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“Dois amores erigiram duas cidades, Babilônia e Jerusalém : aquela é o amor de si até ao desprezo de Deus ; esta,
o amor de Deus até ao desprezo de si”.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus,
2, L. XIV, XXVIII
Introdução. A moral
A moral é a ciência que deve regrar os costumes: definir a moral é demonstrar-lhe a indispensável necessidade. É
inconteste o reconhecimento dos homens à necessidade da moral. Mas se se trata de descer ao fato, nem todos se põem
de acordo de que ponto a moral deveria tirar sua regra e sanção.
Não obstante, se nos dispomos à reflexão, não é difícil reconhecer que a moral – conjunto de leis que se impõe a toda
humanidade – nada mais é que a expressão da vontade Daquele que criou os homens e outorgou-lhes as leis de
conduta e os meios por que podem alcançar seu fim.
Donde vem que, sem Deus, não há moral digna desse nome.
Ainda assim, homens existem que excogitam inventar uma moral sem Deus; eles a tomaram da natureza, dizem.
Ponhamos a mão na massa. A natureza é boa, pois que saíra das mãos de Deus, e a moral conforme a natureza nada
mais é que a moral conforme a Deus. Todos os verdadeiros filósofos reconhecem que a expressão mais límpida da lei
natural está no Decálogo. Assim, a verdadeira voz da verdadeira natureza não pode ser senão a voz de Deus, ao exarar
os Dez Mandamentos.
A inteligência da natureza leva diretamente a Deus, seu autor.
Contudo, há homens que não querem a Deus, o Decálogo, e ainda assim querem a moral. Onde eles a encontrarão? E,
supondo que a encontrem, como a imbuirão da autoridade e da sanção, duas coisas sem as quais não se poderia ter
moral?
A natureza que recusa a Deus é a natureza decaída: e é nela, natureza decaída, que certos homens de nosso tempo
querem fundamentar a moral. É a moral do interesse, ou do prazer, ou da vaidade: em suma, é o que a revelação designa
sob o nome de a tripla concupiscência; esta, sendo a fórmula das inclinações da natureza decaída, constitui-se para
alguns a regra de dever, a lei moral. Isso é pura e simplesmente a inversão de toda a moral.
Já há muito que nós, cristãos, conhecemos a moral da natureza. Estigmatizara-a o apóstolo São Paulo com estas palavras
enérgicas: “Caminheis no espírito[moral da verdadeira natureza], não vos conformeis aos desejos da carne [moral
da natureza decaída]. A carne tem desejos contrários aos do espírito e o espírito tem-nos contrários aos da
carne”. (Gl 5, 17.)
Um moralista cristão definiu as características das duas morais, em que uma é a claridade, a outra a escuridão; uma o
princípio de todo o progresso e felicidade, a outra o caminho do mal e a ruína neste e no outro mundo. Eis o que disse:
1. A graça (i. é, a verdadeira natureza, restaurada pela
1. A natureza (decaída) tem como fim apenas a si própria graça do Salvador) opera por virtude de Deus, em Quem
repousa seu fim.
2. A natureza não quer ser mortificada, nem vencida, nem 2. A graça suporta a mortificação, resiste à sensualidade,
submetida, nem quer se submeter. não afeta deleitar-se na própria liberdade
3. A natureza trabalha em prol de seu interesse, calcula o 3. A graça não busca a utilidade nem a vantagem
ganho que pode auferir de outrem (Exploração do homem própria, mas sim o que pode ser útil a outrem
pelo homem). (Devotamento ao próximo).
4. A natureza é amiga das honrarias (sobretudo quando se
4. A graça sempre se presta à honra e à glória de Deus
acompanham de agrados).
5. A graça sai em busca do trabalho. (O trabalho
5. A natureza é amiga da ociosidade (um dos mais
realizado conforme a Deus é essencialmente
fecundos princípios da imoralidade).
moralizador).
6. A graça aspira aos bens eternos, não se apega aos
6. A natureza cobiça os bens temporais (como se a
temporais; possui seu tesouro no Céu, onde não há
felicidade estivesse naquela posse).
corrupção (Daí sermos generosos com os pobres).
