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teoria do nao-objeto Esta teoria resultou de uma andlise da arte moderna, notadamente do pro- cesso que ela experimenta a partir do surgimento da pintura nao-figurativa, ou seja, quando se exclui da pintura a imagem dos objetos. Essa andlise leva & compreensao de que, desde o momento em que a representagao do objeto ¢ eliminada da linguagem pictorica, 0 quadro se torna o objeto da pintura. Explicitando: 0 quadro foi até ali, desde o Renascimento, o lugar onde o pintor criava um espago ficticio - uma espécie de cenario - den- tro do qual se situava a imagem do objeto, fosse uma figura humana, uma paisagem ou uma natureza-morta, Esse espago é fragmentado no cubismo que, em sua fase sintética, chega quase & abstracao total da figura, abrindo caminho ao neoplasticismo de Piet Mondrian, que elimina toda e qualquer representacao do objeto. Pintar, entao, ndo é mais criar um espaco ficticio mas, simplesmente, organizar o espaco bidimensional da tela - 0 quadro torna-se, assim, 0 objeto da pintura. Noutra vertente do processo abstratizante, temos o suprematismo, de Kasimir Maliévitch, que buscou expressar “a sensibilidade da auséncia do objeto" e, assim, chegou ao célebre quadro Branco sobre branco, limite da lin- guagem pict6rica figurativa. Para Maliévitch, as formas geométricas com que lidava - quadrados, retangulos etc. - ainda eram figuras. Pintar um qua- drado branco sobre um fundo branco era a tentativa de eliminar a contradi- 40 figura ~ fundo, ou seja, eliminar toda e qualquer figuracao, Sucede que tudo 0 que se percebe, percebe-se sobre um fundo, o que torna a superacao 45 de tal contradi¢ao uma tarefa impossfvel. O passo adiante seria 0 quadro totalmente branco, ou seja, o fim da pintura, Foi da tela em branco que Lygia Clark partiu para criar sua Superficie mo- dulada — placa de madeira cortada em duas por uma fissura (que ela chamava de “linha organica’) ~ inicio de um desmembramento do quadro de que sur- giriam os Casulos e depois os Bichos. 0 nao-objeto nasce, portanto, do aban- dono do espago virtual (ou ficticio) e da ago pictérica (metaférica) para 0 artista agir diretamente sobre a tela (0 quadro) como objeto material, como coisa. Esta acao do artista se transfere ao espectador que passa a manipular a obra nova ~ 0 nao-objeto - em lugar de apenas contemplé-lo. ANEXO 4 | 1 959 ‘A expresso ndo-objeto nao pretende designar um TEORIA DO ectoeewne ~ dos objetos materiais com propriedades exatamente N AO-O B. J ETO Contrétias desses objetos. O néo-objeto nao é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pre- tende realizada a sintese de experiéncias sensoriais ‘€ mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenolégico, integralmente perceptive, que se dé 4 percepco sem deixar resto, Uma pura aperéncia MORTE DA PINTURA ‘A questo posta obriga-nos a um retrospecto, Quando os pintores impressionistas, deixando 0 atelié pelo ar livre, procuraram apreender 0 objeto imerso na luminosidade natural a pinturafigurativa comecou a morrer. Nos quadros de Monet os obje- tos se dissolvem em manchas de cor ea face usual das coisas se pulveriza entre os reflexos luminosos. A fidelidade a0 mundo natural transferira-se da ob- jetivaco para a impressao. Rompidos os contornos que mantinham os objetos isolados no espago, toda possibilidade de controle da expressdo pictérica se limitava & coer€ncia interna do quadro. Pouco depois, Maurice Denis diria que ‘um qua- dro — antes de ser um cavalo de batalha, uma mu- her nua ou alguma anedota - é essencialmente uma superficie plana coberta de cores dispostas de certa maneira’. A abstracao nao tinha nascido ainda, mas os proprios pintores figurativos, como Denis, ja @ anunciavam, Cada vez mais 0 objeto representado perdia significagao aos seus olhos, e em conseqlén- cia disso 0 quadro, como objeto, ganhava importancia. Com 0 cubismo, o objeto é brutalmente arrancado de ‘sua condic&o natural, transformado em cubos, 0 que