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Primerra Part O QUE £ A ESCRITURA? Sabe-se que a lingua é um corpo de prescrigées e de habitos, comum a todos os escritores de’ uma €poca. Isso quer dizer que a lingua é como uma Na- ‘tureza que passa inteiramente através da fala do’ es- critor, sem contudo dar-lhe forma alguma e nem se- quer alimenta-la: é como um circulo abstrato de ver- dades, fora do qual — e stmente fora déle — comega a depositar-se a densidade de um verbo solitério. Ela encerra téda a criagao liter4ria, assim como o céu, 0 cho e a jungao de ambos desenham para o homem um habitat familiar. Ela € muito menos uma provi- so de materiais do- que um horizonte, ou seja, um limite e uma parada ao mesmo tempo, numa palayra, a extensdo tranqUilizadora de uma economia. O es- critor nao extrai nada dela, a rigor: para éle, a lingua constitui antes uma linha cuja transgresso designaré talvez uma sobrenatureza da linguagem: cla é a area de uma agio, a definigéo ¢ a espera de um possivel. Nao € o lugar de um engajamento ‘social, mas ssmente um reflexo sem escolha, a propriedade indivisa dos homens e nao dos escritores; ela permanece fora. do ritual das Letras; é um objeto social por definicio, nao 19 por eleig&io. Ninguém pode, sem preparagao, inserir sua liberdade de escritor na opacidade da lingua, por- que através dela tida a Histéria se mantém, com- pleta ¢ unida A mancira de uma Natureza. Assim, para o escritor, a lingua é apenas um horizonte huma- no que instala ao Jonge uma certa familiaridade com- pletamente negativa por sinal: dizer que Camus ¢ Queneau falam a mesma lingua, € apenas presumir, por uma operacio diferencial, tédas as linguas, arcai- cas ou futuristas, que ‘éles nao falam: suspensa entre formas abolidas e formas desconhecidas, a lingua do escritor é menos um fundo que um limite extremo; é o lugar geométrico de tudo aquilo que éle nao pode- ria dizer sem perder — tal como Orfeu olhando para tras ~~, a estavel significag&o de seu andar e o gesto essencial de sua sociabilidade. A lingua, portanto, estA aquém da Literatura. O estilo est quase além: imagens, um fluxo verbal, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e tor- nam-se pouco a pouco os préprios automatismos de sua arte. Assim, sob o nome de estilo, forma-se uma linguagem autarquica que s6 mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofisica da fala, onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam de uma vez por tédas os grandes te- mas verbais de sua existéncia. Seja qual fér seu refi- namento, o estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinagio, 0 produto de um impulso, nao de uma intengiio, é como que uma dimensao vertical ~e solitaria do pensamento. Suas referéncias estao ao nivel de uma biologia ou de um passado, nao de uma Histéria: éle é a “coisa” do escritor, seu esplendor e 20 sua prisio, sua solidio. Indiferente e transparente & sociedade, gesto cerrado da pessoa, de modo algum constitui produto de uma escolha, de uma reflexio sobre a Literatura. E a parte privada do ritual; eleva-se a partir das profundezas miticas do escritor e expande-se fora de sua responsabilidade. E a voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta; fun- ciona 4 maneira de uma Necessidade, como se, nessa espécie de explosao floral, o estilo f6sse apenas o tér- mo de uma metamorfose cega e obstinada, brotada de uma infralinguagem que se elabora no limite da carne ¢ do mundo. © estilo é prdpriamente um fend- meno de ordem germinativa, a transmutagio de um Humor. Assim, as alusdes do estilo repartem-se em profundidade; a fala tem uma estrutura horizontal, seus segredos esto na mesma linha que suas palavras eo que ela esconde se desvenda pela propria duragio de seu continuo; na fala, tudo é oferecido, destinado a um gasto imediato, e 0 verbo, o siléncio ¢ 0 movimen- to. de ambos so precipitados num sentido abolide: trata-se de uma transferéncia sem rastro e sem demo- ra. O estilo, pelo contrario, s6 tem uma dimensido vertical, mergulha na lembranga fechada da pessoa, compée sua opacidade a partir de certa experiéncia da matéria; o estilo nado passa de metafora, vale di- zer, equacdo entre a intenco literdria e a estrutura carnal do autor (convém lembrar que a estrutura é o depésito de uma duracio). Por isso, o estilo é sem- pre um segrédo; mas a vertente silenciosa de sua re- feréncia nao provém da natureza mével e constante- mente condicional da linguagem; seu segrédo é uma lembranga encerrada no corpo do escritor; a virtude 21

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