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© ROBERTO ACIZELO DE SOUZA, 1985 Diretor editorial adjunto Fernando Paixdo Coordenadora editorial Gabriela Dias Editor assistente Leandro Sarmatz Revi Ivany Picasso Batista (coord.), Luicy Caetano ARTE. Editor assistente Antonio Paulos Projeto grafico e capa Homem de Mello e Troia Editoragao eletrnica — Moacir K. Matsusaki CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. S718 9.ed, Souza, Roberto Acizelo Quelha de Teoria da literatura / Roberto Acizelo de Souza. — 9.ed. - So Paulo : Atica, 2004 (Principios ; 46) Inclui bibliografia 1, Literatura — Filosofia. 1. Titulo. Il. Série. 04-2933 CDD 801 CDU 82.0 22.10.04 25.10.04 008048 ISBN 85 08 09478-7 (aluno) ISBN 85 08 09479-5 (professor) 2008 9 edigdo It impressio Impress§o e acabamento: Ee, Bartira Grética 9 Editora S/A e x Todos os direitos reservados pela Editora Atica, 1985 te Rua Bardo de Iguape, 110 — Sao Paulo ~ SP - CEP 01507-900 a Tel.: (11) 3346-3000 — Fax: (11) 3277-4146 SS Intemet: www.atica.com.br — www.aticaeducacional,com.br ROTTORA ATTLIADA 4 A constituicdo da teoria da literatura Antes de prosseguir, retomemos observacdo ja feita na abertura de um item do capitulo 3 (“A teoria da literatura e as disciplinas concorrentes”), no qual nos referimos a um significa- do muito amplo do termo teoria — qualquer problematizacao ou estudo sistematico da literatura — e a um significado estrito — a disciplina constituida no século XX, caso especffico e historica- mente situado desse estudo sistematico. Depois, ao longo das subdivisées do referido item, procuramos demonstrar o carater especifico das demais disciplinas ocupadas com a literatura. Agora, nosso propésito é demonstrar os tragos definidores da teoria da literatura em sentido estrito, o que faremos median- te o estudo dos seguintes tépicos: 1°) histérico de seu surgimento; 2°) suas questées iniciais: as definicdes correlativas de método e objeto. Breve historico Na passagem do século XIX para o XX, o panorama dos estudos de literatura apresentava os seguintes aspectos: 1°) uma pesquisa historicista e de pretensdes cientificas que, pouco inte- ressada no texto, visavag aoe literatura baseando-se em causas exteriores supostamente determinantes dela, identifi- cadas com a vida e a personalidade do escritor ou com o contex- to social da obra (hist6ria da literatura, ciéncia da literatura ou critica literaria biografico-psicologicas e socioldgicas); 2°) um segundo tipo de pesquisa historicista e de pretensGes cientificas que se propunha estabelecer e explicar textos, atenta a fontes e influéncias a que se sujeitassem as obras, bem como aos fatos lingiiistico-gramaticais, especialmente os de natureza histérica (historia da literatura, ciéncia da literatura ou critica literaria filolégicas); 3°) uma atitude que se propunha menos estudo rigoroso e sistematico da literatura, e mais fruigéo da leitura e emissdo de juizos de valor baseados na sensibilidade e nas impressdes pessoais causadas pela leitura de obras literdrias (critica impressionista ou impressionismo critico). , Nessa mesma época, no entanto, definem-se as condi¢des : que vao permitir a superacdo desse panorama dos estudos de literatura que acabamos de sintetizar. Tem inicio a crise das linhas mestras do pensamento filoséfico e cientifico marcantes do século XIX, 0 historicismo — atitude que vé na historia, entendida como evolucio continua e linear, a insténcia decisiva para a explicac¢do tanto da natureza quanto da sociedade — e 0 positivismo — atitude que faz a apologia da ciéncia, entendida como um conhecimento neutro e objetivo, cujo critério de vali- dade é a adequagdo aos fatos observaveis. Correlativamente, as seguintes ocorréncias alteram o horizonte intelectual: 1°) o método fenomenoldgico se desenvolve na filosofia, passando a ter aplicacées nas ciéncias humanas; 2°) surge a escola psicold- gica conhecida por gestaltismo; 3°) delineia-se a lingiiistica estrutural na obra de Ferdinand de Saussure; 4°) despontam as chamadas vanguardas artisticas — futurismo, cubismo, expres- sionismo, dadaismo etc. —, segundo as quais a arte —- e portan- to a literatura — consiste muito mais em pesquisas de lingua- gem do que na representagao dos fatos e suas relagdes. Nesse novo horizonte intelectual, 0 que acontece com os estudos de literatura? Na diretriz generalizada de questiona- mento do positivismo e do historicismo, desenvolvem-se, em diferentes centros culturais e universitarios, algumas correntes de investigagao da literatura