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Sobre a ilus6ria origem da mais-valia’ Anricos REINALDO A. CARCANHOLO™ O capitalista individual, ou 0 conjunto dos capitalistas em cada ramo particular, com horizonte limitado, tem razao em acreditar que seu lucro nao deriva do trabalho empregado por ele ou em todo o ramo. Isto é absolutamente exato com referéncia a seu lucro médio. Até que ponto esse lucro se deve a exploragao global do trabalho por todo o capital, isto é, por todos os confrades capitalistas, 6 uma conexao para ele submergida em total mistério, tanto mais quanto os teoricos da burguesia, os economistas politicos, até hoje no a desvendaram. Marx 1. Introducaio A teoria do valor-trabalho de Marx tem sido submetida a intensa e sistema- tica critica, desde praticamente 0 seu surgimento, h4 mais de um século. Todo 0 esforgo dirigido a mostrar seus supostos equivocos ou inconsisténcias, sem diivi- da nenhuma, tem uma elevada motivacio ideolégica. E nao é para menos. Como € Gbvio, o que est por trés de toda a discussio ¢ de toda fiiria que sustenta tal esforgo nao € uma preocupagao técnica sobre como se determinam os precos, mas a explicagao da origem do lucro numa sociedade capitalista. De fato, ao contrdrio das teorias de Smith e Ricardo, a teoria marxista do valor tem como conseqiiéncia necesséria a conclusio de que 0 excedente econdmi- co capitalista e, em particular, 0 lucro, é fruto da exploragio, do trabalho nao- pago. Nao é possfvel aceitar integralmente a perspectiva de Marx sobre a riqueza € sobre o valor sem concluir-se que a prépria natureza intima do capital implica * Avversao preliminar deste trabalho foi apresentada no VI Encontro Nacional de Economia Politi- ca da SEP, em Séo Paulo, junho de 2001. ** Professor do Departamento de Economia da UFES. 76 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA { } uma contradigao antag6nica entre classes ¢ que ele significa uma violéncia con- tra a natureza humana. Nessa perspectiva, o capital é a propria negago do Ho- mem e a teoria de Marx 6, por si mesma, radicalmente anticapitalista. Nao é facil aceitar essas implicagdes e isso, com muito mais razao, por aqueles setores da sociedade atual que, de certa forma, beneficiam-se através dos privilégios que desfrutam. Mas nio é sé isso. A propria realidade capitalista, diretamente observada, mostra, de maneira indiscutfvel, que a origem do lucro empresarial nfo est no trabalho ¢ muito menos na sua exploragio. Nossos olhos no podem negar que ele tem origem diversa da mencionada: capacidade empre- sarial, tecnologia, grandes volumes de capital comprometidos, entre outros. Tal- vez fosse aceitavel pensar que sua explicagao est4 no conjunto desses fatores e de outros adicionais. Melhor ainda, nos dias de hoje, com o predominio do capital especulativo, talvez fosse pensar que o lucro tem como origem alguma proprie- dade imanente ¢ magica do préprio capital. O fato de que este tiltimo conceito, o de capital, nao seja muito compreensivel nao importa. Assim, fica até mais facil pensar que possui propriedades mégicas. Mesmo que 0 anterior tenha alguma dose de exagero, uma coisa € certa: a observagao da realidade permite concluir que, muitas vezes, 0 empresario nao é um explorador. Como € possivel aceitar a teoria do valor de Marx, com essas conclus6es retiradas diretamente da realidade? Afinal, a relaco capitalista implica ou nao a exploragio? O lucro é 0 fruto do trabalho nao pago? Lamentavelmente, a respos- ta n&o € trivial. O capital consiste, de fato, em uma relago social que, ao mesmo tempo, € ¢ no é exploradora ¢ isso na propria teoria de Marx. Na aparéncia, a relaco salarial €, por sua natureza e em si, uma relaco entre iguais ou, no mini- mo, uma relacao entre dois individuos auténomos ¢ capazes de estabelecer entre si, livremente, um contrato comercial legitimo. Por outro lado, mas ao mesmo tempo, a relago salarial, na esséncia, implica explorago; auséncia de liberdade de uma das duas partes; apropriagao pela outra de trabalho nao-pago. E