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\ a i O DESIGN BRASILEIRO Be antes do design h - P pagina 7 pagina 20 pagina 60 pagina 96 pagina 124 pigina 160 pagina 197 pagina 233 pagina 260 pagina 296 pagina 339 pagina 342 pagina 351 pagina 356 Pagina 358 Introducdo Rafael Cardoso A circulagdo de imagens no Brasit oitocentista uma historia com marca registrada Livia Lazzaro Rezende Do grafico ao foto-grifico: 4 presenca da fotografia nos impressos Joaquim Marcal Ferreira de Andrade A Maga ¢ a renovacio do design editorial na década de 1920 Aline Haluch J. Carlos, designer Julieta Costa Sobral 0 inicio do design de livros no Brasil Rafael Cardoso Santa Rosa: um designer a servico da literatura Edna Licia Cunha Lima & Marcia Christina Ferreira Ernst Zeuner e a Livraria do Globo Leonardo Menna Barreto Gomes 0s baralhos da Copag entre 1920 e 1960 Priscila Farias Capas de discos: os primeiros anos Egeu Laus Notas Bibliografia indice Sobre os autores Fontes das ilustragdes INTRODUGAO Perdura na consciéncia nacional o mito de que o design brasileiro teve sua génese por volta de 1960. Como todo mito, trata-se de uma falsidade his térica patente. Como todo bom mito de origem, trata-se também de uma verdade profunda, para além dos limites de nossas vas metodologias. © que ocorreu, sem diivida alguma, foi uma ruptura. Para uns, um novo ponto de partida; para outros, um desvio de rumo. Depende do grau de compromisso de cada um com o grande movimento que hoje conhecemos como “moder- nismo”, o qual dominou boa parte da produgio artistica internacional entre as décadas de 1910 e 1960," aproximadamente. Os anos de experimentacao entre a abertura do Instituto de Arte Contemporanea do Masp, em 1951, €a inauguragao da Escola Superior de Desenho Industrial [Esdi], em 1963, mar- cam uma mudanca fundamental de paradigma. Surgiu nessa época no o design propriamente dito - ou seja, as atividades projetuais relacionadas produgio e ao consumo em escala industrial -, mas antes a consciéncia do design como conceito, profissao e ideologia. Alguns considerarao equivocada a aplicagao do termo “design” a qual- quer situacao anterior ao periodo herdico dessa génese. Sem divida, ha certa dose de anacronismo em descrever como “designer” alguém que pro- vavelmente nao reconheceria o sentido da palavra e talvez nem soubesse pronuncid-la. No entanto, os percalgos lingiiisticos sofridos ao longo dos anos por termos como “design”, “desenho industrial”, “programacio visual”, “comunicagio visual” e tantos outros similares nao sio de maior interesse para o presente livro. Para quem se inquieta com tais definigdes, vale lem- brar que o termo “desenho industrial” est em uso corrente no Brasil pelo menos desde a década de 1850, quando a disciplina correspondente a esse nome passou a ser ministrada no curso noturno da Academia Imperial de Belas Artes. £ evidente que naquela época nao se entendia por “desenho industrial” aquilo que atualmente se designa assim, mas a antigilidade des- sa batalha de palavras serve como aviso para quem chega com muitas cer- tezas a discussio. Mais importante ainda, sera que est tao claro o que hoje entendemos por “design”? Uma rapida sondagem das fontes disponiveis deixa a nitida impressio de que existe cada vez menos consenso entre os criadores de definigdes. E imensa a distancia que separa o designer de modas no Sao Paulo Fashion Week do designer de eletrodomésticos na Multibrs ou do designer responsdvel pela elaboracio do site da Globo.com. Em um mundo constituido por redes artificiais de grande complexidade, o design tende a se tornar cada vez mais ubiquo, permeando todas as atividades de todas as pessoas em todos os momentos, e chegando mesmo a desmontar (até certo ponto) a separagao rigida que antes demarcava a fronteira entre produtor € usuario. Design de interfaces, design de sistemas, design de interacdes, gestio do design: novas areas de atuacio que correspondem ao redimensio- namento radical de um conceito cujo sentido esté em constante mutagio ha pelo menos dois séculos. Do ponto de vista da histéria do design, as disputas em torno da apli- cacao do termo interessam mais pelo que revelam sobre as partes contes- tantes do que sobre o sentido da palavra em si. Para os fins da presente discussao, 0 aspecto mais problematico de afirmar o inicio de um design brasileiro por volta de 1960 reside na recusa a reconhecer como design tudo © que veio antes, Ora, é clarissimo ~ e os ensaios contidos neste volume dio provas eloqiientes disto -, que durante os cingiienta a cem anos anterio- res a tal data eram exercidas entre nés atividades projetuais com alto grau de complexidade conceitual, sofisticagao tecnolégica e enorme valor eco- némico, aplicadas a fabricagao, a distribuigdo e ao consumo de produtos industriais. Isso é verdade tanto para a drea tradicionalmente chamada de “design de produto” quanto para a area gréfica, embora as evidéncias conhe- cidas até agora apontem para uma evolucao mais répida e mais impactante da produgao industrial de impressos nesse periodo. Se entre 1870 € 1960 existiram no Brasil atividades correspondentes Aquilo que hoje entendemos como design, qual o sentido de negar-Ihes 0 epiteto? Muito, e nenhum. Depende do contexto da discussao. Soa intencio- nalmente provocativa uma formulagio do género: “Eliseu Visconti, desig- ner”, visto que o préprio nao se reconheceria nessa designacio e que o uso retroativo do termo corre o risco de encobrir diferengas significa entre o tipo de atividade projetual que Visconti chegou a exercer na area de ceramica, por exemplo, ¢ aquela hoje exercida por um designer na mesma industria, Sem diivida, esse tipo de transposicao do presente para o passado suscita problemas de método para o historiador, mas sua relevancia reside no modo em que nos obriga a reavaliar nossos pressupostos. Se fossemos rigorosos, seriamos obrigados também a negar 0 titulo de “designer” a uma série de profissionais ativos apés 1960 que o senso comum modernista reco- os e baluartes da profissio. Em contrapartida, ha algo de perverso ~ para nao dizer, pernéstico - em afirmar que as atividades de um Santa Rosa ou um J. Carlos ndo compartilham o mesmo universo his- térico do design moderno ao qual pertencem Alexandre Wollner ou Alof- sio Magalhdes, quando uns e outros se enquadram em todos os quesitos daquilo que entendemos como projeto grifico industrial, variando entre si apenas em termos estilisticos ¢ de insergdo social. Mesmo havendo alguma disparidade entre as épocas de rencas tendem a se apagar com a passagem do tempo, fazendo ressaltar as semelhancas que os unem mais do que as questitinculas que os separaram na inevitdvel troca de guarda entre geracées. Afirmar que Aloisio foi desig- ner e que Santa Rosa nao 0 foi revela um pouco do preconceito que ainda rege esse campo profissional no Brasil e, em tiltima instancia, depde mais contra os donos do poder no meio do design do que contra Santa Rosa, cuja genialidade como projetista ninguém mais coloca em questo. Quem se arvora, portanto, a legislar terminantemente sobre quem é ou nao designer no Brasil? Se nem o poder pubblico, tradicionalmente autorita- rio, logrou arbitrar a questao por meio da famigerada regulamentagio da profissdo, nao serao os ide6logos remanescentes do modernismo, advogando em causa prépria, que o fardo. Em tiltima andlise, quem determina o sentido que se dé aos termos é a propria construgio da sua historia, feita necessaria- mente a posteriori, Como toda palavra cuja aplicagao envolve qualquer ques- to concreta de poder ou prestigio, “design” é um sitio discursivo cuja posse é disputada por diversos agrupamentos sociais ¢ agentes culturais, O valor comercial de expressdes como “design moderno”, “design de interiores” ou “design italiano” e seu uso na publicidade, bem como a proliferacio de titulos fantasiosos como web designer e hair designer, dao um indicio do grau de ani- nhece como pion uacio dos profissionais citados, as dife- mosidade que essa disputa é capaz de gerar, sobretudlo entre os que se consi- deram detentores morais dos valores da profissdo, como € 0 caso de algumas faculdades, associagées de classe ¢ outras agremiagées institucionais. E dessa disputa que surge a ambigitidade proposital do titulo deste livro: 0 design brasileiro antes do design. O paradoxo é apenas aparente. Pretende-se afirmar duas coisas que parecem contraditérias a primeira vista, mas que no fundo nao o sao, Primeiramente, e mais ébvio, afirma-se que houve sim uma ruptura por volta de 1960 ¢ que esta inaugurou um novo paradigma de ensino e de exercicio da profissio, o qual corresponde hoje aquilo que enten- demos por design neste pais, Trata-se de um design de matriz nitidamente modernista, filiado diretamente ao longo processo de institucionalizagio das vanguardas artisticas histéricas, que ocorteu entre as décadas de 1930 € 1960 em escala mundial, de inicio como afirmacao da luta antifascista na Europa e posteriormente como extensio do modelo hegeménico de corpo- rativismo multinacional apés a Segunda Guerra. Em retrospecto, fica claro que a implantacao no Brasil de uma ideologia do design moderno, entre 0 final da década de 1950 ¢ 0 inicio da de 1960 - em grande parte, patrocina- da pelo poder piiblico -, coincide com e integra o esforco maior para inserir © pais no novo sistema econdmico mundial negociado em Bretton Woods. © Brasil moderno de Gettilio e da Petrobras, de Jk e Brasilia, de Assis Cha- teaubriand e do Masp, de Carlos Lacerda e da Esdi pretendia-se um novo modelo de pais - aquele “do futuro” -, concluindo a ruptura com 0 passado arcaico e escravocrata iniciada pelo pensamento republicano positivista. O titulo afirma, em segundo lugar, que existiu um vasto universo de ati- vidade projetual ligado a produgio industrial ao longo das décadas anterio- res a 1960. Essa proposigio nao exige maior justificagio aqui, uma vez que a prépria leitura dos ensaios que compdem este livro a corrobora sem sombra de diivida, Contudo, cabe ressaltar dois aspectos subjacentes a ela. Primei- ramente, a obviedade da coisa: ¢ incrivel que ainda seja preciso reafirmar, com todas as letras, que a indiistria brasileira existe ha mais de um século € que ela suscitou desafios que tiveram de ser equacionados mediante aquilo que entendemos como projeto, seja este de ordem construtiva/operacional ou comunicacional /identificadora, Avolumam-se 0s estudos demonstrando cabalmente que nao sio novidade no Brasil as questdes ligadas & produgio 10 4 distribuicdo de bens de consumo em escala industrial (Rodrigues, 1973; Hardman & Leonardi, 1982; Suzigan, 1986; Klintowitz, 1988; Accioly et al., 2000]. O continuado desconhecimento do passado industrial anterior a Getti- lio e jx s6 pode ser atribuido a duas causas: a preguica, por parte de alguns, € 0 interesse pessoal, por parte de outros. Quem tem a lucrar com a propo- sigdo, incessantemente reiterada