que apresentam pontos comuns, apesar das divergéncias que as separam. Essas correntes, cujo periodo de surgimento e realizagdes de pesquisa se estende do inicio do século XX até a década de 1930, sao as seguintes: esti- listica, principalmente na Alemanha e Suiga e, depois, na Espa- nha; 0 formalismo russo ou, mais amplamente, eslavo; a escola morfologica alemd; a nova critica anglo-americana; a fenome- nologia dos estratos, criada pelo polonés Roman Ingarden. ~ Entre essas orientagdes encontramos em comum o mesmo empenho em reconceber os estudos de literatura, e segundo orientago que explicitamente se opunha 4 do século XIX. O que se pretende, entao, ¢ investigar nao as causas exteriores supostamente determinantes do texto literario, mas o préprio texto, entendido como um arranjo especial de linguagem em que articulagdes e organizacio podem ser descritas e explicadas em sua imanéncia, isto 6, segundo sua coeréncia interna (e nao de acordo com referentes situados fora do texto, na subjetividade do escritor ou na objetividade dos fatos e das relagdes sociais). De outra forma, essas correntes, do mesmo modo que se distanciam dos modelos biografico-psicoldégico e sociolégico dominantes no século XIX, também se indispdem com o outro modelo participante do clima historicista e positivista daquele século, o modelo filolégico. Este é também contestado porque sua base metodoldgica 0 conduz a uma concep¢4o demasia- damente ampla de literatura, que a identifica com 0 conjunto da producao escrita. Assim, se para o modelo filolégico o proble- ma de estabelecer, explicar e determinar fontes e influéncias é basicamente 0 mesmo, quer se trate de um poema, um romance ou uma tragédia, quer se trate de obra de natureza pragmatica, 37 cientifica ou filoséfica, para as correntes mencionadas, que se preocupam com o texto em sua coeréncia interna, sé ha interes- se, permanecendo nos exemplos dados, no poema, no romance e na tragédia. Para elas, portanto, ao contrario do que ocorre no modelo filolégico, é fundamental estabelecer-se um critério que possa recortar, no conjunto da producfo escrita, um ambito mais reduzido, constituido apenas por aquelas obras dotadas de propriedades consideradas artisticas, ficcionais, poéticas ou literarias em sentido estrito. . Finalmente, as correntes em aprego também procuram esquivar-se do relativismo subjetivo das apreciagées, préprio aquela outra orientagao do século XIX, a critica impressionista. Ao contrario dela, todas as correntes referidas se esforcam por discutir e estabelecer métodos e conceitos capazes de dotar suas andlises de objetividade e rigor. Assim, nelas também prevalece um compromisso cientificista, mas distinto daquele que vigo- rou no século XIX. Basicamente, a diferenga é a seguinte: enquanto os modelos cientificistas do século XIX procuravam adaptar 4 investigacao da literatura métodos de outras discipli- nas — historia, psicologia, sociologia, filologia —, as correntes surgidas nas primeiras décadas do século XX procuram estabe- lecer métodos préprios, especificos, admitidos por isso como capazes de dar conta do carater também especifico da produgao ° literaria, carater este que a tornaria distinta de inumeras outras produgées verbais nao literarias. Bem, até aqui fizemos referéncia aos novos rumos repre- sentados pela estilistica, o formalismo eslavo, a escola morfold- gica alema, a nova critica anglo-americana e a fenomenologia dos estratos. Essas correntes, mais ou menos desvinculadas entre si, despontando em artigos e livros fundadores, seriam objeto de sistematizacao, combinagao e divulgagao por meio conhecido tratado de René Wellek e Austin Warren, publicado em 1949, e cujo titulo — Teoria da literatura — acabaria se tor- ~ nando o nome adotado por verdadeira nova disciplina. Assim, o termo teoria da literatura passa a designar uma ampla renovagao metodoldgica, adversaria das contribuigdes oitocentistas repre- sentadas pela historia da literatura, ciéncia da literatura ou criti- ca literaria. Cabe dizer, ainda, que, apesar da ampla aceitagdo do termo teoria da literatura para designar a aludida renovacdo metodolé- gica, esta nao se encerrou no espa¢o de uso do termo menciona- do, ocorrendo também em obras cujos autores conservam designagées alternativas tradicionais — ciéncia da literatura, critica literaria e poética. Um fim anunciado Vimos entao que a teoria da literatura despontou no inicio do século XX, construindo seus contornos valendo-se de contro- vérsias conceituais com a disciplina hegem6nica no