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VIL DORA E A JOVEM HOMOSSEXUAL A insisténcia simbélica da transferéncia, Pai potente, pai impotent. O amor, a falta e o dom. Dora entre questio e identificagao, ‘Metonimia perversa, metéfora neurstica Este fascfculo, segundo nimero da revista La Psychanalyse, contém certos textos que vao Ihes permitir encontrar uma nova tentativa da \6gica, encontré-la ali onde ela esté de maneira particularmente viva, isto €, em nossa prética. Fago alusio ao nosso famoso jogo de par ou {impar, € remeto vocés & introdugdo que véo ver que dei a meu semi- nério sobre “A carta roubada”. Os trés tempos da subjetividade, na medida em que esta se rela- ciona com a frustragio, sob a condigéo de se tomar esta ultima no sentido da falta de objeto, serdo facilmente encontrados por vocés se refletirem inicialmente na posigdo zero do problema, a saber, a opo- sigGo, a instituiggo do simbolo puro de mais ou menos, presenga ou auséncia, que nada mais & que uma posi¢do objetivavel da premissa do jogo. O segundo tempo deve ser encontrado no fato de que a declaracéo que vocés fazem, dizendo par ou impar, & uma espécie de demanda pela qual se situam em posigdo de serem gratificados ou no pela resposta do outro, mas como este jf tem os dados nas mis, nfo depende mais dele que aquilo que tem nas maos satisfaca ou ndo a 133 Ba ‘AS VIAS PERVERSAS Do DESEIO. demanda de voces. Logo, tém aqui o estédio segundo da relagdo dual, na medida em que institui o apelo e sua resposta, sobre a qual se estabelece 0 nivel da frustragdo. Voces vem, ao mesmo tempo, seu cardter absolutamente evanescente, ¢ literalmente impossivel de satis- fazer. Se 0 jogo os interessa é, evidentemente, porque vocés introduzem a terceira dimensdo que Ihe d& seu sentido, aquela da lei, sob uma forma que esta sempre latente a0 exercicio do jogo. Com efeito, do ponto de vista de quem demanda, de que se trata? Supde-se, eviden- temente, que o outro Ihe sugira a todo instante uma regularidade, em outras palavras, uma lei, que ao mesmo tempo ele se esforga por Ihe furtar. A instituigdo de uma lei ou de uma regularidade concebida como possfvel, aquele que propde a parte oculta do jogo escamoteia-a a cada instante ao outro, ao mesmo tempo em que sugere a ele 0 seu nasci mento. E nesse momento que se estabelece o que esta fundamental- ‘mente no jogo e que Ihe dé seu sentido intersubjetivo, situando-o numa dimensdo ndo mais dual, ¢ sim ternéria, Sobre essa dimensio essencial repousa 0 valor de meu texto, a saber, que € necessério introduzir trés termos para que se possa come- ara articular algo semelhante a uma lei. Os trés tempos intersubjetivos so aqueles segundo os quais tentamos ver como se introduz 0 objeto na cadeia simbélica. Pois, pelo simples fato de vir a nosso alcance, sob nossa jurisdigdo, na prética analitica, é realmente preciso que esse objeto entre nessa cadeia. Foi af que chegamos da ditima vez, na hist6ria de nosso caso de homossexualidade feminina, Tinhamos chegado ao que eu chamava de terceiro tempo, isto é, 0 tempo que se constitui da seguinte maneira, que resumo para voces a partir de uma primeira situagao tomada arbitrariamente com a situa- 40 inicial Notem que isso jé implica fazer uma concessio a um ponto de vista progressivo, admitir esse ordenamento cronol6gico dos termos desde 0 passado até 0 futuro, Nés 0 fazemos para facilitar as coisas, aproximando-nos do que é feito, habitualmente, na dialética da frus- tragdo, sem esquecer que, concebendo-a de maneira suméria, isto é, Dora A JovEM HOMOSEXUAL 135 sem distinguir os planos real, imaginério € simbélico, chega-se @ impasses que, quanto mais avangarmos, mais espero fazé-los sentir. Mas, por ora, tentamos estabelecer os principios de relagdes entre © objeto €, por outro lado, a constituigéo da cadeia simbdlica. ‘Temos, em primeiro lugar, a posigdo da jovem quando ela ainda esté no tempo da puberdade, A primeira estruturagdo simbdlica e imaginéria dessa posigdo se faz da maneira cléssica, como € ordenado pela teoria, A equivaléncia pénis imagindrio-crianga instaura o sujeito como mae imagindria com referéncia a este mais-além que € 0 pai, intervindo como fungao simbélica, isto €, como aquele que pode dar © falo. A poténcia do pai é, entdo, inconsciente. Estamos depois do declinio do camplexo de Edipo, e o pai, como aquele que pode dar a crianga, € inconsciente. E nesse estédio que se produz, se podemos dizé-lo, 0 momento fatal em que o pai intervém no real para dar uma crianga & mae, isto é, fazer desta crianga diante de quem o sujeito esté em relagdo imagi- néria uma crianga real. Algo se realiza que, em consequéncia, nao é ‘mais sustentével por ela na posigéo imaginéria em que o instituia. Encontramo-nos agora no segundo tempo. A intervengao do pai real no nivel da crianga de que ela era, entdo, frustrada, produz a transfor- magio de toda a equagio, que se situa, a partir daf, nos seguintes