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oe MS alae AGE SE MAEETEO BAL HeLa Be ‘A FEITICEIRA DE MICHELET E 0 IDEAL ROMANTICO DE HEROISMO Marcelo Mangini Dias RESUMO: A proposta para o presente artigo & a part de uma lltura da obra A Fier, de ules Michelet, verifier em que medida sua parsonagem-tema pode ser considerada uma espécie de paradigma do que chamaremos aqui de “heréi micheletano" Jules Michelet, um dos mals importantes representantes. da historiogratia francesa oitocentsta tem sua narativa marca pela presen de herbs Wagicos que se os 2apresantam como modelos romantics de herosmo, Mio abstante, nossa hipstese& a de que © modelo, pas Michele, serve a um propésto maior, ode olecar como protagoista aque que seri, 20 longo de toda sua vasta aba, seu grande tema: opovo. Palawras-chave: Historografia francesa, Michelet, Revoluco Fanceso, Fensamento Politco Jules Michelet, historiador francés nascido em 1798, era um genuino filo da Revolucso, Em ‘mais de um escrito ele afirmou ser sua visdo da histria um longo combate da liberdade contra 2 fatalidade. Autor de um volume assombroso de obras, 0 caréter monumental de seu trabalha se fexpressa também no tom épico de sua narrativa, na escolha de temas universais ~ © por veres peculares, como “O Amor”, “A Mulher” e “O Povo” na sua abordagem romantica da historia, Tinta e cinco anos depois de sua primeira publicacio ~ a traducdo para o frances da obra {do fil6sofo italiano Gianbattsta Vico, uma de suas malores influéncias - Michelet lanca o lio A. Felticira, AFeticera No encerramento do ivro, em um capitulo inttulado "Notas e Esclarecimentos”, Michelet nos alerta para os rscos de um recurso que marca os primeiros capitulos da obra: a aproximacdo de sua narrativa com a estrutura de um romance. Ainda que possa ser questionada tal “metodoloza’, ele alerta que “tudo €histric e fundado”* (MICHELET, 1862, p. 401) A historia da felticelra se confunde com a histéria da mulher na Idade Média, como também se.confunde com ahistria do diabo no imaginsrio crstdo medieval. Ao narraraeoopéia medieval da feitcera, Michelet cria una persongem que atravesse séculos e envelhece com a prépriacivilzacso ‘européia do medievo. Sua longeva feitcera é contraposta 3 estrutura sociale institucionalzagBo do cristianismo. Enquantoasestruturas de poder cristo e feudal so monstruosidadestnieas nahistéria {do mundo (MICHELET, 1862, p. 401), a feltceirs é um fo de lux cue sobrevve as trevas medievaic. ° No orga | tout est histoniguee fond ns Mang A Fercens DeMOMLE EOIA RENAE HHO a Na medida em que algreja rst negligencia a maria © o corp, “inico médco do pove, durante mi anos fo feticeira™ (MICHELET, 1862p. ),Amesma rela que se tomaré seu carrasco 4 responsével elo seu nascimento, final, é na desesperanca, na coerslo social e religiosa violenta, 1a misérlasistemitica do mundo feudal ustificada pela ideologia do eristanismo medieval que a mulher assume, pouco a poyco, © papel da verdadeia feiticeia, Se parte da sociedade européia ‘medieval busca asilonos bragos de Sat, afrmard Michelet, com boa dose de energa, é porque obom Deus esto no he oferecia 0 consoloexperada : ‘Antes de qualquer coisa Michelet acuse 2 Igreja de reeitar a natureza, Ora, o camponés curopeu ¢ estreitamente ligado a esa natureza, Na medida em que ela €imputoda como campo de 1agBo de Sat, naturalmente o homem simples da dade Média é empurrado em diresso conté Imistésios de uma Iereja cada ver mais dstante ehierarquizada. Para se impor 20 politelsmo greco-romano a0 paganismo bérbaro, 0 erstianismo se ‘esforcou por destruir sistematicamente