campo dos estudos literarios durante o século anterior — a histéria da litera- tura. Desse modo, assim como esta constituiu a referéncia oito- centista da area — isto ¢, predominante nos anos de 1800 —, aquela teve papel andlogo nos anos de 1900, cabendo-lhe, pois, a condigao de disciplina novecentista por exceléncia. Mas a teoria da literatura, segundo certa corrente de opi- nido, depois do apogeu alcangado em seu “momento de gloria’”’, situado nas décadas de 1960 e 1970 do século passado, teria ini- ciado uma fase de declinio — processo acelerado a partir da década de 1990. Como sinal inequivoco dessa circunstancia, aponta-se o fato de ela ter-se tornado alvo de crescentes restri- ¢6es, que lhe contestam tanto os fundamentos metodoldgicos e conceituais — o centramento no texto, o universalismo de suas "Cf. ComPaGnon, Antoine. O deménio da teoria; literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999. p. 11. 39 proposigées, o carater ultra-especializado de seu conjunto de nogées e procedimentos analiticos — quanto as motivacgdes e compromissos politicos ocultos que a orientariam — suas atri- buigdes de valor estético e submissio ao canone formado pelas grandes obras. Na condicao de agentes de tais questionamentos, ganha espaco académigo nos cursos de letras uma forma revi- talizada de literatura comparada, bem como, principalmente, uma atitude que nos ultimos tempos comega a se institucionali- zar como disciplina universitaria, unificada sob a rubrica de “estudos culturais”. As mencionadas idéias diretrizes inerentes a teoria da literatura, portanto, impugnadas pelo comprometi- mento com 0 projeto moderno — sua confianga nas explicagées racionalistas totalizantes — e com as concep¢des modernistas de arte — sua identificagéo com a supervalorizagao da lingua- gem, ou da forma em detrimento dos conteidos —, estariam saindo de cena. Em seu lugar, em troca, estariam em plena ascensdo as idéias pds-modernas, que propdem a ampliacdo do corpus dos estudos literarios para além das obras canénicas, a concep¢ao de texto como sintoma de identidades (sobretudo de género, de etnia e de orientac4o sexual) multiplas, volateis e fragmentarias, a renincia as sistematizacées, a transgressao dos limites entre disciplinas por via de composigées transdisciplina- res, além de uma drastica relativizagdo de valores e uma espécie de des-substancializagao do mundo, que mais no seria do que um conjunto contingente de signos convencionais. Bem, como uma discusséo em profundidade desse anun- ciado fim da teoria da literatura extrapolaria muito nosso pro- pdsito neste livro, deixemos apenas apontado o problema, e arrematemos esse desvio de nossa rota principal com duas suméarias observagées. Em primeiro lugar, ainda que se deva reconhecer certo abalo na posig&o de relevo de que desfrutou a teoria da literatura principalmente na segunda metade do século XX, nao s&o nada despreziveis os sinais de seu vigor aca- 40 démico, no minimo pelas razdes seguintes: 1°) seu carater auto- reflexivo, isto 6, sua vocac4o para constantemente apontar as proprias premissas e colocd-las em questo; 2%) sua crescente tendéncia para a compreensao da natureza historica tanto de seu objeto, a literatura, quanto das hipdteses que formula para explica-lo; 3) sua capacidade de resisténcia conceitual contra a autocontraditéria onda contemporanea de tornar absoluta a rela- tivizagdo de valores, a comegar pelos valores estéticos. Em segundo lugar, lembremos que, no campo dos estudos literarios, a julgar pelos exemplos fornecidos por sua histéria, nao ocorre propriamente a pura e simples ultrapassagem de uma disciplina por outra(s), mas reciclagens e novos arranjos das questdes a investigar, 4 medida que os problemas por um momento priori- zados vao perdendo o interesse, por motivos, alias, em geral complexos e muito pouco evidentes. Isso posto, retomemos o rumo, dirigindo agora a atengdo para 0 tépico relativo ao objeto e ao método da teoria da literatura. Correlatividade das definicées de objeto e método Toda disciplina cientifica tem como questées iniciais cor- relativas a definigéo do método e a definicdo do objeto. Veja- mos, a seguir, como tais problemas se encaminharam no dmbito particular da teoria da literatura. Reencontramos aqui um t6pico que j4 deixamos bem atras, no capitulo 1 (“Sem uma teoria, a literatura é 0 dbvio”): se para uma consideragdo nfo especializada a literatura é um fato evidente, para a teoria da literatura a primeira tarefa é estabele- cer limites precisos para esse fato. E