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ae Rua Sylvio Rebelo, 15 1000 Lisboa — Telef. 8470775 © Editions du Seuil da Hist6ria ‘Le Temps de L'Histoire, 1986 Philippe Ariés O Tempo da Histoéria Tradugiio de Miguel Serras Pereira Antropos CAP{TULOT Uma crianga descobre a histéria ho de Damiasco, TTal era o caso hos perfodos calmos, ou antes nesse século de excepcional tranquilidade que vai de 1814 a 1914, em que os nossos antepassados puderam acredi- tar que os scus destinos se desenrolavam num meio neutro, que continuavam a ser senhores do seu curso. Este fechar-se as preocupagées colectivas, esta impermeabilidade frente as agita- goes da vida publica, subsistiram ainda para alguns, os mais favorecidos, até aos prédromos da guerra de 1939, digamos até a0 6 de Fevereiro ou até Munique. Pelo contratio, as geragdes que chegaram aos vinte anos por volta de 1940 ou depois disso deixaram de ter a mesma cons- ciéncia da autonomia da sua vida privada. Quase no havia instante do dia que ndo dependesse de uma decisio politica ou de uma agitagio piiblica. Essas criangas, esses homens novos viam-se & partida dentro da Hist6ria e jé nfo tinham que a des- se a ignorassem, era como se podem ignorar as coisas mais proximas do universo familiar de cada um. sci, como eles, dentro da Histéria, Até ao armisti- 10 Philippe Aries cio de 1940, vivi num ofsis muito fechado as preocupagdes do exterior. Sem divida, falava-se de politica mesa; os meus pais eram realistas fervorosos, leitores assfduos da Action francaise desde 0 comego, Mas tratava-se de uma politica 20 ‘mesmo tempo muito préxima ¢ muito longinqua, Muito pré- xima, porque era uma amizade, uma temura. Evocavam-se as pessoas dos principes, a sua cr6nica. Achavam-se divertidos e admiravam-se afectuosamente 0s fmpetos de Daudet, as formu las aceradas de Maurras, jomal era diariamente esmiugado e comentado. Mas como se s¢ estivesse a falar de parentes ou de amigos. Nunca tive, antes da guerra, o sentimento da vida pdblica, como de uma espécie de prolongamento da minha vida privada, que a domi- nava ¢ a absorvia. Dizia-se que tudo corria mal, mas, em mo- mento algum, se falava em familia de dificuldades concretas, de incidéncias palpaveis, sobre a nossa maneira de ser quoti- diana, de uma legislagao, de uma decisio do Soberano. Deixou de ser assim a seguir & guerra, Os abastecimentos, a inflagdo, as nacionalizagdes — ¢ recordo estes exemplos ape- nas a tftulo de evocago — invadiram a vida quotidiana. O meu inmio fala de ordenado, de situagio, numa idade em que os meus amigos ¢ eu, no interior do odsis, ignorévamos os pro blemas de dinheiro, as preocupagdes de uma luta dificil. Um dos meus irmaos frequentava entio Saint-Cyr. Eu apresentava- -me As provas de agregacao de Historia, Nem ele nem eu tfnha- mos alguma vez tido a curiosidade de saber qual o ordenado de um oficial ou de um professor. Estévamos no ofsis. E sem diivida pudemos continuar nele por tanto tempo menos devido a situagdo e fortuna dos nossos pais do que gracas ao prisma através do qual formévamos a nossa visio do exterior, do co- lectivo. As agitages da Hist6ria chegavam-nos por meio de um jornal amigo, através dos comentérios de amigos, que, por muito que mergulhassem na vida piblica, pertenciam também a0 mesmo ofsis. Isto explica como nao nasci dentro da Histéria; mas, apés reflexio, compreendo a sedugo do materialismo histérico so- bre os que na minha geraco ndo foram preservados da imersao O Tempo da Historia a7 prematura no mundo do social, do colectivo. Nao houve inter- medidrios amigéveis entre eles ¢ o dinheiro, o desemprego, a competicao, a dura busca de relagdes, de influéncias. Para eles, no havia odsis. Porque havia um odsis, eu vivia fora da Hist6ria. Mas ao mesmo tempo, por causa desse ofsis, a Historia nfo me era estranha. Nao tive que a descobrir, como uma vocagao da adolescéncia. Acompanhava-me desde 0 tempo das minhas primeiras recordagGes de crianga, como forma particular que preocupago com a politica adoptava na minha familia e entre as pessoas que me estavam mais préximas. Mas seria deveras a Hist6ria? Nao era a Hist6ria