termos: 0 pai imaginério, a dama, 0 pénis simbélico. Por uma espécie de inversio, a relagdo do sujeito com seu pai, que se situava na ordem simbélica, passa no sentido da relagdo ima- Binéria, Ou, se quiserem, hd projecdo da fOrmula inconsciente, a de seu primeiro equilibrio, numa relagio perversa entre aspas, uma relago imagindria, a saber, sua relagio com a dama. Este € 0 terceiro tempo. Crianga, Dama Pai imagindrio Penis simbslico A Jovem HoMossEXUAL (3) 136 As VIAS PERVERSAS DO DESEO A‘ esté, pois, em seguida a uma primeira aplicago de nossas fécmulas, a posigdo dos termos em jogo, posigo, sem divida alguma, enigmética, em que podemos nos deter por um instante. Convém, todavia, observar que esses termos, quaisquer que sejam, impdem uma estrutura, isto é, se alteréssemos a posigdo de um dentre eles, deveria- ‘mos situar noutra parte, ¢ nunca num lugar qualquer, todos os outros. Tentemos agora ver que isso significa. Sua significagdo nos é dada pela andlise (0 que nos diz Freud no momento crucial desta observacao? De- vido a uma certa concepgo que extrai da posigdo em jogo, e por uma intervengao feita por ele nesse sentido, ele cristaliza a posigdo entre sie a paciente de uma maneira que ndo é satisfat6ria, de vez que, ele proprio o afirma, € nesse momento que se rompe a relagdo analitica Seja 0 que for que Freud pense disso, estamos longe de ser levados a atribuir toda a responsabilidade a um impasse da posigo da doente. A intervengao dele, sua concepgao, seus preconceitas sobre a posigao devem ter, realmente, algo a ver com a ruptura da situacdo, ‘Vamos recordar 0 que é essa posigdo, e como Freud a formula para nds, Ele nos diz que as resistencias da doente foram insuperaveis Essas resisténcias, como ele as materializa? Que exemplos nos dé delas? Que sentido Ihes atribui? Ele as vé particularmente expressas num sonho que, paradoxalmente, teria podido alimentar muitas espe- rangas, a saber, de que a situagdo se normalizasse. Com efeito, é um sonho onde s6 se trata de reunido, conjugo, casamento fecundo, A paciente é nele submetida a um cOnjuge ideal, ¢ tem filhos com este. Em suma, 0 sonho manifesta um desejo que vai no sentido daquilo que, sendo Freud, pelo menos a sociedade, aqui representada pela familia, pode dese ar de methor como resultado do tratamento. Certo de tudo 0 que a paciente Ihe diz sobre sua posigo ¢ suas intengdes, Freud, longe de tomar 0 texto do sonho ao pé da letra, vé nele apenas um artificio da paciente destinado expressamente a enga- né-lo, ou, mais exatamente, a iludi-lo e desiludi-lo ao mesmo tempo, como nesse uso, que eu evocava hé pouco, do jogo intersubjetivo da adivinhagdo. Isso supde, como Freud observa, que se possa objetar-Ihe: Mas, entéo, 0 inconsciente pode mentir? Freud se detém longamente neste ponto, discute-o € tem o cuidado de responder de maneira bas- tante articulada, Freud retoma aqui uma passagem da Interpretagdo dos sonhos. Ele a retoma, igualmente, numa outra observagdo a que vamos chegar Dora A JovEM Homosexual 137 daqui a pouco, a de Dora, a cujo propésito jé fiz outrora, em seguida a.um relatério de Lagache sobre a transferéncia, uma pequena inter- vvengio resumindo as posigdes em que penso se deva conceber o caso. ‘A Traumdeutung, quanto as relagies entre 0 desejo inconsciente € 0 desejo pré-consciente, introduz uma comparacdo entre capitalista e empresério. O desejo pré-consciente ¢ 0 empresério do sonho, mas © sonho néo teria nada de suficiente para se instituir como repre- sentante daquilo a que se chama o inconsciente se néo houvesse um ‘outro desejo, que dé 0 fundo do sonho, e que € 0 desejo inconsciente. Portanto, Freud distingue muito bem os dois desejos, s6 que nao chega a tirar dat as consequéncies extremas. E possfvel situar como distinto (© que 0 sujeito conduz em seu sonho, que é do nivel do inconsciente, © 0 fator da relagao dual, ligado ao fato de dirigir-se a alguém quando conta 0 sonho em anilise. E nesse sentido que digo que um sonho que se produz no decorrer de uma andlise comporta sempre uma certa diregdo para o analista, e essa diregao nem sempre é, obrigatoriamente, a diregao inconsciente. Toda a questio € saber se devem ser enfatizadas as intengoes que Freud nos diz serem, de forma confessada, as da doente, as intengdes de jogar com seu pai —e a doente chega, ela mesma, a formulé-lo— © jogo da tapeacdo, fingir se tratar e manter suas posigdes, sua fideli- dade a dama, O que se expressa no sonho deve ser concebido pura e simplesmente na perspectiva da tapeagio, isto é, na sua intencionali- zagio pré-consciente? Nio parece ser assim, pois, se olharmos mais de perto, 0 que vemos ser formulado? Sem divida, estamos af numa dialética de tapeagdo, mas 0 que se formula no inconsciente, tanto na primeira como na terceira etapa, é, referido ao significante, aquilo que foi desviado na origem, a saber, sua propria mensagem vinda do pai sob tuma forma invertida, sob