isso deve ocorrer sob con- trole metodoldgico, de tal modo que o fato do senso comum seja superado e convertido num objeto de pesquisa cientifica. A intervengao do método é t&o essencial para a definigao do objeto 41 que, no moderno pensamento cientifico, se tem presente que o objeto de uma ciéncia nao é dado, mas construido pela aplica- ¢ao do método. Agora, para entendermos como a constituigéo do objeto é problematica para a teoria da literatura, reportemo-nos a um ini- cio sempre fecundo: a Poética de Aristoteles. Na passagem trans- crita a seguir, o filésofo afirma que no é um indicio exterior e dbvio — o verso — que distingue um texto de poesia em relagao a outro, de medicina ou fisica, por exemplo; ou seja, nfo é facil e imediato discernit 0 objeto da poética — a poesia —— em meio a outras produgdes que tenham por veiculo a linguagem verbal: [...] se alguém compuser em verso um tratado de Medici- na ou de Fisica, esse serd vulgarmente chamado “poeta”; na verdade, porém, nada had de comum entre Homero e Empédocles, a nao ser a metrificagado: aquele merece o nome de “poeta”, e este, o de “fisidlogo”, mais que o de “poeta”’. Aristoteles reconhece, por conseguinte, que, apesar da tendéncia do senso comum — que ele chama “vulgar” — de identificar a poesia por uma evidéncia exterior — o verso —, 0 objeto da poética deve ser discernido por um critério mais refi- nado. Assim, um texto de medicina escrito em versos, que o senso comum considera poesia, ndo interessa 4 poética por no apresentar as propriedades de seu objeto. E, inversamente, um texto sem métrica pode interessar a poética, desde que possua as propriedades de seu objeto: [...] os géneros poéticos [...] usam a linguagem [...] em prosa ou em verso’. Desse modo, segundo o contexto conceitual em que se move Aristoteles, o objeto da poética ndo é a poesia entendida * ARISTOTELES. Op. cit., p. 69. * Ibidem, p. 70. a2 superficialmente como o conjunto das composi¢ées em verso, mas sim uma série de propriedades por assim dizer mais sutis e profundas do que o simples revestimento da metrificagao. Essa série de propriedades da poesia, para Aristoteles, é constituida pelo carater mimético, a verossimilhanga, a universalidade e 0 potencial catartico. Saltando agora para um estagio cronologicamente mais proximo da teoria da literatura, assinalemos que a histéria da literatura do século XIX nao se deteve em “sutilezas” — na falta de termo melhor — semelhantes aquelas que ocuparam Aristote- les. Para ela, a maneira de resolver o problema do objeto de investigagiio dos estudos literérios foi a mais singela possivel. Melhor dizendo: para a hist6ria da literatura oitocentista, instala- da em seu positivismo as vezes bastante simplista, isso nem é um problema, pois a literatura — tao claro! — s6 pode ser constitui- da pela massa de fatos formada por toda a producio escrita. Ora, essa solucdo nao resolve nada, apenas desconhece 0 problema. Para ela, integram a literatura tanto um romance quanto um compéndio de sociologia, pois em ambos os casos estamos diante de obras escritas. Para a teoria da literatura, porém, essa questo tem a maior relevancia. Assim, sem retor- nar simplesmente ao equacionamento aristotélico dessa ques- tao, ela procura, 4 semelhanga de Aristoteles, critérios por assim dizer menos simplistas e mais elaborados metodologicamente, tendo em vista a definigdo de seu objeto. A definigao do objeto Para definir 0 objeto da teoria da literatura, a primeira dificuldade diz respeito 4 significagdo instavel das palavras poesia e literatura. Delimitar 0 sentido desses termos € uma tarefa prévia indispensavel, pois a teoria da literatura, como as demais ciéncias humanas ou sociais, néo possui uma terminolo- gia especializada estabelecida por conven¢do universal. Seu 43 vocabulario técnico, portanto, é afetado em sua consisténcia nao sé pelos diversos usos especializados a que se prestam seus termos, mas também pela ocorréncia deles na linguagem usual, em que, como se sabe, nado ha compromisso com o emprego especializado e com o carater preciso da significagéo. Sendo assim, vamos fazer um levantamento dos diversos sentidos associados no curso da histéria as expressGes poesia e literatura. Significados de poesia e literatura Quanto a palavra poesia, limitemo-nos a repetir o inventd- rio de seus significados ja feito num subitem do capitulo 3 (“O estabelecimento de preceitos”): 1°) género de literatura caracte- rizado pelo uso do verso, da linguagem metrificada, oposto ao género chamado prosa; 