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screver o editorial da midamente dedicada à literatura fan- revista que não tenha sido trabalhada

revista é sempre o meu tástica, mas não pretende desrespeitar até seu máximo potencial.
último grande ato a cada ou ignorar outras formas de expressão Pensei muito no que escrever neste
Bang! Quando finalmen- que não sejam os livros. E, por fim, é editorial. E tudo me pareceu excessiva-
te sei qual o conteúdo uma revista de 80 páginas com conteú- mente banal. Mas as melhores palavras
que vai para cada página dos únicos e exclusivos e de distribui- são as que vêm do coração. Demos o
em branco, só então me ção gratuita. Sim, você entendeu bem. nosso melhor porque queremos con-
dedico a escrevê-lo. Te- Qualquer leitor pode chegar às livra- quistá-los com nossa paixão. Quere-
nho pavor dos editoriais em que de- rias, pegar um exemplar e levar para mos que conheçam em primeira mão o
talho o conteúdo ou realço os pontos casa de graça. trabalho diário de nossa editora e o en-
fortes da revista. Sempre preferi escre- Quando comecei a contatar colabo- tusiasmo que nos move sempre. Cabe
ver textos em que procuro unir o meu radores no Brasil para me ajudarem a aos nossos leitores decidir se consegui-
gosto pelo fantástico à realidade que criar este número, surpreendeu-me o mos isso ou não.
nos envolve. fato de muitos deles já conhecerem
Mas este é o meu primeiro editorial a nossa revista portuguesa (todos os
para o Brasil e não quero passar uma números estão disponíveis on-line).
impressão errada. Talvez possa lhes Nunca suspeitei que tinha público
falar um pouco sobre os desafios que para além dos portugueses. Talvez a
enfrentei, junto com toda a equipe da minha surpresa não devesse ser tanta,
editora, ao montar este projeto pela pri- pois afinal há tanto que partilhamos e a
meira vez em um país vasto e complexo Internet possibilitou estreitar laços de
como o Brasil. É quase inacreditável uma forma que teria sido impossível
termos conseguido cumprir as nossas há vinte anos.
ambições e navegar de Portugal, onde Como criamos cada número desta
a revista nasceu (e já vai a caminho da revista? Construímos uma vasta rede
15.ª edição), rumo ao país irmão. de colaboradores em quem confiamos
A revista Bang!! é um produto único e damos forma a uma comunidade em
por vários motivos: é produzida por que mostramos receptividade a novos
uma editora, mas não é simplesmente talentos e novas vozes. Tentamos criar
um catálogo de novidades, nem é limi- um designn ousado e surpreendente para
tada aos livros dessa editora. É assu- cada artigo. Não há uma página nesta

Todo o mundo sabe que Brasil e Portugal são países irmãos. Mas o que
significa isso? Que falamos a mesma língua? Que temos uma história em
comum? Pensamos que é muito mais do que isso. Na verdade, há um carinho
especial entre os dois países. Um imenso desejo de conhecer, receber e
partilhar. Só assim se explica a forma maravilhosa como sempre fomos
recebidos em terras brasileiras. Quem primeiro nos estendeu a mão foi
Antônio Torres, um escritor cuja generosidade só é comparável ao seu talento.
A sua opinião sobre a revista
Roberto Bahiense de Castro esteve sempre disponível e foi um autêntico
que tem nas mãos é fundamental
irmão. Muitos profissionais do mundo editorial receberam-nos e partilharam
para nós. Venha visitar-nos em
experiências: Gustavo Faraon, Rejane Dias, Gorki Starlin, Haroldo Ceravolo
e diga-nos
Sereza, Claudinei Franzini, Igdal Parnes, Bárbara Bulhosa, Frederico Indiani da
o que pensa. Queremos que o
Saraiva e Rui Campos, da Livraria da Travessa. Mas os maiores agradecimentos
próximo número seja ainda melhor
têm de ir para as pessoas que não só acreditaram no projeto como quiseram
do que este, mas isso só será
embarcar na Saída de Emergência Brasil: os nossos parceiros Marcos e Tomás
possível depois de saber o que
Pereira e toda a equipa da Sextante. Para terminar, um agradecimento especial
você tem a dizer: quer mais ficção?
aos colaboradores da revista Bang! e a todos os fãs de literatura fantástica que
Mais resenhas? Mudava tudo? Não
desfrutarão de sua leitura. Esta revista é de vocês. E, pronto, neste momento
mudava nada? Estamos à sua espera!
sentimo-nos em casa. Um país irmão não é isso mesmo?

BANG! /// 1
1

2 //// BBAN
AANNG!
G!
l meu nome é Mariana Vieira. Sou
lá,
iilustradora brasileira e cofundadora
do Black Fox Studio, onde desenvolvemos
trabalho no campo de Concept Art &
Illustration e ministramos oficinas e cursos
de curta duração na área. Sou Bacharel
em Pintura Tradicional pela Escola de
Belas-Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ – com o projeto final
“Processo híbrido na produção de retrato
de criaturas fantásticas”. Concluí minha
especialização em Arteterapia em Educação
e Saúde, pela UCAM, no início de 2010
com um título de tese: “Alterações estéticas 2
na arte do início do século XX no Brasil e
seus desdobramentos nas artes aplicadas.”

Meu trabalho já foi exibido na EXPOSÉ 10,


EXOTIQUE 7, da “Ballistic Publishing”
Photoshop Criative, Ilustrar Magazine,
entre outros. Trabalhei no jogo “The
Light
g of the Darkness”,, que q será lançado
ç
em breve. Participei de projetos como
a série de quadrinhos “Doenças fazem
História”, publicada pela IBqM UFRJ,
participei da criação de ilustrações para o
booktrailer “Crade de Scar – Van Steward”
para promover o livro The Unremembered, d
publicado pela Tor Books, entre outros.

Atualmente trabalho para algumas


empresas japonesas e outras americanas,
como Applibot, o CROOZ , Paizo e FFG,
em jogos de cartas como “Legend of
Cryptids”, “Lord of the Ring LCG”
e “A Game of Thrones LCG”, entre
outros.
3
http://www.marianaarts.com/

4 5
NNGG! ///// 3
BANG
BA
4 /// BANG!
Orgulhosamente nerds! R. Tolkien, Raymond E. Feist, Michael mas o que nos deixava em transe eram
Daí para a primeira literatura de fantasia Moorcock e tantos outros criadores de os Manowar. Suas músicas sobre batalhas
foi um passo: começamos com a famosa mundos. Em suma, cedo nos tornamos gloriosas, céus cobertos de relâmpagos
saga Dragonlance, de Margaret Weis e Tracy uns geeks, uns nerds, uns doidos por e campos riscados de heróis tombados
Hickman, depois devoramos as obras de fantástico. A música foi outra paixão. eram a trilha sonora perfeita para nossas
R. A. Salvatore, Robert E. Howard, J. R. Vibrávamos com Iron Maiden e Sepultura, leituras de fantasia épica e sessões de

BANG! /// 5
Dungeons & Dragons. Como bons nerds, que temos um trunfo: esta
adorávamos o cinema dos anos 1980: é a nossa praia. Da mesma
Blade Runner, Indiana Jones, De Volta Para forma que não publicamos
o Futuro ou O Exterminador do Futuro. fantástico porque está
Jogávamos o magistral Monkey Island, da na moda, também não
Lucas Arts, e todos os grandes jogos deixaremos de publicar
de aventura e fantasia dos anos 1990, quando passar de moda.
colecionávamos action figures de heróis e Somos como vocês: lemos,
as trilhas sonoras dos filmes favoritos. conhecemos, amamos e
Quando nos demos conta éramos defendemos o gênero. E
adultos e, mais do que consumir o poucos editores (dos dois
fantástico, queríamos fazer algo por ele. lados do Atlântico) podem
se gabar disso. Sabemos,
Uma saída melhor do que ninguém,
de emergência
g chamada que o fã de fantástico é
Saída de Emergência exigente e crítico. Mas
Criamos a Saída de Emergência em também sabemos que é o fã
2003, porque em Portugal não se mais fiel que existe. Por isso,
publicava suficiente literatura fantástica. para conquistar seu respeito,
E as editoras que publicavam o faziam admiração e fidelidade,
sem critério, regularidade ou paixão. Nós comprometemo-nos a
sabíamos exatamente o que queríamos trabalhar e a oferecer mais
lançar: as aventuras de Conan e Elric; do que a concorrência. A
os horrores de H. P. Lovecraft e Clive revista Bang! é isso mesmo.
Barker; a fantasia de George R. R. A nossa primeira oferta
Martin e Robin Hobb; a ficção científica para os leitores brasileiros.
de Frank Herbert e Philip K. Dick. Esperamos que seja do
Com boas capas, boas traduções, boa agrado de vocês e uma porta
distribuição. Criamos a coleção Bang! de entrada para a coleção
e, pasmem, conquistamos uma legião Bang! que, acreditamos,
de fãs. O sucesso foi tal que a Saída de mudará o gênero no Brasil.
Emergência passou a publicar outros E agora chega de conversa e vamos
gêneros, como literatura romântica mostrar o que preparamos para você.
(Nora Roberts) ou romance histórico
(Bernard Cornwell). Mas nunca
perdemos o foco: a nossa paixão era,
é e sempre será a literatura fantástica.

E,, com a chegada


g ao Mago Aprendiz
Brasil, fecha-se um ciclo Livro Um da Saga do Mago
Se tudo começou com os gibis da
RAYMOND E. FEIST Raymond E. Feist é um dos
Editora Abril que chegavam do Brasil nomes mais importantes
todas as semanas, e que hoje guardo
S
da literatura fantástica.
religiosamente em minhas estantes, não é egundo Neil Gaiman, voltar a ler um Traduzido em mais de trinta
de espantar que o Brasil voltasse a cruzar livro favorito é uma das coisas mais países, Mago foi o seu
nosso caminho. Muitos fãs brasileiros infelizes e absurdas que podemos fazer. primeiro livro e serve de
Afinal, um livro é como uma arca do base para uma vasta obra
se iniciaram na leitura de A Guerra dos que tem conquistado os
Tronos com as nossas edições de 2007, tesouro da memória: apenas por pen-
principais tops.
bem anteriores à edição brasileira. A sarmos nele evocamos o lugar onde o Este número da Bang! vai
nossa loja on-line vendeu muitos livros lemos, as circunstâncias sob as quais o apresentar a você não só o
para o Brasil: da fantasia heroica de lemos, a música que estávamos ouvindo, autor, mas também a sua
a pessoa que éramos quando o lemos da obra e a importância que
Fritz Leiber aos horrores históricos de tem num dos gêneros mais
Dan Simmons, da história alternativa de primeira vez. Eu não podia concordar
fascinantes: a fantasia
Harry Turtledove às aventuras de Ray mais. Regressar a um livro favorito, ain- épica.
Bradbury. E muitos fãs brasileiros nos da mais se lido na juventude, é arriscar
repetiram ao longo dos anos: vocês deviam destruir de forma irremediável uma
publicar no Brasil, não há aqui nenhuma editora memória doce e inspiradora. A primeira
dedicada ao fantástico como vocês. Este ano, vez que li Mago, de Raymond E. Feist,
em que celebramos 10 anos de atividade, foi há mais de vinte anos. Na época,
decidimos que chegou esse momento. tinha acabado de ler O Senhor dos Anéis,s
Sabemos que agora há muitas editoras passava várias horas por semana em
no Brasil apostando no fantástico, a animadas sessões de Dungeons & Dragons
concorrência será feroz, mas sentimos e recordo-me que foi uma leitura épica

6 /// BANG!
e absolutamente recompensadora. Para na companhia exclusiva de nomes in- dos para a fantasia épica que, meio sécu-
preparar esta edição tive de voltar a lê-lo, questionáveis do gênero, como Terry lo depois, uma multidão de autores ainda
mas o fiz com o aviso de Gaiman bem Pratchett, Neil Gaiman e, claro, J. R. R. o copiaria até à exaustão. Esses alicerces,
vivo na minha memória. Felizmente, Mago Tolkien, cuja inspiração Feist reconhece hoje clichês absolutamente esgotados,
recebeu-me de braços abertos. Não é tão no maravilhoso mundo de Midkemia são vários: a história dividida nos tradi-
bom como me recordava, é melhor. com que nos recebe. cionais três volumes; as características
É nossa intenção que a coleção Bang! físicas e culturais dos elfos, anões e ou-
seja a casa da melhor literatura fantástica. tras raças míticas; a inevitável demanda
Como tal, o título que inaugura a coleção do herói; os poderosos artefactos mági-
tem de ser escolhido com muito critério. cos; a figura do senhor das trevas; e, por
Não basta um bom livro de fantasia, pre- Tigana fim, talvez a que mais marcou a fantasia
cisamos de um livro realmente especial. Livro Um, A Lâmina na Alma desde então: a separação simplificadora
Um clássico moderno que supere modas GUY GAVRIEL KAY entre o bem e o mal. Com Tolkien o mal
ou tendências do gênero e que tenha é absoluto e corrompe absolutamente
conquistado o crítico mais impiedoso de
todos: o tempo. Magoo é esse livro. E duvi-
do que haja melhor porta de entrada para
Q uando publicou O Senhor dos Anéis
nos anos 1950 do século passado,
J. R. R. Tolkien não podia sequer sonhar
(corpo e alma). O bem, pelo contrário, é
exclusivo aos heróis, quase sempre sem
falhas, dúvidas ou arrependimentos.
a fantasia épica do que esta obra-prima que estava criando alicerces tão profun- Guy Gavriel Kay, que procura cons-
de Raymond E. Feist. Se nos pri- tantemente transcender as fraque-
meiros capítulos a juventude das zas da fantasia, com Tiganaa marca
personagens e a descrição do seu um corte com essa tradição tolkia-
dia a dia nos pode fazer pensar que na do bem e do mal. Tiganaa está
o livro foi escrito para um público repleto de personagens em conflito
adolescente, cedo nos damos conta com as suas próprias decisões e
de que isso é um truque de Feist. com o impato que essas decisões
O tom juvenil está presente en- têm nos outros. Aliás, a grande
quanto as personagens são jovens força desta obra é precisamente a
e serve apenas para tornar ainda ambiguidade moral das suas per-
mais dramáticos os eventos com sonagens. Não são homens bons
que o autor cedo nos defronta na nem maus, são apenas homens,
narrativa. Com o passar do tempo e apesar do poder que lhes foi atri-
o envelhecimento das personagens, buído e que os coloca na posição
nada sobra da inocência das primei- de fazerem grande bem ou grande
ras páginas. E Feist consegue, em mal. Quem conhece a obra de Ge-
algumas passagens, levar o leitor às orge R. R. Martin sabe exatamente
lágrimas. do que estamos falando.
Com uma estrutura e lingua- Vejamos as personagens:
gem acessível, Magoo conta-nos a Alessan, o herói de Tigana, não se
vida épica de homens e mulheres importa com os meios usados para
fascinantes, heróis orgulhosos, de atingir os fins. Mas será heroico,
honra e lealdade inquestionáveis. mesmo quando os fins são tão no-
Estão presentes elementos da fan- bres como o resgate de um povo,
tasia clássica, como os elfos sábios recorrer ao assassínio e à própria
e graciosos, os anões corajosos escravatura? Brandin, o vilão, tem
e festeiros, dragões de um poder uma capacidade imensa de amar.
inimaginável, magia complexa, batalhas Vive, inclusive, uma das mais belas
épicas, vitória, perda, amor e ódio, numa histórias de amor da literatura fantásti-
rede extensa e intricada sem pontas ca. Mas é o ódio que o move durante
soltas. Mas o ponto forte de qualquer grande parte da vida. Alessan e Brandin
livro, como todos os grandes autores são personagens complexas e das mais
sabem, são as personagens. E Raymond Guy Gavriel Kay se iniciou fascinantes do gênero. Diga-se que es-
E. Feist consegue a proeza de criar uma no mundo literário ao ser tão em boa companhia: as personagens
convidado por Christopher
infinidade delas que se tornaram ícones Tolkien para editar “O secundárias de Tiganaa formam um grupo
da fantasia épica. Pug, Tomas e Arutha Silmarillion”, de J. R. R. rico, complexo e memorável. Prepare-se
jamais serão esquecidos. Sofremos com Tolkien. “Tigana” é uma de portanto para uma viagem inesquecível
as decisões difíceis que têm de tomar, suas obras mais aclamadas ao longo destas páginas. Mais do que
rimos com o seu humor inteligente e e você vai poder conhecê-la estar na vanguarda de um movimento
melhor nesta Bang!.
seguimos ao seu lado na estrada que Gavriel Kay encontra-se disruptor dos alicerces da fantasia, Guy
os leva de uma juventude cheia de so- traduzido em 25 línguas Gavriel Kay oferece-nos um mundo de
nhos a um destino que abalará não um, e recebeu numerosas fantasia épica com a sua própria geogra-
mas dois mundos. Não é à toa que a nomeações e prêmios ao fia, religião, política e estruturas sociais
BBC escolheu Magoo como um dos 100 longo de sua carreira. complexas. Numa península que em
melhores livros de todos os tempos, tudo nos recorda uma Itália medieval e

