Você está na página 1de 10
ISSN 1415-4498 NUSCRITICA ea & Liye REVISTA DE CRITICA GENETICA Ié Centre de Documentation du Cours de Langue et littérature Francaise WAN USCRITICA @ Revisra DE Critica GENETICA Viroria, ES — DEzEMBRO DE 2006 Conselho Editorial: ALMUTH GRESILLON AMALIO PINHEIRO JULIO CASTANON RAUL ANTELO ROBERTO BRANDAO WILLI BOLLE YEDDA DIAS LIMA Editoria cientifica: ANGELA GRANDO BEZERRA APARECIDO JOSE CIRILLO MARIA REGINA RODRIGUES MARIA GORETE DADALTO GONCALVES: FERNANDO AUGUSTO DOS SANTOS NETO Diretoria Editorial: APARECIDO JOSE CIRILLO Projeto Grafico: LUCIANO ALVES PORTELA VITOR CAMPOS LOUZADA Hustrago Capa: ATILIO COLNAGO SUMARIO 1. Como entender os processos de criaglo vinte anos depois - Philippe Willemart. 9 2. Lecture macro, lecture micro du processus d’écriture_Reéfiexions sur la performativité 22, 36 du détail en critique génétique - Irene Fenoglio.. 3.C1 -a de Proceso - Cecilia Salles. 4, Signo e significagao: Pensamento diagramitico ¢ leis de formagao - Daniel Ribeiro Cardo- so, Al 5. Informagao Estética: Processos de Construgao de Formas na Criagao - Edina Regina P. Panichi. WAT 6. Breviirio das terras do brasil: uma aventura nos tempos da inquisigdo e os varios cami- nhos que os manuscritos nos proporcionam - Isabel Cristina Farias de Lima. 52 7. A Comunidade do Arco-fris: a Génese de um Possivel Novo Mundo - Mara Litcia Bar- bosa Da Silva, 56 8. A presenga de Joao Cabral de Melo Neto ¢ Murilo Mendes em Acervos de escritores es- panhéis - Ricardo Souza De Carvalho. 61 9. Mario de Andrade: epistolografia e processos de criagio - Marcos Antonio de Moraes. 65 am 10. Poética do processo - Roberto de Oliveira Brandio.. II, Estética da Criagdo: a génese de Vidas Secas, de Graciliano Ramos - Vanda Cunha Albieri Nery. 12. O territério do caderno de criagao - Lais Guaraldo.. 13. O cédice 367 (320) da Biblioteca Nacional de Lisboa - Carlos Eduardo Mendes de Moraes., 88 14, Acervos de autores e projetos de edigdo critica: Os casos de Fernando Pessoa e Ega de Queirés - Ceila Ferreira Martins 94 15, Ficgdo e Imprensa no Brasil: os Processos de Criagdo de Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo ¢ José de Alencar - José Alcides Ribeiro... 16. Machado de Assis ¢ 0 Corpus flaubertianum - Verénica Galindez Jorge. eel 16 17, Revisitando a aquisigao de segunda lingua: inglés - Ana Blisa Machado Cysne eevee 18. © portugués do romance de Gabriel Garcia Marques Meméria de minhas putas tristes. - Marie-Héléne Paret Passos..... adugdo literdria e critica genética: Estudo genético do prototexto da tradugao para 19. Drummond e 0 Arquivo-Museu de Literatura - Eliane Vasconcellos. 20. Arquivos de escritores: as tramas no Arquivo Mario de Andrade - Marcia Regina Jaschke Machado. 138 21, Método Van Gogh de formagao em artes visuais - Edson P. Pfittzenreuter... 143, 22. Um dialogo com as cartas de Vincent Van Gogh - A partir do livro Vincent Van Gogh: cartas a Théo - Maria Paula Palhares Fernandes... 150 23, Italo Calvino: reflexdes sobre processo de criago - Maria Silvia Bigareli. 161 24, A Poética de Norma Grinberg: O Arco do Desejo - Sylvia R. Fernandes.....cunnnl66 25. Construgio metodolégica na pesquisa em Educagdo: contribuigdes da Critica Genética - Ronaldo Alexandre de Oliveira e Silvia Regina Ribeito..... 171 26. Processos de escritura na escola: breve panorama de alguns estudos franceses ¢ brasi- leiros - Valquiria C. M. Borba ¢ Eduardo Calil.. selTT 27. Desdobrando as Fungdes dos Documentos de Processo: uma Anilise nas Artes Visuais ~ Aparecido José Cirillo. 