicios, os gregos, e mais que todos, os romanos Jhes incutiram a sua civilizagdo, que com a lingua levaram a Lusitania, e que mais tarde, auxiliada na indistria pela ilustragao arabica e, nos costumes, pelas branduras do cristianismo, foi trazida a este abengoado pais, quando a imprensa publicava os monumentos da civilizacio grega e romana, quando a Europa se debatia por interpretar muitos costumes absurdos, e quase 45 incriveis, descritos por Herédoto, Strabo, Tacito e César. O estudo e a colonizacio da América, nessa época, deu aos comentadores luz, aos leitores £6. O homem aprende humilhando-se a entender melhor © que dos barbaros germanos nos contam os romanos, o que das saturnais da primitiva Italia nos revelam os gregos. Os tempos herdicos da Europa e da Asia passaram-se naturalmente em meio de cenas andlogas 4s que acabamos de descrever, téo degradantes, que um chefe da Igreja, Paulo III, julgou necessdria uma bula para obrigar os cristaos a crer que os aborfgines americanos eram, como os demais homens, descendentes do pai Adio. (...) Todas as indugdes, porém, que oferecemos em um trabalho espe- cial nos levam a acreditar que os tupis procediam, como os guanches das Canérias, de povos navegadores do Mediterraneo, que aqui haviam aportado. Com as Canérias deve até haver sido freqiiente a navegacao desde o norte da Africa, visto que esté hoje provado que a lingua dos guanches tinha muito de berberesca e egipcio antigo. E entretanto, essa navegacio, provavelmente em virtude de freqiientes invasdes barbarizagdes dos povos de uma ou outra parte, ou de ambas, se havia quase perdido; e as ditas ilhas tiveram de ser de novo descobertas; fato que se repetiu depois com a Groenlfndia, cuja navegagio, que existira com o Norte da Europa, chegara a interromper-se. Os principais caracterfsticos que nos podem indicar a época das relagdes dessas ilhas com os navegadores do Mediterraneo, sao: 1.°) a falta completa do ferro, e o uso de machados e mais instrumentos de pedra polida, andlogos aos que ainda na Europa se encontram nas escavacées; 2.°) o desconhecimento de moedas cunhadas, para o trato recfproco; 3.°) o pintarem-se e riscarem-se os habitantes o corpo de yvermelho e outras cores; 4.°) o conhecimento da ceramica. Todos esses caracteristicos eram idénticos na América; e nfo sé esses, que consideramos em separado por atengio A cronologia, como os seguintes: 7.°) os cantares monétonos tristes, e as dancas em circulo, em uma fila; 2.°) as festas guatativas ou bacanais; 3.°) as idéias de fatalismo e desprezo da morte, a resignagao e impassibilidade aparente no sofrimento, e o valor para se mutilarem a si préprios; 4.°) as indds- trias nas esteiras, redes, cestos e anz6is de espinhas e de ossos; 5.°) 0 uso de fisgar o peixe com dardos, e das ostreiras ou montées de ostras e cascas dos mariscos, que deixavam nas praias, nas’ épocas do ano em que os apanhavam; 6.°) da farinha feita de raiz do feto candrio (Pteris aquilina), cuja idéia nao deixa de ter analogia com a da iuca ou mandioca; 7.°) o de dar gritos e urros, como os antigos, nos ataques, 46 sempre intentados por surpresa e em ciladas; 8.°) o das miimias pos- tadas de cécoras. (...) (...) E hoje temos quase a convicgdo de que houve. efetivamente para o Brasil uma grande emigracao dos préprios cdrios da' Asia Menor, efetuada talvez depois da. queda de Tréia. Havendo eles estado, nesta guerra tremenda de dez anos entre a Europa e a Asia, contra os gregos, e havendo ficado vitoriosos os gregos e senhores dos mares, é mais que possivel que os mesmos cérios nem nas suas colénias ao Oeste de Africa se julgassem ao abrigo das crueldades que nesses tempos se praticavam com os prisioneiros de guerra, e que nao se reduziam