pela midia, de que a industrializacao bra- sileira -e, por extensio, o design brasileiro - teve inicio na década de 1950? Os dividendos politicos ainda hoje colhidos desse mito sugerem que, no caso, a falta de conhecimento do passado é proposital. Se 0 Brasil é notoriamen- te um pais “sem meméria’, isso se deve ao fato de que remexer nos relatos sobre 0 passado costuma incomodar as estruturas de poder vigentes. Ha um segundo aspecto subjacente a aco de afirmar um design brasi- leiro anterior a 1960. Ao enfocarmos solucdes projetuais que nao derivaram ostensivamente de uma matriz estrangeira reconhecida (por exemplo, cons- trutivismo, neoplasticismo, Bauhaus, Ulm), colocamo-nos diante de outras perguntas: de onde surgiram tais projetos e quais as origens das linguagens que conjugam? Nao hd como escapar de uma concluso também bastante evi- dente. Se existiram atividades projetuais em larga escala no Brasil entre 1870 € 1960, € se estas nao tiveram como base uma linha tinica de pensamento, uma determinada doutrina ow estética, entao a produgio que delas resultou é representativa de uma tradicao rica, variada e autenticamente brasileira, que ter assimilado e conciliado uma série de influéncias dispares. Em outras palavras, se existe uma cultura projetiva brasileira anterior a importacao do modelo ulmiano/concreto, esta é, até certo ponto, mais representativa do longo processo histérico de formacio da identidade nacio- nal, o qual data desde o fim do periodo colonial. Afirmagées desse tipo exi- gem esclarecimento, por serem faceis de distorcer para fins polémicos. Nao se estd a dizer de modo algum que o passado remoto seja mais legitimo do que o passado recente. Antes, esté-se a dizer que 0 passado recente deu continuidade ao passado remoto, mesmo existindo momentos de ruptura. Traduzindo a questo para outro registro histérico, diriamos que é preciso conhecer o Império para melhor entender a Reptiblica. Em se tratando de histéria politica, a constatagio é dbvia. Em se tratando de design, o paradig- ma vigente faz supor que a histéria teria comegado, ex nihilo, por volta de u 1960, em funcio da importagdo de um modelo estrangeiro. Ora, isso equi- a dizer que toda a historia brasileira voltou a estaca zero em 1889, ‘ou em 1930, ou em 1964... - como se os golpes fossem capazes de apagar 0s vestigios daquilo que os motivou. O conhecimento do passado projetual anterior a 1960 € o primeiro pas- so para uma melhor compreensio daquilo que pode ser entendido como uma identidade brasileira no campo do design. Para muitos designers, é um valeri pouco aborrecida essa discussio de identidade nacional. O que importa 0 conceito de brasilidade na pratica profissional de um mundo globalizado? A pergunta é valida ¢ o aborrecimento, compreensivel. Todavia, a questao da identidade parece tornar-se cada vez mais premente a medida que as fronteiras vao sendo abolidas pelos avancos das telecomunicacées. Talvez ndo mais a identidade nacional, jé que o Estado-nagao parece estar perden- do importancia nesta época de blocos supranacionais, empresas multina- cionais, organismos internacionais e redes multilaterais, mas identidade de alguma espécie: seja ela regional, comunitaria, étnica, de género, de preferéncia sexual, musical ou visual ou, apenas, individual. Para dar con- sisténcia histérica a essas e outras formas de identidade, faz-se vital debe- lar o minotauro da identidade nacional, ainda tio hegem6nico e restritivo entre nés. Mesmo que apenas para negi-la em seguida, parece necessério conhecer melhor a tal da brasilidade ~ 0 que 6, como funciona, como foi construida, por que e por quem. Na area do design, ainda estamos longe de qualquer consenso sobre o que viria a constituir uma identidade nacional ¢, portanto, mais longe ainda de qualquer possibilidade eficaz de desmisti- fica-la em prol de outras expresses mais relevantes. Nas paginas que seguem sao desvendados, por meio dos discursos pré- prios ao design, diversos aspectos de uma identidade brasileira em cons- trugio. Uma, ou varias, ja que os ensaios aqui apresentados apontam para uma histéria multipla, diversa, rica. Comecando ainda no periodo imperial, 0 artigos de Livia Lazzaro Rezende e Joaquim Margal Ferreira de Andrade revelam a extensao no tempo da tradicdo grifica brasileira. Explorando a conjungio entre técnica e tecnologia, entre priticas comerciais e normas juridicas, 0 texto de Rezende revela como as necessidades de insercao da economia nacional no nascente sistema industrial capitalista estimularam 12 a criacao de novas modalidades de projeto - especialmente, marcas regis- tradas e rétulos comerciais -, promovendo ampla adaptacdo dos cédigos visuais preexistentes. No mesmo sentido, o texto de Andrade aponta para © didlogo entre a mais importante técnica de representagdo gerada na modernidade ~ a fotografia — ¢ a evolucao dos impressos na passagem do século xrx para o xx. Em ambos sobressaem a importancia da tecnologia como um fator condicionante do projeto ¢ 0 papel igualmente vital do pro- jeto como forma de traduzir os avancos tecnolégicos em uma linguagem inteligivel para um ptiblico ainda pouco acostumado a rapidez das trans- formagées em curso. O uso consciente do projeto como meio de conjugar linguagens, redi- recionar informagoes e criar identificagao com o piiblico constitui o mote central dos ensaios de Aline Haluch, Julieta Costa Sobral e Rafael Cardoso Se desde o sécuto x1x ha vestigios de atividades projetuais no Brasil, pode- se dizer que a década de 1920 marca um primeiro ponto do seu amadureci- mento, com o uso mais sistematico do projeto grafico como fator de apelo comercial. Nao ha nada de especialmente surpreendente nessa constatacio, visto que os anos 1920 foram um periodo importante para a consolidacao da industria nacional de modo geral, chegando mesmo a constituir, na opi- nido de alguns historiadores, um surto industrial. 0 design, como nio podia deixar de ser, acompanhou a evolugio da industria. Varios setores indus- triais aproveitaram o contexto da Primeira Guerra Mundial para exportar mais ou para realizar uma efetiva substituicao de importacdes. Foi 0 caso, entre outros, do setor livreiro. O texto “O inicio do design de livros no Bra- sil” examina a situagdo do mercado editorial nessa passagem da década de 1910 para a de 1920, identificando os primérdios do design brasileiro nessa rea. De modo anilogo, o ensaio de Sobral langa um olhar sobre a produ- cio de revistas no mesmo perfodo, destacando a importancia de J. Carlos na profissionalizacdo da atividade de diretor de arte. Sempre lembrado como caricaturista, nosso maior ilustrador teve também atuagao marcante na transformacao do panorama editorial de sua época. Explorando a mesma vertente, o ensaio de Haluch enfoca um caso excepcional entre as revistas ilustradas da década de 1920, demonstrando como o projeto grafico atingiu época um alto grau de amadurecimento e sofisti io. 13 Um livro dedicado a historia do design grafico nao poderia deixar de dedicar atencdo especial ao préprio objeto livro, como suporte de significa- dos visuais. Assim, dois ensaios assumem a tarefa fundamental de resgatar uma porsao negligenciada da histéria da industria editorial, Se um pais é feito de homens e livros, segundo a notéria frase de Monteiro Lobato, nun- ca é demais lembrar que os livros nao podem ser feitos sem 0 trabalho de muitos homens e mulheres. Faz parte da arqueologia aqui empreendida 0 esforco de recuperar as biografias de alguns desses ilustres operdrios edi- toriais. 0 texto de Edna Licia Cunha Lima e Marcia Christina Ferreira vem suprir uma enorme falha em nossa historiografia sobre design ao enfocar a produgio gréfica de um dos maiores projetistas brasileiros de todos os tempos, Tomas Santa Rosa. Mais reconhecido como cenégrafo e artista, nao Testa diivida de que o principal legado de Santa Rosa como criador reside na drea do design grafico. O texto de Leonardo Menna Barreto Gomes visa reconstituir a trajet6ria de uma figura bem mais obscura na historia do design gréfico brasileiro, mas de proporcées igualmente importantes: 0 alemao Ernst Zeuner, responsivel pelas diretrizes projetuais que transfor- maram a Livraria do Globo e a cidade de Porto Alegre em pélos irradiadores de inovacio grafica no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940. A histéria do design deriva de varias vertentes metodolégicas. Baseia- se, principalmente, na historia social voltada para a producio, circulagao e recepcio de bens de consumo, tal como vem sendo praticada desde a déca- da de 1960, primeiramente nos trabalhos fundadores de Eric Hobsbawm, Gareth Stedman Jones ¢ outros autores ligados ao grupo History Workshop ¢, posteriormente, durante as décadas de 1970 e 1980, nas inovadoras pes- quisas em histéria social da arte conduzidas por autores como T.J. Clark, Michael Baxandall, Linda Nochlin ¢ seus muitos sucessores na chamada New Art History. Em se tratando de design, nao ha como negar a importancia da historia da industria e da tecnologia como aporte fundamental para a com- preensao dos processos fabris que condicionam a criagdo. Esse aspecto fica mais do que claro nos trabalhos lapidares de grandes nomes da histéria do design como Adrian Forty, John Heskett e Victor Margolin. Nada disso quer dizer que nessa histéria nao haja também espago para a biografia de grandes vultos, conforme se evidencia no presente volume. 