a forma do vocé é minha mulher, vocé é ‘meu mestre, voce terd um filho meu. Esta é, na entrada do Edipo ou enquanto 0 Edipo nao esté resolvido, a promessa sobre a qual se funda a entrada da menina no complexo de Edipo. Foi dat que partiu a posigao, € articula-se no sonho uma situagéo que satisfaz a essa promessa, E sempre o mesmo contesdo do inconsciente que se veri- fica. ‘Se Freud hesita diante desse contesido é, muito precisamente, por nao haver chegado a uma formulagdo depurada do que vem a ser a transferéncia. Hé, com efeito, na transferéncia, um elemento imagind- 138 AS VIAS PERVERSAS DO DESEIO. rio € um elemento simbélico e, por conseguinte, uma escolha a fazer. Se a transferéncia tem um sentido, se tem um sentido o que Freud nos forneceu, ulteriormente, com a nogdo de Wiederholungszwang, em torno da qual tomei o cuidado de passar um ano para fazé-los ver 0 que podia significar, € que na medida em que existe a insisténcia propria & cadeia simbélica como tal é que ha transferéncia. Certamente, por definigao, essa insisténcia prépria a cadeia sim- bolica nao € assumida pelo sujeito. Todavia, 0 simples fato de que cla se reproduza que chegue & etapa trés como substituindo € se formulando num sonho permite dizer que esse sonho, mesmo que parega ser um sonho enganador por estar no nivel imagindrio e em relagdo direta com o terapeuta, nem por isso deixa de ser — e apenas cle — o representante da transferéncia no sentido proprio. Era ali que Freud poderia arriscar a sua confianga ¢ intervir com audécia, Seria preciso que sua nogdo de transferéncia estivesse baseada numa posicdo menos oscilante, € que ele tivesse concebido bem precis mente que a transferéncia se passa, de modo essencial, no nivel da articulagao simbélica. Quando falamos de transferéncia, quando alguma coisa assume sentido pelo fato de que o analista se toma o lugar da transferéncia, é ‘muito precisamente na medida em que se trata da articulagdo simbélica como tal, € isso, € claro, antes que o sujeito a tenha assumido, como se vé aqui naquilo que é um sonho de transferéncia. Se Freud nota, mesmo assim, que algo se produziu ali, da ordem da transferénci nio tira dai a consequéncia estrita nem tampouco 0 método correto de intervengao. Essa observagio ndo € valida somente para um caso particular. ‘Temos, igualmente, outro caso onde o problema surge no mesmo nivel, da mesma maneira, s6 que Freud comete 0 erro exatamente contrétio. E 0 caso de Dora Esses dois casos se equilibram admiravelmente, Entrecruzam-se, estritamente, um e outro, Para comecar, porque a confusio da posigéo simbélica com a posigo imaginéria se produz, em cada um, num sentido oposto. Mas, mais ainda, porque na sua constelagao total eles se correspondem estritamente, com a diferenga que um se organiza com referencia ao outro sob a forma do positivo ao negativo. Poderia dizer que nao existe melhor ilustragdo da férmula de Freud, de que a perversio € 0 negativo da neurose. Ainda resta desenvolvé-lo, DoRAE A JovEM HoMOSSEXUAL 139 2 ‘Vamos lembrar rapidamente os termos do caso de Dora quanto ao que ‘tém em comum com os da constelacdo presente no caso da jovem homosexual. ‘Temos, no caso de Dora, exatamente os mesmos personagens: em primeiro plano um pai, uma filha, e também uma dama, a sra. K. Isso nos surpreende tanto mais que é também em toro da dama que gira todo o problema, embora a coisa seja dissimulada a Freud na apresen. tagdo da situagao pela moga, Esta € uma pequena histérica, que levam até ele por causa de alguns sintomas, sem diivida menores, mas assim mesmo caracteriza- dos. AA situagéo se tornou intoleravel, em seguida a uma espécie de demonstragao ou intengdo de suicidio que acabou alarmando sua fa- mila, O pai a apresenta a Freud como uma doente, e essa passagem a0 nivel da consulta é um elemento que por si s6 denota claramente uma crise no conjunto social onde um certo equilibrio fora até entdo mantido. Todavia, esse equilibrio singular jé se rompera, de fato, hé dois anos, e devido a uma posicdo inicialmente dissimulada de Freud, a saber, que 0 pai tinha por amante uma sra. K., casada com um senhor chamado st. K. Esse casal vive numa espécie de relagio a quatro com © par formado pelo pai e a filha. A mie esté ausente da situagao. Jé estamos vendo, & medida que avangamos, 0 contraste com a situagdo anterior. No caso da jovem homossexual, com efeito, a mae esté presente, j4 que € ela quem arrebata a filha a atengdo do pai, € introduz.o elemento de frustragao real que tera sido 0 determinante na formagao da constelagao perversa. Por outro lado, no caso de Dora, é © pai quem introduz a dama, e parece manté-la ali, enquanto, no outro, €a filha quem a introduz. O que € espantoso € que Dora marca desde logo, para Freud, sua reivindicagdo extremamente viva concemente a afeigdo de seu pai sobre quem ela diz que ele Ihe foi arrebatado por essa ligagdo. Ela demonstra imediatamente a Freud que sempre