2°) literatura, englobando as manifesta- gdes tanto em linguagem metrificada quanto em nao metrifica- da, desde que em tais manifestagdes se reconhegam proprieda- des ditas artisticas e/ou ficcionais, por oposi¢ao as demais obras escritas — cientificas ou técnicas — destituidas de tais proprie- dades; 3°) fato, paisagem, manifestagao artistica, situagao exis- tencial etc., dotados de aparéncia considerada bela ou comovente, capazes, portanto, de gerar especiais ressonancias interiores no espectador. Com relac&o a palavra literatura, podemos considerar dois significados histéricos basicos: 1°) até o século XVIIL, a palavra mantém o sentido primitivo de sua origem latina — lit- teratura —, significando conhecimento relativo as técnicas de escrever e ler, cultura do homem letrado, instrugdo; 2°) da segunda metade do século XVIII em diante, 0 vocabulo passa a significar produto da atividade do homem de letras, conjunto de obras escritas, estabelecendo-se, assim, a base de suas diversas acepgdes modernas. Quanto a essas diversas acepgdes modernas, cremos ser possivel reduzi-las 4s seguintes: 1) conjunto da produg4o escrita a4 de uma época ou pais (donde express6es do tipo “literatura clas- sica”, “literatura oitocentista”, “literatura brasileira” etc.); 2%) conjunto de obras distinto pela tematica, origem ou publico visado (donde expressdes do tipo “literatura infanto-juvenil”, “literatura de massa”, “literatura feminina”, “literatura de fic- ¢4o cientifica” etc.); 3°) bibliografia sobre determinado campo especializado do conhecimento (donde expressdes do tipo “lite- ratura médica”, “literatura juridica”, “literatura sociolégica” etc.); 4°) expressdo afetada, ficgdo, irrealidade, frivolidade (donde empregos do tipo: “Depois de tanto palavrério, tanta literatura, nada se resolveu”.); 5%) disciplina que procede ao estudo sistematico da produgio literaria (donde expressdes do tipo “literatura geral”, “literatura comparada”, “literatura brasi- leira” etc.). Poesia e literatura como objeto da teoria da literatura Examinando agora as acepgdes modernas inventariadas, vejamos quais poderiam corresponder a nog&o de literatura como objeto de estudo da teoria da literatura. A quinta acepcio — disciplina que procede ao estudo sis- tematico da produgao literaria — deve ser descartada, pois, segundo ela, o termo literatura designa nao um objeto, mas sim uma disciplina (cujo objeto, alias, por solucdo terminoldégica equivoca, também é designado pela palavra literatura). A quarta acepcio — expressao afetada, ficgao, irrealidade, frivolidade — também nao vem ao caso, pois constitui emprego figurado e pejorativo do vocdbulo em aprego. Com isso, restam-nos a pri- meira — conjunto da producao escrita de uma época ou pais —, a segunda — conjunto de obras distinto pela tematica, origem ou puiblico visado — e a terceira — bibliografia sobre determi- nado campo especializado do conhecimento —, que, diferencas a parte, implicam a idéia comum de conjunto de obras escritas. / Bem, ja dissemos que a orientacao positivista do século XIX c@émpreendia como objeto de sua investigac4o o conjunto da produgao escrita. No entanto, para as diversas correntes da teo- ria da literatura, esse sentido amplo do vocabulo literatura nao corresponde ao objeto de sua pesquisa. Por isso, com 0 intuito de circunscrever esse objeto, considerando que ele também é designado pela expresso literatura, convém estabelecer a seguinte distingao: 1°) literatura lato sensu: conjunto da produ- go escrita, objeto dos estudos literarios segundo a orientacéo positivista do século XIX; 2°) literatura stricto sensu: parte do conjunto da producao escrita e, eventualmente, certas modali- dades de composices verbais de natureza oral (nao escrita), dotadas de propriedades especificas, que basicamente se resu- mem numa elaboragao especial da linguagem e na constituicdo de universos ficcionais ou imaginarios. Assim, a palavra literatura ndo revela automaticamente o objeto da teoria da literatura. Havendo exigéncia metodoldégica um pouco mais apurada, foi necessario passar em revista os diversos usos a que se prestam as palavras poesia e literatura, a fim de se verificar que emprego poderia corresponder aquele objeto. A conclusao é, portanto, a seguinte: o objeto da teoria da literatura é a literatura stricto sensu, ou a poesia na segunda acep¢ao por nds apontada, isto é, no sentido de literatura, englo- bando manifestagdes tanto em linguagem metrificada quanto em nao metrificada, desde que em tais manifestagdes se reco- nhegam propriedades