virtualmente the imprimia uma natureza ideal; esva- Ziava-o daquela obscuridade essencial, daquela opa- cidade invencivel que caracteriza a coisa. Mas 0 cubo tridimensional, ainda possui um nucleo, um dentro que era preciso consumir — e isso foi feito pela fase dita sintética do movimento. J4 entdo o que sobra do ‘objeto é pouca coisa. E é com Mondrian e Maliévitch que a eliminacao do objeto continua, O objeto que se pulveriza no quadro cubista é 0 ‘objeto pintado, o objeto representado. Enfim, 6 a pin- tura que jaz ali desarticulada, & procura de uma nova estrutura, de um novo modo de ser, de uma nova sig- nificagao, Mas nesses quadros (fase sintética, fase hermética) no hé apenas cubos desarticulados, planos abstratos; hd também signos, arabescos, pa péis colados, nimeros, letras, areia, estopa, prego etc. Esses elementos indicam duas forgas contré- rias ali presentes: uma que tenta implacavelmente despojar a pintura de toda e qualquer contaminagao com 0 objeto; outra que retorna do objeto ao signo © que para isso necessita manter 0 espaco, 0 am- biente pictorico nascido da representacao do objeto. Acesta tiltima tendéncia pode se filiar a pintura dita abstrata, de signo e de matéria, que se exacerba hoje no tachismo. Mondrian é quem percebe 0 sentido mais revo- luciondrio do cubismo e Ihe dé continuidade. Com- preende que a nova pintura, proposta naqueles pla~ os puros, requer uma atitude radical, um recomeco. Mondrian limpa a tela, retira dela todos os vestigios do objeto, nao apenas a sua figura, mas também a cor, a matéria e 0 espaco que constitufam 0 universo da representacdo: sobra-lhe a tela em branco. Sobre ela 0 pintor nao representaré mais 0 objeto: ela é 0 espaco onde o mundo se harmonizaré segundo os dois movimentos basicos da horizontal e da vertical. Com a eliminagao do objeto representado, a tela — como presenga material ~ toma-se o novo objeto da pintura. Ao pintor cabe organizé-la mas também dar- lhe uma transcendéncia que a subtraia & obscuridade do objeto material. A luta contra o objeto continua. © problema que Mondrian se propés nao po- dia ser resolvido pela teoria. Se ele tentou destruir 0 1 plano com o uso das grandes linhas pretas que cor- ‘tam a tela de uma borda a outra ~ indicando que ela. cconfina com 0 espaco exterior -, ainda essas linhas ‘se opdem a um fundo, e a contradi¢ao espaco — ob- jeto reaparece. Inicia, entéo, a destrui¢ao dessas linhas @ 0 resultado disso esté nos seus dois ulti mos trabalhos: Broadway Boogie-Woogie e Victory Boogie-Woogie. Mas a contradi¢ao no se resolve de faio, e se Mondrian vivesse mais alguns anos talvez voltasse a tela em branco donde partira. Ou artsse dela para a construgo no espaco, como 0 fez Maliévitch, a0 cabo de experiéncia paralela. OBRA E OBJETO A tela em branco, para o pintor tradicional, era 0 mero suporte material sobre o qual ele esbocava a sugestio do espaco natural. Em seguida, esse es- aco sugerido, essa metéfora do mundo, era rode- ‘ada por uma moldura cuja fungo fundamental era inser-lo no mundo. Essa moldura era o meio-termo entre a ficgdo e a realidade, ponte e amurada que, protegendo quadro, o espaco ficticio, ao mesmo tempo fazia-o comunicar-se sem choques, com 0 espaco exterior, real. Por isso, quando a pintura abandona radicalmente @ representacdo - como no caso de Mondrian, Maliévitch e seus seguidores ~ a moldura perde o sentido, Nao se trata mais de erguer um espaco metaférico num cantinho bem protegido do mundo, e sim de realizar a obra no espaco real mesmo e de emprestar a esse pela aparico da obra ~ objeto especial =, nificago e uma transcendéncia, E fato que as coisas se passaram com morosidade, com equivocos e descaminhos mente inevtéveis e necessérios. O uso do lado, da areia e de outros elementos tomados € postos dentro do quadro jé indica a de substituir a ficgdo pela realidade. Quand, tarde, 0 dadaista Kurt Schwitters constrél @ ‘Merzbau ~ feito com objetos ou fragmentos: tos achados na rua -, ainda 6 a mesma’ se amplia, jf