todes os simbolos deste passado a ser negado. O resultado, ara Michelet, € que “um vatio enorme se fizera no mundo™ (MICHELE, 1862, p. 29). Criar novas formas de interpretar © mundo, de agir ou pensar, representaria, nesse sistema, um constanterisco de retomada de valores que deveriam manter-se sepultos.O livre pensar deveria ser extint, “a via égica abondonada” (MICHELET, 1862, p.35).0 novo valor é,entlo, a imitago. As vrtuosashistbrias de vida dos santos, para Michelet tolas fantaslas criadas plas fértels mentes camponesas impedidas de se ocupar de algo mais vido e corroboradas pela “inutildade” de monges, seré agora o que _povosrs o imaginério crstao ocidental, Oprimido pela grea, sucumbindo ao poder da aristocracia rural, tornado servo, 0 camponés perde a esperanca. Esse € um perfodo de germinaco de uma nova estrutura social e cultural. As farilas, ‘efugladas nos dominios feudals em busca de protecSo, acumulavar-se precariamente. Nessa forma 4e organizac80, a mulher era muito pouco respeltada. Pouco a pouco, na media em que as invasbes bérbaras vo se dstanciando na memoria coletiva, @ populagao se cispersa. "Nessa nova realidade, ondcleo familar, composto pelo marido e sua esposs, deixs & mulher © papel de cuidar dolar enquanto o homem passa o dia fora. A mulher é entdo vitima de uma grande soliddo. O mundo que a cera e com o qual ela se comunica 60 mundo da natureza, que, pela tradicao ag, ¢ também o mundo do fantastico. Distante da realidade feudal-cisd, entregue diariamente @ ‘si mesma e a suas fantasias, a mulher tende a se aproximar do politelsmo, creditando aos antigos deuses — agora simples “espiritos” ~ seus préprios pensamentos e vontades. O homem, apesar de ‘mals distante, entrega-se posteriormente eporinfluGncia de sua mulher 3s mesmas crencas proscritas pelo clero (MICHELET, 1862, .59) Era uma época de incertezas. Preso 8 tera por lagos servis, © homem rural era explorado de forma intensa ecruel por seu senor. A lgreja, antes de tudo grande proprietiriadeteras, colaborava Gt Nocona “Vunique médecin seve, pendant mile ans, fut la Sore” 6 No ona "Un vide écrme ait dane le monde” 100 5, re Mange FEMCERA SE MCHEE EO RoC AMD ara agravar ainda mais o quadro de opressdo contra servo. Vitima de utrajes sem fim, fraglizada ‘e massacrada pelo peso abusivo do clero e da nobreza, 0 homem medieval "sentia o cuséncia de Deus" (MICHELET, 1862, .65). ‘A virada do milénio € acompanhada por mudancas nos “ritéros de verdade” aceitos pela lereja para atribuigo de santdade, Ao povo ¢ subtraido 0 dirito de estabelecer suas lendas e criar ‘seus santos. No mesmo periodo, 0 latim é adotado como lingua ofcial para as missas. De forma abrupta, 0 homem comum é afastado da lgreja. Ao mesmo tempo, a exploragso do trabalho servi torna-se to intensa que o século Xl seré marcado por grandes revoltas campesinas. ‘Ainda que sejao diabolismo a “heresia maxima” que mereca como punieSo a foguelra, énessa reco que caminharé o camponés. Lentamente, aqueles “espirtos” da natureza vo, no imaginsrio ‘medieval, se convertendo em Sata, ssa conversfo, nos faz cret Michelet, se dé na medida em que © homem comum se afasta da Igrela e percebe no Deus erstio um deus de dor esofrimento, Seu antipodi &, entEo, um “deus” de prazere alegria, um desejado leitivo que torne a arider da vida no ‘campo menos érdua ‘A mulher ~ @ em especial afeiticera ~ serd a responsével por capitanear essa nem sempre silenciosa resisténcia a0 dogmatisme cristdo. Eo fundamento basico de tal resistncia ¢ @ cura do! corpo, negada pelos padres. Mas 0 profundo misticismo que marcava a cultura medieval