BANG! /// 7
que segredos do passado vão aparecer,
quem vai sobreviver ou até quem são os
verdadeiros heróis. Resumindo: a ficção
científica não podia começar de melhor
forma na coleção Bang!
Stephen Hunt é um autor de
ficção científica e fantasia
que vive no Reino Unido.
Os seus livros já foram
publicados no Canadá, Depois vem muita coisa boa, porque
Reino Unido, EUA e estão queremos que a Coleção Bang! seja
traduzidos para mais de
doze línguas. uma referência na literatura fantástica.
A Corte do Ar é o primeiro Em 2014 a fantasia vai continuar
livro de sua série steampunk com gigantes como Ursula Le Guin
centrada em uma Inglaterra e Terry Brooks. A ficção científica vai
vitoriana alternativa. Ao apresentar autores revolucionários
terminar esta Bang!, você
estará apaixonado pelo como Ian McDonald. Mas quem
mundo brilhante que Hunt gosta de George R. R. Martin e de
concebeu. sagas repletas de personagens, muita
emoção e morte a cada esquina vai
ter uma surpresa quando lançarmos
Steven Erikson. Deixamos aqui a
capa para abrir o apetite: E, claro, as

onde o povo comercializa vinho, cereais assassinatos, balões nos céus e órfãos em
e especiarias por terra e por mar, Tigana fuga ganham vida e conquistam os nos-
conta-nos uma história poética e podero- sos corações. Comparável em ambição às
sa sobre a força da política e da religião, obras-primas de Philip Pullman (A ( Bússo-
o custo do sangue e o preço do amor. la Dourada),a Alan Moore (A Liga Extraor-
dinária),
a ou Susanna Clarke (Jonathan Stran-
ge & Mr. Norrell), l a crítica não exagerou
quando disse que A Corte do Arr poderia
ter sido escrita por Charles Dickens e Jack
A Corte do Ar Vance... numa colisão entre as melhores letras
STEPHEN HUNT inglesas e a fantasia mais espetacular.
A referência ao imaginário de Dickens

S e vivêssemos num mundo steam-


punk, talvez algum cientista louco
tivesse criado um diversômetro: uma
é óbvia: nomes, estratificação social,
bairros miseráveis e glórias bolorentas do
passado dão um ambiente vitoriano a A
espécie de chapéu-pensador do Profes- Corte do Ar.r Mas são os conceitos que dão
sor Pardal, cheio de fios, rodas dentadas forma ao livro que se destacam pela sua
e uma chaminé com buzina, que colo- avalanche de criatividade. Dos vaporho-
cássemos na cabeça e medisse a nossa mens (fascinante raça de máquinas que
diversão enquanto líamos um livro. Seria lutam pela sua autonomia e que pensam,
uma forma insólita e autêntica de fazer- sentem, possuem alma e até os seus pró-
mos crítica literária. E se eu tivesse usado prios deuses) aos encantados (humanos
esse diversômetro nas duas vezes em que com superpoderes de origem mágica);
devorei A Corte do Ar,r garanto a vocês dos cantores-mundo (uma espécie de
que o chapelinho tinha cuspido fagulhas, polícia política mágica) às organizações
buzinado que nem um louco e lançado secretas que observam tudo o que se pas-
colunas de fumaça nos céus. Sim, A sa a partir dos céus; das intrigas parlamen-
Corte do Arr é assim tão bom! tares às máquinas tão extravagantes que
Esta obra-prima de Stephen Hunt parecem saídas da cabeça de H. G. Wells
inaugura a ficção científica na Coleção ou Júlio Verne. A ação é digna de um
Bang! Dos milhares de títulos que pode- filme de Indiana Jones e gira em torno de
ríamos ter escolhido, a responsabilidade dois jovens, Molly e Oliver, que têm de sagas de Mago (fabulosa capa para o
recaiu neste por uma simples razão: A enfrentar um mal antigo que se julgava segundo volume: Mago Mestre),
e Tigana e
Corte do Arr é uma odisseia frenética e desaparecido. O leque de personagens se- a epopeia steampunk de Stephen Hunt
inteligente que satisfaz leitores de fanta- cundárias e, mais importante, de enredos vão continuar. Prepare-se, queremos que
sia, ficção científica e steampunk. Onde secundários é fascinante e complexo, dei- 2014 seja um ano inesquecível.
bandidos, aventureiros, bordéis luxuosos, xando o leitor sem saber o que o esperar, Um abraço e votos de excelentes leituras!

8 /// BANG!
Um dos autores norte-ame-
ricanos mais veneráveis da
literatura fantástica fale-
ceu este ano aos 96 anos
de idade. Embora nunca
tivesse sido um autor de
best-sellers, Jack Vance era
um escritor prolífero e um

I maginem um herói de fantasia, à la


Conan, em um mundo recheado de
elfos, fadinhas, orcs e deuses sedentos
dos mais intrigantes no gê-
nero, com mais de 60 livros
publicados. A sua mais
famosa série, The Dying
por sacrifícios de sangue. Earth [A Agonia da Terra],
Um mundo onde a ma- trouxe-lhe a admiração de muitos leitores, mas tam-
gia funciona com o mes- bém as séries Lyonesse ou Demon Princes [Príncipes
mo rigor de uma equa- Demônios] influenciaram autores como Ursula Le Guin,
ção matemática. Banal? Michael Moorcock, Michael Chabon e George R. R. Mar-
tin. Venceu três prêmios Hugo, um Nébula e um World
De modo algum. Hari Fantasy Award pela sua carreira. Tornou-se Grande
Michelson é um ator Mestre da Ficção Científica em 1997, pela SFWA (Science
contratado pelas Mega
Corporações em um fu-
turo próximo da nossa
S teven Utley faleceu
recentemente, por-
tanto nunca mais tere-
Fiction Writers of America).

Terra, onde as massas mos o prazer de voltar


proletárias se alheiam de atrás no tempo, até à
uma vida de penúria e desolada Era Siluriana.
exploração capitalista, com espetáculos Felizmente, restam-nos duas coletâ-
televisivos de jogos violentos e massa- neas magníficas, repletas de contos
Horror, fantasia ou ficção cien-
cre. Sua missão? Passar para o tal mun- e noveletas, nostálgicas, intimistas, tífica não ofereciam segredos
do de fantasia, OVERWORLD, através exuberantes, sobre os viajantes tem- para este gigante da litera-
de um buraco de minhoca, e massacrar, porais que resolveram explorar esse tura do gênero. Embora hoje
durante um período de tempo limitado, passado onde só existe vida marinha seja lembrado principalmente
tudo o que são elfos, feiticeiros, Prince- e os continentes não passam de ex- pelas numerosas adaptações
de sua obra Eu sou a Lenda,
sas Guerreiras e Senhores das Trevas. tensões de bolores e lama, onde o teve muitos outros romances
Como um jogo de computador que se próprio oxigênio é escasso. Esta é a adaptados para o cinema
tornou realidade. Os era dos escorpiões e das e foi também argumentis-
direitos das fadinhas trilobitas e o início da ta de TV nas míticas séries
e dos elfos? Ele não conquista da terra fir- The Twilight Zone e Star Trek.
Citado por Stephen King como a maior inspiração para
quer saber, pelo menos me por criaturas cheias a sua carreira de escritor, Matheson ganhou o World
não de início. O que as de couraças, patinhas Fantasy Award e Bram Stoker Award pela sua contribui-
Corporações realmente e olhos pedunculares. ção para a literatura fantástica.
desejam é explorar os Esqueçam os Tiranos-
recursos naturais desse sauros Rex e os espertos
novo mundo. Minerais, Velociraptores. Esque-
petróleo, urânio e água çam as florestas do Ju-
não contaminada. Com rássico e o grito ou trinar
um humor ácido e uma dos répteis gigantes. Em
feroz crítica social ao sis- Silúria não há “nada”.
tema de classes anuncia- Reina o silêncio e a so- Se alguma vez houve um
do pelo capitalismo selvagem, Matthew lidão. Em Silúria, só estamos “nós”, autor muito amado na ficção
Stover diverte-se desconstruindo todos e é precisamente sobre os conflitos científica do Reino Unido, o
os clichês dos mundos de fantasia que humanos de quem resolveu se refu- seu nome era Iain M. Banks. O
infelizmente começaram a preencher as giar no passado profundo, que tocam câncer terminal diagnosticado
estantes de nossas livrarias com um ex- as narrativas do Steven Utley. Com no autor escocês no início do
cesso de livros água com açúcar. A Terra gênio e maestria. Na companhia de ano foi um golpe duro para
Média de Tolkien nunca mais será a mes- escorpiões, centopeias e aracnídeos. seus inúmeros fãs que perde-
ma depois da “visita” envenenada deste E que golpe de mestre, este de criar ram, poucos meses depois, um
ciborgue ultra-high-tech que não mede histórias maravilhosas no meio da autor inspirador e o criador da
esforços para subir na pirâmide social do cinzentude, do vazio e da desolação. série Cultura, sobre uma sociedade interestelar futuris-
pesadelo corporativo deste nosso futuro Será que tenho de me repetir? Sim- ta de 9 mil anos, controlada por inteligências artificiais.
já tão próximo. A vida é dura para os ato- plesmente imperdível. Era também um reconhecido autor de thrillers sob o
res. Simplesmente imperdível. nome Iain Banks, tendo estabelecido a sua reputação
com o seu primeiro romance The Wasp Factory, em 1984.
E
m virtude de uma nativas viáveis de curso prazo
pr para chegar do Sul, posterior-
série de evidências às Índias, El-Rei de Portugal,
al, Dom João II,
I mente rebatizadaada
históricas, nós lusó- contrariando seu conselho de Estado, deci- em sua homena-
fonos temos certeza de aceitar a proposta estapafúrdia do nave- gem.
quase absoluta de gador genovês Cristóvão Colombo de che- O primeiro
que os navegadores gar às Índias navegando para o poente. Em contato entre na-
portugueses foram consequência dessa decisão tecnicamente vegadores portu-
os verdadeiros descobridores da América. equivocada, Colombo acaba por descobrir gueses e pochtecatl
No entanto, o fato é que, em fins do século a América sob bandeira lusitana. mexicas se dá na Pe-
XV, Portugal estava muito mais interessado Em segundo lugar e pior: falhando em nínsula de Iucatã em 1 5 0 4 , Afonso de
em descobrir o caminho marítimo para as descobrir o caminho marítimo para as Índias despertando a cobiça dos lusos Albuquerque
Índias do que com o continente america- em fins do século XV, os portugueses adiam para as riquezas de Anáhuac. De
no. Desses fatos cruciais, todos sabemos. por três décadas a ambição de controlar o fato, entre 1508 e 1510, Affonso de Albu-
Porém, e se as coisas tivessem acontecido monopólio do comércio das especiarias. querque (cognominado “Affonso o Gran-
de forma diferente? E se os navegadores Em compensação, na ausência dos lu- de”) avassala o Reino Mexica para Portugal,
portugueses não tivessem conseguido do- cros fabulosos com tal monopólio, há mui- tornando-se o primeiro Vice-Rei do Méxi-
brar o Cabo da Boa Esperança para atingir to o que descobrir, explorar e conquistar no co. Em presença de Albuquerque, o Tlatoa-
o Oceano Índico? Bem, então, é possível Novo Mundo. Se não vejamos: Colombo nii Motecuhzoma II jura vassalagem a Dom
que o Novo Mundo houvesse sido desco- faz sua primeira viagem e descobre a Amé- Manuel o Venturoso. Esse monarca luso
berto e colonizado apenas pelos portugue- rica em 1490. Em sua segunda viagem, no iria se tornar posteriormente conhecido na
ses, sem a participação dos espanhóis. ano seguinte, o almirante genovês descobre Europa pelo epíteto de “Senhor dos Sete
Imaginemos, por exemplo, como pon- Cuba e Lusitânia (Hispaniola, em nossa li- Mares”. Entre os mexicas, Dom Manuel é
to de divergência neste nosso pequeno nha histórica), dando início à colonização e cognominado de “O Rei dos Reis”.
exercício de história alternativa, que Bar- à exploração econômica das Antilhas. Afi- Oito anos mais tarde, Fernão de Maga-
tolomeu Dias houvesse desaparecido sem nal, os portugueses já estavam bem mais lhães atinge o Oceano Pacífico e estabelece
deixar vestígios ao tentar transpor o Atlân- acostumados a lidar com arquipélagos de o primeiro contato direto dos portugueses
tico Sul rumo ao Índico. O naufrágio da ilhas atlânticas do que os espanhóis e têm com o Tahuantinsuyu (Império Inca). Os
flotilha comandada por Dias no Cabo das êxitos maiores em tais empreendimentos. emissários do Inca Huayna Capac (1450-
Tormentas em 1488 geraria duas conse- Paralelamente, Gaspar Corte-Real explora 1525) trocam presentes com os portugue-
quências imediatas: o litoral do Novo Douro (Nova Inglaterra) ses. No comando de uma pequena comiti-
Em primeiro lugar, sem notícias do para- na Cabrália do Norte em 1498 e Pedro Ál- va, Magalhães é recebido na corte do Sapa
deiro de Bartolomeu Dias e, à falta de alter- vares Cabral descobre a Terra do Cruzeiro Inca em Cusco nas Alturas.