agora livre da moldura, no Nessa altura, a obra de arte e os objetos confundir-se. Sinal desse miltuo tre a obra de arte e o objeto é a célebre Marcel Duchamp enviando para a Ex Independentes, em Nova York [1917], um: fonte, desses que se usam no mictério des Essa técnica do readymade foi adotada pelos: alistas. Ela consiste em revelar 0 objeto © de sua funco ordindria © assim entre ele e os demais objetos novas r mitago desse processo de transfiguragéo do esté em que ele se funda menos nas formais do objeto que na sua signticacao, relagdes de uso e habito cotidianos. Em breve; obscuridade caracteristica da coisa volta a obra, reconquistando-a para o nivel comum | front, os artistas foram batidos pelo objeto. Desse ponto de vista, tornam-se bem claras, e certo ponto ingénuas, algumas extravagancias hoje aparecem como a vanguarda da pintura. so as telas cortadas de Fontana, expostas na al, senao uma retardada tentativa de destruir ‘carter ficticio do espaco pictérico pela introdu- nele de um corte real? Que sao os quadros de ‘com estopa, madeira ou ferro, sendo 0 retomar a mesma violéncia e antes transformando-os dos processos usados pelos da- O mal, entretanto, esta em que tais obras ‘conseguem 0 efeito do primeiro contato, e n0 Jogram permanecer na condicao transcendente de ‘no-objeto. Sao objetos curiosos, estranhos, extra- vagantes ~ mas objetos. O caminho seguido pela vanguarda russa mos- trou-se bem mais profundo. Os contra-relevos de Tallin e Rodchenko, como as arquiteturas suprema- fistas de Maliévitch, indicam uma evolucao coerente do espaco representado para 0 espago real, das formas representadas para as formas criadas. ‘A mesma luta contra 0 objeto verifica-se na es- cultura moderna a partir do cubismo. Com Vanton- gerloo (De Sil) a figura desaparece completamente; ‘com os construtivistas russos (Tatlin, Pevsner, Gabo) a massa é eliminada e a escultura despoja-se da sua condicao de coisa. O fendmeno ¢ parecido: se a pintura que nada representa & atraida para a or- bita dos objetos, com muito mais forga essa atragao se exerce sobre a escultura nao-figurativa. Tornada objeto, a escultura livra-se da caracteristica mais comum Aquele: a massa. Mas isso ndo basta. A base — que equivale na escultura & moldura do qua- dro ~ fora eliminada, Vantongerioo e Moholy-Nagy tentaram realizar esculturas que se mantivessem no espaco, sem apoio. Pretendiam eliminar da es- cultura o peso, outra caracterfstica fundamental do objeto. E 0 que se verifica € que, enquanto a pintura, liberada de sua intengao representativa, tende a abandonar a superficie para se realizar no espaco, aproximando-se da escuitura, esta, liberta da figura, da base e da massa, jé bem pouca afinidade man- tém com o que tradicionalmente se denominou es- cultura. Na verdade, hd mais afinidade entre um contra-relevo de Tétlin e uma escultura de Pevsner, do que entre esta e uma obra de Maillol, de Rodin ou de Fidias. O mesmo se pode dizer de um quadro de Lygia Clark e uma escultura de Amilear de Cas- tro, Donde se conclui que a pintura e a escultura atuais convergem para um ponto comum, afastando- se cada vez mais de suas origens. Tornam-se obje- tos especiais — ndo-objetos - para os quais as de- nominagées de pintura e escultura jé talvez nao ‘tenham muita propriedade. FORMULACAO PRIMEIRA © problema da moldura e da base, na pintura © na escultura, respectivamente, nunca tinha sido examinado pelos eriticos em suas implicagses significativas, estéticas. Registrava-se o fenémeno, mas como um detalhe curioso que escapava a ver- dadeira problematic da obra de arte, 0 que nao Se percebia é que a prépria obra colocava proble- mas novos e que ela procurava escapar, para so- breviver, ao circulo fechado da estética tradicional. Romper a moldura e eliminar a base no s4o, de fato, questdes de natureza meramente técnica ou fisica: trata-se de um esforgo do artista para libertar- se do quadro convencional da cultura, para reen- contrar aquele “deserto’, de que nos fala Maliévi- tch, onde a obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significacao que no seja a de seu proprio aparecimento. Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um ndo-objeto e que esse nome s6 se aplica, Com preciso, Aquelas obras que se realizam fora dos limites convencionais da arte, que trazem essa necessidade de desiimite como a intengao fundamental de seu aparecimento, Colocada a questao nestes termos, as expe- riéncias tachistas e informais, na pintura e na es- cultura, mostram-nos a sua face conservadora reacionéria. Os artistas dessa tendéncia continuam — embora desesperadamente ~ a se valer dos apoios convencionais daqueles géneros artisticos. Neles 0 proceso é contrério: em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a ‘moldura, o quadro, 0 espago convencional, e pdem ‘© mundo (os materiais brutos) lé dentro. Partem da suposigao de que 0 que esta dentro de uma mol dura é um quadro, uma obra de arte. E certo que, com isso, também denunciam o fim dessa conven- ‘$40, mas sem anunciar 0 caminho futuro. Esse caminho pode estar na criagdo desses objetos especiais (ndio-objetos) que realizam fora de toda convengao artistica e que reafirmam a arte ‘como formulagao primeira do mundo. DIALOGO SOBRE 0 NAO-OBJETO Que € 0 ndo-objeto? E preciso primeiro saber o que entendo aqui por objeto. Entendo aqui por objeto a coisa material tal ‘como se dé a nés, naturalmente, ligada as designa- ‘GBes € usos cotidianos: a borracha,o ldpis, a péra, 0 sapato etc. Nessa condicéo, 0 objeto se esgota na referencia de uso e de sentido. Por contradi¢ao, po- demos estabelecer uma primeira definigéo do nao- objeto: 0 no-objeto néo se esgota nas referéncias de uso e sentido porque nao se insere na condigao do utile da designacao verbal Mas os objetos tampouco se esgotam sempre Naquelas referéncias. Sob o nome péra, esté a péra com a sua densidade material de coisa, Sim. Quando nos subtraimos & ordem cultural do mundo, vemos os objetos sem nome ~ e nos de- frontamos com a sua opacidade de coisa. Pode di- zer-se que, nessas circunstancias, o objeto torna-se préximo do que chamo de nao-objeto, mas precisa- neste ponto manifesta-se a diferenga funda- entre os dois: sem nome, 0 objeto torna-se ypresenca absurda, opaca, em que a percepcao sem nome, o objeto é impenetravel, ina~ |, clara e insuportavelmente exterior a0 ‘sujeito. O ndo-objeto nao possui essa opacidade, e dai o seu nome: o ndo-objeto é transparente & per- “cepeao, no sentido de que se franqueia a ela. Ea diferenga entre os dois torna-se mais precisa: s6 pelas conotacdes que o nome € 0 uso estabelecem entre o objeto e o mundo do sujeito, pode o objeto ser apreendido e assimilado pelo sujeito. E, pois, 0 objeto, um ser hibrido, composto de nome e coisa, como duas camadas superpostas das quais uma ‘apenas se rende ao homem ~ 0 nome. © ndo-ob- jeto, pelo contrério, uno, integro, franco. A relacao que mantém com o sujeito dispensa intermediéro. Ele possui uma significagao também mas essa sig- nificagao ¢ imanente sua prépria forma, que 6 pura significacao. Noutras palavras, vocé diz que 0 ndo-objeto é um objeto total, integral? Coloque o problema nos termos da filosofia exis- tencial sartreana. Enquanto o sujeito existe para si, 0 objeto, a coisa, existe em si. Deixando de lado as implicagdes que o filésofo tira dessa contradigao fundamental, fiquemos com o fato de que ela reatirma a opacidade da coisa que repousa em si mesma e a perplexidade do homem que se sente exilado entre elas. Um tecido de sig- nificagées e intengdes constitui o mundo humano, ‘sob 0 qual persiste a opacidade do mundo inumano, exterior ao homem. A experiéncia do objeto-sem- nome é a experiéncia do extlio. A luta por vencer a contradicao sujeito-objeto esta no ceme de todo 0 conhecimento humano, de toda a experiéncia hu- mana e, particularmente, na realizagao da obra de arte. Um pintor que figura uma natureza-morta no estd fazendo outra coisa sendo tentando resolver essa contradigao. Ao representar aqueles objetos cotidianos, o artista caminha do nivel conceitual em que eles usualmente se encontram para o nivel es- tético, onde uma nova significagao, n&o-conceitual, ‘emerge deles: a significacao imanente & forma. Nesse caso, uma natureza-morta é também um nao-objeto. Nao. Um objeto representado € quase-objeto: como se fosse um objeto; ele se desprende da con- digo de objeto, mas nao atinge a de nao-objeto; 6,com referéncia ao objeto real, um objeto ficticio. 