nua e hostil que invade e arrasta, a Hist6ria onde estamos ¢ somos}, fora do frégil recinto vedado das tradig&es familiares. Nao era a Hist6ria, tenho que 0 reco- nhecer, mas uma transposi¢do poética da Histéria, um mito da Histdria, Tratava-se, em todo o caso, de uma intimidade conti- nuada com a presenga do passado, A presenga do passado distinta da Hist6ria? Seria coisa de que poderfamos admirar-nos se esquecéssemos que a Histéria se encontra ligada antes do mais & consciéncia do presente. Romantismo, entio? Imaginagdes dos faustos pitorescos € brilhantes das eras idas? Por certo que um pouco, mas tio pouco que mal vale a pena referi-lo. Era sobreiudo outra coisa, algo extremamente preciso, e extremamente ameagado tam- bém, ¢ justamente: ameagado hoje pela Histéria. A minha familia, j4 0 disse, era realista, Realistas apegados sem reserva & Action francaise, com fanatismo, mas alimenta- dos por uma imagindria anterior A construgio doutrindria de Maurras. No conjunto, tratava-se de um tecido de pequenas hist6rias, muitas vezes lendérias, acerca dos reis, dos preten- dentes, dos santos da familia real, Sio Luis ¢ Luis XVI, os mirtires da Revoluco. Muito pequeno, levaram-me, num des- 1 No original: «... celle ot l'on est.» (N. T.) 2 Philippe Arids ses passeios de domingo que as criangas detestam, aos Carmes onde pereceram as vitimas de Setembro, & capela expiatoria do boulevard Haussmann, erguida pela Restauragdo em meméria de Luis XVI, de Maria Antonieta e dos Suigos do 10 de Agosto. Em casa dos meus tios, no Médoc, mostravam-me to- dos os anos, durante as férias, as imagens herméticas herdadas do perfodo revolucionério, onde, como, num passatempo, as feigdes do Rei, da Rainha, de Madame Elisabeth, surgiam de- senhadas pela folhagem de um salgueiro-chorio, Todos os anos, eram de novo justificadas, sob 0 retrato de um sacerdote vitima dos afogamentos de Nantes, as retratagdes do antepas- sado, que, maire de Bordéus sob Napoledo, recebera 0 conde d’Artois: 20 butgués conservador e oportunista era substitutda a imagem ideal de um realista fiel e astucioso, Uma das minhas tias explicava-me cheia de convicgdo como o meu trisavé, ge- neral da I Repiblica, vitoriosamente provara que, por baixo do uniforme revoluciondrio,o seu corapio continuara a ser rea lista, ‘Toda a minha familia era grande apreciadora de memérias, sobretudo das memérias do século XVIII e da Revolugio, da Restauragdo, Liam-me certas passagens — ou por se tratarem de comoventes testemunhos de fidelidade, ou por propiciarem uma efusdo enternecida acerca da felicidade que fora viver nesse tempo. Este sentimento de idade de ouro, que foi o dos sobreviventes da Revolugdo, era muito familiar aos meus pais. Estendia-se até ao bidé, descoberto no s6tdo, € que provava superabundantemente que a higiene no era uma invengo mo- derna, como sustentavam os maus espiritos. O dito de Talleyrand sobre a docura de viver foi um dos primeiros hist6ricos que aprendi. Soube-o pelo meu avé que, nesse dia, deixara a leitura da Histéria dos Duques da Borgonha do conde de Barante, para me levar a passear pelos Quinconces. Foi ele que me natrou 0 assassfnio do duque de Guise a fim de me prevenir contra as acusagées que uma histéria republicana mal-intencionada proferia contra Henrique IIL ‘Nao se imagina a que ponto este passado feliz e complacente se achava presente na meméria dos meus pais. Em certa me- O Tempo da Histéria 13 dida, era nele que viviam. Todas as discussdes politicas sobre aactualidade terminavam por uma referéncia aos felizes tempos dos reis de Franga. Sem diivida, foram também boulangistas, antidreyfusards, mas 0 seu conservadorismo social, seme- Ihante ao da burguesia cat6lica do seu tempo, coloria-se de uma tonalidade especial: a nostalgia da velha Franca. Esta imaginéria realista, ainda viva em 1925, poder parecer ingénua e pueril: era, com efeito, obra das mulheres. Os ho- mens, no fundo, tinham sido sobretudo fiis aos interesses da sua classe; a sua politica acompanhava a evolugao normal da burguesia’ ao longo do século XIX. Mas esta politica, alids isenta de fanatismo, acabava a porta