ditas artisticas e/ou ficcionais, por oposi- ¢do as demais obras escritas —— cientificas ou técnicas — desti- tuidas de tais propriedades. Com relagdo 4 apontada concorréncia entre as palavras poesia e literatura, cabe um esclarecimento historico. Como até © século XVIII 0 vocabulo literatura permaneceu significando conhecimento das técnicas de escrever e ler, instrugdo, cultura do homem letrado, para designar as obras que modernamente 46 consideramos literatura stricto sensu, empregavam-se os termos genéricos poesia (para composigdes em versos) e eloqiiéncia (para discursos publicos em prosa destinados a apresentagao oral), além de uma extensa nomenclatura relativa aos géneros e espécies em prosa e verso, como epopéia, ode, idilio, égloga, epistola, sermao, novela etc. Assim, até ento faltava um termo abrangente que se aplicasse tanto 4s composigdes em verso quanto aquelas em prosa, configurando-se desse modo uma espécie de persistente lacuna no vocabulario, alias assinalada desde Aristdteles: [...] a arte que apenas recorre ao simples verbo, quer metrificado quer nao, e, quando metrificado, misturando metros entre si diversos ou servindo-se de uma so espé- cie métrica, — eis uma arte que, até hoje, permaneceu inominada. Efetivamente, néo temos denominador co- mum que designe os mimos de Séfron e de Xenarco, os didlogos socraticos e quaisquer outras composi¢ées imi- tativas executadas mediante trimetros jambicos ou ver- sos elegiacos ou outros versos que tais*. Desse modo, da segunda metade do século XVIII em dian- te, a palavra literatura passa a ser empregada como termo geral, englobando tanto modalidades em verso quanto em prosa. A partir dessa época, se estabelecem entao duas relacdes freqiien- tes entre os vocdbulos poesia e literatura: 1*) no uso mais difun- dido, literatura torna-se termo abrangente, enquanto poesia se reserva para designar um género particular de literatura, caracte- rizado pelo emprego do verso e distinto do outro género literario, chamado prosa; 2%) no uso menos freqtiente, provavelmente posto em voga pelo Romantismo, poesia, em vez de designar apenas o género que emprega o verso, denomina também com- posigdes em prosa, desde que em tais composigées se reconhe- gam valores artisticos, certo relevo especial do ritmo da linguagem 4 ARISTOTELES. Op. cit., p. 69. 47 (interpretado como “musicalidade”) ou o predominio dos ele- mentos intuitivo-sentimentais sobre os logico-discursivos. A literariedade como objeto da teoria da literatura Podemos agora dar por encerrada a tarefa prévia que nos impusemos no inicio deste subitem (“A definig&o do objeto”). Ainda que por repetigdes enfadonhas, fizemos as devidas dis- tincdes entre os diversos sentidos em que se tomam as palavras poesia e literatura, chegando a determinar que sentidos dessas palavras correspondem ao objeto visado pela teoria da literatu- ra. Isso foi possivel pela aplicagao de um minimo de exigéncias metodoldgicas, que nos conduziu de uma simples questdo de vocabulario até a delimitacdo do 4mbito de interesse da pesqui- sa. No entanto, uma vez delimitado esse 4mbito, constatamos que ainda permanecemos de fato, como haviamos afirmado, na realizagao de uma “tarefa prévia”, possivel mediante a “aplica- ¢ao de um minimo de exigéncias metodoldgicas”. E por que isso? Observemos o modo pelo qual definimos a literatura entendida como objeto da teoria da literatura: parte do conjunto da producio escrita e, eventualmente, certas moda- lidades de composig6€s verbais de natureza oral (nao escrita), dotadas de propriedades especificas, que basicamente se resu- mem numa elaboragdo especial da linguagem e na constituicado de universos ficcionais ou imaginarios. Ora, nessa definig&o a que chegamos ha conceitos que, por sua vez, exigem definig&o. Eles se encontram na expressdo “propriedades especificas” e seus desdobramentos: “elaboragao especial da linguagem” e “constitui¢gdo de universos ficcionais ou imaginérios”. Afinal, caberia perguntar: Que “propriedades especificas” so essas? Em que consiste essa “elaborag4o espe- cial da linguagem”? O que sdo e como se constituem tais “uni- versos ficcionais ou imaginarios”? a #8 ive Na medida em que passamos 4 discussdo dessas questées, as exigéncias metodoldgicas crescem, o que equivale a dizer que © objeto da pesquisa se aprofunda e se refina. Assim, se é por demais imperfeito o método que admite ser a totalidade da producfo escrita o objeto da investigagao da literatura, é mais elaborado o método que propée ser esse objeto constituido