atribui & {eiticeira um papel adicional ao de curandeira: pessoas de todas as esferas socials a ela acorriam em busca de algo mais que o consol espititual oferecido pelo padre; queriam solugSes para os problemas, ‘que 0s afligiam, sejam eles de ordem material ou, como acontecia com frequéncia, sentimental. Respeitada e temida, amada ¢ odiada, a feitcera vulgariza-se; € com ela, satd. Elevada a uma condigo social relativamente privilegiads, passou a ser consuitada e protegida por nobres.. ‘Seu carrasco serd a InqusicSo. Se em um primeiro momento “a inquisicBo foi escamecida, maldita, sobretudo na Franga"’ (MICHELET, 1862, p. 180-161), 0 recrudescimento das revoltas camponesas 2 transformava em uma itil ferramenta para “dobrar os espritos rebeldes”. € chegado © momento das feiticeiras, pelas mos da Igreja, serem queimadas nas “santas” fogueiras, “hoje como feticeiros ‘aqueles que, talvez amanhd, se insurgiriam”** (MICHELET, 1862, p. 181). Ao estabelecer de forma diretae explicta 0 vinculo entre a feitigaria ea rebeldia politica, Michelet coloca sua personagem em ‘uma esfera diferente daquela outra, mais rligiosa, que a fetielratradicionalmente ocuparia (O Her6i Romantico Miguel Abensour, em seu trabalho 0 heroismo e o enigma do revolucionério, parte de “Tocqueville pare desenvalver a seguinte proposta:@ revolucionério moderno, esse novo protagonista @ No erga “homme seta absence de Deu o Nori: Lnquston fr compas, maul, rot en Prone” « No ign“. rise es epi rebels, |.) commesorcie aujurhu ceux, autre ‘demain, auaient cs insures a so Mg ETM CALE Roba HERD nr politico surgidona eda Revolugio Francesa, pode ser conhecide ereconhecido sob 0 rétulo de “heréi" (ABENSOUR, 1992, p.207)? Inteessa-nos aqui, no desenvolvimento de seus argumentos, conhecer rmélhor quem 6 tal herd, especialmente nos pontos em que Abensour nos conduz 8 imagem de heréi no pensamento politico-historiogrfico de Michelet, mais especcamente,verfcar em que medida a Feitcere de Michelet pode ser compreendida como tum construto desse ideal romintico de herolsmo. ‘Desaida estabelecemos que so ponte de parida de Abensour é 1789, ¢ porque lhe interessa © revolucionsrio politico. Aqui cabers analisar um tipo mais geral de revolucionario,o her, a0 qual pertenceria também o homem politico da Revolusdo, Esse her6l revolucionério, encontrado com ‘requéncia em tode a obrade Michelet, seria, segundo uma perspectiva romantica, inerente a propria. dinamica da sociedade humana. Recorrendo §etimologla,Abensour define “her6¥" como todo combatente, todo homem nobre elo nascimento, pla coragem ou pelo talento" (ABENSOUR, 1982, 214). Concordando com Hanna ‘Arent em sua "definicdo sdbria”, na qual o her6l "ado tem necessdade de qualidedes heréicas” ARENDT, 1988, 117), nos aproximamos da concepeio micheletiana de her6i. ‘Oher6ié, ao mesmotempo, umemutos. na pluraldade~entendidacomoumaimpessoaidade ‘04, ainds, um carder publi ~ que o her se realza Ele ¢ resultado de um “climat da época, de um espirito que “emana fenomenologicamente das coisas, do mundo” (ABENSOUR, 1992, p.216) ‘Ao se tocar por essa “energla passional’,o ator social migra de seu egoismo natura para o Interesse comume, portant, Impessoal. le se prontifica a exercero papel domértirque se sacrifcaria. pela liberdade, seja 0 que sgnificar, num contexto dado, tal iberdade. Essa energla, esse espirito, adquire mesmo uma aura de forga sobrenatural € © que parece ‘propor Quinet, quando ele celebra o heroism do periodo revolucionsrio. Para Lefort, tal herolsmo ‘seria a “marca de uma nova religio”(LEFORT, 1981, p.245), Tocqueville, em quem