de casa. A casa era 0 do- mfnio das mulheres. E as mulheres nunca tinham deixado de ser apaixonadamente realistas. Compraziam-se nas lembrangas enternecidas do passado; recolhiam os seus epis6dios, arranja- vam como Ihes convinha as migalhas de Hist6ria que desco- briam nas Memérias, nas tradigdes orais. Afastavam tudo 0 que, na vida dos seus pais, parecesse uma ruptura com o pas- sado, e 0 pasado no avangava para lé de 1789 a nfo ser pelos seus prolongamentos na vida dos pretendentes. Por fim, a fidelidade das mulheres levara a melhor sobre 0 oportunismo dos homens. Com a politica radical, as fracas convicgées liberais dos homens, quase exclusivamente eleito- rais, depressa se apagaram, e, sob influéncias que nada tém a ver com 0 nosso propésito, eles juntaram-se ao branco pendao familiar. Teriam sem duvida um espirito mais crftico? ‘Atenuaram um tanto o aspecto de «conto de ama» da tradigio? Pouco importa. Para uma curiosidade de crianga, era 0 aspecto imagem que se revelava mais eficaz. Nao tenho a certeza de que nao fosse também o mais real. Este mundo das lendas realistas, descobri-o quase desde 0 bergo. Reconheco-o desde as mais longinquas recordacdes da ‘minha infincia, Logo que fui capaz de conceber a ideia de um tempo hist6rico, esta fez-se acompanhar de uma nostalgia do passado. Imagino que devia ser exasperante para os meus jo- vens companheiros de colégio a minha constante preocupagao com a referéncia a um passado nostalgico, ao longo das nossas “4 Philippe Aries primeiras discussdes politicas — e estas comegaram muito edo, de resto dramatizadas pelo grande conflito de conscién- cia: a condenagao da Action francaise pelo Vaticano, a bula Unigenitus da minha infancia, Este passadismo nio se ficava pelo dominio ideal da conver- sago ou do sonho acordado, Traduzia-se num esforgo visando articipar numa mais viva consciéncia da idade de ouro. Coisa curiosa, este interesse por aquilo a que se costuma chamar a Hist6ria (em nossa casa, «gost4vamos da Hist6ria») no se sa- tisfazia com leituras féceis ou pitorescas, forgosamente frag- mentérias. Eu desconfiava acima de tudo do fragmentério e da facilidade. Durante as minhas férias A beira-mar — mal tinha #€ alos —, passeava pela praia com um velho manual do {ltimo ano do secundério, € sentia-me muito orgulhoso quando ‘uma amiga da minha mie se surpreendia com uma leitura tio ingrata. A verdade € que me esforgava a valer por decifrar aquele conglomerado de datas e de factos despojados da mais pequena parcela de interesse. Deixemos de parte a vaidade in- fantil. Sentia muito obscuramente que, para redescobrir a pre- senga do passado maravilhoso, era necessério fazer um es- forgo, vencer uma dificuldade, em suma passar uma prova, Sentimento completamente impensado, que teria sido incapaz de exprimir ou sequer de claramente conceber; contudo nao julgo que oesteja a imaginar agora a posteriori. Reencontro-o intacto num recanto da minha meméria. Explica como, sem so- frer a influéncia dos meus pais, nem dos meus professores (nas aulas dos colégios religiosos, o ensino da histéria era inexistente), desprezava as leituras mais faceis — e certamente ‘mais instrutivas — para recorrer aos manuais de aparéncia sé- ria. Tentava redescobrir, entre a aridez ¢ 0 labor, essa poesia dos tempo antigos que, sem esforgo, surgia no meu ambiente familiar. Para dizer a verdade, pergunto-me hoje busca ingé- nua da prova no participava da experiénci iosa, tal como ela se configurava segundo os métodos ainda classicos de edu- cago espiritual, assentando na nogdo de sacrificio. Menos 0 Sacrificio Divino do que o sacrificio pessoal, a privagio neces- O Tempo da Historia Is séria: mantinham-se registos de sacrificios como se fossem re- gistos de temperatura. Existia, na minha consciéncia pueril do passado, uma analogia confusa, mas certa, com o sentimento religioso, Sem qualquer objectivagao possivel, eu supunha uma ligagdo entre o Deus do catecismo eo passado das minhas hist6rias. Ambos pertenciam & mesma ordem de emogao, sem efusdes sentimentais, com uma exigéncia de aridez. Confesso aligs que, com a perspectiva conferida pelo