sé a escravidio, mas ao sacrificio de muitos e 4 amputacdo das maos e do préprio falo. Sendo assim porventura, preferiram confiar-se a esse elemento que lhes era tao familiar, e se langaram no oceano 4 aventura... A forma das canoas de guerra dos tupis, semelhantes as antigas pentecontores, 0 uso das outras canoas de periperis, andlogas, como dissemos, as de papiros dos egipcios, as pequenas canoinhas ubds, nome que também se encon- trava no egipcio, sob a forma de bda e uda, o uso do maraca, antigo sistrum, as superstigdes por uma ave noturna, o serem curandeiros os sacerdotes, o uso da circuncisaio, que hoje temos averiguado que havia chegado até aos prdéprios guaranis do Paraguai, e finalmente certa semelhanca entre o tupi eo egipcio antigo, no s6 nas formas gramati- cais, como especialmente em um grande nimero de palavras (as vezes até idénticas), e significando objetos de uma natureza primitiva e nao suscetiveis de sofrer a concorréncia de sindnimos, tais como os com que designavam o sol, o fogo, a terra, o campo, a argila, o ouro (nas An- tilhas), a Agua, o caminho, o céo, a formiga, a Arvore, a folha, o espinho, a flecha e outros, fazem-nos crer que eram de raca aparentada com os egipcios os ascendentes dos nossos tupis. (...) Em todo caso, para nés, ndo cabe a minima divida que os caribs ou tupis haviam, com inauditas crueldades, invadido uma grande parte do lado oriental deste continente, cujos anteriores habitantes, bem que em maior atraso, eram, em geral, mansos e timoratos. A seu tumno devia chegar-lhes o dia da expiagao. Veio a trazé-lo o descobrimento e colo- nizagao, efetuados pela Europa crista. 3. DESCOBRIMENTO DO BRASIL Qs interesses do comércio, mais que a curiosidade natural ao homem e que a sede das conquistas, tém sido em geral a causa da facilidade do trato e comunicag&o dos individuos da espécie humana entre si. Foi ao da especiaria do Oriente que originariamente se deveu © grande acontecimento que denominamos Descobrimento do Novo Continente. (...) Lull ou Lilio, como vulgarmente o apelidam, talvez o sAbio mais enciclopédico da Idade Média, depois de haver corrido grande parte do mundo, segundo ele ingenuamente diz, escreveu em principios do século XIV (1305) um livro intitulado De fine, no qual lembrou a convenién- cia de acabarem os cristéos com o improffcuo sistema das cruzadas maritimas, com que nunca ficariam por uma vez senhores da Terra Santa; e propés para agredir os mugulmanos um plano mais razodvel. Consistia em ir rechacando passo a passo os infiéis das terras por onde se avizinhavam da cristandade, obrigando-os assim a abandonarem todas as conquistas feitas aquém da Ardbia, e a retrocederem pelo mesmo caminho por que tinham avancado vitoriosos. (...) D. Jo&o I de Portugal, desejoso de estender mais o seu pequeno reino, por meio de conquistas sobre os infiéis, passou a desalojé-los de Ceuta; e os seus herdeiros prosseguiram depois nesse grande pensa- mento, apoderando-se de outras terras dos Algarves da Africa. © infante D, Henrique, filho daquele rei, propés-se a diminuir a riqueza e por conseqiiéncia a importancia do Egito, bloqueando-lhe o seu rendoso comércio da especiaria, néo do lado do Mediterraneo, mas, com muito maior ousadia, pelos mares do Oriente, que tratou de buscar, empreendendo chegar a India por meio da circunavegacio da Africa. Mais tarde os reis catélicos, por instinto de conservagio, tiveram também que realizar a idéia da expulsao total dos infiéis, nao sé do 48 territério hispano, como de toda a Africa setentrional, até os Santos Lugares, idéia que um homem, pela luz do seu génio, havia concebido quase dois séculos antes. Tanto é certo, ainda que ao mesmo tempo lastimoso, pela pequenez nossa, que, na