Lefort se apbia ‘ara essa propost,afirma que “essas pales haviam-se tornado (..) como uma espécie de religido que (.]limpelia] para o heroismo" (TOCQUEVILLE Apud LEFORT, 1999, p.251). ‘Tudo isso std em perfeta consondncla com a ideia de herd para Michelet, Abensour firma que pa chee, no 3 qualidade subjetva de tal ou qual mas 6m rier um chao tom 4h época que flea todos os atorese,priontaamente, oF prin ovo, ue pass do nada bo Serna apis experince dest lta" ABENSOUR, 1992, 0.217, (© momento emblemstico desse cariter religioso, mstico, do hereismo do pove é, ainda para ‘Michelet, a Festa da FederacSo celebrada em 14 de Julho de 1790, com 0 objetivo de comemorar a ‘comunho proporcionads pelo inicio da RevolucSo, Emblematicamente, este epis6dio, com 0 qual ‘Michelet encerrao Livro Il de sua Histria da Revolugdo Francesa, é contado em capitulosintitlados “Da Nova Religiao” 102 2, ra age AFERCERA DE MCNEETEOIDAL ROMANE DE HE Alls, percebernos na histria de Michelet, quase como uma constant, o politico andando de ‘mos dadas com o religoso.E sobre as revolugées politica e religiosa que ele se debrucars,e sobre tals processospaira sempre o esprto de seu her6l maior, 0 povo. Aqui historiador francés Busca em Vico sua férmula: 0 “heroiemo do espirito” é aquele que sé se vincula 20 indviduo que nio se exclu 440 povo. O espirite herdico, etomando 0 tema do sobrenatural, inspira no homem a superagio de ‘sua condi¢So humana, divinizando-o.€ 6 homem, a0 dvinizarze, perde sus subjetividade. Torna-se Povo. Portanto, &0 pove quem constr asi mesmo e aquele que se mentém 8 distancia desse povo 6 inf 2 principio do heroismo. Se, de maneira mais ampla, 0 grande heréi de Michelet é 0 povo, a fase deste historiador recair especialmente’ sobre 0 povo francés do século XV. € assim que, a0 falar do “metodo e do spirit" da obra Histéria da Revolucto Francesa, ele o chama de “verdadeiro rei eafirma: “0 povo € tudo” (MICHELET, 1979, p. 34). €m decorréncia, percebemos também que um indviduo s6 pode lmbuirse do espritoherdico na medida em que ele se anula enguanto subjetwidade e transmuta-se ‘em defensor dos interessescoletivos; na medida em que se torna nada mais que “povo" Lucien Febvre, em seu livro Michelet, nos fornece essas palavres que do 0 tom do nosso argumento: “Umbomom? Porque nioror?Porav no mi? Porquensotodor Vea Revluro,laprerinde ‘demodelos, homens mesmo, ge heres, Apareceram os hers ease exongu.Onsoto? Sm, ‘matoiinninn dete"? Por wezes esse povo, esse monstro de vérias cabecas e-de uma s6 vontade, parece escapar 2 Michelet. Ao olhar para seu proprio tempo, ele mostra-se desesperancoso: “o pove, em sua idéla ‘mois elevade, 6 fc de encontrar no pove (MICHELET, 1978, p.31). Onde, portant, se nde no povo, ppotemos encontrar esse povo-herdi? No homem de génio, naquele que consegue descobriro pove, a despeito do préprio povo e, contra sua aparente muitiplicidade de interesses, converge sua ago em diego a uma insuspeita homogeneidade de vontade, de aspragées. Tal genialidade, que em uma perspective nlo-romantica conduira talvez a uma concepsdo indvidualista de her, aparece aqui ‘come uma manifestacdo individual dos interesses mais gerais de um dado grupo socal, €s6 nessa ‘medida o “homem de génio" pode aspirar a condigao de herd is, pordm,ainterrogago que nos colocamos: 0 que faz do povo esse herd inconteste? O que representa ele que Ihe dé tal status de simbolo maximo do heréi micheletiano, a ponta de Michelet afirmar: "ndo compreendere os séculos mondrquicas se de incio, antes de mais nad, ndo fincar ‘em mim a alma e a fé do povo" (MICHELET, 