14 Contudo, o enfoque mais preciso da hist6ria do design sempre acaba recaindo sobre os objetos em si - aquilo que podemos chamar de “cultura material” ~, os quais codificam em sua estrutura ¢ aparéncia uma série de informagoes complexas sobre sociedade, tecnologia e criagio individual que precisam ser decodificadas pelo trabalho de investigagao histérica. E é nesse sentido ~ da reconstituicao de dados mais amplos a partir da cultura material - que se desdobram os dois ensaios seguintes. O texto de Priscila Farias enfoca o humilde baralho de cartas, documentando a evolugao dessa industria por meio do caso da empresa Copag, cujos produtos se tornaram to familiares para o piblico brasileiro que costumam ser quase invisiveis como objetos de design e de historia. Trata-se de parte essencial do trabalho de investigacio a ser feito: olhar em volta, pér em questdo a naturalizagio das formas e aparéncias pela sua saturacao e iluminar as relacdes constitui- das na paisagem material que nos cerca. De modo andlogo, o texto de Egeu Laus reconstitui a trajetéria das capas de discos no Brasil até a década de 1950, surpreendendo-nos mais uma vez. com a constatagio de que muito se fez de extraordindrio e inovador em termos projetuais numa época em que supostamente nao havia design por estas paragens. Ao chegarmos a década de 1950, aproximamo-nos novamente do mo- mento de ruptura assinalado no inicio deste texto, Que ruptura foi essa? Para quem e contra quem? Sao questdes que, insepultas, ainda assombram © castelo cinzento da institucionalizagio do design no Brasil. Que a ruptura moderna se deu, esta claro. Com a vantagem de quarenta anos de retrospec- 40, nao nos resta duivida de que deixou marcas duradouras aquela geragdo herdica de arquitetos, designers e assemelhados que incluiu Affonso Eduardo Reidy, Carmem Portinho, Mauricio Roberto, Lina Bo Bardi, Joao Batista Vi- lanova Artigas, Geraldo de Barros, Alexandre Wollner, Aloisio Magathies muitos outros. E, apesar da ruptura, fica igualmente claro que o Brasil ar- caico, contra 0 qual se opunham, persiste. Se o modernismo venceu e 0 de- sign modernista se consagrou, é licito perguntar: por que nao se cumpriu quase nenhuma de suas promessas de campanha? Afinal, a maior acusagio que se pode fazer ao desenvolvimentismo tecnolégico vigente naquele inicio da década de 1960 - que deu origem ao aparato institucional do design no Brasil - resume-se & simples constatacao de que esse campo profissional tem 15, feito muito pouco para alterar as condigoes de vida da maioria da populagao do pais. £ demasiada a cobranga? Pensemos, para efeitos de comparagio, no enorme impacto politico exercido, para o bem ou para o mal, pelos bacharéis em direito no século x1x, pelos engenheiros e médicos sanitaristas no inicio do século xx, pelos arquitetos e urbanistas das décadas de 1950 a 1960. Como reverter esse quadro, jd que é evidente que o design ainda pode fazer muito num pais com extrema caréncia de projetos, de solucées, de planejamento? Correndo assumidamente o risco de advogar em causa pré- pria, ousaria afirmar que um dos caminhos a serem percorridos nessa busca € 0 do autoconhecimento. Enquanto os designers continuarem a desconhe- cer 0 rico € fértil legado histérico de projeto que existe em nossa cultura hd um século ou mais, estario condenados a descobrir a pélvora e a reinventar aroda a cada geracao. Pior que isso, estardo optando por permanecer presos aos limites estreitos da conceituagao da profissdo imposta pela moderni- dade envelhecida de quarenta anos atras, que ainda se manifesta em dico- tomias falsas, tais como forma /fungio, design de produto/design grafico, aparéncia /uso, arte) design, mercado/sociedade. Ou, pior ainda, estarao se sujeitando a infindaveis e macantes debates sobre identidade e brasilida- de conduzidos por tipos curiosos que preferem discutir o design a fazé-lo. A historia do design que se apresenta neste livro debate estéril jo se propée nenhum Antes, pretende oferecer um caminho para aliar a reflexao critica a pritica informada, como sempre deveria ser, ja que todo exercicio de teoria que se preza redunda necessariamente em agio. Antes de encerrar esta Introducio, faz-se necessdria a tarefa pouco agradé- vel de chamar a atengio para ao menos uma deficiéncia do livro que se tem em mios. Muitos leitores sentirdo a falta de ensaios sobre temas essenciais & historia do design grafico no Brasil no periodo sob consideracio. A omis- sio de um estudo sobre a histéria do cartaz e do outdoor, resgatando figuras esquecidas como Ary Fagundes, Geraldo Orthof e Henrique Mirgalowsky é uma falha a ser suprida. Ha ainda uma série de outros assuntos nao explora- dos que clamam pela atengao dos pesquisadores. Paciéncia, nao se pode fazer tudo de uma sé vez. Esses e outros estudos virdo com o tempo, com a evolu- cao da histéria do design como campo de conhecimento. Ainda ha muito 0 que pesquisar. Estamos apenas no inicio de nosso trabalho conjunto. 16 PAO DASSUCAR A CIRCULAGAO DE IMAGENS NO BRASIL OITOCENTIST. UMA HISTORIA COM MARCA REGISTRADA Livia Lazzaro Rezende Em 1875 deu-se inicio a uma nova pratica no Império do Brasil: quem qui- sesse tornar exclusiva a marca de seu produto para distingui-lo dos outros no mercado finalmente poderia ir até a Junta Comercial mais proxima e registra-la como sua propriedade. Para efetivar o registro, o fabricante, comerciante ou seu procurador deviam apresentar duas cépias do desenho da marca ao escrivao da Junta, que, apés cuidar dos tramites burocriticos necessirios, devolvia ao requerente um dos exemplares carimbado como prova do registro. O outro exemplar permanecia de posse da Junta, tam- bém como prova, colado em um de seus livros-registro. © préximo passo seria anunciar publicamente no Didrio Oficial a existéncia da nova marca e a quem ela pertencia. Somente depois desse processo a marca se tornava rio e, como toda e qualquer propriedade privada numa sociedade capitalista, protegida por lei, Quem, por mé-fé, utilizas- se um nome famoso ou uma imagem que nao Ihe pertencesse sofreria as penalidades e multas previstas. As marcas podiam ser apresentadas a Junta de diversas formas. Havia quem apresentasse apenas um rascunho de uma imagem desenhada a mao- livre e havia quem apresentasse uma peca completa: um rétulo com textos informativos, imagens e logotipos impresso pelos meios técnicos disponiveis, como gravura em metal ou litografia. A grande maioria dos registros de mar- a foi, de fato, realizada por meio de rotulos impressos em litografia, os quais permaneceram colados nos livros-registro da Junta (com o nome dos fabri- cantes, dos produtos e dos enderecos comerciais escritos nos mais variados € criativos tipos ¢ ilustrados com as mais diversas imagens), de modo que hoje constituem uma inestimavel coleco da cultura visual do século x1x € um excelente material de investigacdo para aqueles que se interessam por design grafico no Brasil. 20 Essa colegio encerra uma série de questées - como, por exemplo, a pro- tecao da propriedade industrial ou intelectual ~ que podem parecer um tanto ébvias ¢ corriqueiras para o consumidor atual, mas em meados do século xix a sociedade brasileira testemunhava 0 ingresso a légica econdmi- ca capitalista em sua forma plena e com seus sutis paradoxos. Um deles € 0 de tornar de consumo piiblico algo que é privado, fazendo com que perten- aa uma pessoa especifica e tenha sua exclusividade resguardada. Nas paginas que se seguem examinaremos dois lados de uma mesma evidéncia material: 0 do registro de marcas como fendmeno histérico e cultural ¢ o dos rétulos como exemplares da tecnologia grifica e da comu- nicacdo visual existentes no Brasil do século x1x. 0 INicIO Do REG! TRO DE MARG: NO BRASIL Antes da vinda da corte portuguesa para o Brasil, a politica de concessio de privilégios industriais (ou patentes) nao contava com regulamentacio precisa ¢ os direitos eram atribuidos aos inventores por meio de conces- sdes esparsas. Em abril de 1809, um alvard assinado pelo recém-chegado D, Joao v1 fez do Brasil a quinta nacio no mundo a possuir uma legislagao especifica para patentes, vista como um sistema eficaz de protecio para “o progresso da indtistria nacional” |Rodrigues, 1973: 533}.? O alvaré ordena- va que os planos do invento a ser patenteado fossem apresentados a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fabrica e Navegacio para que se julgasse seu teor de novidade e utilidade. Aos inventores bem-sucedidos eram ofe- recidas regalias como isencdo do pagamento de direitos alfandegarios para importar matérias-primas e apoio financeiro na importagio de maquinas. No entanto, mesmo jd possuindo um significativo comércio de exporta- cao, um mercado interno de consumo de bens estabelecido e diversas ins- tituigdes funcionando em toro da regulamentacao da atividade comercial, até 1875 0 Brasil ndo conhecera nenhuma legislagio que previsse um siste- ma de registro e privilégio de nomes ou imagens. Foi por causa de um caso particular de pligio e litigio juridico que o governo atentou para a necessi- dade premente de proteger as marcas comerciais entdo em circulacio. Em 21 1/2 Etapas do processo de registro de marcas: r6tulo com a marca de velas Ro colado no lvro e registros da Junta Comercial acima de su escrigao (1), Recorte 0 Didrio Oficial lencadernada junto & {otha que contém 0 rétulo (2), MARCA HEGISTRADA 1873, a fabricante do rapé baiano Aréa Preta, a Meuron & Cia., mais antiga do pais no ramo, entrou com uma agao judicial contra a firma pernambucana de tabaco Moreira & Cia. por esta ter langado no mercado 0 rapé Aréa Parda, com uma embalagem semelhante a do famoso Aréa Preta. Uma vez. consta- tada a usurpagao da marca original, os sécios franco-baianos conseguiram apreender parte do material pernambucano como evidéncia de mé-fé comer- cial. Como nao havia porém no pais lei que prescrevesse o pligio como crime imputavel, a Meuron & Cia acabou sendo obrigada a pagar os custos do pro- cesso € o prejuizo da concorrente fraudulenta [Cunha Lima, 1998}. Esse incidente nio passou despercebido pela Comissio de Justia Cri- minal da Camara dos Deputados. A partir dele, o Brasil comecou a elaborar a sua primeira legislagao sobre o uso de marcas ~ incluindo nomes ¢ ima- gens -, tendo na figura do deputado mineiro Affonso Celso de Assis Figuei- redo (futuro visconde de Ouro Preto) 0 porta-voz da discussdo. A legislagao que “regula o direito que tem o fabricante e o negociante de marcar os pro- dutos de sua manufatura e de seu comércio” foi aprovada em 23 de outu- bro de 1875, sob 0 Decreto 2.682, seguindo o exemplo da similar lei fran- cesa.* Em seguida, designaram-se juntas e inspetorias do comércio como 0s Grgdos competentes para realizar os registros e depésitos de marcas em todo 0 territério nacional. A internacionalizagao das marcas também estava prevista no Decreto 2.682. Em 1876 foram assinados acordos de protecao miitua com Franca e Bélgica; no ano seguinte, com Alemanha e Italia; em 1878, com Holanda e Estados Unidos; em 1879, com Portugal; e em 1881 Em 1883, sendo signatario da Convencio Internacional com a Dinamare de Paris, o Brasil ja havia firmado acordos com a maioria dos paises com 0s quais mantinha intensa troca comercial. Mas com a Inglaterra, seu prin- cipal fornecedor de produtos industrializados, o pais néo mantinha um acordo restritivo. Accoleta de marcas iniciada pelo Império em 1875 foi suspensa em mea- dos de 1890 por um decreto baixado pelo Governo Provisério republican, que previu outro tipo de registro de patentes e propriedade intelectual. Os livros-registro da Junta Comercial contendo os rétulos litografados foram recolhidos pelo Arquivo Nacional nas primeiras décadas do século xx. Nesse Lp 24 momento, 0s livros perde m 0 seu valor original por nio mais se presta- rem a esfera da comprovagao juridica, mas foram investidos de outro valor: © de patriménio cultural. Atualmente sabemos a localizaco de oito dos varios livros-registro que devem ter sido abertos para o exercicio dessa pri- tica nas juntas e inspetorias Brasil afora. Esses livros, guardados no Arqui- vo Nacional do Rio de Janeiro, possuem mais de mil marcas registradas ao longo de suas paginas e um ntimero um pouco menor de rétulos.* As figuras 1 € 2 nos dio uma idéia de como funcionava o regime de registro e como esses livros foram compostos. 