isso é dialética ¢ nao € facil entendé-la, mesmo quando existe boa vontade. Duas caracteristicas importantes devem ser consideradas, aqui, sobre a apa- réncia na sociedade capitalista. A primeira 6 que cla nao é resultado de um erro ou um engano do observador. Trata-se de uma das duas dimensGes da realidade, to real quanto a sua oposta, a esséncia. O erro nao esta na aparéncia e nem mesmo na interpretac&io que ela sugere, mas na crenga de que a realidade tem uma s6 dimensio. O equivoco sobre o capitalismo consiste em pensar que a rea- lidade € unidimensional, ou melhor, nao saber de sua bidimensionalidade. Na verdade, existem, nesse aspecto, dois erros teGricos opostos: 0 empirismo daquele que somente vé a aparéncia ¢, por outro lado, o seu contrario, o fundamentalismo, que acredita que sé a esséncia é verdadeira. Este talvez seja CRITICA MARXISTA © 77 tZo nocivo quanto o primeiro. No entanto, poderfamos destacar que, apesar de tudo, a esséncia deve ser vista como tendo uma superioridade sobre a aparéncia e talvez por duas raz6es basicas. Em primeiro lugar, porque s6 ela € capaz de per- mitir a l6gica ¢ estruturada compreensao sobre os nexos mais intimos da realida- de, possibilitando prever as potencialidades do scu desenvolvimento, dos seus destinos possiveis. Em segundo, porque, a partir dela, com os instrumentos que fornece, € possivel entender todas as caracteristicas da aparéncia, além de expli- car a razao pela qual a aparéncia deve ser necessariamente como é. Em certo sentido, a esséncia contém dentro de si a propria aparéncia. A segunda caracteristica da aparéncia capitalista que convém destacar aqui é 0 fato de que ela resulta diretamente da observacio da realidade, mas desde um ponto de vista particular, espectfico: do ponto de vista do ato individual ¢ isolado! Enquanto a esséncia s6 € compreensfvel a partir da perspectiva da totalidade social, a aparéncia deriva direta e imediatamente de uma visdo parcial ou isolada da rela- so social; em caso extremo, da observaciio de uma especifica relagio entre um determinado empresério © um trabalhador. Essa relagdo especifica nao tem neces- sariamente de ser de exploragio e muitas vezes nao o é, de fato, na aparéncia, E como a aco dos individuos na sociedade capitalista s6 os obriga (ou até os limita) a observagao do ato individual e isolado, tendem a ser prisioneiros da aparéncia e da unidimensionalidade do real. Eles, na sociedade capitalista, nao sao facilmente capazes de observar a realidade de um ponto de vista global. Se somamos a isso 0 fato, destacado antes, de que a apar€ncia é real ¢ nao falsa, teremos os elementos necessarios para compreender a forga da perspectiva empirista. O fato € que Marx, depois de expor os resultados do seu descobrimento sobre a origem da mais-valia, isto é, a exploragao do trabalho, enfrenta a tarefa de utilizar se dos instrumentos tedricos derivados da esséncia para “reconstruir”, no pensamento, a maneira como ela se apresenta na apar€ncia. Procura explicar como © porque a mais-valia apresenta-se como lucro, ou melhor, como se processa a dissimulagao da origem da mais-valia. E 0 faz de maneira magistral, embora no de forma completa ¢ totalmente desenvolvida, no livro 3 d’O capital. Nos dois Primeiros capitulos desse livro, Marx expde o que seriam alguns dos diversos mecanismos, fatores, momentos, aspectos, determinantes, ou dimensdes da dissi- mulagao da origem da mais-valia. E segue com essa tarefa em capftulos posterio- res. O melhor termo para expressar esses momentos da dissimulagao € algo a ser mais bem pensado. Por comodidade ¢ sem maior compromisso com seu real sig- nificado, usaremos 0 termo dimensdo. Isso, pelo menos, evitard que se pense que eles so paralelos ou progressivos. "Para uma melhor compreensdo do assunto, ver cap. XXI (Reproducéo simples) de Karl Marx, O capital: critica da economia politica, Riv de Janeiro, Civilizacao Brasileira, livro 1, v. 1, 1980. 78 * SOBRE A ILUSORIA ORIGEM DA MAIS-VALIA

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