185 28. Problemas de transcri¢éo na Missa no. 7 de Francisco Mignone - Carlos Alberto Figueiredo., 193 29. Proceso de criagao: dialogo com a cultura - Cristiane Miryam Drumond de Brito 199 30. Espagos de criagiio de duas ceramistas brasileiras - Maria Regina Rodrigues..........206 31. Acaso como tendéncia: 0 projeto pogtico de Milton Montenegro - Maria Gorete Dadalto Gongalves. oe 21S 32, Edigdo Critica da Poesia Completa de Liicio Cardoso - Esio Macedo Ribeiro.....-225 33. A poesia machadiana: versdes, tradugdes, revisdes ¢ didlogos ~ uma musa de roupas embebidas - Francine Fernandes Weiss Ricieti...... 31 34. O fazer naturalista em 0 mulato, de Alufsio Azevedo - Laura Camilo dos Santos Cruz. 237 35. Perspectivas sobre a génese de Casa de pensao - Marizete Liamar Grando. 244 36. A escrita literdria é sempre uti pratica critica, Mas critica do qué? Do proceso - Claudia Amigo Pino. 249 37. O proceso telejornalistico na edigao - Aline Grego.. 259 38. A Critica Genética na Propaganda - Prof. Joao Vicente Cegato Bertomeu.... 268 277 86 41. A condicdo fotogrifica da arte contemporanea - génese ¢ 0 processo de criagao - 287 42. O processo de criagao de Cidade de Deus - Keila Prado da Costa. 289 39. O Processo de Criagdo e Produgao em Os Simpsons - Profa. Chantal Herskovic. 40. O Caderno Rosa de Hilda Hilst - Cristiane Grando, Evandro de Freitas Gauna.. 43, Generalizagdes sobre 0 proceso criativo servindo como suporte no caminhar de uma 290 essuais na miisica de HJ. Koellreutter.......295 oficina terapéutica ocupacional com psicdticos .. 44, Disciplina ¢ liberdade: leituras pro: ‘Manuscritica w.° 14 65 9, MARIO DE ANDRADE: EPISTOLOGRAFIA E PROCESSOS DE CRIAGAO Marcos ANTONIO DE Moraes USP . 3 xo extética”™! “Faz uns dois anos ou pouco me apaixonei pelo fendmeno da criagio estética”™”™, escteve Mario de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, em 24 de agosto de 1944. Essa afirmac&o brotava como desdobramento de uma carta anterior, de 23 de julho, na qual Mario desctevia a génese de “Num filme de B. de Mille”, versos des- tinados ao Lira paulistana, livro que marcava para ele uma “fase nova e combativa” ® © mergulho nas complexas engtenagens do texto literati definia o retrato de um tempo de ebuligao lirica (a “louca”), no qual — confidenciava o escritor— pudera, em uma s6 semana, escrever 16 poemas, a partir da descoberta de algumas notas toma- das em 1936, em um caderninho de bolso. A singularidade dessas duas cartas e de uma outra, enderegada ao entio jovem jornalista Carlos Lacerda, em 1944, em que Mario procura descortinar as engrena- gens liricas de “O Carro da Miséria”, sitaa-se na proposigiio de uma reflexividade sobre o proprio ato de criar, em sua dimensio multiffria, “Principiei dando atengio mais cuidadosa aos meus processos de criagiio. Nao pra modificar cois’a nenhuma, nio por reconhecer a menor insinceridade nos meus processos de criagdo, mas pra vetificd-los”*. Nesse sentido, o discurso epistolar de Mario de Andrade passava a acolher, para além das pegadas da criacio, o olhar sobre o proprio processo. Pre- tendo, assim, aprender na correspondéncia do escritor modernista a especificidade dessas duas vertentes, tendo como horizonte interpretativo os “arquivos da criagio” da Critica Genética, LABORATORIO DA CRIAGAO ‘A correspondéncia de escritores abre-se, normalmente, para trés grandes pers pectivas de exploracio. Pode-se, inicialmente, recuperar na carta a expressio tes. temunhal que define um perfil biogréfico. Confidéncias e impressées espalhadas pela correspondéncia de um escritor evidenciam uma psicologia singular que, even- tualmente, desdobra-se na criagio literdria. Uma segunda possibilidade de estudo do género epistolar