0 rétulo impresso com a marca de velas Rio foi apresentado & Junta no dia 7 de novembro de 1887. Na mesma folha do livro onde foi colado, o funciondrio descrevia o conte- tido do exemplar: ‘A marca supra de propriedade da firma abaixo assinada consiste na palavra ~ R10 -acompanhada de uma estrela como distintivo, na parte superior, e na inferior: Marca Registrada =, £ destinada a especificar o fabrico das velas de céra [2] e composta, sendo estampada em cada vela e nas caixas que as acondicionarem. Depois de depositada na Junta, a marca devia ser publicada no Diario Ofi- cial ou em qualquer jornal de grande circulagdo, acompanhada de um tex- to descritivo, da data e hora do registro e do nome do fabricé inte, entao dono da marca. Depois disso. um recorte do jornal com a publicagio era encadernado junto a folha do livro que continha o respectivo rétulo, finali- zando assim o processo de registro. Uma vez que a posse fosse de conheci- mento publico, qualquer contrafacdo ou uso irregular da marca protegida poderia ser contestado punido. ROTULOS: UMA PEQUENA INDUSTRIA £ UMA GRANDE 1DEIA Em meados do século xix, a produgao de alimentos e de bens de consu- mo simples acompanhou o crescimento urbano ¢ o progresso técnico do setor de transportes, que havia facilitado a circulagio de mercadorias para 25 7 Ke csiil CORD) 1 MA AL. ‘imento industrial brasi- exportacdo e consumo interno. 0 relativo cres leiro foi induzido pela necessidade de produtos basicos, como insumos, maquinaria, pecas e implementos vinculados ao setor agroexportador. O beneficiamento de café ¢ 0 refino de aciicar foram algumas das atividades complementares que estiveram nas origens da indiistria brasileira, assim como produtos associados indtistria de transformacio, tais como sacos de algodiio para farinha e acicar refinado, garrafas de vidro, latas para fos- foros, cigarros, bebidas, alimentos, maquinaria industrial simples como tornos, equipamento téxtil, pequenos motores etc. O desenvolvimento do setor agroexportador nao desestimulou o surgimento do setor industrial no Brasil. Pelo contrario, a formagdo de capital, fundamental para a implantagao da atividade industrial, este- ve intimamente ligada & prosperidade da economia agraria brasileira, Essa afirmacdo esta estampada nos rétulos. A grande maioria anunciava derivados do setor agricola, como tabaco (rapé, fumo ou cigarros) e bebi- das (fermentadas e destiladas, que também eram chamadas de xaropes). Outros setores representados também estavam ligados a producio rural, como 0 alimenticio (especialmente 6leos, banhas e farinha), 0 téxtil (da confeccio de algodao para sacos de alimentos ¢ roupa de escravos) ¢ 0 farmacéutico (produtos de toucador, elixir e tonicos inspirados na flora medicinal brasileira). A propria necessidade de diferenciar um determi- nado produto de seus similares ~ e para tanto tornar exclusives seu nome ¢ imagem e confeccionar rétulos tinicos - conta como forte evidéncia do aumento de ofertas no mercado. A medida que as trocas comerciais multilaterais se intensificavam e os mercados de cada pais se internacionalizavam, construia-se um discurso segundo 0 qual a concorréncia econdémica pacifica e produtiva, empre- endida em ambito industrial e comercial, seria o indice da paz entre os povos. Com isso, o progresso material caberia a todos e por todos deveria ser desfrutado. No entanto, a candidatura do Brasil a participar da repre- sentagio de pais moderno nao se fincava solidamente em seus feitos indus- triais de produgio ou consumo. As tentativas de industrializacao no século xix ndo foram plenamente encorajadas pelo poder piblico. O desenvolvi- 28 mento da produgio em larga escala de bens de consumo nio contou com medidas politicas que tornassem o Brasil um participante ativo das trocas comerciais de produtos industrializados. Apesar disso, sua participacao no sistema econdmico internacional do periodo ja estava consolidada como fornecedor de produtos agricolas ¢ como consumidor dos produtos indus- trializados importados. A sociedade brasileira do periodo dizia-se liberal e progressista, mas encontrava-se paradoxalmente organizada em torno de um sistema forte- mente escravocrata. A abolicao, no final do século, nao foi suficiente para absorver como plenos cidadios aquelas pessoas que até entdo eram trata- das como mercadorias, ¢ as desigualdades sociais s6 tenderam a aumentar. Diante dessa perspectiva, como os conceitos de modernidade foram acomo- dados de maneira a fazer algum sentido para a preciria realidade tropical? Como em um pais ainda fortemente agririo os tragos da cultura européia foram permanentemente representados, reproduzidos ¢ interiorizados? 0 engajamento do Brasil no projeto de modernidade deu-se, antes, no plano do imaginario, ou seja, a apropriagdo dos valores relativos a industrializacao, civilizagao e progresso deu-se na superficie: pelo uso das imagens vinculadas a eles [Hardman, 1988; Mauad, 1997]. Um dos meios nos quais podemos verificar a expresso desses valores ¢ seu impacto na sociedade é aquele das imagens que foram mostradas pelos produtores aos consumidores, isto é, as imagens que circulavam nos rétulos das merca- dorias. Antes de examinarmos diretamente essas pegas graficas oitocen- tistas, porém, cabe fazer uma sucinta passagem pela histéria e particula- ridade da técnica litografica usada para confeccionar a maior parte dos rotulos da colecio. LITOGRAFIA, TECNICA E LINGUAGEM, A ripida disseminacao da técnica litografica foi possivel gracas As obras publicadas pelo préprio inventor, que se propés divulgé-la e explicé-la didaticamente. Alois Senefelder revelou todo o processo litografico em A complete course of lithography, de 1819, e em seguida outros colaboradores 29 €eicAo,14 | __RIODE JANEIRO. (81 promoveram a difusio da litografia publicando seus principios em outras linguas. Tamanha foi a aceitacdo em torno desse invento que, poucos anos depois de seu primeiro antincio, a litografia ja se popularizara e penetrava 9-70). A grande vantagem da litografia em relagao as técnicas de reprodugao cada vez mais no mercado grafico europeu [Marzio, 197: de texto e imagem anteriores esta na possibilidade de criacao do desenho ~ incluindo ai o desenho de letra e textos - imediatamente sobre a matriz a ser impressa, praticamente como se fosse sobre o papel. Na tipografia, 0 texto deve ser composto a partir de tipos de chumbos preexistentes a dia- gramaco das paginas, na maioria das vezes, precisa ser feita 4 parte das imagens utilizadas. J4 na litografia, toda a composicao pode ser imaginada, realizada e impressa simultaneamente, o que promove o imbricamento de texto e desenho, e favorece o tratamento do texto como imagem. Essa téc- nica pode nao ser a mais adequada a publicacao em série de livros e jornais, mas a sua importancia e o seu significado devem ser compreendidos no Ambito dos impressos comerciais ¢ publicitérios realizados no século xix, quando se fez sentir seu impacto revolucionario. 0 rotulo pernambucano do Xarope d’Abacachi € um bom exemplo de como a versatilidade técnica da litografia veio ao encontro das demandas do comércio. As duas versées de texto - uma em portugués, voltada para 0 piiblico interno, ¢ outra em francés, para exportacao ~ podiam ser facil- mente impressas sobre a mesma base, alternando somente a matriz dos escritos, conforme a conveniéncia. Esse rétulo também é um étimo exem- plo de como a cor entrou de vez no aprimoramento da linguagem comer- cial a partir da litografia. O método inicial para impressao litogréfica colorida consistia na justaposigao de blocos de cor com tintas opacas, impossibilitando a gradacio de tons. 0 conhecimento da mistura de tintas ¢ cores oriundo das artes plisticas estimulou os litégrafos a pesquisar outros métodos de superposicao de cores, usando uma gama mais ampla de tintas transparentes ou transhicidas para aplicar sobre a matriz litogré- fica. Em 1837, na Franga, Godefroy Engelmann e seu filho Jean desenvol- veram a técnica que seria mundialmente conhecida como cromolitografia [Marzio, 1979: 6, 17]. 32 ro ap A grande vantagem da cromolitografia est na possibilidade do registro perfeito de cores ¢ na amplitude de gradagGes tonais obtidas mediante a impressao de diversas matrizes para realizar um s6 desenho, Finalmente a porosidade da pedra, que permite a absorcio da tinta gordurosa, passou a ser aproveitada também para a geracao de meios-tons coloridos, a guisa de uma reticula como a que seria desenvolvida posteriormente para a impressao em offset. A riqueza de tons no por-do-sol do rétulo do Xarope d'Abacachi ¢ o tratamento de sombreado por todo o desenho exploram a fundo essa possibilidade. ROTULOS NACIONAIS NUM MERCADO CADA VEZ MAIS INTERNACIONAL De modo geral, arte e comércio caminharam juntos durante 0 século x1x. ‘Tratava-se de uma relago menos apartada. Era um momento no qual as artes ditas eruditas - a dos cdnones literdrios, a da eloqiiéncia e suntuosi- dade da 6pera, a da metiifora alegérica dos mitos classicos, a da arquitetura urbana neoclassica, a da pintura académica ~ influenciavam diretamente, com motivos ¢ como estilo, a produgio de prosaicos impressos comerciais. Deuses greco-romanos, personagens religiosos ou preceitos da linguagem arquiteténica faziam parte do repertério visual ¢ cultural de comerciantes ¢ consumidores brasileiros do século x1x e podiam ser utilizados na com- posicao de um rétulo sem comprometer o entendimento de seu contetido. Apesar desse transito, pecas graficas efémeras como os rétulos foram por muito tempo desconsideradas como objeto de estudo das manifestacdes culturais influentes no gosto da sociedade. Esse veto foi costumeiramente justificado pelo fato de o trabalho grafico no Brasil oitocentista nao ter contado com a figura do designer tal como é conhecida hoje. A produgao de impressos comerciais se deu a partir da gr vura ¢ evoluiu gradativamente da escala artesanal para a industrial. Somen- te com 0 acirramento da divisio do trabalho comecou a se delinear a fun- ao de responsivel pelo projeto do produto e de sua imagem. Antes disso, a tarefa de criar uma imagem para ser veiculada num rétulo podia ficar tanto a cargo de um ilustrador ou de um litégrafo quanto do préprio cliente. Uma P SUPERIOR FUMO DE MINAS“ Inportade do Rie de-claneiro e Garantido por a TOMES ye i. __ARTIGAS i (10) vez que a pedra litogrifica contendo essa criacio fosse entregue a uma casa de estampas, a impressio em quantidade seria realizada. Observe-se que nem sempre as chamadas oficinas litograficas estavam aptas a realizar todo © processo de impressio. Geralmente elas ofereciam o tratamento quimico das pedras e o desenho. As casas que possuiam prensas para tirar em papel o desenho da pedra eram conhecidas por estamparias. Com a consolidagio da litografia como meio de producao de impres- sos ilustrados bons, ripidos e baratos, a demanda por trabalhos aumentou. Para dar conta desse crescimento, a racionalizagdo da produgao se tornou