1979, .33)? Diversas, nesgotivels mesmo, seria suas declaragBes nesse sentido, 0 do povo como 0 ator principal da histérla,Dira ele ainda, em uma bela ‘metafora, que apés muito escavar, descobriria que o melhor estava.nofundo.O calor que possibiitaria @ “Um homme? Puravel pos phsers?Pouravl pas mile? Pourqual pos tous? oer a Revolt, ele Sst passé de modes, hammes meme, ede hres. herds went el pert. nin!” Ou, mas inst de tous” (WCHELET Aud EBV, 2945, 9.59) A, re ag AFTEHIMA MET EOLA ROA BE En a ‘a incubacio desse espirito de heroismo, Por outro lado, quanto malor a altura, quanto mals sublsse~ Imaginemos aqui uma montanha representando uma pirémide social~ mais rarefelta era a “vegetacio ‘mora e mais friaaquela parcela do povo (MICHELET, 1978, 9.34). ‘Avancemos, pois, em nossa} posta interrogacio, em dire¢30resposta que nos era fornecida por Roland Barthes, Mas antes, escutemos ainda mais uma vez 2 vor de Michelet: “0 utimo herd que spareceu nt fo Napsldo, como sed, mas 2 Revue «sia ancosiade ‘ons jotamente no fto de que ela a0 dependeu de um grande home. hb apreenta sie {onde © nov espeticulo de una ila que preside de grandes horens, de heros, falas ‘uses, de ols afl alpda mals que Kae, crea dado pus”. Aquiloafirmado por Febvre, que para Michelet 2 Revolucdo prescinde de modelos, @ aqul confirmado. Ao mesmo tempo, a Revolusdo, “critica da razdo pura’, confirma e retoma o tema do herolsmo mistico, 2 Revolucso como relgiio, apontado por Lefort. |Aherméticaepigrae de Michelet, por Barthes, nos dda chave para desvendarmos essa questio €, por conseguint, her6i micheletano: "Sou um homem completo Poss os des ems does" Na interpretacdo de Barthes, o que Michelet trata por "sexo do espirito” € uma dicotomia ‘encontrada jd em Vico: a verdade cartesiana (verum] em oposicdo a verdade sentimental (certum). ‘Assim, oséculo XVI, 80 louvado por Michelet, comeca incompleto, cerebral. Seuslésofosluministas ‘fo cartesianos, do que Barthes chama de sexo espritual masculino. A Revolu¢So, porém, redime as primeira décadas ottocentistas ao trazer& tona a pao do povo, € com isso 0 equilib dos sexos ‘espirtuals masculino e feminine. Eis o her6i micheletiano para Barthes: um ser andrégino, de genio intelectual amparado por uma intugSo “sobronatural’. Barthes lista exemplos: Joana dArc, Lutero, Hoche (BARTHES, 1991, p.150). , retomando 3 epigrafe acima citada, Michelet é, ele préprio, um herd micheletian. Eis enti a primeira caractristica do povo-her6i em Michelet: 0 que chamariamas de “androginiaespirituel”, com predominineia fEmea, segundo Barthes. O povo representaria 0 “ultra- ‘2107, a combinacio ideal da razdo e da emotio, do verum edo certum. Barthes élapidar: “tudo o que participa da ida pura & conduzido ao estérit” (BARTHES, 1991, p.150). Assim, quando a sabedoria |sole-se do povo,toma-se puramente cerebral e, portanto, uma “caricatura da sabedoria" Els porque 2 Revoluco se perdeu: perdeu-se atradigl0 do povo. Sobrou 3 Franca a “salvagdo” ~ Robespierre, 0 0 Le dere hdres eu apa ce est pos Napoledn, comme sat est Ia Revluton eto grandeur onsite ustemen once guy ut pt de gana hame fe presente ce prod et noveau specie dune ee a ‘ent pate de grands Nome, hares, de out Sus, does. lea eben pl ue Kant le ctgue deo son pre (cece Apua EBVRE, 1946, 6) 1 “Jens hone complet, act ex dew sees de espe” (BARTHES, 1981) ‘error, representam o abandono da paixdo, 6 masculino sobrepondo-s, o puramente raconal, fro, ‘enfim,oestéil 'Mas,afinal, onde podemos encontrar esse pova? A@usaraexpressiocunhada por Lutero—herr ‘Ones ~ Michelet aponta no sentido de um escopo amplo, universal. Seo