procura jogar luz sobre a movimentagdo nos bastidores da vida literaria. Nesse sentido, as estratégias de divulgagio de um projeto artistico, as dis- sensdes nos grupos ¢ os comentarios sobre a produgio literdria e artistica contempo- rineas aos didlogos contribuem para que se possa compreender que a cena literaria (livros, periddicos ¢ altercagdes publicas) tem raizes profundas nos “bastidores”, onde situam-se as linhas de forca do movimento. O terceito viés interpretativo, de maior interesse nesta mesa-redonda, vé o género epistolar como “laboratério de ctiagio”, capaz de documentar a génese ¢ as diversas etapas de elaboragio de um 66 Mawuscritica w.° 14 texto literdrio, desde 0 embritio do projeto até o debate sobre a recepgio critica da obra, favorecendo, muitas vezes, uma reelaboragao desse texto. A carta, nesse senti- do, ocupa o estatuto de crdnica do texto literério. A critica genética, a0 considerar a epistolografia um “canteiro de obras”, busca captar 0 desenho de um ideal estético, quando examina a logica dos processos da ctiacio a partir de elementos caoticamen- te dispersos na correspondéncia de um escritor. Esse campo fértil de pesquisa pata diversas areas do conhecimento esconde con- tudo, armadilhas, para as quais 0 estudioso da epistolografia deve estar sempre aten- to. Afinal, é preciso considerar preliminarmente que a carta propicia a formulacio de personae, pois o sujeito molda-se como “personagem” em face do interlocutor. Essa invengio de si (mise-en-scéne), da qual o remetente pode ter maior ou menor grau de consciéncia, forja sempre estratégias de seducio. Tornando ainda mais com- plexa a natureza do género epistolografico, deve-se considerar que a carta encontra- se ancorada em um ponto da trajet6ria de vida do sujeito, Em vista disso, uma idéia solidamente defendida em certo momento podera ser reformulada ao longo da cor- respondéncia, modificando-se até atingir propésito diametralmente oposto. Nesse ambiente movedigo, a verdade que a carta eventualmente contém — a do sujeito em determinada instincia, premido por intengdes e desejos — é datada, cambiante prenhe de idiossincrasias. ‘A epistolografia aponta, ainda, para a instabilidade da nogao de autoria no terreno da criagao artistica. A correspondéncia, ao se tornar 0 espaco de exposicao da expe- rigncia literdria, abre-se para a colaboragio de um interlocutor, algado, muitas vezes, ao lugar de alter ego. Mostrar as versdes de um texto in progress significa, de certa forma, a proposicio de um debate, no qual a criacio sera colocada em um campo de provas. Pode também o interlocutor de uma correspondéncia figurar como ter- mémetro do gosto de um piiblico mais amplo, Mario de Andrade, em outubro de 1922, diante de restrigdes feitas por Manuel Bandeira aos seus poemas, prescreve os andaimes que deveriam sustentat a amizade que congregava dois escritores situados no mesmo plano intelectual e artistico: “Para mim a melhor homenagem que se pode fazer a um artista é discutig-Ihe as realizagées, procurar penetrar nelas, ¢ dizer francamente o que se pensa.”" Nesse caso, 0 contrato ostensivo no didlogo epistolar favorecen uma proficua criagio conjunta, Na Correspondéncia Mario de Andrade & ‘Manuel Bandeira, os exemplos de intervengio miitua nas etapas do processo criativo so contundentes, abarcando desde a sugestio de troca de palavras, passando pela proposicao de uma reconstrugao estrutural, como é 0 caso do Macunaima, julgado em certo ponto do entrecho “descosido” por Bandeira, até o apagamento total de um texto, considerada a opiniao inteiramente desfavoravel do interlocutor. Lembro um exemplo curioso de apropriagao literdria, nessa correspondéncia téo rica em si- tuagGes relevantes ao debate da proceso de criagio. Manuel Bandeira, insere nos poema “Camelés” o verso de um poema que Mario decidiu seqiiestrar de uma even- tual publicagao. E pede “licenga para o pligio”: “Me da aquele ‘chi que engracado”?” Mario de Andrade aprova a insercio da frase no poema, desqualificando o sentido estrito de autoria: “O ‘Chi que engracado!’ afinal de contas nao é meu, Manuel. Toda a gente diz isso no Brasil. Eu ja em varios artigos empreguei que engracado [. ‘Camelés’ é uma delicia. Conserva o ‘Chi, que engracado’ que é de toda a gente.” Mawnuscritica n.° 14 . 67 Enquanto expresso de uma histéria do processo criativo, a carta pode revelar matrizes e citcunstancias da escritura, documentar li¢Ges elididas na versio de um texto publicado (e, eventualmente, conter a justificativa das escolhas realizadas), acolher projetos artisticos nascidos ao cotter da pena, mas depois abandonados etc. Esse reservatério de eventos subterraneos ligados 4 cria¢ao funciona como instru- mento acess6rio ao geneticista que se debruca sobre o manuscrito. Afirma José-Luis Diaz em seu “Quelle génétique pour les correspondances?”: “La genése sort alors de la sphére intime, quite son aspect de travail secret et indicible, dont il ne reste @habitude quelques griffures silencicuses, pour accéder A un espace quasi public de dialogue ~ plus ou moins égalitaire...” Com 0 objetivo de perceber melhor as relagdes entre produgio poética e discurso testemunhal vigente na carta, detenho-me, agora, no emparelhamento do poema “Carnaval carioca” com a missiva de Mario a Manuel Bandeira, de fevereito de 1923, na qual encontram-se espelhadas a motivagio e a génese dos versos. A “aventura cutiosissima” do carnaval catioca descrita por Matio nessa catta desenha-se cheia de detalhes, como a narragio de uma experiéncia transformadora na sua percepgio de mundo. Afinal, 0 “cérebro acanhado, bramoso de paulista””, nunca, por mais que desse asas A imaginacZo poderia supor a intensidade encantatéria dos festejos carnavalescos na antiga capital Mario relata linearmente suas impressdes em face da realidade, No sabado, as 13 horas, desemboca na Avenida Central, em pleno Carnaval; primeiro, “o nojo” dian- te do desconhecido, visto como “vulgaridade”. A escrita da carta contamina-se de uma tonalidade inusual, acolhendo vocdbulos de ostensiva raridade imagética, assim como um ritmo marcado: “Acreditei ndo suportar um dia a funganata chula, bunda ¢ tupinamba. Cafraria vilissima, dissaborida, Ultima andlise: ‘Estupide2”. Depois, Mario exprime o esforgo para desvencilhar de seus olhos a aristocratica neblina pau- lista — pressuposto de vida de quem um dia, de tanto ser incompreendido, jurou olhar “sempre as coisas com amor e procurar compreendé-las antes de as julgar”. Nesse ponto, Mario, observando a impetuosa alegria ao seu redor, sintoniza-se com a forca legitima do Carnaval ¢, num salto de trampolim, mergulha no “éxtase” puro: “sem comprar um langa-perfume, uma rodela de confete, um rolo de serpentina, diverti-me 4 noites inteiras ¢ © que dos dias me sobrou do sono merecido”. Essa experiéncia visceral deixaria marcas ne: sujeito aberto para sensages novas e para a criacao literaria. Tudo ia, enfim, sendo captado pela “maquina fotogréfica, antes cinematografica de [seu] subconsciente. De volta a So Paulo, Mario confidencia ao amigo Bandeira, “comesaram a se revelar fotografias e fotografias dentro de mim! Pois nao é que, no écran das folhas brancas, comesou a se desentolar o filme moder- nissimo dum poemal”®* © longo poema “Carnaval