10 /// BANG!
A diplomacia e as políticas lusas ropeias, sobretudo, a inveja de Castela. Por
em relação aos povos e culturas outro lado, sem as conquistas americanas, é
avassaladas neste cenário alter- de se supor que a união entre Aragão e Cas-
nativo diferem sobremaneira tela se visse em dificuldades após a morte
da forma como que os caste- da Rainha Isabella. Admitindo que a Es-
lhanos lidaram com essa gra- panha lograsse se manter unida, talvez um Gerson Lodi-Ribeiro publicou duas noveletas na versão
ve questão em nosso contexto monarca descendente dos Reis Católicos brasileira da Asimov’s: a FC hard “Alienígenas Mitológicos”
histórico. Sobretudo no que armasse uma esquadra para tentar se apo- e a história alternativa “A Ética da Traição” que abriu as
se refere aos grandes impérios derar de algumas possessões lusitanas no portas do subgênero no fantástico lusófono. Finalista do
pré-cabralinos. Em vez de destruir Novo Mundo. Se tal ocorresse, os infantes Sidewise Awards (2000) com o conto “Xochiquetzal”; autor
t a i s impérios, os lusitanos os avassala- e marinheiros incipientes de Castela teriam das noveletas premiadas “O Vampiro de Nova Holanda”
riam, à semelhança do que realmente fize- que enfrentar os veteranos lusos e, quiçá, (Prêmio Nova 1996) e “A Filha do Predador” (Nautilus,
ram com os reinos da Península Indiana de mexicas, arregimentados por Affonso de 1999 — publicada na “Sci Fi News Contos”), das coletâneas
nossa linha histórica. Aliás, de certo modo, Albuquerque e Vasco da Gama. “Outras Histórias...”, “O Vampiro de Nova Holanda, Outros
a conquista dos grandes reinos das Cabrá- Com o tempo, é possível que os lusos se Brasis, Taikodom: Crônicas” e “As Melhores Histórias de
lias teria sido mais tranquila e amena para os vissem tentados a influir em contendas tra- Carla Cristina Pereira”, e dos romances “Xochiquetzal:
portugueses do que a conquista da Índia. vadas por seus vassalos. Munidos de cava- uma Princesa Asteca entre os Incas” (história alternativa)
Para manter os vínculos de lealdade com los, pólvora, espadas de aço e conselheiros e “A Guardiã da Memória” (FC erótica — Prêmio
seus novos vassalos, já em 1511, cerca de lusos, os exércitos do Tlatoani Montezuma Argos 2012). Presidente do Clube de Leitores de Ficção
quinhentos teuclahtohh (nobres hereditários) e II conquistariam vitórias decisivas sobre os Científica nos biênios 1999-2001 e 2001-2003. Editor das
teteuctinn (lordes) mexicas e acolhuas, filhos da tarascas. O Reino Tarascatl iria se tornar antologias “Phantastica Brasiliana”, “Como Era Gostosa a
mais elevada nobreza da Tríplice Aliança de Estado vassalo do Império Culhua-Mexica. Minha Alienígena!”, “Erótica Fantástica 1”, “Vaporpunk”,
Anáhuac, são levados para Portugal a fim de Embora o soberano Tangaxoan III pudes- “Dieselpunk” e “Solarpunk”.
receber educação cristã. A fina flor das no- se até ser mantido no trono tarascatl, seria
brezas mexica e acolhua se assombra ao de- obrigado a pagar tributos pesadíssimos à presentantes do maior império marítimo da
sembarcar em Lisboa a Branca após meses Tríplice Aliança Tenochilitão-Texcoco-Tla- história.
a bordo das caravelas de seus suseranos. Em copão. Do outro lado dos Andes, é de todo Essa epopeia magnífica nas Cabrálias e
verdade, não obstante o fato de receberem possível que forças lusitanas e/ou lusitani- algures jamais cairia no esquecimento, pois
educação esmerada e tratamento condizen- zadas desempenhassem papel relevante na João de Barros, vero Tito Lívio lusitano, pu-
te às suas posições de fidalgos, esses teteuctin guerra civil fratricida travada no Império blicaria nos primeiros anos da segunda me-
constituem de fato reféns de luxo. Sua esta- Inca entre os irmãos Atahualpa e Huáscar. tade do século XVI, sua obra monumental,
da na Europa garante que os tlatoquee mexi- Com tantas batalhas a travar no Novo Décadas de Cabrálias.s
cas e aliados nem sequer cogitem se revoltar Mundo, tantas conquistas e desco-
contra El-Rei. bertas a empreender, é com-
Quando enfim regressam a Anáhuac al- preensível que o caminho
guns anos mais tarde, esses jovens mexicas marítimo para as Ín-
e acolhuas já se encontram lusitanizados o dias só fosse desbra-
bastante para servir em postos de coman- vado lá pela terceira
do intermediário nos exércitos de El-Rei. Já ou quarta década do século
as fidalgas mexicas se tornam aptas a des- XVI. A península indiana seria
posar oficiais lusitanos. Talvez até mesmo provavelmente atingida após a
alguns dos maiores comandantes das Três travessia do Oceano Pací-
Cabrálias, como Affonso de Albuquerque e fico, por uma esqua-
Vasco da Gama, ousassem desposar as mais dra largando
formosas e bem-nascidas dessas beldades de um porto
ameríndias. qualquer da
Se, ao contrário dos conquistadores cas- costa oeste da
telhanos nas Américas, os suseranos portu- Cabrália do
gueses nas Cabrálias, em vez de obliterarem Sul. Então,
os Impérios Inca e Asteca, alistassem seus quando os
vassalos lusitanizados para auxiliar a metró- navegadores
pole a travar suas guerras no Novo Mundo portugueses en-
e algures, é de se supor que, a médio pra- fim chegassem às
zo, representantes das hierarquias nativas Índias, desembarca-
andinas e mesoamericanas acabassem por riam em Calicute ou
travar contato umas com as outras. Desses Cochim na qualidade
contatos, adviria uma troca de experiências de senhores legítimos
fecunda. do Novo Mundo,,
Se os portugueses de fato possuíssem embaixadores de
as Três Cabrálias e se tornassem senhores El-Rei de Por-
absolutos de todo o ouro asteca e da prata tugal, o Rei dos
inca, é de todo provável que tal proeza pro- Reis, Senhor dos
vocasse despeito nas demais potências eu- Sete Mares; re-

BANG! /// 11
E
sta é uma questão que, mesmo na segunda computador desktop ou mesmo um notebook, com todos os
década do século vinte e um, ainda é mui- benefícios (como efetuar uma busca por determinadas pala-
to discutida na academia, nos jornais e nas vras ou fazer anotações no próprio texto sem riscar as palavras
revistas da moda, e está sempre sob o olhar ou manchar o papel)?
da mídia – seja na pauta do dia dos jorna- A história dos meios de leitura é fluida; ela nunca foi (tro-
listas especializados em tecnologia, seja nas cadilho intencional) escrita na pedra. Das tabuletas de argila
colunas de cotidiano, bem-estar e até saúde, dos sumérios aos papiros egípcios e pergaminhos iluminados
onde a questão do livro digital e do aparelho de leitura digital medievais, e quase finalmente, aos códices (ancestrais diretos
(ou leitor digital, conforme o chamaremos de agora em dian- de nossos livros físicos atuais) a humanidade sempre tentou
te nestas páginas) não raro provoca espanto e desconfiança, aprimorar a maneira de ter um acesso melhor à palavra escrita.
como se esse tipo de objeto técnico fosse algo maléfico ou, na Por mais estranho que possa parecer aos ouvidos e olhos de
melhor das hipóteses, algo cuja utilização requer muito cuida- hoje, nem todos gostavam da ideia de um suporte escrito para
do, e deveria ser supervisionado por adultos, ou melhor: por o registro da palavra. Platão pode ter sido o primeiro, ao me-
adultos especializados. nos na história registrada do Ocidente, a sugerir que escrever
Mas acho que esta revista é o último lugar onde esta per- era sinal do declínio da civilização, pois ao por palavras em um
gunta deveria ser feita. Afinal, nós, leitores e escritores de fic- meio de transmissão físico, perderíamos nossa capacidade de
ção científica, pensamos em modos alternativos de leitura há memorizar – e assim a transmissão oral da história chegaria
tempos. Das bobinas de shigawiree de Duna aos implantes cere- ao fim. Platão não estava totalmente errado, mas A Ilíadaa e A
brais dos livros cyberpunks, passando pelos PADDs® de Star Odisseia, de Homero (ainda que se dispute ao autoria dessas
k (e essa é só a pontinha de um imenso iceberg), a ficção
Trek obras e a existência de um poeta com esse nome, mas a anti-
fantástica literária e cinematográfica nos oferece uma pletora guidade dessas narrativas não é disputada), já foram desde en-
de artefatos de leitura criados para facilitar a nossa vida. Por tão traduzidas para o modo escrito, e depois disso para o meio
que deveríamos sequer pensar duas vezes quando finalmente impresso (e hoje, para o meio audiovisual, graças ao cinema e
nos é oferecida a chance de botar as mãos num dispositivo à internet). Essas histórias não se perderam para nós, mesmo
que pode armazenar centenas de livros e nos permite alternar depois de dois mil e quinhentos anos.
entre diversos livros sem sair do lugar mais rápido que um Parafraseando Emily Dickinson, um livro é um livro é um
livro é um livro. Será que ele realmente precisa estar contido
entre as capas do códice? Por mais que eu tenha amor a um
livro físico, com sua textura e seu cheiro (sim, assumo o feti-
che, se é que isso é fetiche), e o nome desta coluna é tanto uma
homenagem quanto uma referência ao famoso livro de Anne
Fadiman, Ex-Libriss (que adoro e releio volta e meia – em sua
versão física, vejam bem), ainda assim tenho mais amor pelo
que seu interior encerra. Sou um arúspice de livros: leio as fra-
ses como um adivinho da Roma Antiga lia o futuro nas entra-
nhas dos animais sacrificados; eu retiro as tripas de parágrafos
do corpo do livro e decifro seus significados ainda quentes,
fumegantes. Às vezes os devoro. Outras, os compartilho com
outros, pois senão onde está a graça, onde o prazer?
PADDs® de Star Trek O que sou, ao fim e ao cabo, antes mesmo de ser escritor, é

12 /// BANG!
um leitor de histórias. His-
tórias contadas por pessoas
desde tempos imemoriais,
por homens e mulheres
que usaram seus cérebros,
suas vozes, seus corpos,
suas imaginações, para
contar a outros homens e
mulheres coisas que viram
ouviram, sentiram ou sim-
plesmente pensaram – pois
esse é o poder da mente.
Então, quando finalmen-
te essas histórias começa-
ram a ficar disponíveis em
formato digital, também eu
me tornei disponível para
lê-las assim, tamanha a mi-
Capaa Ex-Libris nha curiosidade. Não foi
de Anne Fadiman amor à primeira vista, mas
certamente começou com
uma grande fascinação: sempre senti isso por computadores.
Desde a adolescência, nos tempos de escola técnica, (quando
comprei meu primeiro computador, um TK-82C made in Bra-
zil,l um análogo do Sinclair britânico) rapidamente me acos-
tumei a ele, e depois disso ao MSX Gradiente, e depois final-
mente a um PC 286, meu primeiro com sistema operacional
Windows, seguido pelo 386, pelo Pentium e o mundo da Web
– mas sem abrir mãos dos livros de papel.
E foi assim que me tornei fã do livro digital, ou e-book, que
durante anos só podia ser lido nos desconfortáveis formatos
de HTML ou PDF (ou em códigos ligeiramente melhor elabo-
rados e mais confortáveis dentro de CD-ROMs), para, a partir
de 2007, começarem a ser substituídos universalmente por ou-
tros tipos de arquivo com formatação mais elegante como o
ePUB, o .MOBI e o kf8 (este último criado em 2011 para ser
usado com o Kindle Fire).
Nesta coluna, a intenção é falar não de títulos específicos
(embora isso possa ser feito de vez em quando para ilustrar
um exemplo); o que pretendo é falar um pouco sobre e-books
e e-readers a partir da experiência de um escritor que é usuário
ávido desses leitores (possuo três, sem contar os aplicativos
para celulares). Aqui vocês lerão um pouco sobre minhas des-
cobertas, alegrias, decepções, reflexões. Boa leitura.
Nos últimos anos, as editoras brasileiras têm
Obra: Mago - Aprendiz
corrido atrás do seu histórico atraso em relação aos Autor: Raymond E. Feist
Gênero: Literatura Fantástica
clássicos da literatura fantástica. Por isso, autores Editora: Saída de Emergência
como Howard, Lovecraft e Dunsany apareceram Tradução: Cristina Correia
Preço: R$ 39,90
nas prateleiras, A companhia negra de Glen Cook
finalmente teve uma edição nacional e, impulsionado
pela série da HBO, George R. R. Martin se tornou
um fenômeno de vendas no país. A obra de J. R. R.
Tolkien tem sido constantemente reeditada, com
edições especiais em lançamento simultâneo com o
resto do mundo. Porém, ainda faltam muitas obras,
séries completas que estão longe do público. Com
a chegada de Mago Aprendiz a Saída de Emergência
estreia no Brasil preenchendo uma grande lacuna.
14 /// BANG!
À
primeira vis- importantes séries da literatura fantás- (Role Playing Games) de seu grupo de
ta, Midkemia tica mundial. Com vinte e cinco livros amigos na faculdade, ainda na década
pode pare- lançados (e alguns contos e histórias de 1970. Inspirado pelas aventuras dos
cer com um curtas), Raymond E. Feist tornou-se personagens e pelo universo que os en-
mundo como um dos escritores mais vendidos do volvia, começou a rascunhar o seu pri-
aqueles que gênero contando as desventuras dos meiro romance no começo da década
estamos fa- dois amigos em meio ao turbilhão que de 1980.
miliarizados a muda todo o seu planeta. Participam
ver em leituras e filmes. A vida é dura de batalhas épicas e encontram estra-
para os camponeses e servos, nobres nhas criaturas, ao mesmo tempo em
disputam o poder – às vezes na pon- que procuram desvendar o mistério
ta de uma espada – elfos vivem semi- que trouxe os tsurunai ao seu mundo.
isolados nas florestas e anões explo- A série, chamada de Riftwar Cyclee – (Ci-
ram minas. Toda essa sensação de paz clo da Guerra do Portal), foi encerrada
se quebra quando Pug, o aprendiz de em 2013 com o lançamento mundial
mago de Crydee, e seu amigo Tomas, de Magician’s End,
d fechando um ciclo de
um jovem soldado, encontram um es- três décadas de mais de 15 milhões de
tranho navio naufragado. Sem saber, exemplares vendidos. Foi só em 1982 que publicou seu pri-
os dois revelam um plano de invasão Pode parecer impossível, mas todo esse meiro livro, Magician, que conta o co-
que irá colocar todo o seu mundo em sucesso começou por acaso. Raymond meço da Guerra da Brecha. O romance
perigo e começar a terrível Guerra do E. Feist, filho adotivo do produtor de tornou-se um sucesso de vendas, ga-
Portal. cinema Felix Feist, criou o seu univer- nhou três sequências diretas (Silverthorn,
É assim que começa uma das mais so como cenário para os jogos de RPG A Darkness at Sethanonn e Magician’s End)
d

BANG! /// 15
e deu origem a todo um ciclo de UM MUNDO RICO E COMPLEXO
histórias, espalhadas por livros, A história começa em Crydee,
quadrinhos e jogos para compu- mas logo se espalha por toda a
tador. Midkemia e chega a Kelewan,
Raymond E. Feist foi tão não só nos dois primeiros li-
bem-sucedido que, no décimo vros, mas na grande série que
aniversário da publicação de se sucede. Há vários lugares de
‘Magician’, lançou uma edi- interesse:
ção especial, dividindo o livro
em dois com – muito – mate-
rial extra. E é essa a edição, a
preferida do autor, que é lan-
çada pela Saída de Emergên-
cia como ‘Mago: Aprendiz’ e
‘Mago: Mestre’.