pow & esse “senhor Todo- "Mundo", ninguém & exclude e o conctito de classe ~ especialmente classe social ~ ndo encontraria ‘aqui um lugar. ‘Mas a0 mesmo tempo, ¢ aqui observamos uma segunda caracterstica do heréI micheletano, ‘© pove 6 fraco, 60 que sofre. Por decorréncia,sofredores serdo sous herbis: Godotredo de Bouillon, ‘Thomas Becket, So Luis, o camponés Jacques, todos vencidos. A derrota€ 0 embriao de uma vtéria {utura, 05 oprimidos de hoje sero os herbis de amanh. Barthes chamaré isto de “alta crist3 da Inversfo” (BARTHES, 1991, p.155); em tim instécla, oF tims ser80 0s primelros. ‘Tomamos como terceiracorocteristicadesse herd, é amplamente discutia, 2 sua capacidade ‘=necessidade mesmo ~ de se anular como individuo em prol do interesse pablico. Quarta e quinto caracteristces: a simplicidade e a justia. Simples, aqui aparece no sentido contrério ao da erudicio; 0 herdi micheletiana é, em certa medida, infantil, ingnuo, movido pela Inuigao, mais préximo do sexo espirtual feminino. A justiga & particularmente importante para lentendermos esse marti, sofrador, que se doa em benefici do pavo, que muitae vezes v8 onde estars ‘al beneficio mesmo quando.o povo permanece cogo,e sariica-sa por ele. Se com freqiéncia 0 que S50 abate sobre o povo é a injustia do mundo, ele, 0 herd, & 0 que impos a justica na hstéria, Em ‘sua traiglo, em seu pensamento, na Lenda Nacional, enconta-se a propria credbilidade da Histéra, “Oque opovo acredita é verdadero, 0 que ele faz & bom” (BARTHES, 1991, p.153). Michelet, em sua Historia do Revolugdo Francesa confirms: “Quando ele [0 povo} julga, tudo esté acabado. Cabe a vés, istoriadores[..) encontrar, se puderdes, 0 porque. Procura; ele sempre justo” (MICHELET, 1979, 35). Eis entio nosso herd: sofredor, simples © justo; 20 mesmo tempo racional e sobremancira ‘emotive ~ andrégino, na perspectiva de Barthes. Virias personagens nas obrasde Michelet assumir80 tals predicados — Joana dArc, Rabelais, Leibniz, Kosciusko ~ além de outros tantos jd citados. Mas 6 com uma condigo muito especica eles atenderdo pela acunha de herds: enquanto estiverem ‘associados ao povo, Enquanto eles forem capazes de perceber e representar 0 esprito da época, 0 ‘stimmung. Enquanto forem, enfim, 0 que é para Michelet herd sul generis, 0 ovo. A felticera: um herbi micheletiono Desta forma, nio nos basta ~ apesar de ser essencial ~ encontrar na eiticera de Michelet ‘0 se10 espirtual feminino, ou seja, a ematvidade sobrepujande a racionalidade; a condiglo de ‘submeter-s a um mundo de Injustiga e em troca oferecer ao mesmo mundo osacrfclo em nome da Justia; a simplicidade que se opde 3 flsa sabedoria dos eructos, Devemos, mals que tudo, verfcar 1 nd rg AFTRA: WMT COAL ROMAIN fe ‘em que medida & a flticera um representante dos anselos populares; até que ponto ela é resuitado do “esprito da época’,sintese de uma vontade superior, a vontade do povo. [Nos dois primeiros capitulos do livro A Feiticeira, Michelet procura responder 8 seguinte ‘questio: “porque a humanidade perdeu a esperanga"? Ao partir de uma inquietagdo to ample ara tracar a traetéria de sua personagem, Michelet nos mostra uma felicira que é, como o so rnormalmente os herdis roméntcos, fruto de seu tempo, resultado das aspirasdes comuns. [No processo historico de surgimento da feitieira, Michelet identifica 6 ritual do sabia como ‘momento central. ManifestacSo e representacio de martrio popular ele 6 resutado de um “abismo cde dor” ao qual é langado 0 povo. € desse ritual qe emerge #feticeia, na condlpio de porta-vor do

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