inevitavel. Para que um pedido fosse concluido em tempo habil, as etapas do trabalho foram divididas entre varias pessoas, que ao se concentrarem apenas numa tarefa (pelo menos em tese) executariam-na com maior pre- cisio ¢ rapidez. Em linhas gerais, a divisio de tarefas na oficina obedecia & seguinte ordem: ajudantes e aprendizes cuidavam das pedras, polindo-as e dando os banhos quimicos de preparacio para o desenho ou aplicacdo da tinta; o desenhista, que muitas vezes também era chamado de litégrafo, se responsabilizava pela criacao na pedra; ¢ o impressor operava a prensa, Em alguns casos havia ainda o letrista, prendado na arte de escrever invertido. Numa oficina que praticasse a cromolitografia, 0 cromista era o responsdvel Por separar as cores em diversas pedras, que seriam recombinadas na impres- so conforme a criagio concebida pelo litégrafo [Cunha Lima, 1998: 176-77]. Os termos “desenhista” e “litégrafo” eram largamente utilizados: podiam abranger desde o empregado apenas habilitado na escrita inversa, tipica da litografia, até talentosos artistas e caricaturistas de reconhecimento interna- cional. Por isso, nao podemos ser conclusivos quanto & autoria dos rétulos. Pelo contrario, muitas pessoas estavam envolvidas nesse tipo de criagio, as vezes simultaneamente. No entanto, 0 rétulo da Imperial Fabrica Andalusa de Chocolate a Vapor apresenta uma particular excesao a regra. Assinado pelo famoso caricaturista portugues Rafael Bordallo Pinheiro e impresso na Fran- ¢a, a peca também nos aponta para as sucessivas influéncias estrangeiras que envolveram a consolidacao da atividade grafica no pais (Cardoso, 2004: 44]. A partir do final da década de 1820, litégrafos de diversas nacionalidades comecaram a fixar suas oficinas e a desenhar boa parte da historia grifica 36 i no Brasil, Nesse momento, praticamente inexistia oferta de especialistas. Ao mesmo tempo, a demanda crescia, principalmente em relacao a produgo de efémeros e impressos comerciais. 0 panorama nao mudou muito nas décadas seguintes, uma vez que as instituigdes piiblicas de ensino técnico e artistico nao conseguiam suprir 0 mercado com profissionais num ritmo compativel. Quem chegasse a Corte com conhecimento técnico era logo alvo de disputa entre as oficinas [Costa Ferreira, 1994: 320-28, 342, 353, 366], Esse € um dos motivos pelos quais a presenga do olhar estrangeiro é um tema recorrente na discussao sobre a cultura visual oitocentista brasileira. © que dizer de uma atividade que era majoritariamente exercida por profissionais vindos de fora do pais? A influéncia do olhar europeu na cria- cdo das pecas graficas ¢ inegavel. Vide a construcao da imagem do Xarope d’Abacachi: uma india dubiamente vestida com um drapejado clissico, orna- mentada com braceletes ¢ tornozeleiras metilicos, atipicos aos autéctones brasileiros, inserida numa paisagem tropical idealizada. Idealizagio também presente no rétulo de furmo Ramon Anido, no qual 0 corpo e a pose utilizados para representar a india brasileira pertencem ao mesmo tempo a figuragio humana do repertério classico académico, Mas se o olhar estrangeiro influen- ciou 0 olhar local, redimensionando até mesmo a representacao de nossos indigenas para nés,’ a realidade local também proporcionou novos horizon- tes para a antiga perspectiva européia, Ao falar do material grafico que seria publicado em suas revistas, o litégrafo alemao Max Fleiuss, radicado no Rio de Janeiro, revelou como se imiscuiam os horizontes nacionais e estrangeiros nesse momento: “As gravuras serao de duas classes: as nacionais ¢ as estran- geiras, de modo que pelas primeiras tenha a Europa conhecimento do Brasil, € pelas segundas conheca o Brasil o que ha de mais interessante nas regides de além-mar” fapud Costa Ferreira, 1994: 142-47]. Nao obstante a forte influén- cia estrangeira, 0 ponto de vista nacional estava sendo construido com base em nossas proprias experiéncias e aspiracées. O que dizer do rétulo para tecidos que enaltece a reuniio entre brancos e negros a partir do decreto de uma lei exclamando “Agora sim!”? Nada mais superficial e hipécrita, tipico de uma sociedade que por muito tempo tentou se equilibrar na contradicao de querer ser liberal e moderna sendo de fato escravocrata. 37 NUNCA FALHO H E importante notar a abrangéncia, popularidade e rapidez com que os rétulos podiam circular pela cidade, configurando-se como um meio de comunicagio de idéias. Considerando-se que o indice de alfabetizagio bra- sileiro no final do século xix girava em torno de 16% Ortiz, 1991: 24, 28}, qualquer meio de comunicagao que prescindisse da leitura encontraria maior penetracio ou repercussio do que aquele que dependesse somente da escrita. Além disso, a litografia havia se mostrado o meio mais eficaz ~ veloz e de baixo custo - para a produgao em quantidade de impressos efémeros. E seria uma questio de pouco tempo e aprimoramento técni- co para que esse tipo de producao passasse da escala reduzida da prensa manual para a escala industrial da prensa a vapor, A informacio escrita no canto esquerdo do rétulo da Imperial Fabrica da Candelaria - “Lith, a Vapor” = si liza um novo capitulo na histéria gréfica brasileira. Nao podemos falar em indhistria grafica antes de 1830, quando foram implementadas diversas melhorias mecanicas no processo de tipografia, possibilitando, por exemplo, a tiragem de milhares de copias de um jornal em pouquissimo tempo [Cardoso, 2004: 38-39]. Tampouco podemos falar numa inddstria de imagens antes de 1850, quando as primeiras prensas automatizadas comecaram a tirar litografias. Antes disso eram usadas pren- sas manuais cujo ritmo de impressio de c6pias era relativamente lento e que requeriam muita forga e habilidade do impressor. Por volta de 1840, varios inventores europeus haviam se langado no desenvolvimento de “litografias a vapor”. Inicialmente muitas miquinas se mostraram ineficientes na pratica, e apenas em 1851 a patente franco- austriaca Sigl-Engues obteve sucesso, a ponto de ser exportada para paises como os Estados Unidos. Essa maquina operava com entintamento meca- nico, dispositivos de umedecimento do papel e um sistema automatico de alimentacao de papel e remogao das folhas impressas. No entanto, a hist6- ria da invengao da litografia a vapor nao ¢ muito clara. Nos Estados Unidos foram registradas entre 1861 e 1873 mais de vinte patentes de prensas, € varios inventores reclamavam o privilégio da invencao, uso ou promogio de algum tipo de mecanismo movido a vapor [Marzio, 1979: 81-82]. Os dados quantitativos publicados em antincios da prensa a vapor nos dio uma idéia 40 do impacto que essa maquina causou na produgio grafica e, por conseguin- te, na cultura visual do século xix. Enquanto um bom impressor tirava na prensa manual 200 a 250 cépias em doze horas de trabalho (cerca de vinte folhas por hora), havia aniincio que apresentasse uma prensa a vapor capaz de tirar até 1.310 folhas por hora! Mesmo desconsiderando o possivel exa- gero publicitario, os niimeros encontrados no relatério de uma oficina lito- grafica norte-americana de 1877 registram uma produgio que atingia 2.660 c6pias por dia. Isto é, a impressio automatizada proporcionava, no minimo, uma producao dez vezes maior que a do processo manual. A partir da déca da de 1870, com uma produgio capaz de oferecer dez. vezes mais impres- sos ¢ uma demanda capaz de absorvé-los, a producao mundial de imagens se inseriu de vez na era industrial [Marzio, 1979: 80, 87}. 0 Brasil nao ficou atras nas inovagdes tecnolégicas que aceleravam 0 mundo. Uma das pri- meiras oficinas a anunciar a novidade técnica na Corte, em 1872, foi a Pau- lo Robin & Cia., pertencente ao famoso litégrafo francés de mesmo nome. A pequena assinatura no rodapé do rétulo da Imperial Fabrica da Candelaria 18) nos informa que a Litografia Antonio Lobo & Cia. também estava equipada com prensas movidas a vapor ao final da década de 1870. Os anos que vio de 1850 a 1890 compreendem um momento histérico bastante especifico para o estudo da circulacao de imagens. Trata-se de um periodo em que ja havia a mecanizacao dos impressos visuais, mas a impressao de fotografias ainda nao era possivel. Dessa forma, grande parte das imagens criadas e reproduzidas em larga escala vinha da tradi- ao do desenho ¢ era impressa em litografias a vapor. Uma das principais caracteristicas dos impressos desse momento ¢ a profusao de desenhos de letras numa mesma pega. Como ja mencionado, a técnica do desenho sobre a matriz proporciona virtualmente a criagio de qualquer tipografia em qualquer dimensio, diregao ou cor. No rétulo de furmo Ramon Anido os 19 textos foram escritos em diversos estilos tipicos da época: 0 toscano (pre- sente nos dizeres Superior Fumo de Minas, Importado do Rio de janeiro ¢ Garan- tido por, Especiatidade e Rio de Janeiro), o sem-serifa (em Ramon Anido e nos textos laterais) e o tridimensional (em Artigas). Também ficou mais facil aplicar textos em negativo (letra clara sobre fundo escuro), ornamentos eo 41 (19) 81 e molduras em qualquer area da composi¢ao. Nesse exemplo nio encon- tramos textos em movimentos curvos, mas vemos pelo rétulo da Imperial Fabrica Andalusa a facilidade na aplicagao de cor ¢ movimento as letras. © nome da fabrica, além de ter ganhado um tratamento tridimensionali- zado, com 0 contorno acentuado em preto e sombreamento em branco, foi colorido segundo a possibilidade de gradacao tonal tipica da litografia. Podemos ver nas letras que se repetem pequenas modificagSes realizadas em seus desenhos para adapté-las ao movimento dos textos. A primeira a segunda letras “a” de Andalusa guardam as semelhangas que as fazem pertencer 4 mesma familia tipografica, mas a0 mesmo tempo foram dese- nhadas especialmente para a posigao na qual se encontram dentro da composicao. De certa forma, essa flexibilidade do desenho tipografico na litografia a aproxima mais da atual tipografia digital do que de sua versio contemporanea em chumbo. SER MODERNO E PARECER MODERNO Mas nao foram apenas os aspectos técnicos que favoreceram a proliferacdo de letras e ornamentos na composicio litografica. No modelo de sociedade capitalista, especialmente no século x1x, a nogao de progresso e civilidade estava intimamente associada a de abundancia material. Quem tem mais e exibe mai € mais bem-sucedido. 