0 nao-objeto ndo é uma representagao mas uma. presentagao. Se 0 objeto esta num extremo da ex- periéncia, 0 ndo-objeto esté no outro, e 0 objeto re- presentado estd entre os dois, a meio caminho. Se 6 assim, que diferenga existe entre a signi ficagaio imanente a forma do quase-objeto e a significagéio imanente a forma do nao-objeto? A ciferenca reside no fato de que o quase-objeto 6 8 representagao de um objeto real, enquanto 0 ndo-objeto nao representa nada, mas apenas se Apresenia, Ora, desse mado, a significado que Se revela na forma de um e de outro ndo é da mesma natureza, Partindo do objeto real, o artista ue 0 representa na tela consegue desligé-lo das Felagdes conceltuais ~ transfigurando-o na forma, "Cor, na situago espacial ~ mas jamais logrard Cortar definitivamente esses liames que esto na fonte mesma de sua experiéncia: a significacao que Se dé no quase-objeto estava imanente no objeto, |sso nao se verifica no caso do ndo-objeto que, por No se refer @ nenhum objeto real, por ser 0 apa- recimento primeiro de uma forma, funda em si mesmo sua signiticagao, Poder-se-ia dizer, entéo, que toda pintura néo- figurativa é um néo-objeto? Também nao. A diferenca entre a pinturafigurativa © a pintura dita abstrata é de grau mas nao de na- tureza, A pintura ndo-figurativa, embora realize um grau maior de abstracdo, ainda se mantém presa 40 problema da representagao do objet. Mas como, se 0 objeto jé néo aparece nela? Tomemos, por exemplo, a pintura de dois dos mais importantes criadores da arte néo-figurati- vai Mondrian e Maliévitch. E fato que a figura do objeto jd ndo aparece em seus quadros, mas, para Maliévitch, 0 quadrado preto sobre fundo branco € a “sensibiidade da auséncia do objeto’ e, para Mondrian, as verticais e horizontais exprimem o conflito fundamental da natureza. Noutras pala- was, essas formas e linhas geométricas substi- tuem ali os objetos, so uma alusio extrema a eles. Mesmo que Mondrian © Maliévitch néo ex- Pressassem, em suas teorias, essa relacdo, nem Por isso as deixariamos de ver. Na verdade, nos quadros de Mondrian e Maliévitch permanece a ‘posicdo da figura geométrica sobre um fundo metatérico, de representaggo, Digo metatorico Porque o espaco, al, simboliza o espago do mundo, da mesma maneira que as formas simbolizam os objetos, Por ser metafbrico, ficticio, esse espaco Se confina naturalmente nos limites da tela, ¢ mesmo se a moldura desses quadros se resume @ uma simples régua de madeira, sua funcao é ainda de moldura. Tampouco adiantariaretirar mae terialmente a moldura desses quadros, uma vez Que é da natureza daquele espaco pintado ali o Confinamento, a incomunicabilidade com o espaco exterior. O mesmo pode-se dizer das obras de Kandinski e seus seguidores. Trata-se de um es- aco de representacao abstrata, Esse espaco nao existe no néo-objeto, que é, por defini¢éo, no re- Presentativo mas presentativo, Pretende vocé dizer que o néo-objeto resolve a contradic&o figura-fundo? da percepedo essa contradigao ¢ insoll- vez que 0 fundo & condigéio mesma do per- = tudo que se percebe est sobre um fundo. fo impasse a que chegou a arte abstrata, apés Ireduzido sua expresso a0 campo da percep¢ao topou com esse dualismo insuperdvel que re noutro plano, @ contradigao sujeito ~ objeto. ‘ndo-objeto, por no se par o problema da repre~ ‘oda figura — fundo também néo se poe. ‘sobre 0 qual se percebe 0 nac-objeto nao é metafdrico da expressao abstrate, mas © real -o mundo. pois, o mesmo fundo sobre o qual se perc ‘08 objetos, no? ‘certo