histéria do progresso do espirito humano, as idéias mais fecundas necessitam de muito tempo para ger minar e frutificar. (...) Assim este legado, * que abrangia grande parte do territério do atual Império do Brasil, ainda desconhecido aos europeus, veio a pertencer a Portugal, nao em virtude do chamado direito de conquista, ou do de descobrimento, equivalente ao de primeiro ocupante, mas sim em virtude. de um trato solene, feito com a nago que descobrira as Indias Ocidentais, e sancionado pelo Sumo Pontifice, que entio, perante as poténcias cristés da Europa, ainda nao dissidentes por cismas ou heresias, e formando todas como uma espécie de confederacao, de que era chefe o mesmo Pontifice, tinha para as mesmas a forga e prestigio de um direito, a que elas préprias se haviam sujeitado. Os. que "a ingeréncia da Santa Sé neste negécio esquecem-se de que nao vivem no século em que ela teve lugar. Como e quando se inteirou Portugal da existéncia do legado, a que, com poucos anos de ‘antecipacao, dera herdeiro o tratado testamentirio de Tordesilhas, como o descuidou a princfpio, e o beneficiou e aprovei- tou depois; e finalmente como, através de muitas vicissitudes (incluindo acometimentos e guerras por parte de gentes das quatro nagGes, que, além de Portugal, mais se ocuparam de coldnias do século dezesseis para c4, isto é, da Espanha, Franca, Inglaterra e Holanda) veio a surgir, na extensdo de territério.que o mesmo legado abarcava, um novo Império a figurar no Orbe entre as nagies civilizadas, regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos... tal é o assunto da presente Historia, Da existéncia de uma grande terra, na extenséo que lhe coubera em partilha em Tordesilhas, sé teve Portugal conhecimento seis anos depois do tratado, em 1500. Prosseguindo no empenho de encontrar a India, dobrando a extrema meridional da Africa, viu resolvido esse problema, com a chegada de Vasco da Gama a Calecut, em 1498; com a qual se comprovou a possibilidade de cortar ao Egito, pelos mares da India, o comércio da especiaria, dando-lhe outro rumo. A fim de assegutar esse comércio em favor de Portugal, por meio do estabeleci- * © Autor se refere’as terras que‘couberam a Portugal em decorréncia do Tratado de Tordesilhas, (N. do Org.) 49 mento de algumas feitorias, partiu da foz do Tejo, aos 9 de margo de 1500, uma esquadra de treze embarcagdes, armadas algumas por nego- ciantes particulares, mas todas sujeitas A capitania-mor de Pedro Alvares Cabral, individuo de familia ilustre, porém nao afamado por feitos alguns anteriores.” Nas instrugdes escritas que recebeu, e das quais chegaram providencialmente a nossas maos alguns fragmentos da maior importancia, foi-Ihe recomendado que, na altura de Guiné, se afastasse quanto pudesse da Africa, para evitar suas morosas e doentias calmas. Obediente a essas instrugdes, que haviam sido redigidas pelas insinua- gdes do Gama, Cabral se foi, amarando da Africa, e naturalmente ajudado a levar pelas correntes oceanicas ou peldgicas, quando se achava com mais de quarenta dias de viagem, aos 22 de abril, avistou a oeste terra desconhecida. O que desta se apresentou primeiro distin- tamente aos olhos curiosos da gente dessa armada, agora constante sé de doze embarcagées, por se haver desgarrado dias antes uma delas, foi um alto monte, que em atengfo a festa da Pdscoa que se acabava de solenizar a bordo, foi chamado Pascoal; nome que ainda conserva esse monte, mui conhecido dos mareantes, que o consideram entre as melhores balizas para a conhecenga dessa parte do litoral. (...) Entendendo Cabral que Ihe cumpria haver mais exata informagio da terra que tinha a vista, da qual se poderia aproveitar para fazer nova aguada, e porventura