0 tratamento luxuoso em torno do nome do dono da Imperial Fabrica da Candelaria confirma essa proposigao. No geral, os nomes dos fabricantes e das firmas comerciais responsaveis pelos produtos dos rétulos vinham em destaque. Em alguns casos era reservado um tipo cursivo (semelhante a escrita caligrafica) para escrever 0 tal nome, como se ele assinasse e recomendasse 0 produto de préprio punho. Esse tipo de procedimento é usado até hoje quando queremos conferir certa humanida- de ¢ um aspecto testemunhal aos escritos mecanicos. Outra informacio recorrente, que também funcionava como atestado do produto, era a sua proveniéncia, muitas vezes fornecida na integra, por meio do endereco completo do fabricante. Quanto a diagramagio do ende- de acordo com os padrées que regem a sociedade de consumo, reco, alguns rétulos exibem um aspecto peculiar: tal é a preocupagio com 0 que 0 mimero do endereco do estabe- Jecimento comercial aparece duplicado antes e depois do nome da rua. £ 0 que vemos nos rétulos da fibrica de massas M.L.C. Silva Leal & C. ¢ da Impe- rial Fabrica de S. Jodo de Nictheroy, onde o ntimero 63 na coluna de texto a direita s6 aparece repetido por causa da presenca do mesmo 63 abaixo do equilibrio ¢ a simetria da composi escrito Rua da Praia, Essa busca de equilibrio e simetria na disposicao dos elementos havia reinado na linguagem visual estabelecida pela tipografia € pelo estilo neoclassico. No meio litografico também encontramos estru- turas meticulosamente simeétricas, especialmente no trabalho com textos curvos e ntimeros. Outra vez, 0 rétulo da Imperial Fabrica Andalusa vern abrir uma excecdo ao que dizemos. Nao apenas os textos aparecem numa sinuosidade assimétrica e varidvel, como a repeti¢ao do 21 logo apés Rua dos Andradas esta parcialmente encoberta por uma das medalhas, compro- metendo a leitura imediata da informacao. Trata-se de aco deliberada do autor, que pode ser entendida como um desenvolvimento da motivagao original de repetir o niimero para equilibrar uma composigio. Ele consente na repeticao, mas a desvaloriza. Os rétulos apresentam uma concepgio de diagramacio bastante pecu- liar e diferente daquela a qual estamos acostumados hoje. Na maioria das vezes a parte textual recebia muito mais énfase do que as imagens. Fosse pelo espaco que ocupavam na composi¢ao ou pela localizacao central, os nomes do fabricante, do produto, o endereco ou outra informagao escrita tinham posicio privilegiada de leitura sobre o resto. Apesar dessa obser- vacio, seria temerario afirmar que nos rétulos litografados as ilustragdes tivessem uma importancia menor, uma vez que € muito dificil delimitar a fronteira entre texto - com toda a ornamentagio, faixas, sombreados diversidade com que eram aplicados - ¢ imagem. No exemplar da Imperial Fibrica da Candelaria é dificil distinguir o que seriam a imagem da faixa a imagem do nome, até porque ambas esto cuidadosamente integradas no movimento curvo que realizam. A complexidade da diagramacao nao para ai. O texto logo abaixo, Superior Fumo Rio Novo, nao apenas acompanha © movimento anterior como funciona como um contraponto grifico para 45 6! 19} 15 A simetria era um cconviviam simbolos, a A MOVIDA 1 VAPOR A i FAVALL.CSILVA LEAL&CMey 2 ANTONIO 19 J 09) {20 0 desenho do texto JM Lizaur & Cia, emoldurando 0 espaco para a colocacio do brasdo imperial no centro das atengoes. Apesar da liberdade na combinacao de texto ¢ ilustragao, como vimos intensamente explorada nos rétulos do Xarope d’Abacachi e da Imperial Fabri- ca Andalusa, percebemos em alguns exemplares uma certa reserva em dis- por a imagem na composicio. Em diversos casos as imagens so colocadas em janelas, como um recurso de abertura para outro espago. No rétulo do fumo Dare Gaudium essa disposigao é sutil. As figuras do indio, da oca ¢ da plantagao de fumo esto limitadas pelas curvas dos textos acima e abaixo. As bordas difusas no contorno desenham timidamente essa janela para uma outra dimensao narrativa. Jé no exemplo do tabaco A Flor do Fumo, dentro da légica da composigio a janela ganha uma dimensio concreta, uma vez que as figuras femininas podem apoiar-se nela. Isso reflete certa maturidade no trabalho com os elementos e a linguagem grifica disponiveis. Nao é em qual- quer peca grifica que assistimos a um jogo tao intrincado no qual o desenho que se pretende tridimensional - pois as mulheres “apdiam-se” na janela central ~ busca outro espaco, praticamente uma quarta dimensao, ao fazer uso da janela para contar uma cena que ocorre em outro tempo. A mesma situacio se repete de forma bastante sofisticada no rétulo da Imperial Fabrica de S. Jodo de Nictheroy. De fato, esse é um dos mais ricos e bal nao est privilegiada, Quase toda a extensio do papel foi utilizada para dispor a imagem, que por sua vez se divide em dois momentos diferentes € encerra uma série de cédigos graficos elaborados. Se os rétulos podem nos dizer sobre a técnica de produgao de impressos e o desenvolvimento da atividade grafica 4 época, também espelham o que de mais amplo ocorria com a sociedade que os produziu. Em primeiro plano vemos uma cena que se passa na natureza, A esquer- da, um indigena com cocar e colar de penas, mas vestindo um panejamento complexos exemplares da colegio, um dos casos em que a mensagem ver- & moda classica. Ele leva no dorso um cervo abatido e parece ter na cintura a cabeca de outra caca. A mao direita segura o arco, e com a esquerda apéia- se num elemento estranho ao ambiente natural, Seu olhar entretido pela india do outro lado da composigao nao nega contentamento e nos ignora. 48 Esse indio é 0 préprio desenho do bom selvagem, forte, sintonia com a natureza e tira dela 0 seu proveito. Seu corpo é musculoso ¢ bem definido. Corajoso e de bom coracio, nao se rende suscetivel a presenga de uma bela mulher, que Ihe provoca o olhar. A cabega levemente torcida, jogando os cabelos para tras; a postura inclinada sobre a pedra, recostada no mesmo elemento no qual se apéia 0 indio; as pernas cru- zadas; 0 relaxamento do ato de fumar; o seio nu e o olhar levemente alheio compéem perfeitamente a cena do jogo de sedugio, Em termos estilisticos, ambas as figuras esto caracterizadas numa forma hibrida entre o indianis- mo romintico e as representagdes académicas tradicionais [Canclini, 1997]. Enquanto o indio possui mais caracteristicas nativas, a india tem mais que ver com as figuras clissicas ocidentais. A representacio do seio nu, por exemplo, remete ao modelo grego, enfatizado pelo drapejamento cobrindo seu colo e pernas. O corpo, os membros e os tracos faciais também seguem as regras antigas de figuracao. As sandalias de amarrar e 0 colar sofisticado mostram a ligaco dessa india com uma cultura outra que nao a sua. O pré- prio ato de fumar cigarros a coloca a frente de seu tempo. A mulher esta acompanhada por um cio domesticado. Em contraponto com o ambiente paz, que vive em as feras, mas é selvagem, onde sio cacados os animais ferozes que o indio carrega, essa segunda parte da cena se torna o espaco da civilidade. A mulher é o retra- to da india que aceitou os costumes ¢ habitos urbanos, que se veste e se porta como tal, O olhar interessado do indio ¢ a intencao de aproximagao fisica sugerida pela torgao de seu corpo na direcao da india representam 0 selvagem seduzido pe 0 discurso de distingao cultural: as medalhas ganhas em exposicdes nacio- la civilizagao. Outros elementos estao de acordo com nais e internaciona . 0 brasio mondrquico figurando no alto e no centro da composigao ¢ o Imperial no nome. Mas o que de fato arremata essa asso- ciagao ¢ a insergao da janela oval entre o casal A janela ganha um valor tridimensional também pelas sombras que pro- jeta sobre 0 fundo. Dentro dela ¢ apresentada uma cena urbana, centrada no prédio da Imperial Fabrica de S. Jodo de Nictheroy. Alguns elementos que a evocam modernidade e progresso estdo presentes: a alta chamine fabril, joca, © larga construcao de alvenaria no melhor estilo arquitetonico da 49 18 A informagio escrita ‘no canto esquerdo do rétulo ~"Lith Vapor" sinalza um ‘novo capitulo na histéria ‘fica brasileira: a rodugdo passa da escalareduzida da ‘prensa manual para ‘aescala industrial da prensa a vapor. 19 Ainclusdo de ‘elementos simbdticos podia indicar 0 posicionamento politico dofabricante, Neste rétulo, obarretefrigio & ‘uma referéncia clara 30 ‘movimento republicano. Material com direitos autorais movimento de transeuntes ¢ trabalhadores bem-vestidos, 0 calgamento, a rua pavimentada, a auséncia de elementos naturais. A janela, que se abre no meio de uma floresta para um ambiente urbano, narra um aconteci- mento independente da cena principal. No entanto, ela nao é colocada de forma secundaria nem é ignorada pelas figuras humanas. Pelo contrario, 0 homem se apéia nela para ver melhor e se aproximar da mulher, que por sua vez se aproveita para recostar relaxada. A janela é fundamentalmente © elemento de ligacao entre os dois enamorados. Apesar de pertencerem ao mesmo ambiente (a vegetacio por tris das duas figuras mantém a nogio de continuidade espacial) a distancia imposta pelas diferencas culturais (e pela janela) é paradoxalmente minimizada pelo contato realizado pela janela. Ou seja, aquilo que parece separé-los na verdade pode uni-los, Se a civilidade, representada pela cena trazida dentro da janela, uma vez separou 0 casal romantico, ela agora pode ser o espaco dle reencontro. Basta apenas, como sugere a situagio, a adesio do indio. Esse rétulo traz alguns elementos de representagao tipicos do século XIX, que eram muito recorrentes, como as medalhas, o brasio imperial, a figura indigena e o contraste entre a paisagem natural e a construida, Em nenhum exemplar as medalhas de premiagao estao tao presentes quanto no rétulo do Xarope d’Abacachi. Pairam macicas sobre a composicao as quatro medalhas (que, mostradas frente ¢ verso, somam oito faces} com que o pro- duto fora premiado em exposigdes industriais. Esse tipo de mostra, muito popular ao longo do século x1x em ambito nacional e internacional, servia para expor as novidades industriais e comerciais dos mercados ¢ estimular a concorréncia entre produtos, oferecendo premiacao aos melhores. Aqueles que ganhavam medalhas tinham por bem destacé-las em suas embalagens, pois esse tipo de premiagao, além de atestar a qualidade do produto, deno- tava certa aproximacdo ao poder imperial, uma vez que as exposicdes eram amplamente beneficiadas e promovidas pelo imperador [Hardman, 1988: 49-96; Cardoso, 2004: 79-81). 