O segredo do sucesso da série


de Feist, que a fez atravessar
três décadas e ainda atrair leito-
res hoje em dia, parece simples.
Os livros combinam uma tra-
ma envolvente, bem detalhada Crydee: A cidade de Crydee
e construída, com um cenário é sede do ducado de mesmo
coerente que, ao mesmo tem- nome. É um posto avançado do
po que nos é conhecido, guarda Reino das Ilhas, no seu extremo 1
muitas novidades e surpresas. oeste, na costa do Mar Sem Fim.
Mas talvez seu grande trunfo Foi em suas praias que Tomas e
sejam os personagens. Seja na Pug descobriram o naufrágio de
cidadela de Crydee, na cidade de um navio desconhecido.
Krondor, nos campos de escra- Elvandar: A principal cidade él-
vos de Kelewan ou atravessando fica fica escondida no meio do
as minas de Mac Mordain Ca- Coração Verde, a grande floresta
dal, são eles que nos pegam pela ao norte do continente de Tria-
mão e fazem a história aconte- gia. Totalmente composta por
cer ao seu redor. Suas emoções árvores gigantescas ligadas por
e problemas são reais, convin- pontes verdes, é protegida de
centes e suas personalidades são
muito humanas, mesmo quan-
do estamos falando de seres
de outros mundos. São sempre
personagens carismáticos, pro-
tagonistas ou não, que transitam
com falhas e qualidades. Mesmo
entre os inimigos, os tsurani, é
possível encontrar pontos de
identificação.
Acompanhamos esses perso-
nagens no desenrolar da guer-
ra que se aproxima. Com eles, invasores por encantamentos e
vamos conhecendo a estranha criaturas como dríades, lobos e
raça dos tsurani, alienígena em ursos.
um mundo que convive com Ilha do Feiticeiro: Já foi conhe-
trolls, goblins e kobolds. Des- cida como ‘Insula Beata’, porém
cobrimos as terríveis brechas e depois que o mago Macros,
seu poder de desafiar o tempo o Negro, fugiu para lá, os ma-
e o espaço (o que dá um gos- rinheiros passaram a evitá-la.
tinho de Ficção Científica à Seus altos penhascos são enci-
saga, já que é comum nesse gê- mados por um castelo, de cuja
nero as histórias sobre os con- torre saem arcos de energia e
tatos, nem sempre pacíficos, ruídos medonhos. Nunca mais
entre duas raças de planetas ninguém viu o feiticeiro ou sabe
diferentes). o seu destino, já que o único si-

16 /// BANG!
nal de vida são os raios e uma única janela iluminada do
castelo.
Krondor: a cidade na costa do Mar Amargo é a sede do
ducado governado pelo Príncipe de Krondor, o herdeiro
do Reino das Ilhas. Com isso, tornou-se uma das mais im-
portantes cidades da parte oeste do reino, crescendo cada
vez mais. O palácio, que fica no centro da parte murada,
chama a atenção, pois fica no ponto mais alto da cidade.
Mac Mordain Cadal: a mina abandonada fica debaixo das
montanhas conhecidas como Torres Cinzentas. Um gran-
de rio subterrâneo percorre a mina, que se conecta com
passagens ainda mais antigas e inexploradas. Poucos se
aventuram a atravessá-las, já que são habitadas por criatu-
ras terríveis. Quem se arrisca, dificilmente consegue sair.

Quuanandodo era
do r ap peena
nas uum m
b bê,
be bêê, foi
b foi ab
fo baan nddo ona
ona
naddo o na
beirra ddaa eest
be stra
st rada.
da. Re
da Reco colhlhid
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po mon ngges,
es, fo
es foi le l vado
vaddo
va o attéé
o DuDuqu
Duquque de
que de Cryyddeee, e, quee o
een
ntr
treg
egouu par ara ra sseer crcria
iadodo por or
Mega
Mega
Me garr,, o cozozinzin
inhe heiirro,
o, e suaua Talvez depois de tudo isso ainda fique a pergunta “vale a
mulh
mu lher
lh er. AAddot
dootttad
aaddo popor am amb boos pena ler um livro que saiu há mais de trinta anos?”.
ccoomomo um fi filh
llh
ho,
o, seu
eu melhoelh
elhoo
orr am
amig igo o eraera To
er Tom
Toma maas,s, O bom de um clássico é que ele não envelhece. Está
filh
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ho le legí
ggííttiim
mo o dos
os doi oiss e as
aspi
aspi
pira
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nte a so
nt ollddado.
aaddo.
o. sempre atual, sempre tem algo novo a dizer para uma
No
N o final al da iin nfâ
fânc
ânc
nciaia, o
oss doi
ois papassssararamramm peello nova geração de leitores. Atualmente, a série de Ray-
rituuall da Es
ri Esco ollh
haa.. Ennqquuaant
nto seu
seu ami
se ammig igo se segu
egguuiu
iu mond E. Feist traz de volta uma fantasia mais aberta,
seeu sso onh
nho, o, Pug ug ficouu suurrp prres
resso aoa serr escol sco
sc ollhi
hido o em que magos fazem bolas de fogo, dragões falam e te-
como
co mo apr pren endi diz ddee Kuullga
diz g ann,, o veellh ho o mago ago da
ag da souros mágicos podem mudar a vida de alguém – para o
cort
co r e dodo Duq uque ue. A vi vida
da do jjo oveem aap prreennddizz de bem ou para o mal. Além disso, Mago: Aprendizz e Mago:
mago
ma ggo
o sof
ofrfre
reu uum ma ggrraan nddee rev
evir
iraavvol
voollta
lta
t qua uanddo,
uand o, Mestree são livros que falam sobre crescimento, transfor-
juunntto cocom T To o
oma
maas,, enc
m ncoonnttrrouu um ba barcrco
co ttssururan
ani mação e as dores da mudança, que sempre vêm com a
peertto da
p da ciddad a e.
e. Semem o saab ber
ereemm, eessttaavvaaam m ddaand ndo idade. E Raymond E. Feist tratou desse tema com uma
iníc
in íccio
ícioio à maaiior ior
or avveentur
ntur
nt ura ddaas suuasas vid idasa ! PuPug é um
Pug um propriedade que fez seus livros ainda serem tão relevan-
r ap
ra paaz iinnse
nse
segu
eguguroro e quuiietetto,
o, até
o, té ttím
ímido,
ím iid
doo,, maass quee sab be tes, mesmo trinta anos depois.
agirr co
ag omm cor o ag ageem
m quuaanddo a si situaç
tuuaççãão o pedede. e. Bomom
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obse
bseserrvvaddo orr, ac
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abba ssee torna
orna
or nan nddo am
do mig igo de de Fan anntu
tus,
tu
ONDE DESCOBRIR MAIS SOBRE O AUTOR:
o ddrraaggonet
oneette de
on de eest
stim
st imaaçção
ã do seeu m meest
esttre
re.
— midkemia.wikia.com
— crydee.com
— elvandar.com
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Fi lho do
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lho o cozin
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oz inheir
heeir
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ua eesspoposasa Maagg yyaa, T To ommaas
ccrres esce
ceu uum m gar arot
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o. Ass demai
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cria
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caarriismmaa,, e a nec ecesesssiiddaade
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xeennddo
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a eem m ennccrrennca cas – p paarara as qquuais
ais se
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p e,e, Tom omaass Ana Cristina Rodrigues, 30 e mais alguns
tinh
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arr--see um sso old
ldaaddo e ve ver o oss anos é escritora, historiadora, editora,
elfo
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os.
s. Se a EsEsco
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lha torn
torrn
to nou
ou o prriim meeiriro rreeaallid
idaadde,e, tradutora, professora e funcionária
taalv
ta lveezz o sseg
lv egun
eg ndoo não ão esttej eja lo
eja long
long
nge ddee se re
nge real
eal
alizar
izaarr.
iz r. pública. Com vários contos publicados,
O jo joveem so old
ldad
dad
ado ap preren nddeu
eu a usar saar be
bem a es
bem esp paada
da, tenta finalizar um romance. Tuita como
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mbo borara ain
inda
nda
da ten
enhaha ceerrto
ha o resspe peit
ito po
ito por ccaavvaallo os.
s. @anadefinisterra e seu blog é http://
Toma
To mas é b beem mais
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que seu seu cco
se o
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mpan anheeiro,
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ém de ter ter ca
te cabe
belo
los lo oiirrosos e olh lhos
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zuisis.

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BANG! /// 17
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re foii uma
ma crian riiaan
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beelldee e muuiita
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vezes
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Apeessar
Ap ar da ap par
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arên
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teevvee de sseer caasttig
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o seuu pai ai. O ppoovvo
o
ddee um home homem
ho mem ggo
me ord rdo,
o, aaddor
ora o seu
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se poorte
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elegegan
gan nte
te e a suuaa per
erso
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naalida
n liida
dade
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o mamago go e con nse
selh
selhheieiiro
ro
ro gen
ge neero
rosa
sa.
sa.
sa
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o Duque uque
uq ue Bor orriric dede
Cryd
Cr ryd
ydeeee é um ho home
homemem
ágilil, co
ág com re refl
refl
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os Op prrinci
inci
in cipe
pe Aru r uththa
ráp
rá piiddoos eemm batatalha
alha
al h . é o fi filh
lho
lh
ho ma mais is
Mesm
Me smo co
sm com su sua jove
jo vem do d Duq uquuee. É
po
p ossiiçã
ção n naa corrte
te duccaall, pprreffeerre mo m ra rarr em
m um maa ddeesc scri
cri
ritoo como
ommo se sendn do
caba
ca bana naa na flflor
oreessttaa próxi
or róóxi
xima
ma, juunt nto cocom
om FaF ntntus
ntusus,
us, meela
m lannccól
ólicco e me meno os
sseeu drag
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agon
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maaççãão o
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Barbrb
rbud
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udo,o, o seuu afáv
af fávvel
el do qu que sseeu
iin
nse
nse
sepa paráráve
áveel ca
cach
chim
ch mbobo par arec
ecece brot
brrot
otar
otar
ar do m meeio
io de iirr mã
mão m
mão maaisis veellho
ho,
um
uma
ma fl flor
ores
or esta
ta de cacabe
cabebelo
elo
los que
que es
qu escond
co
onddem m sua
suaa boc ocaa.. Lyyam
L yamm. CoComo o fifillho
ho
F i tu
Fo tutor
to
or do
d s ddo ois
is fillho
hos do
ho d Duqque ue e deessccoobr
briuu maaiiss no
mais ovvo eerra es
espera
espe
peera
p radoo quuee segguuiiss sse a ccaarr
sse rreiira ra
no jo
no ovvem em Pug ug um
um ta tale
ale
lentto at
até een ntã
tão insu
in
nsusp
suusp
spei
peeiitto
o mililitaar nu
mi
mili num b baaro
ron
naato
to daass frro ont
nteieiraas,
s, mas a o
parraa a maggia
pa ia. desttino
de inno rreese
ser
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as ssuurp prreesaas.
s. Só um ma
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ve ve de sesenttir
ir o ciin nto o de se seu p paaii..

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do,o, queue neebuulo
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riado
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18 /// BBAN
AANNGG!!
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uma grande população de Moredhel. Os Anões do Oeste,


A rústica cidade de Crydee é um posto avançado, na frontei- sob o estandarte de Dolgan Tagarson, da linhagem Tholin,
ra ocidental do Reino. Está localizada na foz do Rio Crydee chamam as Torres Cinzentas de lar. Há minas, cavernas e
junto ao Mar Interminável, no trecho conhecido como Cos- túneis antigos sob essas montanhas. Muitos foram cavados
ta Extrema. Em seus primeiros anos, era um forte keshiano, pelos Anões, enquanto procuravam ferro e ouro. Alguns
mas foi conquistada e transformou-se em uma fortaleza do são naturais, criados quando as montanhas nasceram. E
Reino, um ponto vital de defesa. Tudo o que, anteriormen- outros já estavam lá quando o povo Anão chegou às Tor-
te, era a velha província de Bosania do império keshiano, à res Cinzentas, cavados só os deuses sabem por quem.
exceção das Cidades Livres de Natal, tornou-se o Ducado
de Crydee. Muitos dos maiores heróis de Midkemia podem
chamar Crydee de lar – os mais famosos deles são Pug, To-
mas, Arutha e Martin do Arco.