soubera da existéncia dessa ligagdo, de sua permanéncia e sua prevaléncia, e chegou a no poder mais toleré-la. Todo o seu comportamento manifesta sua reivin- dicagdo frente a essa situagao. Freud entdo d& um passo, o primeiro passo da experiéncia freu- diana, 0 mais decisivo de sua qualidade, falando propriamente, dialé- tica, Ele remete Dora a seguinte questao: Isso contra 0 que vocé se 140 As VIAS PERVERSAS DO DESEJO insurge af, como contra uma desordem, nao é algo de que vocé mesma articipou? E, com efeito, Freud logo poe em evidéncia que, até um momento critico, aquela posigao fora sustentada de maneira mais eficiente pela prépria Dora. Ela se mostrara muito mais que compla- cente para com aquela posigao singular, fora realmente a sua peca- chave, protegendo os encontros do par formado pelo pai ¢ a dama, chegando a substituir a dama numa ocasio em suas fungdes, ocupan- do-se, por exemplo, dos filhos desta. Por outro lado, & medida que se vai mais adiante na estrutura do caso, fica evidente mesmo que ela tem uma ligagao toda especial com a dama, que acontece de ser sua confidente, e que, tudo indica, foi muito longe com ela em suas confidéncias. Este caso € de uma tal rigueza que ainda podemos fazer desco- bertas nele, ¢ esse répido lembrete ndo pode de modo algum substituir sua leitura atenta, Vamos assinalar, entre outros, 0 intervalo de nove meses entre o sintoma histérico de apendicite e 0 fato que 0 gerou, a cena do lago — que Freud acredita descobrir por que a doente 0 fomnece a ele de uma maneira simbélica, mas, se examinarmos de perto, vamos perceber que se trata, na realidade, de quinze meses. E esses quinze meses tém um sentido, porque o quinze se encontra em toda parte no caso, e este elemento € util para a compreensio, na medida em que este se funda em mimeros e num valor puramente simbélico. S6 posso lembrar hoje a vocés em que termos se formula 0 pro- blema ao longo de todo 0 caso clinico. Sem divida, Freud percebe s6-depois que, se fracassou, foi em razdo de uma resistencia da pa- ciente a admitir a relagdo amorosa que a liga ao st. K., como Ihe foi sugerido por Freud com todo o peso da insisténcia e da autoridade deste. Fle chega a indicar, numa nota, que houve sem diivida um erro de sua parte, e que deveria ter compreendido que o apego homosexual a sra. K. era a verdadeira significagdo do estabelecimento da posigo primitiva de Dora, ¢, a0 mesmo tempo, de sua crise. Mas 0 importante ndo é apenas que Freud 0 reconhega s6-depois, pois a0 longo de todo © caso vocés podem ler que ele se mantém na maior ambiguidade no que conceme ao objeto real do desejo de Dora. Em que termos articular a posigao do problema? Ainda af, trata-se de dar uma formulagdo possivel a essa ambiguidade, de certo modo nao resolvida. £ claro que o st. K.,em sua pessoa, tem uma importancia prevalente para Dora, e que algo como um lago libidinal foi estabele- DoRA E A JOVEM HOMOSEXUAL 141 cido com ele. E claro, também, que algo de outra ordem, e de grande peso também, desempenba a todo instante seu papel no lago libidinal de Dora com a sra. K. Como conceber ambos de uma maneira que justifique e permita conceber o progresso da aventura e 0 momento fem que esta se interrompe, sua crise, o ponto de ruptura do equilibrio? HA cinco anos, fiz uma primeira abordagem desse caso, onde, em conformidade com a estrutura das histéricas, indicava 0 seguinte: a histérica é alguém que ama por procuragdo, ¢ vocés véo encontrar isso numa multiplicidade de casos clinicos; ahistérica éalguém cujo objeto € homossexual: a histérica aborda este objeto homosexual por iden- tificagdo com alguém do outro sexo. Esta era uma primeira abordagem, de certo modo clinica Eu tinha ido mais longe. Partindo da relagdo narcisica como fundadora do eu (moi), como matriz, Urbild, da constituigdo dessa fungdo imaginéria a que se chama 0 eu (moi), havia demonstrado que tinhamos vestigios disso no caso. A situagao do quarteto, com efeito, s6 se compreende na medida em que 0 eu (moi) — € somente 0 eu — de Dora fez uma identificagdo com um personagem viril, que ela 0 st. K, € 0s homens sio para ela outras tantas cristalizagdes possiveis de seu eu. Em outros termos, € por intermédio do st. K.. € nna medida em que ela € 0 st. K., € no ponto imaginério constituido pela personalidade do st. K. que Dora esté ligada ao personagem da sra K. Eu havia ido ainda um pouco mais longe, ¢ dissera: A sta. K. é alguém importante, por qué? Ela ndo € importante apenas porque constitui 0 objeto de uma escolha dentre outros objetos. Ela ndo é importante apenas porque est investida da fungao narcisica que reside no fundo de todo enamoramento, Verliebtheit. Néo, como indicam os somos, e é em torno dos sonhos que gira 0 essencial do caso, a sra. K. & a questdo de Dora. ‘Vamos tentaragora transcrever isso em nossa formulagdo presente, € situar 0 que, nesse quarteto, vem se ordenar sobre 0 nosso esquema fundamental Dora