refrescar os navios com algumas provisdes, decidiu exploré-la na manha seguinte; comegando desde logo por buscar uma enseada, em que a frota pudesse surgir com seguranga. Encontrou-se esta, dez léguas mais ao norte; e de tao bom abrigo que Ihe foi ent&o dado o nome, que ainda conserva, de Porto Seguro. Se a aragem, em vez de soprar do sul, levando a armada para o norte, vem deste lado e a leva para o sul, grande risco houvera ela corrido, entre os baixios e recifes dos Abrolhos, que comegam justamente, com os de Itacolumi, logo ao sul do Monte Pascoal. (...) No dia 26 do mencionado abril, que era domingo da Pascoela, foram todos os da armada assistir A missa que foi celebrada em um ilhéu ou restinga, que se acha a entrada do dito Porto Seguro. Presenciaram a solenidade, cheios de espanto (que alguns dos nossos tomaram por devogio), muitos filhos da terra que ali vieram. Também cumpre fazer meng&o de que, no 1.° de maio seguinte e no meio da solenidade de outra missa, se efetuou a ceriménia da tomada de posse da nova regio para a Coroa de Portugal, Jevantando-se num morro vizinho uma grande cruz de madeira, com a divisa do venturoso rei ‘D. Ma- nuel. (...) 50 Assim o descobrimento casual desta regio, que era verdadeira- mente uma porgao remota do prdéprio continente que mais ao norte estava sendo visitado por Colombo e os mais capitdes que na sua esteira sucessivamente navegaram de Castela, este descobrimento, dizemos, devido a causas que nada tinham que ver com as exploragGes do célebre genovés, houvera agora feito conhecer esta quarta parte da terra As trés, que antes umas 4s outras se conheciam, se o discfpulo de Toscanelli tivesse, por quaisquer tristes contrariedades, sido embargado, durante mais sete ou oito anos, na execug&o da sua empresa, Desta forma a Vasco da Gama, que dirigiu o rumo dos pilotos de Cabral, € que se deve verdadeiramente o feliz achamento desta terra — achamento, que, se nao se efetuara por esta primeira expedicdo que o seguiu, no poderia deixar de ter lugar num dos anos imediatos, desde que a navegacao da India se tornou freqiiente. (...) Toda a, costa, desde o cabo de Sio Roque para o sul, comegou a ser visitada por um grande nimero de navios de especuladores, vindos em busca do novo pau-brasil, que se vendia com grande vantagem. Os que se dedicavam a esse trdéfico comecaram a ser chamados brasileiros, do mesmo modo que se dizem baleeiros os que vao a pesca das baleias, e que se chamaram negreiros aos que se ocupavam do trafico dos africanos negros, e que algum dia se disseram pimenteiros os que andavam traficando em pimenta. Tal foi, a origem de se haver adotado este nome em portugués, e de nfo nos chamarmos brasileneses ou brasilienses, como inquestionavelmente mais em regra, nos apelidam ou- tras nagdes. Para os selvagens introduziram os jesuitas a palavra brasis: mas esta denominagao, téo apropriada e lacénica, caiu em desuso, suplantada pela mais seguida, bem que inexata, de indios; da qual, com preferéncia 4 de indigenas, igualmente inexata, e menos usada, nos servimos nesta Histéria. (...) O trato e o uso familiar fizeram, pois, que o nome do lenho lucra- tivo suplantasse o do lenho sagrado; e a designac&o do pais por Terra de Santa Cruz apenas hoje se pode empregar na poesia ou no estilo elevado, havendo sido baldados os esforgos dos que, esquecidos de quio justos e conseqiientes sio os povos na preferéncia das denominacdes, quiseram restaurar o antigo nome, para justificar o qual téo pouco havia concorrido o governo, que sé cuidava de arrematar,a quem mais dava 0 trafico do Brasil. Os contratadores ou arrendatérios, mandavam por sua conta naus a esta Terra do Brasil. (...)

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