tempo, a minha ‘emogiio hist6rica, em contacto com os manuais referidos, me surge como de uma qualidade religiosa mais auténtica do que a minha devogdo da mesma época, inteiramente mecfnica. ‘A partir deste momento, penso que a minha experiéncia se distinguia do sentimento passadista da minha familia; transfor- mava-se, falando com propriedade, numa atitude perante a Historia. A minha familia, as mulheres e, por contégio, os ho- mens, viviam com perfeita ingenuidade uma abertura sobre 0 passado. Pouco Ihes importava que a sua visio do passado fosse fragmentéria, Era até necessério que fosse fragmentéria, uma vez que, para eles, o passado era certa maneira de ver bem definida, uma nostalgia de uma cor bem determinada. Liam muito, ¢ quase exclusivamente narrativas hist6ricas, sobretudo Memérias, mas sem experimentarem minimamente a necessi- dade de preencher as lacunas do seu conhecimento, de cobrit sem hiatos um perfodo de tempo. As suas leituras alimentavam a imagindria que haviam herdado e que consideravam defini- tiva, A propria ideia de uma emenda ou de uma renovagio os enchia de horror. Coisa curiosa, néo tinham consciéncia das suas lacunas. Menos por negligéncia ou por preguiga de espfrito, mas porque aos seus olhos no havia lacunas: podiam faltar pontos de pormenor, mas pormenores sem importincia. Estavam con- vencidos, com uma conviceao ingénua, como de uma coisa Sbvia, de que possufam a ésséncia do passado ¢ de que no fundo nfo existia diferenca entre eles e 0 passado: 0 mundo a sua volta mudara com a Repdblica, mas eles tinham ficado, Essa consciéncia do seu tempo, que experimentam com uma brutalidade impressionante as geragdes de 1940, existia para 16 Philippe Aries eles, mas com 0 desfasamento de mais de um século. Estavam no passado, como nés estamos hoje no presente, com 0 mesmo sentimento de familiaridade global, onde 0 conheci- mento dos pormenores tem pouca importincia, uma vez que af coincidimos com 0 todo. Eu nao conseguia contentar-me com esta impregnago do passado vivido como presente. Sem de resto me dar, explici- tamente, conta do meu desfasamento. Ainda hoje, nao’0 encon- tro em mim com uma frescura de coisa viva. Descubro-o pela andlise, porque ele me explica o mébil secreto que perseguia ao mergulhar nos meus manuais. Com toda a simplicidade, nao podia viver no passado com a mesma ingenuidade que os meus pais. Exigéncia pessoal? Nao creio. Para a minha geragdo, apesar do revestimento de tradigdes familiares que cobriu a minha in- ffincia, o passado estava j& demasiado longe. A minha mie, as ‘minhas tias tinham sido educadas nos conventos da Assungao e sobretudo do Sacré-Coeur, onde mestras ¢ alunas viravam de- cididamente costas ao mundo. O mesmo niio se passava no colégio parisiense dos Jesuitas onde comecei os meus estudos. Havia demasiados «republicanos», demasiados problemas. Os ‘meus pais tinham vivido na provincia, ou até mesmo nas Antilhas que a ruptura de 1789 ndo atingira. Eu vivia em Paris, na grande cidade técnica, onde, por muito fechado que se fosse perante 0 mundo moderno, 0 passado estava menos presente, interior familiar mais isolado. Longe, na provincia, nas ilh esse passado constitufa ainda um meio denso e comp! Aqui, em Pasis, era antes um ofsis no seio de um mundo es- tranho, mas invasor. que fora dado aos meus pais teria que ser por mim adqui- ido. Era preciso conquistar o Eden perdido, ¢, para isso, re- descobrir a graga por meio da provagao. Além disso — ¢ gos- taria de insistir nesse ponto — a minha exploragio dificil de um passado desejado, mas longinquo, j4 nao podia satisfazer-se com fragmentos de hist6ria, por ricos que fossem, como os que bastavam & minha familia. As Memérias, a leitura favorita dos meus pais, tentavam-me e repugnavam-me ao mesmo O Tempo da Histéria 7 tempo. Tentavam-me porque encontrava nelas 0 encanto do “Antigo Regime, a nostalgia que exciava o meu deseo de-s ber. Repugnavam-me porque 0 conhecimento que nelas bebia me tomava mais sensivel as zonas de sombra periféricas: su- blinhava a minha ignordncia daquilo que ficava de fora das mi- nhas leituras. E creio que foi este sltimo