Ilha do Feiticeiro está localizada no Mar Amargo, entre


as ilhas de Queg e Krondor; é um lugar misterioso e ater-
rorizante para os marinheiros. Lar de Macros, o Negro,
considerado por alguns o maior feiticeiro que o mundo já
O Coração Verde é a parte mais profunda das grandes flo- conheceu. No ponto mais alto da ilha, um castelo negro –
restas cercadas pelas Torres Cinzentas e pelo Rio Crydee uma coisa de aparência malévola com quatro torres e mu-
a leste e a oeste, pelo Lago do Céu ao norte e pela Costa ros de pedra – recorta-se contra o céu. O castelo é a fonte
Extrema ao sul. O Coração Verde é considerado um lugar de terríveis arcos de energia, raios prateados que sobem
de trevas e presságios, e desde que foi descoberto tornou-se alto no céu, desaparecendo por entre as nuvens, acompa-
um local de grandes perigos. A maioria teme os domínios nhados por zunidos barulhentos que ferem os ouvidos.
da Irmandade das Trevas, ou Moredhel, que vivem em suas Uma luz azul brilha pela janela de uma de suas altas torres,
mais profundas clareiras. Os Moredhel da floresta, embora mirando o oceano.
sejam um povo perigoso de se encontrar, não têm exata-
mente o mesmo nível de agressividade testemunhado em
seu clã da montanha ao norte.

Krondor é o lar tradicional do herdeiro legítimo do tro-


no do Reino das Ilhas. Localizado na costa leste do Mar
Amargo, é a capital do Reino Ocidental. Antigo entreposto
As Torres Cinzentas são uma cordilheira que se estende do comercial da cidade keshiana de Bosania, tem uma longa e
sul a partir do Lago do Céu até as Cidades Livres. Antes turbulenta história, em que numerosos príncipes e duques
da invasão dos Tsurani, as Torres Cinzentas eram o lar de batalharam pelo controle da cidade.

Veja, na página seguinte, o mundo de Midkemia


BANG! /// 19
20 ///// BAN
20 ANGG!!
6

NG! ///
BBAANG ///// 2211
que unificou os povos da ilha. Dois séculos depois, seu
descendente, Delong, o único rei a ser chamado “o Gran-
de”, trouxe o estandarte de Rillanon para o continente com
a conquista de Bas-Tyra. O conflito entre o Império do
Rillanon é a capital do Reino Oriental, e também a capital Grande Kesh e sua subsidiária, a Confederação Keshiana,
de todo o Reino das Ilhas, às vezes, é citada como “A Ci- levaram ao recuo das tropas keshianas de seus territórios
dade do Rei” e “A Joia do Reino”. Rillanon ergue-se como no norte. O Reino das Ilhas agarrou esta chance para
um amontoado de campanários altos, pontes graciosamente expandir-se fundo a oeste, abraçando as terras do Mar
arcadas, e estradas que se curvam gentilmente, espalhadas Amargo pela Cordilheira das Torres Cinzentas até o Mar
no alto de montanhas onduladas. Sobre torres heroicas, Interminável. O avô do Duque Borric, o filho mais jovem
estandartes e bandeirolas esvoaçam ao vento, como se a do Rei, levou os exércitos do Reino ao oeste e estabeleceu
cidade celebrasse o simples fato de sua própria existência. o Reino Ocidental. O Reino foi governado pela Dinastia
A cidade-ilha foi construída sobre muitas montanhas, com conDoin por várias gerações. Embora reconhecidos como
diversos riachos descendo para o mar. Parece aos visitantes uma única nação, o Reino tem duas personalidades distin-
ser uma cidade de pontes e canais, tanto quanto de torres tas e é, praticamente, dois estados unidos. Ao leste, a sede
e campanários. As construções são revestidas de blocos de do governo é a magnífica cidade de Rillanon, mas Krondor
pedra coloridos, muitos de mármores e quartzo, dando-lhes marca o começo do Império Oriental e governa as terras a
uma suave cor branca, azul ou rosa. Os paralelepípedos oeste de Crydee.
das ruas são regularmente limpos, e mesmo as sarjetas são
livres de lixo e entulhos vistos em outras cidades. Um rio
corre diante do palácio, de modo que a entrada foi cons-
truída sobre uma ponte alta que forma um arco por sobre
a água até o pátio principal. O palácio é uma coleção de
imensas construções ligadas por grandes saguões que se es- O Império do Grande Kesh está localizado ao sul do Rei-
parramam no alto da encosta no centro da cidade. A cons- no, ocupando a maior parte da região sul de Triagia. É a
trução é revestida de pedras de muitas cores, que lhe dão maior entidade política do continente. O Império é vasto
um aspecto de arco-íris. Muito da beleza majestosa de que e inclui muitos povos e culturas diferentes. Grande Kesh é
Rillanon goza hoje em dia foi obra do rei louco, Rodric. provavelmente a nação mais cosmopolita em Midkemia. O
controle poderoso que o Império tem sobre suas terras e
povos mantém a estabilidade necessária diante de tamanha
diversidade. Do centro do poder na antiga Cidade Imperial
do Kesh, nas margens do Overn Profundo, o Império é
governado por “aquele/aquela que é chamado de Kesh” –
Elvandar é localizada nas grandes florestas ao norte do uma Imperatriz ou Imperador que goza de statuss divino.
Coração Verde. Desde tempos remotos, é o lar dos Elfos
(Eledhel), protegida por feras e magia contra todos aqueles
que se aproximam sem convite. O centro de Elvandar é
uma cidade construída inteiramente com árvores gigantes
ligadas por pontes altas em forma de arco. Muitas dessas
árvores têm folhagem prateada, branca ou dourada. Os
elfos são um povo alto e gracioso cujas vidas naturais po-
dem durar séculos. São uma das raças nativas mais antigas
de Midkemia. Eram servos dos Valheru – os Senhores dos
Dragões – cujos grandes poderes abriram portais para ou-
tros mundos durante as Guerras do Caos, permitindo que
raças de humanos, anões, goblins e outras entrassem em
Midkemia. Os elfos e seus primos distantes, os Moredhel,
foram dizimados no conflito das Guerras do Caos e luta-
ram para sobreviver no mundo depois que os Valheru desa-
pareceram. Os Moredhel escolheram um caminho sombrio
e os elfos seguiram seu caminho na direção da luz. Os elfos
são governados pela Rainha Aglaranna.

O Reino das Ilhas, também conhecido simplesmente


como “O Reino”, foi um dia um restrito à ilha de Rilla-
non, mas cresceu e dominou os reinos das ilhas vizinhas, e
expandiu-se para o continente. A família conDoin gover-
nou o Reino por centenas de anos. Dannis foi o primeiro
conDoin a ser coroado Rei de Rillanon. Era um líder tribal

22 /// BANG!
N
ão escrevo San Diego quase quarenta anos Escrevi a história sobre Midkemia que
fantasia; escrevo atrás. Criamos pela diversão, como os Friday Nighters haviam criado.
romances passatempo. Foi lá pela época em O que nunca imagináramos
históricos que Dungeons & Dragons era uma todos aqueles anos atrás era que esse
sobre um lugar febre. Mas D&D era subdesenvolvido mundo iria adquirir vida própria além
imaginário. Pelo para nossos gostos, e decidimos nos de qualquer coisa que poderíamos
menos é como valer de nosso conhecimento em sonhar, que Midkemia encontraria seu
enxergo. Sempre tive uma imaginação história medieval e nosso amor pela caminho para casas de todo mundo
viva. Lia histórias de aventura quando fantasia para criar um mundo para – não apenas nossos apartamentos
era criança; Robert Louis Stevenson é jogo, mais completo: Midkemia. de estudantes. Eu não começara a
uma das maiores influências na minha Criamos personagens, países, alianças escrever então, e a possibilidade de um
escrita. E você simplesmente não políticas e disputas, um sistema de jogo de computador era nula, já que o
encontra algo como Os Três Mosqueteiros magia, um panteão de deuses – um computador pessoal não existia ainda.
ou Capitão Blood hoje em dia – de forma lugar maravilhoso e mágico que Criamos Midkemia apenas para nossa
que cabe à ficção científica e à fantasia não existia em lugar nenhum exceto diversão. Os livros, jogos e outros
preencher a lacuna. em nossas próprias cabeças. Nós o projetos em curso são todos parte de
Cresci em um ambiente familiar em trazíamos à vida quando nos reuníamos minha tentativa de compartilhar com
que a imaginação era encorajada, mas regularmente (toda noite de quinta- leitores e jogadores meu amor por este
hoje em dia se ouvem pessoas dizendo feira por um tempo, depois todas as excêntrico e impossível mundo criado
às crianças: “Pare de sonhar acordado e noites de sexta-feira), mestrando ou por “pobres famintos” estudantes de
preste atenção!” Crianças espertas são jogando com personagens. Jogadores graduação. Qualquer beleza única e
postas nas aulas de ciência, não em arte compreendem este tipo de criação maravilhamento advindos desse mundo é
ou música. Não se escuta “Ei, temos um de mundos, mas para muitas pessoas o legado daqueles criadores originais; sou
gênio aqui, dê-lhe um violino, um pincel, poderia parecer algo estranho. E talvez meramente um contador de histórias.
uma caneta.” Há um senso comum, seja, mas na minha opinião, não é mais E é esta a essência do meu trabalho.
atualmente nos Estados Unidos, de que estranho do que andar com carrinhos Não estou tentando produzir Arte
arte é o mesmo que frivolidade. Pessoas de golfe na chuva, colecionar cada (“A” grande). Estou tentando tocar as
“sérias” não ganham a vida escrevendo publicação de cada LP que os Beatles já emoções, trazer ao leitor um mundo
livros. Bem, eu ganho. Eu sou, por muita lançaram, ou comprar cada selo utilizado fantástico e exótico. Amo aventura e
sorte e alguma habilidade, um contador pelo Serviço Postal dos Estados Unidos. coisas assustadoras no escuro, e atos
de histórias remunerado, embora tenha Mais tarde, meu amigo Steve Abrams heroicos, princesas adoráveis que
sido programado para pensar que deveria sugeriu que eu contasse a história de precisam ser salvas (ou talvez não,
ser um cientista, médico ou advogado. como Greater Path Magic [A Mágica conforme as circunstâncias demandem).
De alguma forma, apesar dos grandes do Caminho Superior] (Não sabe o que Meu trabalho é uma aventura, e foi
esforços do Sistema Unificado de Escolas é? Leia os livros!) chegou a Midkemia, projetado para mostrar a você o que
da Cidade de Los Angeles, ainda consegui do que resultou meu primeiro romance as pessoas fazem em circunstâncias
me tornar escritor, um tecedor de contos, Mago, publicado em 1982. No intuito adversas e ambientes fabulosos. Meu
um criador de mundos. de entrar em conflito com o universo objetivo é entreter e surpreender, e não
Midkemia é um mundo virtual que havíamos criado, ambientei Mago, conheço nenhum lugar mais divertido
criado por um bando de amigos o primeiro dos romances da Guerra do e surpreendente do que o maravilhoso
da Universidade da Califórnia de Portal, 500 anos antes do nosso jogo. mundo de Midkemia.

BANG! /// 23
1

M
ago foi publica- através de Betrayal at Krondor, que eu me sinta velho. Prefiro
do em 1982 e deu o jogo para PC? Aliás, foi o pensar que, se tive algum im-
origem a uma sé- meu primeiro contato, o que pacto, foi o de tocar em um
rie de livros e a me fez procurar saber mais “senso
senso de maravilhamento
maravilhamento”
um universo que já apareceu sobre a série. que já estava lá.
em diversos formatos. O que REF: Bem, essa é a única ver-
mudou na Fantasia nessas três são que está sendo traduzida Magician’s End [O Fim do Mago]
décadas? Como isso refletiu atualmente. E como o nome foi realmente o capítulo final
numa série que foi escrita du- implica, é o texto que eu pre- do Ciclo? Quais os seus pla-
rante todo esse tempo? firo, já que na edição original nos como escritor, agora que
REF: Para mim, é difícil avaliar tive que cortar um grande Midkemia já não é um desafio?
o que mudou na Fantasia nes- trecho de material, que pude REF: Sim, Magician’s End [O
sas três décadas, já que estou acrescentar dez anos depois. Fim do Mago]] é o último livro
focado no meu trabalho e não Logo, o benefício – se é este de A Saga da Guerra do Portal.
na indústria de entretenimen- o termo – seria que o leitor Atualmente não tenho planos
to, mas sou um observador brasileiro teria em suas mãos o para Midkemia, já que estou
como qualquer um. O sucesso texto completo, não sua versão trabalhando em uma nova sé-
de filmes e jogos aumentou de condensada. rie, em um novo universo. Isso
uma forma totalmente nova o não quer dizer que não irei vol-
interesse do público em geral. Com a recente explosão da li- tar a Midkemia, mas que se isso
De Harry Potter a A Guerra dos teratura fantástica, surgiram acontecer, não teremos mais
Tronos, o gênero fantástico tem muitos novos nomes. Algum histórias da Guerra do Portal.
alcançado uma audiência muito que tenha chamado a atenção
maior do que jamais teve, prin- pela influência recebida dos O senhor tem alguma história
cipalmente fora do círculo dos livros de A Saga da Guerra do preferida entre todas as que
fãs de fantasia a que estava res- Portal? contou sobre Midkemia e as
trito na década de 1960. REF: Sinceramente, não pen- guerras? E algum personagem
so nisso. Acabei de voltar da marcante, que tenha dado or-
O livro chega ao Brasil já na Austrália, onde alguns jovens gulho de tê-lo criado?
sua “edição preferida”. No escritores disseram terem sido REF: É como ter filhos, você
que isso beneficia os leitores influenciados por mim. Isso é ama a todos apesar de suas
brasileiros, que só tiveram bom, mas ser uma influência diferenças. De todos os meus
contato com seu universo no trabalho de alguém faz com livros, alguns foram mais di-

24 /// BANG!
Ilusstr
Il traç
açãoo ddee M
Ilustração Maarrttin
Martin in Deschambault
Des
escchham
mbaul
bbaault
uullt

Detalhe da capa do
segundo volume, Mago
Mestre, nas livrarias
em 2014

vertidos de serem escritos, enquanto adaptações? Há alguma possibilida-


outros foram mais recompensadores de de vermos Pug, Tomas e outros RAYMOND
de outras formas. Adorei trabalhar
em colaboração e cada um dos au-
personagens de Midkemia nas telas
do cinema?
E. FEIST
Feist é um dos nomes mais
tores me deu dicas e ideias sobre o REF: Perguntam muito sobre isso. importantes da história da
processo criativo que eu não teria de Acontece que as pessoas não enten- literatura fantástica. Nasceu
outra forma. Acho que os persona- dem bem como funciona a indús- no Sul da Califórnia e,
gens são vistos de for- tria de entretenimen- atualmente, vive em San
ma diferente pelo es-
critor e pelos seus lei-
Espero que meus to. Nós estamos sem-
pre conversando com
Diego. Foi também em
San Diego que se formou,
tores. Entendo por que leitores brasileiros pessoas da indústria com honras, em Ciências da
meus leitores se ligam do cinema, TV e de
emocionalmente a um achem o meu jogos, então a pos-
Comunicação em 1977.
Tendo sido traduzido em
sibilidade das adap-
personagem – e aceito
isso como um fato. Mas trabalho tão bom tações está sempre
mais de trinta países, Mago foi
o seu primeiro livro e serve
para um escritor eles
são meios para atingir
e divertido que presente – mas só se
comercialmente fizer
de base para uma vasta obra
que tem conquistado, ao
um fim, para fazer a queiram ler mais! sentido. longo dos anos, as listas de
história progredir e adi- bestsellers do New York Times
cionar elementos dramáticos. Alguns E finalmente, o que o senhor es- e do Times of London.
são mais divertidos de serem escritos, pera do público leitor brasileiro? Quando não está escrevendo,
como Amos, Jimmy e Nakor, mas não Somos fãs muito dedicados quan- Raymond E. Feist é um
tenho orgulho de nenhum em espe- do nos apaixonamos por autores e colecionador de DVDs,
cial. séries! estudioso da história do
REF: Isso é tudo o que um escri- futebol americano, fã de
Atualmente, muitos jovens tornam-se tor pode querer. Espero que meus ilustração e um grande
leitores ao entrarem em contato com leitores brasileiros achem o meu apreciador de bons vinhos.
livros que foram adaptados para ou- trabalho tão bom e divertido que
tras mídias, sobretudo o cinema, mas queiram ler mais! Obrigado!
também jogos. Como o senhor vê as

BANG! /// 25
2 //
26 / / BBAN
A G!
ANG
Zezinho e Emília chegaram à varanda sorrindo, indiferentes à lama que
empoçavam no piso de ladrilhos florais. Sob a luz vermelha do crepúsculo,
a sujeira nas roupas pareciam manchas de sangue.
– Seus capetas! Vão já tomar banho! – gritou Vó Benta, sacudindo o braço
pelancudo. – Primeiro você, Emília! Isso lá é brincadeira de menina! – orde-
nou com o ar maternal desfigurado pela raiva.
A garota estava imunda. Restos de capim agarravam-se às meias coloridas,
e chegavam até os cabelos louros. Provavelmente seguira o primo numa das
explorações pelas matas do sítio.