catioca”, inserido em 1927, em Cli do Jabuti, nas- ce, assim, como meméria de uma experiéncia pessoal intensa ¢ transformadora. Da vida para a escrita, 0 tecido litico nfo elide os eventos da realidade, coerentemente concatenados ¢ presos as impresses vividas (nojo — desejo de compreensio — alum- bramento), mas hipertrofia as imagens, sonoridades ¢ sensagdes, ingredientes por exceléncia da linguagem poética. Carta ¢ poema traduzem 0 mesmo evento biografico. Idéntica ambiéncia exis 68 Manuscritica n° 14 tencial e coincidéncia vocabular definem nio apenas a contemporaneidade das duas , como também a possibilidade de realizar o transito entre essas duas formas de expresso, pondo em relevo a eventual “literariedade” da carta, “Carnaval... Minha friega de panlista, Policiamentos interiores, Temores daa excepiio.. E 0 excesso goitacé pardo selvagem! Cafrarias desabaladas Ruinas de linhas puras Um negro dois brancos trés mulatos, despudores Mario de Andrade, em uma outra carta, ditigida a Carlos Drummond de Andra- de, em novembro de 1924, também lanca mio desse indelével episédio biografico. Lamentando a erudigao livresca indigesta e 0 ceticismo que notava nos jovens es- critores mineiros, sugere, ento, a Drummond, uma vivéncia mais plena da realida- de brasileira, o que deveria levar em consideragao, inclusive, o prazer de conversar “com a gente chamada baixa e ignorante”. A propria experiéncia carioca do reme- tente e 0 poema que dela resultou vém a tona: “Eu conto no meu ‘Carnaval carioca’ um fato a que assisti em plena Avenida Rio Branco. Uns negros dangando o samba Mas havia uma negra moga que dancava melhor que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas ela era melhor. $6 porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando © povo em volta deles, um automédvel que passava. Ela, nao. Dangava com religiio. Nao olhava pra lado nenhum. Vivia a danga. E era sublime. Este é um caso em que tenho pensado muitas vezes””, No poema, as imagens e 0 ritmo davam forma para a vigorosa impressfo que a sambista negra Ihe causara, dado circunstancial apenas sugerido manifestag6es discursivas decorrentes de uma mesma experiéncia subjetiv: na carta a Manuel Bandeira:, na qual se refere & iluminagio que tivera ao ver uma “ridicula baiana”: “Em baixco do Hotel Avenida em 1923 Na mais pujante civiligagao do Brasil Os negros sambando em cadéncia.' Tao sublime, tao dfrical A mais moga bulcio polido ondulagoes lentas lentamente Com as arrecadas chispando raios glancos ouro na luz peluda de pa. Sé as ancas ventre dissolvendo-se em aivéns de ondas em co. Termina se benzendo religiosa talqualmente num ritual. E o bombo gargathante de tastes apa a graca da danada.” estudioso da literatura ao se debrugar sobre as cattas que historiam o poema “Carnaval catioca” logra apreender, em uma primeira visada, dados circunstanciais ligados ao processo de criagio. Esses elementos fornecem uma chave interpretativa para a percepeao mais acurada do projeto literario do esctitor, na medida que a praxis poética pode ser lida em relacio As intengdes conscientes do escritor. Mario, nas duas missivas citadas, efetivamente, conta-se € conta histéria do poema, assumindo, em sua poética, a importancia da transposigio, em maior ou menor grau, da realidade e da vivéncia subjetiva a ela vinculada para a linguagem poética. Essa perspectiva Manuscritica n.