é uma histérica, isto 6, alguém que chegou ao nivel da crise edipiana, e que a0 mesmo tempo pode e ndo péde ultrapassé-la. Existe uma razio para isso: € que 0 pai dela, contrariamente ao pai da homossexual, & impotente, Toda a observagdo repousa na nogao central, da impoténcia do pai. Af esté, portanto, a ocasido de valorizar, ¢ de uma maneira particularmente exemplar, aquilo que pode ser a fungo 142 AS VIAS PERVERSAS Do DESEIO. do pai com referencia a falta de objeto pela qual a menina entra no Edipo, Qual pode ser a fungao do pai como doador? Essa situago repousa sobre a distingao que jé fiz a propésito da frustrago primitiva, aquela que pode se estabelecer na relagio da crianga com a mae. Existe o objeto de que a crianca € frustrada. Mas, depois da frustragao, seu desejo subsiste. A frustragdo s6 tem sentido na medida em que 0 objeto, como pertinéncia do sujeito, subsiste depois da frustracdo. A mie intervém, entdo, num outro registro: ela dé ou no dé, mas na medida em que esse dom é signo de amor. ‘Ai estd agora o pai, que & feito para ser aquele que dé, simboli- camente, esse objeto faltoso. Aqui, no caso de Dora, ele néo od, porque ndo o tem. A caréncia félica do pai atravessa todo 0 caso como luma nota fundamental, constitutiva da posigdo, Mas, ainda af, seré ‘num tinico plano que nos encontramos? Seré pura simplesmente com relagdo a essa falta que toda a crise vai se estabelecer? Vamos observar do que se trata. O que é dar? Nao existe uma outra dimensio introdu- ida na relagio de objeto no nivel em que é levada ao grau simbélico pelo fato de que 0 objeto pode ser dado ou ndo? Em outros termos, alguma vez € 0 objeto que € dado? AL esté a questdo, e vemos no caso de Dora uma safda, que € exemplar. Com efeito, a0 pai de quem nao recebe simbolicamente 0 dom viril, ela permanece muito ligada, téo ligada que sua histéria comega exatamente na idade da saida do Edipo, com toda uma série de aci- dentes histéricos claramente ligados a manifestagdes de amor por este pai que, naquele momento, mais do que nunca, aparece decisivamente ‘como um pai ferido e doente, afetadoem suas prOprias poténcias vitais. amor que ela tem por esse pai € entio estritamente correlativo € coextensivo & diminuigio deste. Logo, temos ai uma distingéo muito nitida. O que intervém na relagdo de amor, o que € demandado como signo de amor nunca passa dealguma coisa que s6 vale como signo. Ou, para ir ainda mais adiante, rio existe maior dom possivel, maior signo de amor que o dom daquilo {que nao se tem. Mas vamos observar bem que a dimensio do dom s6 existe com a introdugio da lei. Como nos afirma toda a meditagdo sociolgica, odom é algo que circula, o dom que vocés fazem é sempre aquele que receberam. Mas quando se trata do dom entre dois sujeitos, © ciclo de dons vem ainda de outra parte, pois o que estabelece a relagZo de amor & que o dom é dado, se podemos dizé-lo, em troca de nada, DoRAE A JOvEM HOMOSEXUAL 143 O nada por nada € 0 principio da troca. Esta formula, como toda formula onde intervém 0 nada amb{guo, parece ser a formula propria do interesse, mas é também a férmula da pura gratuidade. No dom de amor, alguma coisa € dada por nada, e que s6 pode ser nada. Em outras, palavras, 0 que faz 0 dom é que um sujeito dé alguma coisa de uma ‘maneira gratuita; na medida em que, por detrés do que ele dé, existe tudo o que Ihe falta, é que o sujeito sacrifica para além daquilo que tem. O mesmo acontece, aliés, com 0 dom primitivo, tal como se exerce efetivamente na origem das trocas humanas sob a forma do potlatch. ‘Suponhamos um sujeito provido de todos os bens possiveis, de todas as riquezas, um sujeito que tenha a plenitude possivel de tudo (© que se possa ter. Pois bem, um dom vindo dele ndo teria de modo algum o valor de um signo de amor. Os crentes imaginam poder amar Deus porque Deus é considerado detentor de uma plenitude total, uma (otalidade de ser. Mas se este reconhecimento dirigido a um deus que seria tudo € apenas pensavel é porque, no fundo de toda crenca, existe ainda assim esse algo que permanece ali — este ser que se considera ser pensado como um todo, falta a ele, sem dtivida alguma, o principal no ser, isto €, a existéncia. No fundo de toda crenga em deus como perfeita c totalmente munificente, existe a nogdo de uma coisa qualquer ue the falta sempre, e que faz com que se possa, ainda assim, sempre supor que ele ndo exista, Nao hé outra razio para se amar a Deus senio que talver ele nao exista, O que € certo é que Dora esté ali, no momento em que ama seu pai, Ela o ama, precisamente, pelo que ele nio Ihe dé. Toda a situago € impensavel fora dessa posigo primitiva, que se mantém até o fim. Tem-se agora que conceber como ela pdde ser suportada, tolerada, dado que 0 pai se envolve, diante de Dora, numa outra coisa, a qual 1 propria Dora parece mesmo ter induzido, sta. K, Dora Pai Dora Toda a situagio se instaura como se Dora tivesse que se formular