NGG! //
BANG
BA /// 27
2
– A culpa é dele, vó! – Emília apon- corridas no assoalho, enquanto cruza- fofocas nos jantares de Natal, falecera
tou um dedo de Judas para o menino. va o pórtico da cozinha rústica. louco, abandonado num sanatório.
– Não me interessa! – Vó Benta sus- Zezinho subiu as escadas em dire- Abriu o baú. As dobradiças ga-
pirou, coçando as pálpebras por baixo ção ao quarto. Quando segurava a ma- niram como um cão ferido. Zezinho
dos óculos. – Vai logo, Emília, a janta tá çaneta para entrar, algo lhe chamou a cerrou os dentes e apertou as pálpe-
quase pronta! atenção. bras, esperando que a careta tivesse a
Zezinho abaixou a cabeça e aguar- Nos fundos do corredor, o quarti- habilidade sobrenatural de extinguir o
dou um esporro de proporções bíblicas. nho proibido jazia entreaberto. A por- barulho. Esperou dois minutos em si-
A avó inclinou-se, falando calmamente: ta pintada de branco sempre estivera lêncio. Como não detectou os passos
– Garoto, presta atenção... – O tom aferrolhada com um cadeado – intocá- contrariados da avó, prosseguiu.
ficou suave, quase o mesmo da mulher vel, graças às advertências da avó, po- O conteúdo da arca emanava um
atenciosa que o garoto tanto adora- rém, hoje, estava livre, empurrada pela odor de coisa velha, proibida. Um misto
va. – Você poderia ter se machucado. brisa de verão. de mofo e naftalina que não era inteira-
A floresta tá cheia de espinho e capim Vovó disse que ali ficava o depósi- mente desagradável. Viu uma foto des-
navalha. – Ela afagou-lhe a franja, der- to da família. Um lugar exclusivo para botada de Tio Sinésio. Zezinho acha-
rubando um carrapicho que se prendeu adultos, não crianças. va que fotografias de finados sempre
nas sobrancelhas grossas do menino. – Ponderando se deveria ceder à tinham um ar assombrado, como se a
Agora limpa os pés no tapete e toma um curiosidade, decidiu correr o risco. figura fosse piscar ou sorrir a qualquer
banho. Eu fiz cozido. Ah, que mal pode fazer? momento.
O menino esgueirou-se sorrateira- Mas o medo diminuiu ao surpre-
mente, tomando cuidado para não pi- ender-se com as semelhanças físicas
Zezinho imaginou o gosto sar numa tábua solta. A dona da casa que compartilhava com aquele mítico
tinha ouvido de tuberculoso e escutava Tio-avô. Herdaram as mesmas sobran-
da carne e dos legumes der- traquinices a quilômetros de distância. celhas grossas, juntas sobre os olhos.
Colocou a cabeça para dentro da Um bigode fino conferia ao homem
retendo na língua. Vó Ben- fresta, deixando a escuridão do cômo- um ar respeitoso, severo. 1
ta era uma cozinheira de do guilhotinar seu pescoço. Um tímido Explorou o tesouro um pouco
faixo de sol penetrava por um buraco mais, e achou uma velha farda do exér-
mão cheia e ficava feliz em no telhado e iluminava um baú rústico. cito esfarrapada. Medalhas e condeco-
Refletidos na luz, grãos de poeira gra- rações ornamentavam os cortes nos
entupir os netos de comida vitavam como minúsculos cinturões de ombros. O traje emanava uma tristeza
asteroides. profunda. Era a prova de que um dia
até as amídalas. Naquele Para um menino de dez anos, uma alguém o vestira, e agora, nem mesmo
arca iluminada pelo sol significava a in- seu cheiro permanecia no mundo.
tempo, expressões como terferência do destino – um convite à Um objeto fino e elegante lhe des-
aventura. Embora fosse um baú ordi- viou o olhar. Como todas as crianças
“alimentação balanceada” nário, Zezinho só pensava numa pos- daquela fase, jamais conseguia prestar
e “nutrição saudável” eram sibilidade: a atenção em alguma coisa por muito
Tesouro! tempo.
tão exóticas quanto um Entrou esbaforido e se arrependeu Era um cachimbo de bambu fina-
quase instantaneamente; estacou de mente trabalhado. Uma peça feita à
McDonalds numa aldeia terror, imaginando alguma lagartixa mão. Entalhes de pica-paus amareloss
nas sombras. Tinha pavor de répteis, formavam um arabesco em espirall,
Xingu. e seus piores pesadelos envolviam um que convergia para o pito. Embaixo do o
lagarto gigantesco que o perseguia na cachimbo, encontrou um diário enca--
– Tem milho, vó? – inquiriu Emília. floresta. dernado em couro. Tirou o caderno e
– Ah tem! – confirmou Vó Benta Tentando reduzir o pânico, pro- repousou ao lado.
– Milhos enormes que o Seu Pedrinho curou por um lampião. Tateou velhas Quando seu avô, o Visconde, es--
trouxe. Ele guardou os melhores para fotografias, roupas cheias de traças, tava em casa, gostava muito de fumarr
mim. entre outros cacarecos. Por fim, en- cachimbo na vasta biblioteca da famí--
– Oba! – disse Emília, correndo controu. Convenientemente, também lia. Zezinho apreciava o aroma acre do o
com rara satisfação para o chuveiro. havia fósforos. Acendeu a luminária, tabaco, mesmo quando lhe provocavaa
Zezinho arrastou os pés no capa- tomando o cuidado de fechar a porta lágrimas e tosse.
cho e entrou na casa aconchegante. atrás de si. Homens fumavam, então, ele tam--
Quase tudo era feito em madeira de lei Ajoelhou-se em frente à enigmáti- bém deveria fumar, afinal tinha quasee
e azulejos barrocos. Um útero acolhe- ca caixa. Um adesivo com letras meio onze anos. Já não era mais um mole--
dor, típico das zonas rurais mais prós- apagadas indicava que o baú pertencia que. A fumaça deixara o avô forte e
peras. ao Tio Sinésio. imponente, e Zezinho queria ser como o
Com um sorriso, Vó Benta retor- Zezinho jamais o conhecera pes- ele, para poder entrar na biblioteca a
nou aos afazeres. Era uma senhora soalmente, mas ouvira lendas a respei- hora que bem entendesse.
grande, cheia de carne abraçando ossos to. Tio Sinésio foi um herói da Guerra Pegou os fósforos desajeitadamentee
mastodônticos, entretanto, movia-se do Paraguai, condecorado pelo pró- e acendeu o resquício de tabaco socado o
com delicadeza; nem rangia as tábuas prio Duque de Caxias. Segundo as ali dentro. Um gosto de flores mortas e

28 /// BANG!
relva seca encheu-lhe a boca. A garganta incendiou-se, proo- erra fáfáci
c l sa
s crifi-
vocando uma tosse convulsiva... cáá-l
-los
os eem m no
n me
m
Mas ao invés de exalar fumaça, um torvelinho de pétalaas daa páttriia.
a Difícil era
brancas partiu de seus lábios, espiralando pelo ar, animadaas levantarem os traseiros fláciddos de
por um titereiro invisível. suas escrivaninhas, e manter o patrio-
Zezinho ficou encantado. As pequenas folhas saíam m, tismo com uma bala de chumbo fumegan ndo
d
fazendo-lhe cócegas no céu na boca. Tragou novamente, e nas entranhas.
dessa vez soltou um punhado de mariposas coloridas, quue Antes de ser iludido por esse
cintilavam os espectros do arco íris nas asas. nacionalismo irracional, Sinésio
O cachimbo era mágico! fora um homem de teoria, não de prr ática.
Mal conseguia conter a excitação. Precisava descobriir Lecionava literatura e gramática em Taua baté.
mais sobre o artefato! Apagou a chama com medo que vó Perdido na selva, tão longe da civilizaçaçção, a anti
t ga fleuma
Benta sentisse o cheiro. Mas cheiro de quê? Não havia fuu- intelectual cedera ao selvagem. Se a esp s ossa o visse agora,,
maça, só o fôlego criador da natureza. Um perfume de terrra certamente teria dificuldades em e receconhecê-lo: pele cur- r
molhada depois da garoa. Afinal, de onde veio o cachimbo o? tida em sol, sujeira, e ferida. O bi
bigo
g de – outrora apara rraaddo
o
Se havia alguma resposta para a charada, certamente estariia com elegância máscula – agorra integrava umaa ba b rb
r a er ere-
nas linhas daquele pequeno caderno. mítica.
Curioso, abriu o diário e começou a ler: Cuspiu no chão e olhou para os homens em m ativi
viidaaded.
O acampamento vivia uma rotina indolente. A comi m da
d não ão
ão
Relatório de campanha, Agosto de 1866. chegava com frequência, e os soldados precisavam see avven n-
turar entre os arbustos para caçar
caçar. Um de seus subordina-
subor
bor
ordina
Naqueles dias de inferno, a floresta brincava conosco. O ar quente dos, o índio Carlos Cupiaçaba – Cuca para os íntimos – es-
e úmido só alimentava a sensação de que todo aquele verde era um tava sobrecarregado. Além de ensinar os outros a capturar
monstro baforando em nossas nucas. Nem os pássaros cantavam na- animais e pescar em riachos barrentos, também rastreava os
quelas bandas. Era sempre silencioso, não o silêncio silvestre da natu- inimigos para a tropa. Era o único capaz de ler os sinais do
reza, mas a calmaria predatória que antecede o ataque... homem branco nos elementos da natureza.
Falando no Diabo, Cuca e mais dois homens voltavam
da mata com uma expressão sombria. Há dois dias pro-
capitão Sinésio Monteiro bebeu um gole de água na curavam indícios do Cabo Aurélio, desaparecido durante
moringa. O líquido rescindia a barro e minério de ferro. uma vigília noturna. Ninguém sabia o que lhe acontecera. A
O calor da mata era sufocante, e por mais que tragasse única evidência de que existira alguma vez nesse mundo de
toda a garrafa, não conseguia compensar o banho de suor Deus foi a faca que ele largara nos limites da selva.
que colava suas costas à farda encardida. – Nadinha dele, Capitão – Disse o soldado de pele ver-
Mosquitos orbitavam ao redor de seu cabelo negro, dei- melha, aproximando-se. – Desci o rio dois quilômetro mais
xando-o ainda mais irritado. Era o líder da companhia. Não Otávio e Praça Ribeiro, e não achamo o cabo. A essa altura
poderia se dar ao luxo de perder o controle – não depois do deve di tá todo carcomido pelos bicho. Tem monte di onça
desaparecimento do Cabo Aurélio. nessas banda.
Os homens estavam irrequietos, varrendo olhares hesi- Sinésio espantou os mosquitos, dizendo:
tantes para a floresta. Sabia que eles não procuravam inimi- – Não achou nada mesmo? Nem a medalha de identi-
gos. ficação?
Era a própria mata que os intimidava. – Não. – O índio coçou a cabeça, olhando para as botas.
Numa inspeção inocente, parecia apenas um bosque co- – Mas achamo um troço meio esquisito preso, lá nas preda
mum, como tantos outros. Não obstante, uma investigação do rio.
minuciosa fazia o animal perdido em seus genes lhe aguçar Uma mão fria dedilhou a nuca do capitão.
os instintos, pressentindo na quietude uma ameaça oculta. – Que coisa esquisita, como assim?
Não havia os sons subjacentes da vida silvestre, nem mesmo Sinésio fitou os homens atrás de Cuca. Eles fingiam que
um único criquilar de grilo. Aquela vegetação era amaldiçoa- não sabiam do que o índio falava. Saíram de fininho, pro-
da, temida até pelos mais estúpidos filhos da natureza. curando algo para fazer entre as barracas do acampamento.
Foram deslocados para aquele fim de mundo, próximo O índio manteve-se em silêncio. Revirou os olhos, como
a um afluente da Bacia da Prata. Os soldados de Francisco se buscasse as palavras corretas nos céus.
Solano rondavam o lugar, tentando estender as fronteiras – Fala, homem! – explodiu Sinésio. Não precisava de
do Paraguai, e abrir caminho até o Atlântico. Os rumores mais suspense nos nervos em frangalhos.
diziam que o ditador queria tomar o Rio Grande do Sul, e já Cuca levou um susto, explicando:
cercara a província de Corrientes, na Argentina. – Se voismicê quisé, posso leva tu lá pá vê. – Ofereceu
Sinésio jamais permitiria que a campanha de Solano com seu português campestre. – Nóis num teve coragem
prosseguisse. As ordens do Alto Comando foram expressas: de ih lá prá confiri.
guarnecer os pontos estratégicos até o último homem tom- Capitão Sinésio largou a moringa e inquiriu:
bar. E não eram muitos. A febre amarela sepultara metade – Estamos esperando o quê? – E saiu na frente, ajeitan-
do contingente. Restaram cinquenta e três soldados, uma do a bandoleira do rifle nas costas.
tropa ínfima para confrontar uma legião de gringos. Ele e Cuca voltaram para as matas com passos rápidos.
Mas não se tratava de vencer ou morrer; tratava-se de O ritmo da jornada tinha pouco a ver com determinação.
resistir com bravura. Militares burocratas não se destacavam Estavam com medo de que a noite preta e maligna caísse
pela inteligência ou senso de praticidade. Para os coronéis, sobre eles, antes de retornar ao acampamento.