° 14 69 que enlaca vida e arte permite Gilda de Mello ¢ Souza afirmar que “o processo po- ético que caracteriza a obra de maturidade de Mario é misterioso, intencionalmente obliquo e portanto dificil. O pensamento sempre aflora camuflado através de sim- polos, metaforas, substituigdes, ~ expediente impenetravel para quem nao possui um conhecimento mais profundo, tanto da realidade brasileira, como da biografia do esctitor” ”. A constatagio permite a estudiosa da obra de Mario de Andrade propor interpretagdes de grande acuidade critica, pois a chave desse conhecimento estaria na dialética texto-vida, acerbamente demonstrada nas cartas do escritor. O conhecimento das circunstincias da elaboracio da obra literaria no bastam, contudo, ao pesquisador da literatura, nem bastaram a Mario de Andrade. Em ja- neiro de 1942, uma opinido de Henriqueta Lisboa sobre as Poesias (1941) cala fun- do no autor de Macunaima e o faz refletir sobre os eventos que mobilizam a sua ctiagio. Henriqueta vislumbrava “espontaneidade, fatalidade” na escritura lirica de Mario, mesmo quando os versos se tingiam da tons programaticos (“dirigidos”) que sinalizavam o compromisso desse intelectual /artista de intervir nos destinos da sociedade e literatura brasileira, Mario concorda com 0 alvitre, fica “satisfeitamente comovido”. Quer, entio, descobrir o sentido mesmo dessa sinceridade sobre o qual se sobrepunha o desejo de participagao. Mobiliza, ainda, nessa carta, conceitos es- corregadios da criagio, como “estado-de-poesia”: “A maioria dos meus poemas é ‘de meméria’ provocados por experiéncias jé passados e que voltam transformadas em ‘estado de poesia’. Mas também ja fiz muito pocma em que o estado-de-poesia se dava durante a experiéncia” Talvez a primeira tentativa de um exame integral ¢ exaustivo das circunstdncias € dos processos de criagio realizado por Mario possa ser localizada na mencionada carta dirigida a Carlos Lacerda em 5 abril de 1944, na qual o remetente trilha os meandros das etapas da escritura de “O Carro da miséria”. O escritor paulistano empreende a busca dolorida de si no poema escrito “em duas datas pés-revolugio, duas bebedeiras, duas motivagdes psicolégicas idénticas”, revelando que na primeira ocasiao, langara de si uma “escritura... meditinica”, ou seja, livre dos recalques da consciéncia. Ao analisar-se, entra em becos-sem-saida, pois daquele poema escrito em transe, “certas palavras, certos vocativos, por mais que cu me psicanalise, nio consigo descobrir donde vieram”. O olhar sobre os enigmaticos mecanismos da cria~ cio resulta em uma interpretagio conclusiva desoladora: pata o escrito, todos as imagens do poemas serviam para estancat 0 seu desejo mais recéndito de abragar a causa comunista. “Ei esse assunto do poema, que agora vai esclarecer 0 sentido dele todo e de numerosos versos € mesmo partes inteiras dele, é a luta do burgués gos- tos, satisfeito das suas regalias, filho-da-putamente encastoado nas prertogativas da sua clas: a luta do burgués pra abandonar todos os seus preconceitos e praze- res em proveito de uma ideal mais perfeito”. A interpretacio equivale claramente a uma auto-punicio, principalmente quando se pondera que Mario dirige a mensagem aquele que, muitas vezes, exigira dele um posicionamento politico de esquerda mais claro. © gosto de perscrutar-se, a partir da propria producio poética, acentua-se em Mario de Andrade, nos meses subseqiientes & carta a Lacerda. Na seqiiéncia de duas cartas a Drummond, em julho e agosto, analisando “Num filme de B. de Mille” e outros poemas de Lira Paulistana, o esctitor realiza um inventario dos dados pon- deraveis ¢ imponderaveis no processo de criagio. Assim como no “Carnaval cario- 70 Mawuscritica w.