sentimento a levar a melhor. Lamento-o hoje, e se tivesse que dirigir criangas apai- xonadas pela Histéria penso que as orientaria, pelo contrério, para esses testemunhos vivos. Sei que tais fragmentos contém mais Historia, e mais Histéria total, do que todos os manuais, ‘mesmo os mais eruditos. Mas ninguém por entéo me guiava, porque, junto a mim, ndo havia a ideia de que a Histéria pu- desse ser coisa diferente daquilo que se vivia. De resto, eu no desejava conselhos. E talvez seja a autonomia desta evolugio 0 que constitui o seu interesse. Troquei portanto as leituras vivas por manuais escolares, 05 do met ano, € sobretudo, como tinha que ser, os dos outros anos. Descobria neles, apesar da secura da exposico, uma sa- tisfagdo que a minha memsria conserva intacta. Tinka a im- do, através de uma cronologia minuciosa, ou que tal me recobrir 0 tempo na sua completude, de encadear os lagos de causalidade ou de continuidade, de tal modo que a Hist6ria j4 nfo eram fragmentos numa at- mosfera, mas unt todo, um todo sem brechas. Nesta época da minha vida, na troisiéme e na seconde! tava deveras possuido pelo desejo de conhecer toda a Histéria, sem lacunas, Nao tinha ainda a minima ideia da complexidade dos factos. Ignorava a existéncia das grandes hist6rias gerais, como as de Lavisse, ¢ a minha ciéncia cronol6gica parecia-me tocar os limites. De resto os manuais escolares jd me nao bas- tavam: pusera-os jé em quados sin6pticos. Lembro-me de um grande quadro da Guerra dos Cem Anos, subdividido até ao infinito: © manual parecia-me excessivamente analitico, como se a coesio dos acontecimentos nfo resistisse & sua apresenta- 1 anos do curso secundério que, em Franga, se contam por ordem decrescente. (N. T.) 18 Philippe Aries gio sucessiva, linha por linha, p4gina por pégina, como se fosse preciso estreité-Ios no sentido horizontal para os impedir de fugirem, de formarem grupos & parte, Lutava com os factos para os forgar a reintroduzir-se no todo. ‘Acreditei um dia poder conciliar o mex gosto pelo passado dos reis € 0 meu desejo de totalidade empreendendo uma ge- nealogia dos Capetos, desde Hugo Capeto até Afonso XIII, as Bourbon-Parma e o conde de Paris. Uma genealogia completa, ‘com todos os ramos colaterais, sem esquecer nem os santos nem os bastardos. Tratava-se de um trabalho de Hérct dos os fracos materiais de que dispunha: dois grandes tios de hist6ria, na biblioteca dos meus pais, € a possi de consultar a Grande Encyclopédie em casa de um padre. Tentei alargar a minha documentagao. Tinham-me falado de uma Généalogie de la maison de France, do P.° Anselme. Foi para a consultar que penetrei pela primeira vez numa grande biblioteca, em Sainte-Genevitve. Comecei por ter 0 maior tra- balho deste mundo para convencer o bibliotecério da minha boa f€. Tive que voltar com uma autorizagdo dos meus pais. E, bem entendido, nunca consegui chegar até ao P.* Anselme, ou por ele me ser inacessivel nos mistérios do catélogo, ou por estar na Reserva. A Reserva desencorajou-me, e continue pe- los meus préprios meios. ‘As paredes do meu quarto iam-se cobrindo de folhas de pa- pel, umas atrés das ovtras e em todas as direcgdes. Queria po- der acompanhar com os olhos todos os meandros das filiagdes. Quanto mais elas se ramificavam em bragos colaterais afastados ¢ carregados, mais feliz eu me sentia. De 987 a 1929, que bioce de histéria desdobrado na parede, e isto para chegar a0 rei Jodo cuje regresso exigiamos ao som da miisica de la Royale! Todas as preocupagées com a politica presente, com a pro- paganda, com os panfletos ou folhas volantes nas instalagoes itérias, tudo isso era aspirado pela minha arvore genealé- gica. As dificuldades do franco, o domingo negro das eleigdes tadicais, de que se falava & mesa, pareciam-me coisas muito distantes, muito pequenas, perante os ramos da minha drvore O Tempo da Histéria 19 que partia do século X, ¢ recobria a Hungria, Espanha, Portugal e Italia, 1 Este gosto pelas genealogias ¢ pelos quadros sinépticos acompanhou-me durante muito tempo. Tive dificuldade em ver-me livre dele. Era jé aluno da Sorbonne quando comecei a acriangas