BANG! /// 29
as que Diabo é aquilo? – inda- de identificação. Com um frio sopra-
gou Sinésio, ao apontar para do no estômago, Sinésio nem preci-
uma coisa brilhante nas rochas sou chegar perto para entender o que
do rio. via.
O sol da tarde parecia uma gema e Aquela árvore era o Cabo Aurélio.
lançava chamas sobre o objeto de sua
curiosidade. O Capitão não conseguia
discernir o que era, pois o objeto re- epois de contarem aos soldados o
fletia a luz, que se fragmentava num que tinham visto, Sinésio e Cuca
ouriço cintilante. permaneceram quietos o resto da
– Eu que num vô lá discobri! – dis- tarde. Esperavam que, ao ignorar o as-
se Cuca, sombreando a fronte com a sunto, pudessem refazer a realidade aos
mão. seus caprichos, e trazer Cabo Aurélio
A apreensão de Cuca era um in- são e salvo da floresta.
dicativo de perigo. Sinésio aprendeundeu O calor diurno foi cedendo lugar ao
a confiar nos instintos do soldaado. sereno, que anunciava sua presença nos
Cuca estava tão intimamente ligad do à ventos glaciais, soprados do Oeste. A
natureza quanto um bebê ao corrdão tarde extinguiu-se rapidamente, com a
umbilical. Conseguia interpretarr os lua no horizonte afogando o astro rei
sons, e mais importante: os silêncios numa poça de sangue.
da floresta. Nenhum pássaro piava Sentados ao redor da fogueira, ou-
nas árvores, dando a entender que a viam – com evidente desânimo – as
região era indigna de receber seus ni- bravatas de Alemão, um soldado valen-
nhos. te, enorme, oriundo do Paraná.
O capitão andou de um lado para – Acho que estamos caindo numa
outro na esperança de que o ângulo de tática de guerra! – disse Alemão, que
visão pudesse deter o reflexo da luz, bebia uma cachaça no gargalo. – Os
mas não adiantou. Teria que ir lá. paraguaios estão nos rondando, rindo
– Me espera aqui! – ordenou Siné- da nossa cara! Tão querendo nos assus-
sio. tar! Devem ter esculpido aquele troço e
Usando o rifle como muleta, o ca- colocado a medalha!
pitão avançou de rocha em rocha, en- – Acho que você está certo! – con-
caixando a baioneta entre as fendas. cordou Sinésio, levantando-se de um
Conforme se aproximava, os galhos tronco de mangueira tombado. – So-
de uma amendoeira – que se projetava mos adultos. O que é mais provável?
para fora da margem – iam eclipsan- Que alguém enfeitiçou o Cabo e o ar-
do o sol. O brilho reduziu um pouco, vorificou, ou que somos um bando de
delineando as características do objeto. borra-botas caindo nas artimanhas do
Tinha algo de vagamente familiar. As inimigo? – Girou nos calcanhares, bus-
formas remetiam à cabeça, braços e cando apoio nos olhares reticentes dos
pernas, mas estavam imóveis. soldados.
Olhou para trás e o índio se limita- Alemão tinha mais barriga do que
va a vigiá-lo em silêncio. cérebro, mas sua teoria parecia absolu-
Sinésio pulou para outra pedraa, in- tamente plausível.
terpondo-se entre a luz e a coisa. Percebeu que o medo escuro de
Era uma árvore em forma hum mana. alguns foi lentamente penetrado por
Na verdade, a julgar pelos detalhes, pa- uma faixo luminoso de razão. Alguns
recia mais uma escultura. Uma estátua riram forçadamente, dispostos a con-
perfeita de madeira. Cabelos e barba ter o pânico que marchava sobre suas
reproduzidos com folhas; mãos e pés espinhas numa fila de insetos fantas-
feitos com minúsculos ciprestes; dedos magóricos.
de raízes. O único que parecia à vontade era
Sinésio estreitou a distância e fi- Alemão, fosse pela embriaguez, fosse
cou impressionado com o detalhismo pela falta de imaginação.
da estátua: as linhas de expressão no – Quer saber? Vou provar que vo-
rosto fariam inveja à mais sensível obra cês estão se borrando sem motivo!
prima de Michelangelo. Órbitas preen- – Alemão começou a caminhar rumo
chidas por duas amêndoas entalhadas à floresta. – Não existe diabo, fantas-
simulavam um olhar de surpresa... ma, nem mula sem cabeça! – O gigante
Ou de horror. pegou o revólver e o colocou embaixo
Notou que o brilho se originava da pança suada, prendendo-o no cós
num retângulo de metal preso ao pes- da calça. Estava sem camisa. O tronco
coço da estátua. Parecia uma medalha oleoso refletia as chamas da fogueira.

30 /// BANG!
Os soldados observavam o espetáculo de bravura infan- Num ato reflexo, todos os outros soldados imitaram o
til, enquanto Sinésio berrava: atirador.
– Soldado, volta pra cá agora! – Cessar fogo! Cessar fogo! – berrava Sinésio.
Alemão ignorou a advertência, balbuciando o quanto to- As munições acabaram e no intervalo da recarga, o ca-
dos eram covardes. O capitão começou a seguí-lo. pitão ordenou:
– Alemão, isso é uma ordem! Volta pra cá agora! – Eu mandei parar, caralho!
– Fica manso, capitão! – respondeu o soldado. – Tu vai Os homens obedeceram trêmulos, suando em profusão.
ver que num tem nada naquelas árvores. – Vou só dar uma A fumaça de pólvora rescindia no ar, criando um nevoeiro
mijada! – E continuou andando. cinzento.
Diabo! O vento havia parado. Tudo ficou mortalmente quieto.
Sinésio trincou os dentes. Não podia ser desmoralizado As folhas estavam imóveis novamente.
diante de uma tropa com fome, medo e sede. O que viria a E foi nesse momento que uma aberração escarlate saiu
seguir? Um motim? da mata.
– Alemão, se você não der meia-volta, vou atirar! – Siné- Sinésio e os soldados apontaram as armas, preparados
sio apontou o rifle para as costas do insubordinado. para abater a criatura.
O paranaense ignorou. Parou nas raízes de uma fron- Mas não era um monstro.
dosa amendoeira e começou a abrir as calças, cantarolando Era Alemão.
alguma coisa que se perdeu no vento. Ele nem ouvira a Esfolado vivo da cabeça aos pés, ele parecia uma cari-
ameaça ou simplesmente não a levara a sério. catura retirada de um livro de medicina. Músculos e ner-
Espantados, os homens assistiam ao conflito. Alguns vos em carne viva brilhavam contra a fogueira, lustrando
tinham um brilho febril no olhar, desejando secretamente cinturões de gordura. Ele caminhava tropegamente, com a
que Sinésio consumasse a ameaça para lhes entreter a noite. banha incontida escorrendo pelo tórax descarnado. Cada
Sinésio mirava o Golias louro. O dedo transpirava na centímetro do corpo ardia tão hediondamente que ele nem
curva do gatilho, adquirindo a rigidez de um vergalhão. Se conseguia falar.
atirasse agora, o disparo desabrocharia uma rosa vermelha Alemão caiu de costas na relva, encarando o luar com
na carne adiposa do paranaense. olhos catatônicos.
Um milhão de coisas passavam em sua cabeça naque- Os soldados correram para acudí-lo; prestavam atenção
le instante. Talvez estivesse apenas arranjando um motivo em murmúrios pronunciados por dentes sem lábios.
para alvejar um inimigo que fosse palpável, e descontar a – Chá... a...chi – disse Alemão quase sem força –
frustração de estar onde não queria. Lembrou-se de como chá-a-chi
era se deitar numa cama quente e desfrutar o abraço tenro – Meu Jesus, quê que é isso? – choramingou um dos sol-
da esposa; do som musical das risadas dos filhos; do café dados.
fumegando nas manhãs de domingo; de seus romances en- Lutando para controlar o horror que ameaçava devo-
cadernados em couro; das aulas que aplicava na escola... rá-lo, Sinésio aproximou-se, tentando decifrar as palavras.
Não valia a pena. – Chá-chi... chá-chi – murmurava o paranaense sem pa-
Simplesmente não valia. rar.
Abaixou a espingarda, olhando para o distraído Alemão, Ele estava dizendo “tá aqui”, mas a boca sem lábios não
que tirava água do joelho... conseguia moldar as palavras adequadamente.
E foi quando alguma coisa puxou o gigante para a mata. O que estava aqui?
Foi tão repentino, que Sinésio piscou os olhos, achando A resposta veio numa cacofonia de gargalhadas malig-
que fora vítima de uma ilusão de ótica, então, começou a nas. O ar preencheu-se de um coro de vozes estridentes, rin-
ventar – não o vento soprado pela natureza, o ulular sinistro do em diferentes tons. Pareciam se comunicar num idioma
que anunciava a morte. sem palavras, onde somente as notas vocálicas tinham signi-
Era o mesmo vento que soprava na noite em que o Cabo ficado. Havia uma ordem subliminar naquele caos de risos.
Aurélio desapareceu. E eles vieram em toda a sua fúria.
Os homens levantaram de seus lugares, pegando as ar- Saindo de trás das árvores, velozes como panteras, com
mas. Prestavam atenção no farfalhar dos galhos. Uma or- olhos amarelos faiscando sua inumanidade, vultos mais ne-
questra de corações em pânico formava uma sinfonia de gros que a própria noite saltaram sobre os soldados.
tambores dentro de seus peitos amedrontados. Fitaram as Sinésio simplesmente não conseguia entender o que es-
sombras recortadas da mata, apontando os rifles e revól- tava vendo. As criaturas corriam de quatro, com os braços
veres. dianteiros apoiados em posição de flexão militar, pois elas
– É eles... – disse Cuca enigmaticamente. não tinham pernas; a metade inferior do corpo afinava-se
– Eles quem? – perguntou Sinésio, com todos os pelos numa cauda curvada para o alto, onde um apêndice em for-
do corpo eriçados feito lanças. ma de pinha oferecia um contrapeso.
– Os Sinhores du vento. O Praça Jarbas foi atingido violentamente por uma das
O Capitão fez uma careta confusa e o índio continuou: caudas. Houve um estalo de ossos quebrando, quando a
– Nem tudo qui nasci da terra é coisa di Deus, capitão. mandíbula dele foi arrancada. A língua ficou pendurada nos
Às veis, a natureza prova sangui dos homi e gosta. Esse ven- músculos, se contorcendo como uma lagarta.
to num é coisa normal. É um vento di raiva, di vingança... Um dos monstros colocou-se de pé feito uma naja em
Apavorado, um dos homens atirou a esmo para dentro posição de bote, e – segurando uma zarabatana com as
da mata. mãos – soprou um espinho envenenado.
– NÃO! – gritou Cuca. Mas os tiros espocavam mais O dardo atingiu Cuca bem no meio do rosto.
altos que sua voz. O índio caiu para trás com as mãos nos olhos. Deba-

BANG! /// 31
tia-se, enquanto a toxina mágica agia zia delas – formaram um círculo ao re-
no sangue, convertendo cada célula de dor de Sinésio. Eram machos e fêmeas,
seu organismo em madeira. Sinésio fez que mantinham distância com movi-
menção de socorrê-lo, mas o amigo já mentos cautelosos.
estava tão inanimado quanto a estátua A consciência de Sinésio relutava em
de Cabo Aurélio, presa nas rochas do aceitar a terrível realidade traduzida pe-
rio. los olhos. As monstruosidades tinham
o tronco e a cabeça impossivelmen-
te humanos. Eram atléticos, delinea-
dos por uma musculatura obsidiana,
tão rígida quanto carapaça de escarave-
lho. Ideogramas tribais espalhavam-se
pelo torso e rosto, pintadas com a seiva
escarlate de pau-brasil. Os olhos eram
amarelos, cortados por íris reptilianas.
Todos, sem exceção, cultivavam uma
vasta cabeleira crespa, trançada em
dreadlocks com caniços de bambu.
Um deles, bem maior e mais forte
que os outros, se aproximou. Caminha-
va com as mãos, exibindo a gigantesca
cauda escorpiana em toda a imponên-
cia. Sinésio encolhia em baixo da som-
bra, humilhado perante aquele ídolo do
mais puro ônix.
O Senhor do Vento andou ao re- 1
dor, estudando-o com arrogância, sem
esconder o ar de supremacia. Deveria
ser o líder, pois uma coroa de madeira
vermelha lhe ornava o topo do crânio.
– Ocê nem reagiu... – disse a criatu-
Sinésio assistia a tudo congelado de ra numa voz gutural, que resvalava en-
terror. Apenas testemunhava o massa- tre presas pontudas. – ... Num vali nem
cre. Os músculos se recusavam a obe- a pena matá um covarde que nem tu.
decer ao alarme de fuga que tilintava no Sinésio mal ousava olhá-lo; estava
cérebro. apavorado demais para encarar aquelas
Uma das bestas começou a girar o fendas elípticas.
rabo flexível, deslocando o ar acima da O líder parou na frente dele. Tirou
própria cabeça. Ela atraía folhas secas as mãos do cascalho, apoiando-se so-
para formar um pequeno redemoinho. bre a cauda grossa semienroscada. Com
O tufão – do tamanho de uma pessoa uma das garras, pegou uma zarabatana
– assobiava ameaçadoramente, então, a num cinto de palha, e com a outra, um
fera chicoteou o rabo, lançando aquela pedaço cônico de bambu.
boleadeira de vento no meio do con- O capitão orou em silêncio, aguar-
flito. dando o espinho de arvorificação, entre-
O furacão envolveu o soldado tanto, isso não aconteceu. O monstro
Braga, capturando-o numa armadilha encaixou o cone na ponta da zarabata-
rodopiante. Ele começou a levitar no na e transformou a arma em cachimbo.
olho da diminuta tempestade, quando, Sinésio ousou uma espiada. Do alto
repentinamente, as folhas que giravam da cauda, a criatura devia medir quatro
em velocidade subsônica lhe fatiaram a metros de altura.
pele. A vida foi espirrada de seu corpo, O líder sugou a piteira, tragando a
num jato vermelho. erva, e baforou um enxame de moscas
Eles não tiveram a mínima chance. varejeiras.
A chacina durou menos de dois mi- Numa situação confortável, Siné-
nutos. No final, só restava o moribundo sio tentaria racionalizar o que acabara
Alemão, e Sinésio, cujas lágrimas ver- de ver, porém, diante de todo fantásti-
tiam horror sobre as maçãs do rosto. co ocorrido, o cachimbo que produzia
Já havia se entregado à morte. A vida era um pormenor insignificante.
mente estava prestes a involuir até à Ele jogou o cachimbo aos pés do
simplicidade de uma criança, no canto capitão e disse:
escuro do quarto. – Ocê vai vivê pra conta o qui cê viu
As criaturas – pelo menos uma dú- aqui, homi branco. Vai falá di nóis pra