7. A graça é desinteressada, contenta-se com pouco, e
7. A natureza é avara, e gosta mais de receber do que dar.
julga ser maior felicidade dar a receber.
8. A natureza inclina-se às criaturas, à carne, à vaidade, à 8. A graça conduz a Deus, à virtude, expulsa os desejos
distração. da carne, reprime nossos ímpetos.
Assim falava, no século XIII, o autor de “A Imitação” (L. III, Ch. LIV). A luta da carne e do espírito era-lhe bem
conhecida e, ontem como hoje, existem homens que buscam a lei moral olhando para baixo, enquanto outros, em busca
do mesmo fim, olham para cima.
Uns como outros trabalham na edificação duma cidade onde esperam ser felizes.
“Dois amores erigiram duas cidades, Babilônia e Jerusalém : aquela é o amor de si até ao desprezo de Deus ; esta,
o amor de Deus até ao desprezo de si”.
O amor de si até ao desprezo de Deus é a última palavra da moral sensualista, assim como o amor de Deus até
ao sacrifício de si é a baliza da moral espiritualista, da moral verdadeira.
As duas cidades, as duas morais se rivalizam, e, para repetir aquilo de São Paulo, estão em luta: Sibi invicem
adversantur. (Gl 5, 17.)
Vemo-las sempre a obrar, sob nossas vistas, mais perto do que poderíamos suspeitar: na intimidade de nossa
consciência, escutamos os clamores de guerra partindo de ambos os lados. Se seguimos a moral do deleite
sensual, caímos; se seguimos a moral da renúncia e do sacrifício, elevamo-nos; caindo, arriscamos a permanecer
caídos eternamente; elevando-nos, desprendemo-nos do mal e vamos a Deus.
Das duas vias, uma sugere facilidade: é a que nos conduz à pior situação; a outra sugere toda a sorte de dificuldades: é
a que nos conduz à paz de coração, à serenidade de consciência, ao deleite do bem, ao gozo da verdade. Escolhamos e
vamos a Deus.
I. Adentrando na matéria
Nada é mais conhecido que estas palavras: o bem, o mau. Sem embargo, é raro saber atribuir à palavra bem o que é
verdadeiro bem, e à palavra mau o que é verdadeiro mal. A Santa Escritura nos ensina que há homens que, neste
assunto, fazem a mais estranha e deplorável confusão:
“Maldito sois, diz o Senhor pela boca de Isaias, maldito sois os que chamam de mal ao bem, e de bem ao mal, que das
trevas fazem luz, e da luz trevas, que chamam amargo ao doce, e doce ao amargo”. (Is 5, 20)
É raro que alguém chegue a tais extremos, mas não são poucos os que hesitam em chamar o bem de bem e o mal de
mal. Somos tíbios, ou porque não sabemos o suficiente, ou porque não queremos confessar nossas convicções e prestar
homenagem à verdade.
Daí vem que o coração, sem forças para prestar testemunho do bem, perde parte do conhecimento do mesmo bem; é
lei da divina justiça que o espírito sofra as conseqüências das fraquezas da vontade. As fraquezas são os frutos habituais
das detestáveis concupiscências, e Deus as pune deixando o espírito em um certo endurecimento de coração, justa
punição de nossas omissões e covardias.
Para que a vontade seja propelida a apegar-se ao bem e rejeitar o mal, é capital saber claramente onde está o bem, e
onde está o mal.
Desejosos de auxiliar alguns de nossos leitores, escrevemos este pequeno trabalho sobre as duas cidades.
“Dois amores fazem duas cidades: uma é terrestre, obra do amor de si até ao desprezo de Deus; a outra, celeste, obra
do amor de Deus até ao desprezo de si. Fecerunt itaque civitates duas amores duo : terrenam scilicet, amor sui usque
ad contemptum Dei ; cœlestem vero, amor Dei usque ad contemptum sui. » (De civit. Dei, Lib. XIV, c. XXVIII.)