° 14 ca”, o missivista recupera eventos circunstanciais que propiciaram o surgimento do assunto poético e de alguns versos, mas se detém com maior interesse nos aspectos impalpaveis da produgao literaria: a possessao lirica ¢ a escritura em proceso. “Eu o tenho, como cettos escritores dizem ter, pelo menos ‘dizem’, um processo tinico de ctiagio artistica. A nfo ser isso: estar fatalizado, ser mandado por qualquer coisa que eu nfo sei bem 0 que é, que independe de mim, que € superior a mim, ¢ me manda, ¢ sou obrigado a obedecer”. Figuram-se igualmente obscuros para Mério os mecanismo de apagamento ligado as rasuras: “As correges, as variantes, tudo isso 6 duma diversidade de aspectos incontrolaveis”. As dificuldades de enfrentar os labirintos proceso nao paralisam o trabalho refle~ xivo do escritor. Pelo contrario, incitam-no, fazendo-o caminhar angustiadamente Nisso, opunha-se frontal- mente 4 Edgar Allan Poe, o qual esbanjava auto-dominio e precisio milimétrica nas escolhas de imagens e de palavras, no relato da escritura de “O corvo”, no co- nhecido “A filosofia da composicio”. Contrapunha-se ainda ao festejado autor de Canad, Graca Aranha, que um dia, segundo Mario, se fizera fotografar para a revista América Brasileira “de pijama, sentado a escrivaninha, pena na mio, espiando o em diregéo do reconhecimento das proprias limitacées. ‘publico’, E vinha uma legenda, afirmando que era Graga Aranha no momento de principiar escrevendo A viagem maravilhosa.” Recusando a idéia de processo de criagio domesticado Mario de Andrade parecia impor a moral do artista verdadeiro: o ser fatalizado, consciente de sua técnica expressiva e insaciavel pelo conhecimento dos subterrineos sie de sua arte. Notas: 61. ANDRADE, Mitio de. A ligio do amigo. Cartas de Mario de Andrade a Carlos Drummond de An- drade. Rio de Jancito, José Olympio, 1982, p. 230. 62. ANDRADE, Matio de. A ligio do amigo. Cartas de Mario de Andrade a Carlos Drummond de Andra- de. Op. cit, carta de 30 jun, 1944, p. 218, 63. ANDRADE, Mario de. A licio do amigo. Cartas de Mirio de Andrade a Carlos Drummond de An. dade. Op. cit, p. 231, 64, ANDRADE, Mario de, BANDEIRA, Manuel. Correspondéacia Mério de Andrade & Manuel Bandei- 1, Sio Paulo, Edusp/IEB, 2000, p. 72 65. ANDRADE, Mario de, BANDEIRA, Manuel. Cortespondéncia Métio de Andrade & Manuel Ban- deira. Op cit. Carta de Manuel Bandeitay?2 dez. 1924, p. 158; carta de Mario de Andrade, ant. 16 dez. 1924, 161 66, DIAZ, José-Las, “Quelle généique pou les correspondances?”, Genesis. Reve internationale de critique génetique, a” 13, Patis, 1999, p14 67, ANDRADE, Mario de, BANDEIRA, Manuel, Correspondéncia Mario de Andrade & Manuel Ban- deira. Op.citp. 84 68. ANDRADE, Métio de, BANDEIRA, Manuel. Corsespondéncia Mério de Andrade & Manuel Bandei- ra, Op.it, trechos da carta de fevercito de 1923, p. 84-5 69, ANDRADE, Mario de. Poesias completas. Edigio critica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1987, p. 163 70. ANDRADE, Mario de. A liso do amigo. Cartas de Mario de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Op. it, p. 5 71. ANDRADE, Mario de. Poesias completas. Edigao exitica de Diléa Zanotto Manfio, Belo Horizonte, Iatiaia/Edusp, 1987, p. 167 72. SOUZA, Gilda de Mello Global, 1988, p. 10. 73, ANDRADE, Mério de, Querida Hentiqueta. Cartas de Mirio de Andrade a Hentiqueta Lisboa, Intro- dusio e notas de Pe. Lauro Pali,Rio de Jancizo, José Olympio, 1990, p. 73. 14, ANDRADE, Maio de. 71 cartas de Mério de Andrade. Coligidas ¢ anotadas pot Lygia Fernandes. Rio de Jancito, Sio José, sd, p. 88. 75. ANDRADE, Mario de. A ligio do amigo. Cartas de Mario de Andrade a Carlos Drummond de Andra de. Op. cit. Teechos localizados nas p. 231-2 resentagio”. Em Melhores poemas. Mario de Andrade. Sio Paulo,

Você também pode gostar