modo, sim. Liberto da base e da moldura, nio-objeto insere-se diretamente no espace, do [mesmo modo que um objeto, Mas aquela transfe~ séncia estrutural do ndo-objeto, que o distingue “do objeto, permite-nos dizer que ele transcende 0 fespaco, ¢ ndo por iludito (como faz 0 objeto), mas por nele se inser radicalmente. Nascendo direta- mente no e do espaco, 0 nao-objeto € ao mesmo tempo um trabalhar e um refundar desse espaco: 0 ‘enascer permanente da forma e do espago. Essa transformacéo espacial é a propria condicéo do nascimento do néo-objeto. ‘Yoos falou em moldura e base. Basta eliminar ‘esses elementos para fazer um néo-objeto? Nao, da mesma maneira que néo basta eliminar a figura para fazer um bom quadro abstrato. Nao se trata da presenca ou auséncia material da moldura ou da base, Trata-se de criar sem 0 apoio desses ‘elementos. A moldura ¢ a base, na pintura € na es cultura respectivamente, condicionam a expressao do arfista e so, também, os marcos de uma de- terminada posicao em face da arte. O que importa, pois, ndo é fazer um quadro sem moldura ou uma escultura sem base, mas resolver os novos proble- mas que se poem quando a expressao ja no conta ‘com aqueles elementos. Que significam a moldura e a base? Signficam que a linguagem da obra é represen- tative, mesmo se as formas séo abstratas (falo da base e da moldura como elementos pressupostos na expresstic), Quando 0 problema da representa ‘cao 6 ultrapassado, a moldura ea base perdem a func. Mas nao basta simplesmente retiré-las da obra. No caso da escultura, a base indica uma po- sigao privilegiada, e se a escultura nao possui base (materialmente fatando) mas detém aquele privi- \égio, o problema da base continua inerente @ ela. Nao se trata, portanto, de um nao-objeto. Conclui-se dai que a ndo-representagao é um cardter basico do ndo-objeto. E ele ainda pin- tura ou escultura? ‘As consideragdes @ que nos obriga 0 aparecimento w do niio-objeto conduziram-nos a ver a representa 40 como elemento inerente & pintura e a escultura, Ao contrétio do que se vem afirmando ha pelo me- ‘nos cinglienta anos, s6 em alguns casos excepcio- nais @ arte contemporanea ultrapassou o problema da representacéo. Essas excecdes - os contra- relevos de Tatlin, as arquiteturas suprematistas de Maliévitch ~ esto fora das definicées do que seja pintura, escultura, arquitetura, © mesmo se dé com 08 trabalhos do grupo neoconcreto ~ e daf o nome de ndo-objeto. Acredito que uma arte realmente ndo-representativa repele as nogdes académicas de género artistico. O proprio conceito de arte vax cila, se no 0 tomamos na acepgéo fundamental de experiéncia primeira, Quer dizer que, na sua opinido, pintura e es- cultura acabaram... Ou talver nunca tenham, de fato, existido, Pelo menos na época moderna, todo artista trabalha no limite de sua arte, tentando ultrapassé-lo. Trata- se sempre de uma antiarte. O que importava para Brancusi ~ quer ele 0 soubesse ou ndo - nao era fazer escultura, mas a escultura, Contraditoriamente, para fazer a escultura, ele se distanciava cada vez mais de tudo 0 que se conhecia como escuitura, (Omesmo pode-se dizer de Pevsner, de Vantongerloo, de Picasso, de Mondrian, de Kandinski, de Maliéitch, de Pollock etc. O artista busca, na pintura ou na escultura, a experiéncia primeira do mundo, mas a Propria pintura (ou escultura) j4 6 um mundo con- Ceituado, que 6 preciso ultrapassar. E finalmente Chegou-se ao momento atual, em que o artista jé no se preocupa em fazer pintura ou escultura, Para através delas rencontrar a experiéncia primeira do mundo: tenta precipitar diretamente essa expe- riéncia. E uma redescoberta do mundo: as formas, ‘8 cores, 0 espaco nao pertencem a esta ou aquela linguagem artistica, mas & experiéncia viva e inde- terminada do homem. Lidar diretamente com esses elementos, fora dos quadros institucionais da arte, é formulé-los pela primeira vez. E aqui se observa ultra diferenca fundamental entre um quadro e um nao-objeto: aquele nasce de um esforco