A cidade de Deus, visão da paz, é Jerusalém; aí os corações gozam da eterna paz interior, mas raramente da paz exterior,
e deverão sustentar, na maior parte das vezes, uma guerra encarniçada.
A cidade do mundo não tem paz interior, e raramente a paz exterior; por isso a Escritura compara-a ao mar: “Os
perversos são como o mar agitado que se não pode acalmar, cujas vagas cospem a espuma e o lodo; não há paz para
os ímpios, assim disse meu Deus”. (Is 57, 20-21.)
A cidade de Deus percorre o tempo para alcançar a eternidade, seu coração fixa-se no Deus que não passará:
eis por que os males presentes são impotentes para lhe retirar a paz interior.
A cidade do mundo, desesperada da eternidade, deseja fixar-se no tempo, mas o tempo se não fixa nela e lhe
rouba a cada dia os objetos de seus falsos prazeres: eis porque não tem a paz.
As duas cidades atualmente se confundem e exteriormente se misturam: o filho de Jerusalém se debate com os de
Babilônia: podem habitar juntos sob o mesmo teto, viver à mesma mesa, comer o mesmo pão, mas não têm no coração
o mesmo amor. Este é, como disséramos, o princípio de distinção entre as duas cidades no presente, tanto como será a
causa de sua separação na eternidade.
A cidade do mundo ama à sua maneira, mas a cidade de Deus ama à maneira de Deus. Aqui, toda a lei resume-se na
caridade, e no amor de Deus e no do próximo. “A caridade, diz Santo Agostinho, a caridade é doce no dizer, e
mais doce no fazer. Dilectio, dulce verbum, sed dulcius factum. » (In Epist. S. Joann.Tract. VIII.)
O homem interior nos ordena amar a Deus e Nele buscar a felicidade; o homem exterior nos ordena amar o
próximo e desejar-lhe a felicidade em Deus conosco; se tudo se encontra ordenado a Deus, tudo se encontra
ordenado entre os homens.
Por essa razão, todas as legislações dignas do nome são tomadas dos dez mandamentos de Deus; os legisladores
reconheceram que não saberiam regrar os Estados senão à imitação, dentro da medida do possível, da legislação da
cidade de Deus, a qual cidade é a primeira entre os Estados, e por conseguinte a regra e a salvação dos Estados temporais
e transitórios.
Antes de tudo, a cidade de Deus professa o respeito a Deus, respeito que chamamos de adoração:
conseqüentemente, professa o respeito ao próximo, que é obra de Deus e a quem deve-se amar por causa de Deus.
A moral cristã decorre toda daí, assegurando a eterna alegria dos homens, e granjeando-lhes a maior paz e felicidade
possíveis aqui na terra, de sorte que, se a humanidade inteira estivesse unida em adoração a Deus e na prática de sua
lei, veríamos diminuir em proporções incalculáveis os males que nos afligem cá embaixo, e a terra poderia vir a ser,
como outrora o paraíso terrestre, a terra poderia vir a ser o vestíbulo do céu.
Eis uma coisa sobre a qual não refletimos o bastante, e no entanto o que é mais desejável senão trabalhar em
prol do repouso e do bem da humanidade na terra, afim de que todos possuam a maior felicidade possível, a de
encaminhar-se em direção à felicidade eterna.
Fosse a cidade de Deus livre nesta terra, pudesse ostentar todos os títulos de caridade que Deus inspira no coração de
seus filhos, seria maravilhoso ver quantos sofrimentos desapareceriam, quantos pobres seriam consolados, quanto o
trabalho seria facilitado, quanto a vida presente seria mais feliz que a vista por nós.
Não obstante, a cidade de Deus não é livre: possui a liberdade interior de amar, mas não a liberdade exterior de fazer
render todos os frutos que esse amor poderia dar; ela sofre por isso, e reza, e clama a Deus a libertação, a liberdade, a
verdadeira liberdade1.
Os homens foram criados para viver em sociedade: acolhem-se uns aos outros, desejam unir-se, agrupar-se, para se
ajudarem mutuamente e fruírem juntos os bens da sociedade.