a questo: O que é que meu pai ama na sra. K.? Asra, K. se apresenta 144 As VIAS PERVERSAS DO DESEJO como algo que seu pai pode amar para além dela mesma. Aquilo a ue Dora se apega € 0 que é amado por seu pai numa outra, na medida em que ela nao sabe o que €. Isso est em conformidade com o que é suposto por toda a teoria do objeto falico, a saber, que o sujeito feminino s6 pode entrar na dialética da ordem simbélica pelo dom do falo. A necessidade real que sobressai no érgdo feminino como tal, na fisiologia da mulher, no € negada por Freud, mas nunca Ihe é dado entrar, como tal, no estabelecimento da posicao de desejo. O desejo visa ao falo na medida fem que este deve ser recebido como um dom. Para este fim, & necessério que o falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado a0 nivel do dom. E & na medida em que ele € elevado a dignidade de objeto de dom, que faz o sujeito entrar na dialética da troca, aquela que ir& normalizar todas as suas posigdes, até e inclusive as interdigoes essenciais que fundam o roovimento geval da troce E no interior disso que a necessidade real cuja existéncia Freud jamais sonhou em negar, ligada a0 Grgio feminino, vai se encontrar tendo um lugar € se satisfazer lateralmente, mas ela nunca € observada simbolicamente como algo que tenha um sentido, mas sempre, essencialmente, pro- blematica em si mesma, colocada frente de uma certa superagio simbélica E disso mesmo, com efeito, que se trata durante a exibiglo de todos esses sintomas ¢ ao longo de todo 0 caso, Dora se interroga: O que é uma mulher? E & na medida em que a sra. K. encama a fungao feminina como tal que ela é, para Dora, a representagio daquilo em que esta se projeta como sendo a questo. Dora esté no caminho da relagdo dual com a sra. K., ou melhor, a sra. K. é aquilo que é amado para além de Dora, € € por isso que Dora se sente, ela propria, interessada nessa posigio. A sra. K. realiza aquilo que ela, Dora, néo pode nem saber nem conhecer por essa situagdo em que nao encontra onde se alojar. O que € amado num ser est para além daquilo que ele 6, a saber, afinal de contas, 0 que Ihe falta. Dora se situa em algum lugar entre seu pai e a sra. K. Na medida fem que seu pai ama a sra. K., Dora se sente satisfeita, sob a condigao, € claro, de que essa posigao seja mantida. Essa posigdo €, aliés, simbolizada de mil maneiras. E assim que o pai impotente supre, por todos os meios do dom simbélico, inclusive os dons materiais, 0 que nio pode realizar como presenga viril, ¢ faz com que disso, efetiva- mente, Dora se beneficie, pelas munificéncias que se repartem igual- Dora £ A JovEM HOMOSEXUAL us mente entre a amante e @ filha, fazendo assim esta i dessa posigao simbdlica Todavia, isso ainda nao basta e Dora tenta resgatar 0 acesso auma posigdo manifestada no sentido inverso. Quero dizer que é, no mais diante do pai, mas diante da mulher que tem & sua frente, a sra. K., que ela tenta restabelecer uma situacdo triangular. E aqui que intervém © st. K. por quem pode, efetivamente, se fechar este triangulo, mas ‘numa posigao invertida: a participar sek nk, Dora Pai Dora (2) Por interesse em sua questdo, Dora considera 0 st. K. como par- ticipante daquilo que simboliza 0 aspecto de questao da presenga da sta K,, isto 6 aadoragao, expressa ainda por uma associagio simbélica muito manifesta da sa. K. Madona Sistina. A sra. K. € 0 objeto da adorago de todos os que a cercam, ¢ é como participante dessa adoragdo que Dora se situa, afinal, em relagdo a ela. O st. K. é a ‘maneira como ela normativiza essa posigdo, tentando reintegrar no Circuito o elemento masculino. Quando € que ela o esbofeteia? Nao quando ele a corteja, ou quando diz que a ama. Nem mesmo quando ele se aproxima dela de uma maneira intolerdvel para uma histérica. E no momento em que ele the diz: fch habe nichts an meiner Frau. A formula alema & particularmente expressiva, tem um sentido particularmente vivo, se dermos ao termo nada toda a sua importancia. O que ele Ihe diz 0 retira, em suma, do circuito assim constitufdo, que na sua ordem se estabelece assim: 46 |AS VIAS PERVERSAS DO DESEIO. ara. K. aK, ‘a guesido com quem Dora se identifica Dora Pai permanece 0 Outro por exceléncia. Dora (3) Dora pode inclusive admitir que seu pai ame nela, por ela, aquilo que esté para além, a sra. K, mas para que o st. K. seja toleravel em sua posigio, é preciso que ocupe a fungéo exatamente inversa ¢ equilibradora. A saber, que Dora seja amada por ele para além de sua mulher, mas na medida em que sua mulher represente alguma coisa para ele. Essa alguma coisa € 0 mesmo que esse nada que deve existir para além, isto é, Dora, no caso. Ele néo diz que sua mulher nada € para ele, e sim que, pelo lado de sua mulher, néo hhé nada, Encontramos o an em mil locugdes alemas, por exemplo, za expressio Es fehit ihn an Geld. & uma ligagao, uma adjungéo no mais além daquiio que falte. E isco, precisamente, o que