do artista Para, gradativamente, romper o mundo j4 concei- tual da linguagem artistica ~ vem-se de fora para dentro, da significagao usual para uma nova signi- ficagio; 0 nao-objeto irrompe de dentro para fora, da ndo-signiticacdo para a significagao, Dentro da teoria do nao-objeto, como se coloca precisamente o problema da poesia? Também 0 poeta busca a experiéncia primeira do mundo, também ele trabelha no limite da lingua~ gem poética, Na época moderna, vimos a destruigo das for- mas fixas de estrofe, de verso, para chegar-se ao verso livre, Mas, depois, 0 verso livre também tor- ou-se um instrumento esterectipado: rebentou-se @ sintaxe e chegou-se & palavra como elemento pprimeiro. Da mesma maneira que @ cor libertou-se dda pintura, a palavra libertou-se da poesia. O poeta tem a palavra, mas j6 ndo tem um quadro estético preestabelecido onde colocé-la habilmente. Ele se defronta com ela desarmado, sem nenhuma possi- bilidade definida mas com todas as possibilidades indefinidas. O que importa nao é fazer um poema = nem mesmo fazer um nio-objeto ~ mas revelar 0 quanto de mundo se deposita na palavra, Vocé ja escreveu que, no que se refere a poe- sia, 0 no-objeto é a procura de um lugar para a palavra, Que quer dizer isto? E que a palavra ou esta na frase - onde perde sua individualidade — ou no dicionério, onde se encontra sozinha e mutilada, pois é dada como mera denota- ‘¢éo, O ndo-objeto verbal é o antidicionério: o lugar onde a palavra isolada irradia toda a sua carga. Os elementos visuais que ali se casam a ela tém a fun- Go de expiicitar intensificar, concretizar a multivo- cidade que a palavra encerra. Ha, entdo, uma fuséo de pintura, relevo, escul- tura e poesia? Creio que nao, Planos, formas, cores sdo elementos da realidade, antes de serem elementos de uma linguagem artistica, No nao-objeto os elementos plésticos nao so usados com o mesmo sentido que na pintura ou na escultura. Jé so escolhidos segundo um propésito verbal, isto &: da mesma max neira que um poeta tradicional elabora seu poema convocando e repelindo palavras, 0 poeta neocon- creto convoca, além das palavras, formas, cores, rmovimentos, num nivel em que a linguagem verbal @ a linguagem pléstica se interpenetram. Ninguém ignora que nenhuma experiéncia humana se limita ‘um dos cinco sentidos do homem, uma vez que homem reage com uma totalidade e que, na ‘sim- bélica geral do corpo" (M. Ponty), os sentidos se de- cifram uns aos outros. © néo-objeto deve ter movimento? Nessa altura, cabe esclarecer que n&o digo como deve ser 0 nao-objeto, mas apenas defino o que A existe, o que esté felto. A maioria dos nfo-obje- tos existentes implica, de uma forma ou de outra, ‘0 movimento sobre ele do espectador ou do leitor. 0 espectador 6 solicitado a usar o néo-objeto. A mera contemplac&o nao basta para revelar 0 sen- tido da obra - e o espectador passa da contempla- cdo & ago, Mas 0 que a sua ago produz é a obra ‘mesma, porque esse uso, previsto na estrutura da obra, é absorvido por ela, revela-a e incorpora-se sua significagao. 0 ndo-objeto é concebido no tempo: é uma imobilidade aberta a uma mobilidade aberla a uma imoblidade aberta, A contemplacdo conduz & ago que conduz a uma nova contem- plagio. Diante do espectador, 0 nao-objeto apre~ senta-se como inconcluso ¢ Ihe oferece os meios de ser concluido. O espectador age, mas 0 tempo de sua agdo nao flu, nao transcende a obra, néo se perde além dela: incorpora-se a ela, e dura. A acdo no consome a obra, mas a enriquece: depois da agdo, a obra é mais que antes ~ @ essa segunda contemplag&o ja contém, além da forma vista pela primeira vez, um passado em que o espectador e @ obra se fundiram: ele verteu nela o seu tempo. (0 ndo-objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), nao como testemunha passiva de sua existéncia, mas como a condigdo mesma de seu fazer-se, Sem ele, a obra existe apenas em po- t8ncia, & espera do gesto humano que a atualize.

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