0 uso do Imperial no nome de fabricas ou produtos nao era liberado para qualquer cidadio da Corte. De fato, ele correspondia a um titulo concedido pelo imperador aqueles que Ihe prestassem algum servigo e merecessem 2 52 distingao, Dos rétulos até aqui analisados, trés possuiam o direito de usar ‘© nome, as armas eo brasao imperial: Imperial Fabrica Andalusa de Choco- late a Vapor, Imperial Fabrica da Candelaria e Imperial Fabrica de S. Joao de Nictheroy. Esses elementos nao apenas tornavam especiais o produto e 0 fabricante, mas também revelam de que lado eles estavam no jogo politico citocentista. Se alguns rétulos demonstravam aprego e filiagao ao Império, outros usavam os meios de representagio romanticos, mas com elementos diferentes, para demarcar seus ideais contrarios. Aassinatura da litografia da qual foi tirado 0 rétulo mineiro Dare Gau- dium nao deixa dividas quanto a sua posicio politica. Ele foi impresso na litografia carioca Paulo Robin & Cia, onde também foram tiradas algumas das principais revistas ilustradas que se levantaram contra a escravatura € pelo advento da Reptiblica. Nao seria de espantar, portanto, se descobrisse- mos que algum dos jornalistas ou litégrafos envolvidos numa dessas revis- tas tenha interferido na escolha da imagem e na realizagao dessa peca. O barrete frigio — a boina que aparece no meio de “Marca de Fabrica” ~, por exemplo, era um simbolo havia muito adotado pelo movimento republica- no francés e que reapareceu no Brasil na segunda metade do século x1x com a mesma significagao. O barrete, simbolo da libertacao de situagdes opres- soras, é associado aos habitantes da Frigia, estabelecidos na regiio a noro- este da Asia Menor desde o século x11 a.C., que foram subjugados por diver- sos povos conquistadores. De acordo com o repertorio visual oitocentista, mengio ao barrete como marea da fabrica ja seria suficiente para demarcar de que lado ela estava. Provavelmente pelos mesmos motivos, os apenas a nomes da cidade e da provincia ganharam maior destaque ~ algo compreen- sivel num rétulo que queria se distanciar da Corte de diversos modos. Assim como outros rétulos ¢ pegas visuais desse periodo, 0 Dare Gau- dium explorou a imagem do indio como simbolo das riquezas e da autenti- cidade de nossa terra, nesse caso associando-~ a agricultura do tabaco. As imagens e idéias construidas em torno dos indigenas durante 0 periodo do romantismo brasileiro foram expressas tanto na literatura quanto nas artes plisticas, Em ambos os casos, porém, o indio nao era representado de forma fiel e auténtica. No rétulo Ramon Anido, por exemplo, a india esta 110, 18, 18 53 o PERIGOSS f. 7 protegio de marcas e oferece gratificagdo para quem denunciasse o plégio, 21 Marcas estrangeiras também eram registradas no Brasil ara proteger seu uso Ww representada em sua forma exética: cocar, arco e flecha, penas ¢ adornos pelo corpo e, mesmo com a nudez, numa postura civilizada. A altivez, sem- blante plicido e estatura nobre falam pelo passado orgulhoso ¢ herdico do nativo brasileiro. Qualquer semethanga do cocar envergado com uma coroa nao é mera coincidéncia, uma vez que era conveniente ao Império idealizar o indio como senhor das terras brasileiras no passado e colocar- se como seu natural sucessor. Nesse exemplar € patente a semelhanca fisi- ca do indio alegérico com a raga branca européia: a pele parece clara, as feicdes finas e delicadas. O exotismo exposto é econdmico, expresso mais pelos adornos, plumagens e arco e flecha (desarmado) do que pelas reais diferengas étnicas e culturais. Muitos dos indios brasileiros complementa- vam sua identidade com botoques, alargadores de orelha, argolas, pinturas corporais etc., mas para corresponder ao ideal romantico 0 indio alegori- zado nao deveria exibir nada que chocasse ou contestasse em excesso os padroes estéticos europeus. Enquanto algumas pecas graficas procuravam qualificar a imagem exé- tica do Brasil para o estrangeiro, outras iam diretamente a fonte e traziam as imagens que compunham 0 repertério visual europeu da época. E 0 caso do rétulo da fabrica de massas a vapor M.L.C. Silva Leal & C., com suas figu- ras mitoldgicas e ornamentacao grafica baseada na arquitetnica. A esquer- da esta representada a entidade greco-romana relacionada a agricultura. A foice e o feixe de trigo em sua mio direita simbolizam a boa colheita, ¢ a cornucépia (espécie de chifie espiralado) repleta de flores e frutos a sua esquerda era o simbolo-mor de abundancia no século xix, A direita, Mercu- rio, 0 deus da comunicagao, da velocidade e do comércio, esta representa- do com 0 tradicional capacete alado, 0 caduceu na mao direita, a pedra na esquerda e logo atras a Ancora simbolizando a incursio pelos sete mares. E interessante notar que de todos os mitos e simbolos classicos Merctirio é provavelmente 0 mais recorrente, mesmo quando representado na forma juvenil, como no rétulo A Flor do Fumo. Para um mundo que acelerava seu Passo rumo ao que entendia ser o progresso e a modernidade, nada mais conveniente do que um mito que simbolizasse ao mesmo tempo velocida- de, comércio e expansao. 56 e Retornamos entao ao ponto de partida, quando haviamos dito que projeto de modernidade brasileiro se apoiava sobretudo nas imagens que cram construidas a seu respeito e por ele consumidas. Associar-se a con- ceitos como progresso e civilizacao por meio das imagens, por exemplo, do branco e do negro finalmente se confraternizando, ou de fabricas a vapor e suas incessantes chaminés, ou ainda construindo uma aproximagio entre a condigio tropical do Brasil do Segundo Reinado ¢ o ideal urbano europeu em contraposicao a figura alegorizada do indio ~ todas essas priticas revelavam © esforco de esculpir um retrato de Brasil condizente com 0 imagindrio civi- lizado, uma vez que os indices concretos de industrializacdo, alfabetizacio ou desenvolvimento social ainda nao eram palpaveis. 87 HE ILLUSTRATEp LILLUSTRATION, 12.3 Paginas dos Primeiros periédicos ilustrados com fotogratias. Da ‘esquerda para adirita: The Mustrated London ‘News (1858), ustrite Zeitung e Liustration (1883). DO GRAFICO AO FOTO-GRAFICO: A PRESENGA DA FOTOGRAFIA NOS IMPRESSOS Joaquim Marcal Ferreira de Andrade {A] fotografia, de mera alternativa para a obtengdo ou feitura de imagens de coisas 4 vistas pelos olhos, tornow-se testemuniha ocular das coisas que nossos olhos nunca podem ver diretamente.[..] Néo apenas expandiu a escala de nosso conhecimento visual, mas com a sua reprodugdo na imprensa causou uma completa revolucdo na maneira como utilizamas os nossos ollios e, em especial, nos tipos de coisas que nossas rmentes permitem que nossos olhos nos informen: [Ivins Jr., 1953: 134). 0 velho ~ e ainda insubstituivel - Diciondrio de artes grificas de Frederi- co Porta registra, em sua quase cinqiientendria dltima edigao, noventa e nove verbetes iniciados pelo prefixo “foto”, ao longo de sete paginas. De fotaguatinta até fotozincotipografia, passando pelos verbetes dos prin- cipais processos fotomecanicos e por géneros tais como fotomontagem, fotonovela e fotorreportagem, sdo muitas as palavras que tornam eviden- te a presenca da fotografia no universo das artes grdficas. Seja pelo lado da criacao ou pelo da producio, a histéria das artes graficas pode ser divi- dida em periodos pré e pés-fotogrificos, A presenga da fotografia, através da introdugao da reprodugao fotomecanica em suas diversas variantes, a0 longo da segunda metade do século x1x, trouxe conseqiiéncias profundas ao universo design grifico. A fotografia, por sua vez, deve muito as tradigées graficas preexisten- tes, da velha tipografia a litografia, ainda novidade em meados do século xx. Boa parte dos inventores da fotografia, em suas diversas modalidades, esteve fortemente ligada ao livro e a estampa - ou seja, 4 imagem impres- sa, O francés Nicéphore Niépce, que produziu a primeira imagem estavel e permanente com a utilizago de uma camera obscura, em 1826, iniciou seus experimentos com a litografia, passando em seguida a invengio da heliogra- fia - processo de reprodugio/impressao de imagens que se valia da agao da > luz sobre o betume da Judéia. Daguerre deu seguimento ais investigagdes de Niépce e acabou por inventar o daguerrestipo, processo de imagens meta- licas e Gnicas. Uma série de vistas de diversas localidades do mundo, origi- nalmente produzidas em daguerreotipia, foi logo copiada manualmente na pedra litogréfica e multiplicada na forma de fasciculos, entre 1840 € 1844. pelo editor N.M.P. Lerebours. Hercules Florence - 0 notavel francés radi do na provincia de Sao Carlos (hoje, a cidade de Campinas, sp) que realizou uma descoberta isolada da fotografia em 1833 - desenvolveu também um. processo de reproducdo grafica que denominou poligrafia [Kossoy, 1980a: 24-29]. O préprio Fox Talbot, inventor do negativo fotogrifico, idealizou e produziu aquele que ¢ considerado o primeiro livro fotografico da histéria. ‘Também lancado em fasciculos, entre 1844 e 1846, The pencil of nature foi, segundo 0 historiador Beaumont Newhall, “o primeiro livro ilustrado com fotografias e a primeira produgao em série de fotografias. Sua importancia para a historia da fotografia é compardvel a da Biblia de Gutenberg para a imprensa” [Fox Talbot, 1969: 3]. Apesar dessas conexées, a fotografia demorou a se integrar satisfatoria- mente ao mundo das imagens impressas. Sua simples invencdo nao havia resolvido os problemas de estabilidade e de permanéncia daquelas imagens, que muitas das vezes esmaeciam ou sofriam alteracées cromaticas ao lon- go do tempo. Ademais, havia varios obstaculos 4 sua reprodugio em série. A demanda crescent por imagens incentivou a busca de novos processos que possibilitassem a multiplicagao das fotografias através da impressio. Desde cedo, a imprensa ilustrada passou a se valer de fotografias originais como inspiragio ou modelo para a produgo de sua iconografia. O que se pretendia ~ especialmente no caso da imprensa periédica ~ era dar ainda mais veracidade, mais autenticidade, mais objetividade 4 narrativa visual dos fatos. No entanto, as imagens estampadas cram inevitavelmente altera- das, uma vez que nao havia ainda um processo de reprodugio fotomecinica que fosse técnica e economicamente Foi na década de 1840 que surgiram, na Europa, os primeiros perié- dicos ilustrados com fotografia: The Illustrated London News |Londres, 1842], L'Mlustration (Paris, 1843] e Mlustrirte Zeitung |Leipzig, 1843). Neles, as foto- ‘vel para aquele fim. 61 7 3) conte, Trimestre. «8 Semestre . + Este puff sexquipedal rerve apenas para noticiar ans nossos Ici orbit de boje em diante a Semana iistrads ¢ Ce een ee es sh Tear inant ele en oa ttl, mr Daegu oie aera VISTAS DE PAYSANDU' DEPOIS BA TOMADA DA PRAGA. 4 Sem 17/04/1864. 