encontramos aqui. O st. K. quer dizer que ndo hé nada depois da sua mulher: Minha mulher ndo estd no circuito, (O que resulta disso? Dora nao pode tolerar que ele nao se interesse por ela sendo na medida em que ele s6 se interesse por ela. Toda a situagdo estaria rompida ao mesmo tempo. Se o st. K. s6 se interessa por ela, € porque seu pai s6 se interessa pela sra, K.,e a partir dai ela no pode mais toleré-lo. Por qué? Ela entra, no entanto, aos olhos de Freud, numa situagdo tipica. Como explica o st. Claude Lévi-Strauss em As estruturas elementares do parentesco, a troca de lagos de alianga consiste exatamente no seguinte: Eu recebi uma mulher e devo uma filha, S6 que isso — que 60 proprio principio da instituigo da troca e da lei — faz da mulher tum puro e simples objeto de troca, ela nao ¢ integrada por nada ali Em outras palavras, se ela mesma néo renunciou a alguma coisa, isto & precisamente, a0 falo paterno concebido como objeto do dom, ela DoRAE A JOvEM HOMOSEXUAL “47 ‘nao pode de modo algum conceber, subjetivamente falando, que receba outras, isto & de um outro homem. Na medida em que estd exclufda da primeira instituigao do dom e da lei na relagdo direta do dom do mor, ela s6 pode viver essa situagéo sentindo-se reduzida, pura simplesmente, ao estado de objeto. £ isso mesmo que acontece naquele momento. Dora se revolta absolutamente, e comeca a dizer: Meu pai me vende a um outro, Este 6 com efeito, 0 resumo claro e perfeito da situagao, na medida em que ela € mantida semiencoberta. De fato, é realmente para o pai uma ‘maneira de pagar a complacéncia do marido da sra. K. tolerar de forma velada que este dltimo faga a Dora essa corte a que, nos tiltimos anos, se entregou. O sr. K,, portanto, confessou nao fazer parte de um circuito onde Dora poderia ou identificar-se a si mesma, ou pensar que ela, Dora, fosse seu objeto para além da mulher através de quem ela se liga a ele. Ha uma ruptura desses lagos, sutis e ambfguos, sem diivida, mas dotados de um sentido, de uma orientagdo perfeita, que permitiam a Dora encontrar seu lugar no circuito, mesmo que de modo instavel. A situagio se desequilibra. Dora se vé relegada a0 papel do puro e simples objeto, e comega desde entio a entrar na reivindicacao. Ela reivindica 0 que estava muito disposta até entéo a considerar que recebia, mesmo que por intermédio de uma outra, ¢ que € 0 amor de seu pai. A partir daquele momento, jé que este Ihe & recusado total- mente, ela o reivindica com exclusividade. 3 Dora e nossa homossexual estio, pois, respectivamente implicadas em duas situagGes € dois registros distintos. Que diferenga surge assim? aca ir depressa e terminar com alguma coisa que faga imagem, vou Ihes dizer o seguinte, que iremos confirma: Se € verdade que 0 que se mantém no inconsciente de nossa homossexualidade € a promessa do pai, Vocé terd um filho meu, ¢ se no seu amor exaltado pela dama ela mostra, como diz Freud, o modelo do amor absolutamente desinteressado, do amor por nada, nfo vem que tudo se passa como se a moga quisesse mostrar a seu pai o que é um verdadeiro amor, este amor que seu pai lhe recusou? Sem duvida, existe no inconsciente do sujeito o pensamento de que o pai se envol- 148 AS VIAS PERVERSAS DO DESEJO. veu com a mae porque encontra nisso mais vantagens, e com efeito essa relagdo & fundamental em toda entrada da crianga no Edipo, a saber, a superioridade esmagadora do rival adulto. O que a moga demonstra aqui ao pai é como se pode amar alguém, néo apenas pelo que ele tem, mas literalmente pelo que nao tem, por este pénis sim- bolico que ela sabe muito bem que nao vai encontrar na dama, porque sabe muito bem onde ele se encontra, isto é, em seu pai, que, este, nao € impotente. Em outras palavras, aquilo a que se chama, por assim dizer, a perversio, neste caso se exprime entre as linhas, por contrastes € alusdes. £ uma maneira de falar de uma coisa inteiramente diversa, ‘20 mesmo tempo implicando necessariamente, pela sequencia rigorosa dos termos postos em jogo, uma contrapartida que & precisamente 0 que se quer fazer 0 outro escutar. Vocés vao encontrar ai 0 que eu chamei, no pasado, diante de vocés, de metonimia, que consiste em dar a escutar alguma coisa falando de uma coisa completamente dife- rente. Se nao apreenderem em toda a sua generalidade esta nocéo fun- damental da metonimia, € inconcebivel que cheguem a uma nogio qualquer do que pode querer dizer a perverséo no imaginério. ‘A metonimia ¢ 0 princfpio daquilo a que se pode chamar, na ordem da fabulagao ¢ da arte, 0 realismo. Um romance, que € feito de um punhado de pequenos tragos sensiveis do real que nada querem dizer, no tem valor algum se nao fizer vibrar harmonicamente um sentido mais além, Assim, no comego de Guerra e paz, 0 tema que retorna dos ombros nus das mulheres vale por uma outra coisa. Se os grandes omancistas séo suportaveis € na medida em que tudo 0 que eles se esforgam por nos mostrar