Essa ordem vem de Deus, e guardar-se-ia inviolável e fielmente se o pecado não introduzisse a desordem no
mundo e não erigisse uma cidade ao lado da cidade de Deus.
Todavia, os habitantes da cidade do mundo não rejeitaram de todo o antigo laço social criado por Deus, e por isso
inclinam-se à união com os outros homens numa mesma comunidade de amor, de costumes e, por isso, numa mesma
cidade.
Por outro lado, a cidade de Deus, fiel a seu Criador, aspira à reunião dos homens no conhecimento e no amor de Deus,
para que todos partilhem nela e com ela dos bens da casa de Deus.
Daí, podemos notar os pontos fundamentais da luta entre as duas cidades. Cada qual apetece a prevalência do amor que
carrega no coração, e os costumes que se seguem a ele.
A cidade do mundo tem seus amores lisonjeiros, seus erros enganosos, suas ameaças e perfídias espantosas
– amores, errores, terrores, diz Santo Agostinho –, e com tais armas trava luta contra a cidade de Deus
Por seu turno, a cidade de Deus tem em si o casto amor de Deus e do próximo, tem a fé, e com a fé, a verdade e
suas obras de paz, de devotamento com todos e para todos, e nas armas divinas suporta os assaltos da cidade do
mundo e salva os filhos de Deus.
Houve luta desde que houve dois irmãos sobre a terra: Caim e Abel são o começo e o modelo das duas cidades. Caim
mata, Abel é vítima: mas o que mata está mais morto que a vítima, Abel sucumbe e triunfa.
A cidade do mundo oprime amiúde a cidade de Deus: quanto mais se eleve, mais formidável será a queda. A
cidade de Deus, em aparência derrotada, é a vitoriosa, porque Deus está com ela.
X. De Babilônia a Jerusalém
Alguns concidadãos de Jerusalém talvez se encontrem um tempo perdidos em Babilônia. Caíram aí por causa do pecado
original ou do pecado atual, mas num dado momento – Deus o sabe – saem do cativeiro e participam da liberdade.
Escutemos a São Gregório: “O Senhor, por um de seus profetas, disse: Iràs a Babilônia e lá serás liberto (Mq 4, 10).
Não raro um homem imerso na confusão dos vícios, aborrecendo o mal que cometeu, faz penitência e soergue-se das
culpas por uma via santa. Não é este aquele que fora a Babilônia, e aí se libertara? Sim, sua alma era só confusão, e
fizera a iniqüidade, mas depois, envergonhado do mal, investe contra si mesmo e, pelo bem que faz, regressa ao melhor
estado. Ele libertara-se em Babilônia, a divina graça salvou-o do país da confusão.” (Ezech. Lib. Hom. X.)
A passagem de Babilônia a Jerusalém não é fácil: o caminho por vezes encontra-se obstruído. É normal que haja
luta, e luta contra si mesmo, e contra os habitantes de Babilônia que querem ficar por lá e querem conservar
consigo os que lá estão.
Vimos que em alguns filhos de Jerusalém prevalece o pecado, mas vimos também que em alguns filhos de Babilônia
prevalece a graça de Nosso Senhor; os que se deixam tocar por Deus abandonam Babilônia, não pertencem mais a ela,
e vêm a Jerusalém na busca e na certeza da paz dos filhos de Deus.
“Depois da ressureição e do julgamento universal, as duas cidades terão chegado a seu temo, a de Jesus Cristo e a
do diabo: uma é a dos bons, a outra a dos maus, uma e outra por sua vez feita de homens e anjos. Os bons não
poderão mais pecar, os maus não o poderão mais desejar. Não haverá mais a expectativa da morte, nem para os que
viverão no contentamento da vida eterna, nem para os que – sem poder morrer – padecerão da infelicidade da morte
eterna, pois que uns e outros estarão lá para todo o sempre.” (S. Aug. Enchirid. Cap. XXXI.)
Não haverá mais noite, nem precisarão de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus os iluminará, e reinarão
pelos séculos dos séculos”. (Ap 19-22)