por apenas parte daquela produgao, delimitada por critérios especi- ficos. E mais elaborado ainda é o método que elege como obje- to da investigagado nao um determinado conjunto de obras, mas justamente o critério que permite o discernimento desse conjun- to. Em outras palavras, num grau mais refinado e abstrato o objeto da teoria da literatura nado ¢ 0 conjunto das obras consi- deradas literarias stricto sensu, mas as “propriedades especifi- cas” de que tais obras séo dotadas. Uma corrente da teoria da literatura — 0 formalismo russo — situou essa questdo de maneira contundente e progra- matica. Sua enunciagao coube ao lingiiista russo Roman Jakob- son, em trabalho de 1919: [...] 0 objeto do estudo literdrio nao é a literatura, mas a literariedade, isto 6, aquilo que torna determinada obra uma obra literaria’. Longa e complexa tem sido a discuss4o pela teoria da lite- ratura daquilo que Jakobson chamou “‘literariedade”, isto é, a propriedade especifica das obras integrantes da literatura stricto sensu, 0 elemento que, uma vez presente num dado texto, per- mite distingui-lo de outras composigdes que nao integram a lite- ratura em sentido estrito, apesar de também constituirem men- sagens verbais. Mas nao sera nosso propdésito discutir aqui essa questao da literariedade. Assinalaremos apenas que muitas ten- * JaKopson, Roman, apud SCHNAIDERMAN, Boris. Prefacio. In: TOLEDO, Dionisio, org., apres. e apéndice. Teoria da literatura; formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. p. IX-X. 49 déncias e autores no 4mbito da teoria da literatura véem como marca distintiva da literatura a operagao de certo “desvio” orga- nizado na linguagem, desvio perceptivel em relacdo a outras ocorréncias da linguagem consideradas mais conformadas aos usos tidos como normais. Para ter uma ligeirissima idéia do que é 0 aludido desvio, examinemos o seguinte fragmento: O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chao, e protegido por ela — bragos largamente abertos, face vol- vida para os céus, — um soldado descansava. Descansa- va... havia trés meses. Morrera no assalto de 18 de jutho’. O “desvio” presente no trecho que nos serve de exemplo é constituido por um fato léxico (isto ¢, de vocabulario), combi- nado a um fato sintatico ou, mais especificamente, de pontua- gao. O fato léxico se configura no emprego do verbo descansar. O primeiro paragrafo termina com a palavra “descansava”, que em principio nada tem de peculiar. Mas algo especial se prepa- ra, quando o paragrafo subseqtiente se inicia com a mesma palavra “descansava”, 4 qual se segue a suspens4o momentanea da frase, pelo emprego das reticéncias, concluindo-se o periodo com o segmento “havia trés meses”. Assim, antecipa-se 0 ver- dadeiro sentido daquele “‘descansava” inicial, finalmente reve- lado pela palavra que abre o ultimo paragrafo: “morrera”. Quanto ao fato sintatico, de pontuacao, ele consistiu no uso \incomum das reticéncias, que em vez de servirem de fecho a frase operam um corte no meio dela, criando rapido suspense logo desfeito pela precipitagdo de seu segmento terminal. Ora, tanto o emprego do verbo descansar quanto 0 uso das reticén- cias constituem, no caso em aprego, um desvic ) organizado, que afasta a linguagem desse fragmento das ocorréncias mais ordi- * Cunna, Euclides da. Os sertées. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1946. p. 29-30. narias dos arranjos verbais. Segue-se disso que o trecho em ana- lise, marcado pelo desvio apontado, constitui literatura em sen- tido estrito, apresenta propriedades especificamente literarias, possui literariedade. Tentemos agora fechar este subitem, resumindo o que foi visto e antecipando o contetido do préximo. Para a teoria da literatura, o objeto de pesquisa nao é a literatura Jato sensu, isto é, 0 conjunto da producio escrita. Levando-se em conta as exigéncias do método com que opera, seu objeto é a literatura stricto sensu, ou seja, determinadas composi¢6es verbais em que a linguagem se apresenta elaborada de maneira especial, e nas quais se dé a constituicio de univer- sos imaginérios ou ficcionais. Num nivel ainda mais elevado de exigéncias metodologicas, deve-se dizer, enfim, que 0 objeto da teoria da literatura é constituido pela literariedade, isto é, 0 modo especial de elaboracao da linguagem inerente 4s compo- sig6es literarias, caracterizado por um desvio em relacio as ocorréncias mais ordindrias da linguagem. Como se vé, o critério distintivo, a marca da literatura, a se admitir essa maneira de encarar o problema, se