encontra seu sentido, ndo em absoluto sim- bolicamente, ndo alegoricamente, mas pelo que fazem ressoar & dis- téncia. O mesmo ocorre com o cinema: quando um filme é bom é porque € metonimico. E, igualmente, a funcéo da perverséo do sujeito € uma fungio metonimica. Seré a mesma coisa para Dora, que é uma neurética? E uma coisa inteiramente outra. Considerando-se o esquema, constata-se que li ‘mos, na perverséo, com uma conduta significante indicando um sig- nificante que est mais longe na cadeia significante, na medida em que Ihe esté ligado por um significante necessdrio. No caso de Dora, Dora tomada como sujeito se coloca, o tempo todo, sob um certo mimero de significantes na cadeia, Ela encontra na situagéo uma espécie de metéfora perpétua Dora A Jovem HoMOssEXUAL 49 iteralmente, ost. K. € sua metéfora, porque Dora nada pode dizer sobre o que ela €, Dora nao sabe onde se situar, nem onde esté, nem para o que serve, nem para que serve o amor. Simplesmente, ela sabe que 0 amor existe, € encontra nele uma historizagéo onde acha seu lugar sob a forma de uma questo, Esta questio esté centrada pelo contetido e articulagao de todos os seus sonhos — a caixa de joias, Bahnhof, Friedhof, Vorhof — que nada mais significam senao essa questéo. Em suma, é na medida em que Dora se interroga sobre o que € ser mulher que ela se exprime como o faz, por seus sintomas. Esses sintomas sao elementos significantes, mas na medida em que, sob eles, corre um significado perpetuamente em movimento, que € a maneira como Dora ai se implica e se interessa, como metaforica que a neurose de Dora assume seu sentido € pode ser desatada, Freud quis introduzir nessa metafora, ou quis forgar, © elemento real que tende a se reintroduzir em toda metéfora, dizendo a Dora: O que vocé ama € isso, precisamente, Naturalmente, alguma coisa tendeu a se normalizar na situago pela entrada em jogo do sr. K., mas essa alguma coisa permaneceu em estado metaférico. ‘A prova disso é essa espécie de engravidamento de Dora que se produz depois da crise de ruptura com o sr. K., € que Freud percebe com esse prodigioso senso intuitivo das significagdes que é o seu. Com efeito, € uma estranha falsa gravidez, significativa, que se produz a0 fim de nove meses, diz Freud, porque a propria Dora o diz, confes- sando, com efeito, desse modo, que existe ali como que uma gravidez Trata-se, de fato, de quinze meses, 0 que vai além do prazo normal de uma gestagao. significativo que Dora veja nisso a dltima resso- nancia desse laco pelo qual ela permanece ligada ao sr. K. Encontramos ai a equivaléncia de uma espécie de copulagéo que se traduz na ordem do simbélico de uma maneira puramente metaforica. Mais uma ver, © sintoma ali ndo passa de uma metéfora. Para Dora, é uma tentativa de reunir-se & lei das trocas simbélicas, em relago com o homem a quem se unir ou de quem se desunir. Em contrapartida, 0 parto que se encontra também no fim do caso da homossexual, antes que ela chegue as maos de Freud, se manifesta da maneira seguinte: bruscamente, ela se atira de uma pequena ponte da estrada de ferro, Isso acontece no momento em que o pai real intervém mais uma vez para Ihe manifestar sua irritagdo ¢ furor, intervengao sancionada pela mulher que esté com ela, ao dizer-Ihe que no quer mais vé-la, A jovem se encontra, entéo, desprovida de seus 150 AS VIAS PERVERSAS DO DESEIO. ‘timos recursos. Até ali, ela fora bastante frustrada do que Ihe deveria ser dado, a saber, o falo paterno, mas encontrara o meio de manter 0 desejo pela via da relagao imagindria com a dama. Uma vez que esta a rejeita, ela no pode mais sustentar coisa alguma. O objeto esté definitivamente perdido, ¢ este nada em que ela se instituiu para demonstrar ao pai como se pode amar nem tem mesmo mais razio de set, Naquele momento ela se suicida, Como Freud nos sublinha, isso também tem um outro sentido, 0 de uma perda definitiva do objeto. Esse falo que the é decididamente recusado tomba, niederkommt. A queda tem aqui um valor de privagao definitiva, ¢ também de mimica de uma espécie de parto simbélico. Encontram af o lado metonfmico de que Ihes falava, Se 0 ato de se precipitar de uma ponte férrea no momento critico e terminal de suas relagdes com a dama e com o pai pode ser interpretado por Freud como uma maneira demonstrativa de se fazer ela mesma essa crianga que nao teve, € 20 mesmo tempo destruir-se num dltimo ato signifi- cativo do objeto, é por fundar-se unicamente na existéncia da palavra niederkommt. Esta palavra indica metonimicamente o termo iiltimo, o termo de suicidio, onde se exprime na homossexual o que est em questo, € que € 0 tinico motor de toda a sua perversdo, a saber, em conformidade com 0 que Freud muitas vezes afirmou em relagdo A patogénese de um certo tipo de homossexvalidade feminina, um amor estavel € particularmente reforgado pelo pai 23 DE JANEIRO DE 1957

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