5] 6 Fotografias da Guerra do Paragual reproduzidas na Semana Hustrade, em 1865, grafias eram estampadas pelo processo de xilografia, depois de terem sido minuciosamente copiadas mao nas matrizes de madeira, que eram entio “abertas” por habeis artesios. Na produgao dessas publicacdes, os textos (tipograficos) e as matrizes xilograficas (denominadas “tacos”) podiam ser montados juntamente na mesma pagina e impressos simultaneamente. Esses novos periddicos ilustrados acabavam de incorporar uma técnica res- gatada e aperfeicoada pelo inglés Thomas Bewick, que jd a vinha aplicando nos livros ilustrados: a xilogravura de madeira de topo (mais dura do que a madeira de fibra), aberta com os finissimos instrumentos da gravura em metal. Jd na década seguinte o processo se aperfeicoou, buscando maximi- zar a fidelidade aos originais e minimizar a interferéncia do estilo indivi- dual dos xilogravadores. Iniciaramse as experiéncias de produgio com matrizes sensibilizadas (com emulsio fotografica) que depois recebiam a projegio do negativo e eram reveladas de modo que a imagem (do préprio original fotogrifico ou do desenho ou “cépia fiel” produzido a partir dele) se tornasse visivel na madeira, servindo de guia para o gravador, que “abria” a matriz. com seus instrumentos de corte. Dependendo de suas dimensées e do prazo disponi- vel para a sua execugao, 0 taco podia ser aberto por um ou mais gravadores = neste ultimo caso, a matriz era dividida e, concluido o trabalho simul- tineo em suas partes, remontada. Foi nessa época que os grandes jornais ilustrados europeus - e logo, também, os norte-americanos - implantaram 0 sistema de galvanoplastia (ou eletrotipia), inventado em 1839, que pos- sibilitava a confeccao de matrizes metalicas mais resistentes a partir dos tacos originais. OS PRIMEIROS IMPRESSOS COM IMAGENS FOTOGRAFICAS NO BRASIL No Brasil também surgiram diversos periédicos cujos editores certamen- te teriam gostado de adotar um procedimento similar. No entanto, a ine- xisténcia de mao-de-obra local qualificada para transpor imagens fotogri- ficas para a matriz xilogréfica retardaria o florescimento de publicacdes em que texto e imagem pudessem dividir a mesma pagina, mediante 7 impressao simulténea. Num primeiro momento, merecem destaque a tipo- grafia do francés Pierre Plancher-Seignot e de seu filho Emile, bem como a Empreza Typographica Dous de Dezembro, fundada em 1850 por Francisco de Paula Brito. 0 francés Victor Frond foi o primeiro, no Brasil, a conceber e realizar uma obra impressa inteiramente ilustrada a partir de fotografias, tiradas por ele em 1858. A parte iconogréfica de seu Brazil pittoresco, ambiciosa obra de divulgacao desenvolvida em conjunto com o escritor Charles Ribeyrolles, a quem encomendou o texto, foi impressa em Paris, nas oficinas da Impri- merie Lemercier ¢ consiste num conjunto de 75 litografias produzidas por artistas france: formam um livro propriamente dito, sendo apresentadas num porta-folio de grande formato, langado em 1861 ¢ que foi encadernado por alguns de seus proprietarios. Embora seja desconhecido o destino da maior parte dos s“a partir” de suas fotografias, No entanto, as imagens nio originais fotogrificos de Frond, o que impede um estudo comparativo, & evidente a interferéncia dos litégrafos parisienses sobre as imagens. Do pon- to de vista do design grafico ~ e, por que nao dizer, da fotografia -, a obra pioneira de Frond nao pode ser considerada um livro fotografico. Foi a partir dos anos 1860 que a fotografia deslanchou no pais, firman- do-se definitivamente ao ser assimilada ¢ consumida pela elite brasileira, concentrada em sua maior parte nas grandes capitais. E foi nessa mesma década que surgiu e se destacou a Semana Illustrada de Henrique Fleiuss, repercutindo a novidade incorporada as suas paginas mediante imagens copiadas de fotografias que buscavam retratar acontecimentos ¢ nio mais apenas localidades ou pessoas, dando assim grande contribuigao a evolugio da narrativa visual em nossa imprensa ilustrada, Natural de Colonia, Ale- manha, o desenhista, gravador e litégrafo Fleiuss chegou ao Brasil em 1858, com 0 objetivo de integrar-se a missao cientifica ditigida pelos naturalistas alemdes Spix e Martius. Em janeiro de 1860, estabelecido juntamente com seu irmao, o litégrafo Carl Fleiuss, e 0 desenhista, pintor e litégrato Carl Linde na firma Fleiuss Irmios & Linde, fundaram 0 Instituto Artistico, prio- ritariamente voltado para a tipografia e a litografia, mas também dedicado a pintura a dleo e em aquarela, 4 fotografia e A xilografia - esta wltima até 65 “s i te Jane © 2 Snide 18. aoe oe ee EE Revista 01/01/1876, c imagens ims Henrique Klum entao quase inexistente no mercado local. A partir de 1863 0 empreen- dimento passou a se chamar Imperial Instituto Artistico, gracas ao titulo honorifico concedido por D. Pedro 1. Segundo Orlando da Costa Ferreira [1994: 185], formaram “a primeira equipe de designers do Brasil”. Fleiuss tinha o evidente propésito de fazer da Semana Mlustrada uma publicagdo nos moldes dos melhores periddicos ilustrados europeus no tocante ao design da pagina, visando a integracao textofimagem. Embora © texto fosse impresso em tipografia, aqui como la, as imagens da Semana Tlustrada eram litogréficas, sendo impressas separadamente. O caminho para alcangar seus objetivos passava obrigatoriamente pela formacio de mio-de-obra para os trabalhos com a xilogravura de topo no Rio de Janeiro, de modo a viabilizar a composigio e impressio dos blocos de texto e das imagens numa mesma pagina, simultaneamente, pelo processo tipografi- co. A convocagio foi feita nas paginas de seu jornal: “Tendo a intengao de estabelecer uma escola de gravura em madeira (xilografia) em maior escala, participamos aos pais, que quiserem mandar educar seus filhos neste ramo da arte, ainda pouco conhecido no Brasil”, Lamentavelmente, Fleiuss nio obteve sucesso em sua empreitada educacional, abandonada algum tem- po depois em face dos resultados pifios, como se pode atestar pelo exame de suas primeiras paginas xilogrificas, na edicio de 17 de abril de 1864. Assim, nao vingou o projeto de transformar a Semana Iilustrada no primei- ro periédico ilustrado local onde haveria uma completa integracdo entre texto tipogra impressa em litografia Iniciada a Guerra do Paraguai, em 1865, algumas fotografias do confli- to comecaram a ser estampadas na imprensa brasileira, inicialmente nos suplementos ilustrados e depois nas paginas da Semana Iilustrada,’ Ressalte- se que a preocupacao em nao mostrar qualquer cena de guerra que cho- casse foi uma constante na cobertura fotografica de Fleiuss. Na edicao de 2 de abril daquele ano o editor avisava aos assinantes que “uma comissio de engenheiros da forca expediciondria de Mato Grosso, que segue hoje para essa provincia, estudou em nossa casa a fotografia e levou uma maquina € as necessarias preparagoes a fim de tirar vistas ¢ tudo 0 que possa haver ico e imagens xilograficas. Na seqtiéncia, a capa voltou a ser 68 de interessante, para junto com as necessarias descrigdes ser publicado na Semana”. Comecava entio o primeiro grande esforco de reportagem fato- grifica na imprensa periddica brasileira |Andrade, 2004} Voltando aos livros, falemos do alemao Revert Henrique Klumb, que obteve sua instrucio em fotografia na Franca e chegou ao Brasil entre 1852 € 1853, tendo realizado uma obra digna de mengio. Depois de trabalhar por mais de uma década no Rio de Janeiro, onde foi sécio do litografo e impressor Paul Théodore Robin ~ um dos introdutores dos processos foto- mecanicos no Rio de Janeiro -, mudou-se para Petrépolis. Klumb foi um fia € & denominada “fotografia de reproducao”, como anunciado no Jornal do Commercio, em 1855: “reproducao de pinturas, gravuras, plantas de arquite- tura ete.” [apud Kossoy, 2002: 189, 192]. Entre suas mais importantes reali- zacdes, produziu, em 1872, a pequena e célebre obra Doze horas em diligencia: guia do viajante de Petrépolis a Juiz de Fora, 4 época um dos raros livros com imagens realizadas “a partir” de fotografias (de sua autoria). Trata-se da primeira obra do género inteiramente produzida no Brasil, com imagens constituidas por cépias litograficas (encartadas no texto), impressas no dos primeiros profissionais a se dedicar no Brasil ao ensino da fotogr: estabelecimento do editor J. J. Costa Pereira Braga, localizado no centro do Rio de Janeiro, No preficio, Klumb reivindica o seu pioneirismo ao afirmar que 0 livro, conchuido onze anos apés a idéia | ilustrado de desenhos copiados da fotografia”. Segundo Pedro Vasquez {1997: 21], trata-se de “um dos marcos maiores da histdria da fotografia no Brasil” nicial, era “o primeiro guia do viajante, feito no pais A IMPRENSA PERIODICA NA DECADA DE 1870 Do ponto de vista do design grifico, o ano de 1876 é sem diivida 0 mais marcante da historia da imprensa ilustrada do Rio de Janeiro no século xix: alguns periédicos sairam de circulacio e outros tantos foram estabeleci- dos, consolidando 0 modelo ja consagrado localmente dos periédicos com imagens litografadas. O maior exemplo é sem duvida o de Angelo Agostini, que langava em 1° de janeiro de 1876 a sua Revista illustrada, “a maior de 69 7 9Capa do primeiro rimero da luxuosa revista Mustragio Brazil, mostrando retrato da princesa Isabel, do conde Eu € do fio do casal, 0 principe do Gra0-Para, Julho de 1876. 10 Capa de outubro de 1878. i peti if fi 3 EEG a nal ie eal Arora a aso 35 ron ame tied saan seri tera a= ie ein, uk i ME nowy DE EARVALND, i i Sddbc]] AE: (ee iain joa otpenenn ann infer sce yemnnes a ‘sotiee rates gene Mo mie eat 'O-Coanlbalre Leona de Carvali uases 418 de! hens ments al at a 10 todas as revistas brasileiras de imagens do século passado” [Costa Ferrei- ra, 1994: 400]. Embora Nelson Werneck Sodré |1983: 203] considere Agos- tini um “precursor da fotografia’, parece-nos que esse titulo caberia com mais justeza a Fleiuss, até mesmo porque a Revista Ilustrada, cujas imagens eram impressas em litografia, apenas esporadicamente deu espaco desta- cado & fotografia Em julho de 1876 surgiu a luxuosa Mustragio do Brazil, publicacdo ini cialmente bimensal langada por Charles F. de Vivaldi. Na capa do primeiro numero, um retrato de “Suas Altezas Imperiaes do Brazil” ~a princesa Isabel, © conde d’Eu e seu filho, o principe do Grio-Pard. Trata-se com certeza de uma imagem hibrida, inspirada num retrato fotografico da princesa com seu filho ¢ noutro do conde d’Eu, ambos provavelmente oriundos dos estiidios de Henschel & Benque, fornecedores de imagens fotograficas para 0 perié- dico de Vivaldi, A matriz metalica (um estereotipo) usada para a impressio do retrato foi produzida nos Estados Unidos, pela firma Centenari Inc. As legendas que acompanhavam as imagens procuravam fazer 0s leitores ver ali tudo aquilo que o editor desejava transmitir - e sem qualquer meno ao fato de se tratar de cépia de fotografias, Essa pratica de “leitura induzida da imagem’, alias de extrema valorizacao da estampa, se tornaria comum na Mllustracdo do Brazil. A contribuicao de Vivaldi para o desenvolvimento da imprensa ilustrada no Rio de Janeiro esta no modelo alternative que ado- tou para tentar superar as deficiéncias técnicas do meio na época. Além de encomendar matrizes originais estereotipadas nos Estados Unidos, adquiria, para reimpressio, chapas ja utilizadas cujos assuntos seriam do interesse dos brasileiros, providenciando a traducio ou redacao dos textos por aqui. 0 editor certamente encontrava dificuldades para assegurar a viabili- dade comercial de seu ousado e original empreendimento, o que o levou a alongar a periodicidade da publicacao (tornada mensal) e a reduzir-Ihe © preco, esperando assim decuplicar 0 nimero de assinantes. Vivaldi ndo abandonou a ousadia, como se Ié na edicao de outubro de 1878: A linda gravura, que orna a primeira pagina do nosso jornal é, se nao nos enganamos, o primeiro retrato gravado em madeira no Brasil. ste primoroso 72 0 DESIGN GRAFICO BRASILEIRO: ANOS 1960 Chico Homem de Melo (org.)

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