encontra nessa elaboracao especial da linguagem, donde a exigéncia de um método de base lingiiistica para a teoria da literatura. Mas na definigao de literatura estabelecida segundo o ponto de vista da teoria da literatura, além da determinag4o que ja exploramos bastante — a literariedade, entendida como des- vio —, ha outra determinagdo da qual nada falamos até agora. Referimo-nos 4 constituigio de um universo imaginario ou fic- cional. Ai, entramos num terreno que extrapola o lingitistico, donde a exigéncia de outros métodos, principalmente os de base antropoldgica ou psicanalitica. Da questao do método trataremos a seguir. Me eMac 7 81 A definigao do método Um dos tragos caracteristicos do conhecimento cientifico é constituido pelo fato de que as investigagdes que conduzem a ele nao sao regidas pelo acaso nem se dao sob o signo da desor- dem. Ao contrrio, uma pesquisa que se pretenda cientifica se desenvolve de maneira ordenada, através de etapas estabeleci- das o mais claramente possivel, visando 4 descoberta de fatos e relagdes previamente definidos. Enfim, numa pesquisa cientifi- ca nao se avanca as cegas, em busca do que der e vier, em pro- cedimento do tipo “tudo o que cai na rede é peixe”. Em vez dessa anarquia ingénua, é indispens4vel saber 0 que se busca e como alcangar. Em outras palavras, é preciso delimitar-se o objeto da pesquisa — o que se busca — e estabelecer 0 método, isto é, principios e critérios para chegar até ele — como alcangar. Isso nao significa que, ao iniciarmos uma pesquisa, ja dentemente nao haveria necessidade de empreender pesquisa tenhamos uma idéia precisa sobre 0 objeto. Se assim fosse, evi- we Ae ae nenhuma. Na verdade, a relacio entre objeto e método nao é **” constituida pela sucessfo que assim se poderia enunciar: deter- minado 0 objeto, a providéncia seguinte é forjar 0 método que dé acesso a ele. Assim, a relag&o entre objeto e método, nao sendo de simples sucesso, é uma relagao de correlatividade, compertinéncia ou interimplicagao. Quer isso dizer que 0 objeto nao é uma evidéncia dada; é algo que, inicialmente pouco defi- nido, vai ganhando contornos mais precisos, vai, enfim, se con- figurando como objeto 4 medida que o assediamos por um método. Este, por sua vez, de inicio nem sempre adequado ao objeto da busca, vai-se conformando a ele, vai-se aperfeigoando 4 medida que o objeto induz determinadas corregSes de rumo no avango da pesquisa. Assim, se em nossa exposig4o comegamos falando do obje- to para agora falar do método, tivemos 0 cuidado de, antes de tra- tar desses dois assuntos, acentuar a implicagao reciproca que vin- oo Mele 7? cula esses dois aspectos basicos de qualquer disciplina cientifica (ver o item “Correlatividade das definicdes de objeto e método”). De qualquer modo, ainda que o tratamento sucessivo — primeiro 0 objeto, depois 0 método — nao seja adequado, ele nos deu comodidade expositiva que decidimos aproveitar. Por isso, retomamos agora o fio que deixamos meio solto no fim do subitem precedente (“A definigao do objeto”). Vimos que, como a maioria das correntes da teoria da lite- ratura circunscreveu seu objeto segundo um critério baseado em tracos da linguagem, o método lingiiistico foi considerado por tais correntes como adequado a apreensio-da propriedade espe- cifica da literatura. Com isso, a teoria da literatura ficou na con- tingéncia de adaptar a seus objetivos 0 método da disciplina que, segundo se admitia, apresentava fortes afinidades com ela — a lingijistica. Ou entao, nas formulagdes mais extremas, a teoria da literatura (ou poética, segundo variacao terminolégica ja referida) foi mesmo reduzida a um setor da lingiiistica: A Poética trata dos problemas da estrutura verbal, assim como a andlise de pintura se ocupa da estrutura pictorial. Como a Lingtiistica 6 a ciéncia global da estrutura verbal, a Poética pode ser encarada como parte integrante da Linguistica’. Nao nos cabe aqui fazer ampla exposi¢ao do método lin- giiistico. Digamos agora 0 fundamental, a fim de que se possa ter uma idéia dele e da possibilidade de sua extensdo ao estudo da literatura. O método lingiiistico concebe seu objeto —- a lingua — como uma estrutura, isto é, um conjunto de unidades de tal modo solidarias entre si que a existéncia e a funcionalidade de cada uma dependem da sua relagdo com as demais. Em razdo disso, postula os seguintes principios de pesquisa: 7 Jakopson, Roman. Lingiiistica e comunicagdo. Sao Paulo: Cultrix, 1970. p. 119.

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