de quatriéme e troisiéme num curso servia do método sinéptico para as minhas notas. Com alguma ‘pena, alids, mas a sua utilizago tornava-se demasiado compli- cada, e a sobreposigao dos factos fazia explodir os meus qua- dros. Tendo que ensinar a criangas a Guerra dos Cem Anos, pensei todavia que nfo podia existir outro método mais simples € mais pedagégico. Vejo-me ainda a cobrir 0 quadro preto de chavetas e a simbolizar graficamente a sequéncia das causas ¢ dos efeitos. As cadeias de acontecimentos transbordavam os cadernos dos alunos desorientados, ¢, no fundo, as mies de familia manifestavam uma desaprovagio muda, mas formal, por tudo aquilo, Foi preciso que 0 director interviesse para por fim a minha orgia de ligagdes. A vergonha que senti ento des- gostou-me para sempre dos quadros sindpticos. Mas tinham durado. Genealogia, cronologia, sinopse, eram outros tantos teste- munhos de um zelo desaigitado visando a apreensio da Historia na sua totalidade. E a pr6pria ingenuidade da expe- rigncia o que Ihe confere valor. ‘Uma crianga, mergulhada num meio cheio de iluminuras do passado, tenta Coincidir com esse passado que j4 néo € para ela tum dado inteiramente adquirido, ao contrario do que se verifi- cava para os seus pais. O passado parece-Ihe algo de diferente, mas infinitamente desejével, um reflexo da dogura de viver, uma imagem da felicidade. A felicidade estd atr4s dela. A crianga tem que a redescobrir, Esta busca teveste-se imediata- mente de um cardcter religioso: € uma demanda da graga. Chega a ter-se a impressiio de que o ser do passado se con- um 20 Philippe Ariés funde com Deus. Os meus gestos da prética religiosa eram apenas hébitos superficiais. Nao creio que Deus neles estivesse presente. Era no passado que procurava Deus, Nao seria pre- insistirem muito comigo para me fazerem reconhecer na inha comunhido com o passado a minha mais antiga expe- rigncia : ‘Afirmando-se, a investigagao do passado transformou-se na preocupacdo de o aprender na sua totalidade. O contetido poé- tico desse passado era voluntariamente posto de parte como sntagdo. Permanecia na vida corrente, nas conversas familiares; fremia também no fundo de mim préprio, Mas eu no admitia que isso fosse totalmente Hist6ria, pois se tratava de algo incompleto. No limite, tendia entéo para esvaziar a Histéria do seu conteédo humano, para a reduzir a um esforgo de meméria € a um esquema grafico. Contudo, o proprio excesso de despojamento ¢ de sintese permite, segundo penso, entrever o que é, na sua nudez, a ex- periéncia hist6rica, Os aluvides da cultura e da politica cobrem-na, escondem-na desfiguram-na, A experiéncia sera afastada da sua gratuiti- dade e solicitada por uma apologética politica ou religiosa, Serd laicizada para se erigir em ciéncia objectiva. ‘Mas no dia em que, no século XX, a rufna de todas as his- trias particulares colocar brutalmente o homem na Histéria, sem transigao, sem intermedidrios, esta con: i passado reaparecerd, como a il is como o tiltimo obstéculo ao abandono cego e animal & Historia, (Ou a Histéria é um movimento elementar, inflexivel e sem ami- zade, Ou existe uma comunhio misteriosa do homem na Hist6ria: a apreenso do sagrado imerso no tempo, um tempo {que o seu progresso no destrdi, no qual todas as eras so so- lidérias. Pergunto-me se, no final da sua carreira, 0 historiador modemo, quando superou t. i esteriliza e do mundo que soli Hist6ria muito proxima da experié: dos séculos, carregados de existéncia, surge-Ihe sem profundi- dade, sem extensao, como uma totalidade que se descobre de cage “RE O Tempo da Historia 20 sibito num s6 olhar. Simplesmente a visio j4 nflo é€ a da crianga, porque a crianga ndo.consegue abarcar todo 0 con- tetido de existéncia humana, A sua totalidade € falsa e abs- tracta. Conserva no entanto um valor de indicagfo, de tendén- cia. Sugere também que a criagdo hist6rica € um fendmeno de natureza religiosa. Na sua visio das eras recolhidas, reunidas, © Sdbio, desembaragado da sua objectividade, experimenta uma alegria sagrada: algo muito pr6ximo da graca. 1946

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