322 //// BAN


ANG!
NG!
tua laia, pra qui cês jamais pise di novo quando eram demasiadamente intole-
ni nossa terra. – O monstro apontou ráveis. Seu inconsciente adaptou-se, ge-
para a zarabatana-cachimbo no chão. – rando mecanismos que suavizaram a vi-
Eis aí tua prova di qui isso aqui num foi vacidade daquele relato, até que no fim,
só sonho. tudo não passava de uma lenda pueril,
As criaturas deeram as costas a Siné- sem qualquer traço de malevolência. O
sio e começaram a se retirar. Dessa vez insólito cedera lugar ao mundano, im-
não estavam apoiaadas nas mãos. Des- pondo sentido no inacreditável. Na ca-
lizavam em pé, seerpenteando a cauda beça de Zezinho, as caudas dos mons-
num movimento ssinuoso. tros foram transformadas em pernas
saltitantes, suas carapaças em pele escu-
ra, as gargalhadas diabólicas ganharam
Metade delas
de já havia o tom de risadas travessas, e a coroa de
pau-brasil virou um gorro vermelho.
desaparecido nas sombras, O menino Zezinho cresceu, e tor-
nou-se o homem José Bento. Ele foi es-
quando num impulso, tudar e graduou-se em Direito, quando
Sinésio chorosamente
choro per- passaram a chamá-lo apenas de Doutor.
Contudo, jamais esqueceu aquele
guntou: diário, e décadas mais tarde voltaria ao
sítio para relatar sua versão da história,
– Por Deus...
Deus Quem são assinando-a com seus dois últimos so-
brenomes:
vocês? Monteiro Lobato.

O líder parouu, olhando por cima


dos ombros poderrosos.
– Ocês dão no omi pra tudo, até pa-
quilo que num inteende. – Ele dirigiu um
olhar para o escallpelado Alemão, que
murmurava suas últimas
ú palavras nesse
mundo:
– chá-chi... cháá-chi... chá-chi...

Essa é a minhaa versão dos fatos. Fui


julgado pelo Alto Coomando e chegaram a me
acusar de traição. Não
N havia provas que me
incriminassem e nenhhum dos juízes acreditou
que eu poderia ter feiito aquilo com meus ho-
mens. Os ferimentos nnão eram de balas, pare-
ciam de animais, onçaas ou outra coisa. Minha
sobrevivência garantiuu a aposentadoria e um
monte de medalhas noo fim da guerra.
Essa é a verdadee, nada mais que a ver-
dade...

pavorado, Ze-
zinho largou o
diário.
Gabriel Réquiem nasceu no Rio de Janeiro, em 26
Naquela noite,
de dezembro de 1978. Profissional de Marketing e
pediu para dormir
colaborador do site Nós Geeks, divide seu tempo
no quarto da avó, te-
entre a literatura fantástica e sua paixão pela
mendo os estranhos
cultura pop. Estreou na ficção com o conto “O
ccha-chii que povoariam
último apóstolo” da antologia “Névoa – contos
seeus pesadelos, duran-
sobrenaturais de suspense e de terror”, onde
te anos.
homenageia uma de suas grandes influências:
Por muito tempo,
H.P Lovecraft.
em suua longa vida, acor-
Atualmente, vive no Rio de Janeiro com a esposa
daria comm gritos aprisionados
Vivian e conclui seu primeiro romance.
na garganta, sem
m lembrar a razão dos
Fale com o autor:
temores. No entan nto, a mente humana
gabrielrequiem.escritor@gmail.com.
tinha meios para ssuprimir lembranças,

BANG! /// 33
34 /// BANG!
BANG! /// 35
S
em nunca perder a “os leitores queixam-se de meus livros, dificuldades na transição de O Festim
humildade e a capacidade mas se tivessem lido as coisas que dos Corvoss para A Dança dos Dragões,
de agradar aos fãs e de dar li nesse livro, pensariam que o meu originando um hiato de cinco anos.
centenas de autógrafos material é para crianças”. A História Pergunto-lhe se o processo de escrita
durante horas, dizia-me que medieval sempre o impressionara pela dee Os Ventos de Invernoo já se tornou mais
os editores tinham a tarefa brutalidade e crueza, e a assimilação fácil e rápido, ao que responde de forma
de controlar a multidão, mas ele nunca desses eventos do passado tornou sua incerta. Martin domina com perfeição
falava “não” a um fã, “Safaa, você tem prosa mais real e profunda. os grandes arcos da sua história e dos
que ser o policial malvado, e eu sou o Mas nem tudo era só Crônicas.s protagonistas, mas os detalhes tornam-se
policial bonzinho”. Verdade seja dita, Contou-nos de seu tempo como uma batalha diária, e não é raro
não é fácil ser o “policial malvado” roteirista em Hollywood e das reescrever várias vezes a mesma cena até
no meio de uma sessão de autógrafos dificuldades em lidar com algumas estar satisfeito com o resultado final.
intensa, em uma cidade que nunca vira estrelas de TV que, quanto mais Confesso que, quando li os seus contos
tantos jovens na fila de um lançamento, famosas tivessem sido no passado, de ficção científica e o seu primeiro
à espera que aquele simpático senhor mais dificuldade tinham em aceitar o romance A Morte da Luz, z fiquei
de barba rabiscasse para a posteridade seu declínio e ofertas de trabalho na espantada com o romantismo e a
os seus livros. George confessava-nos TV. Hoje, raro é o ator que não aceita forte sensação de nostalgia e perda.
orgulhoso e radiante: “há jovens que de bom grado ter uma participação Longe estava o sarcasmo e a crueldade
nunca tinham vindo a um evento em uma série de sucesso, tal tem sido das Crônicas. Também me encantou
literário e esta foi a sua primeira vez”. a qualidade dos dramas e comédias, o seu enorme talento para o gênero
Era bem visível a satisfação e o prazer superando largamente a oferta do horror presente em vários contos
que lhe dava o convívio com os fãs. cinematográfica. George sabe da como o favorito e inesquecível “Reis de
Nos nossos passeios pela cidade, sorte que tem em ter produtores tão Areia”. Martin domina essa capacidade
conversávamos muito sobre sua empenhados em se manterem fiéis ao de incutir sentimentos de medo ou
escrita e Westeros. Ele bem via o espírito dos livros e são muitos os atores repulsa no leitor (quem não sente
meu entusiasmo quando começava maravilhosos que conferiram uma nova isso ao ler cenas de Gregor Clegane
a especular sobre alguns possíveis dimensão às suas personagens. Tenho ou da companhia de mercenários que
grandes segredos das Crônicass (eu tentei, algum receio em lhe confessar que confronta Jaime e Brienne?).
mas falhei, em obter a confirmação acho alguns protagonistas infinitamente Li no outro dia um ensaio na Internet
da identidade da mãe de Jon Snow) superiores na TV como Tywin Lannister que discordava do título “O Tolkien
e limitava-se a sorrir benignamente, ou Varys, mas, bem no fundo, acho que americano” atribuído a GRRM.
escondendo no brilho dos olhos todos ele sabe. Perdia muito tempo em comparações
os seus planos sobre as vidas de Tyrion, Sempre me interessei muito pelo literárias minuciosas com o mundo de
Jon, Daenerys, Arya ou Jaime. processo de escrita do famoso autor. É Tolkien. Na verdade, acredito hoje que
Contou-nos, em uma noite, que acabara uma saga de uma enorme complexidade, esse título encaixa com perfeição, não
de ler um livro magnífico sobre a centenas de personagens e casas, e não tanto pela faceta literária de ambos os
História de Jerusalém e ficara espantado é fácil manter o controle sobre uma autores, mas pelo impacto universal das
com a violência e crueldade descritas: criação tão vasta. Sei que teve muitas suas personagens e histórias na cultura

36 /// BANG!
NG! //
BANG
BA /// 37
37
3388 /////
// BAN
ANG!
NGG!!
pop. Já não basta saber sobre Frodo e
a destruição do anel de Sauron. É
necessário também compreender as Wild Cardss é um produto do seu tempo.
referências a A Guerra dos Tronos, se Naqueles anos, houve uma revolução
uma pessoa não quer correr o risco de nas Histórias em Quadrinhos e sugiram
passar como ignorante. Martin entrou obras de grande maturidade como
no cânone popular como apenas J. R. Watchmen, de Alan Moore e The Dark
R. Tolkien tinha conseguido antes dele. Knight Returns,s de Frank Miller. Wild
E é por isso que, diante de um autor Cardss acompanhou essa abordagem mais
tão popular, senti alguma apreensão em realista dos super-heróis e colocou-os
saber que tinha de entrevistar de novo no nosso mundo onde envelheceram
o Tolkien americano para a Bang! Brasil.l e foram transformados pelos eventos.
É um autor que já realizou inúmeras Lembro-me de ler as aventuras do
entrevistas e torna-se praticamente Homem-Aranha quando andava na
impossível não cair na repetição, mas escola e de Peter Parker entrar para a
George é incansável e a entrevista por faculdade ao mesmo tempo que eu. Mas
telefone e emaill decorreu sempre com a eu depois me formei e Peter Parker ficou
maior amabilidade e descontração. durante muito tempo formando-se e
preso à imagem de um rapaz de vinte
e poucos anos. Isso nunca fez muito
sentido para mim e era nosso desejo
distanciarmo-nos disso em Wild Cards.s
Trabalhei durante dez anos na área de A construção de um mundo é um
televisão e do cinema (mais ou menos dos principais elementos da fantasia
entre 1985 e 1995). Durante esse período, épica… pelo menos da fantasia épica
cada vez que apresentava o primeiro que vem no seguimento da tradição
esboço de um roteiro a uma produtora de Tolkien. O “mundo secundário”
ou a um estúdio, ouvia sempre a mesma onde a história se situa acaba muitas
resposta: “George, adoramos o trabalho, vezes por se tornar ele próprio uma
mas é grande e caro demais. Ultrapassaria personagem. Para um fã de fantasia,
dez vezes o nosso orçamento.” Então, a Terra Média, a época Hiboriana ou Trata-se de uma coletânea dos aforismos
lá começava eu a cortar, a resumir, a Nárnia são épocas tão reais e vivas de Tyrion Lannister e não terá qualquer
juntar personagens, a eliminar cenas. Por como o Oriente Médio e a Idade da informação nova relativa à personagem,
fim, acabava tendo um roteiro passível Pedra ou a África. Criar um mundo sendo a minha prioridade neste
de ser filmado, mas isso nunca foi um assim implica muito tempo e muito momento terminar as Crônicas.s Foi a
processo que me agradasse. Por isso, esforço… mas, uma vez criado, minha editora britânica que teve a ideia
quando regressei à prosa, em A Guerra passamos a ter um universo inteiro de criar esta edição para servir como
dos Tronos,s estava decidido a escrever algo cheio de histórias por contar. promoção de Natal. Achamos que seria
enorme, com milhares de personagens, um presente bonito para os fãs da saga.
repleto de cenários fantásticos, batalhas
grandiosas e efeitos especiais que só um
livro consegue conter. Num romance
não temos que nos preocupar com Anos atrás, em um texto que escrevi
orçamentos nem com calendários de para um livro de fotografias de autores,
filmagens. Só estamos limitados pela eu disse o seguinte: “A melhor fantasia
nossa imaginação. é aquela que é escrita na linguagem dos
É um privilégio fazer parte desta sonhos. É tão viva como os sonhos, mais
geração de autores, há talentos real do que o real… pelo menos por um
incríveis como Patrick Rothfuss, momento… aquele longo momento
Joe Abercrombie, Daniel Abraham mágico antes do despertar. A Fantasia
Sou um escritor lento, assíduo e e sinto-me muito feliz pelo sucesso é prata e escarlate, azul-índigo e anil,
meticuloso. Alguns escritores são dos meus livros ter possibilitado a raiada de ouro e lápis-lazúli. A realidade
arquitetos, que planejam o seu livro revelação de tantos novos talentos. é de madeira prensada e de plástico feito
inteiro antes de escreverem a primeira de lama castanha e de um verde pardo.
palavra. Outros são jardineiros, que A fantasia tem sabor de habaneross e de
plantam a semente, a regam (com sangue, mel, de canela e cravo-da-índia, de carne
suor e lágrimas) e a veem crescer. Sou vermelha exótica e de vinhos tão doces
muito mais um jardineiro do que um como o Verão. A realidade são feijões e
arquiteto. Sigo as minhas personagens até tofu e, no fim, apenas cinzas. A realidade
onde elas me levam, e, às vezes, é até um são as casas de stripteasee de Burbank,
final mortal. Depois, preciso voltar atrás as filas de chaminés de Cleveland, um
e rever. Mas em ficção, as personagens parque de estacionamento em Newark.
são tudo. A fantasia são as torres das Minas Tirith

BANG! /// 39
(de J. R. R. Tolkien), as velhas pedras de
Gormenghast, as paredes de Camelot. A
fantasia voa nas asas de Ícaro, a realidade
na Southwest Airlines.s Por que é que os
nossos sonhos ficam bem menores
quando finalmente se tornam realidade?
Penso que lemos livros de fantasia para
encontrarmos de novo as cores. Para
experimentar sabores fortes e picantes,
ouvir as canções que as sereias cantavam.
Há qualquer coisa de velho e de
verdadeiro na fantasia que fala para algo
de profundo que existe em nós, para a
criança que sonhou que um dia iria caçar
nas florestas da noite, banquetear-se
debaixo das ravinas de uma montanha,
e encontrar um amor que durasse para
sempre em algum lugar ao sul do reino
de Oz e a norte de Shangri-la”.

uma grande fidelidade e aprecio muito


esse esforço, mas não tenho planos
definidos caso a série me alcance.
Nenhuma decisão foi tomada. Estou hobbits regressam, Sauron é derrotado,
fazendo todos os esforços possíveis para mas as feridas de Frodo nunca saram e
que a série não me alcance, e escrevo será sempre assombrado pelas trevas do
o mais rápido que posso. Mas eu sou anel.
apenas responsável pelos livros e apenas
posso responder por eles. David Benioff
e Weis tomam as decisões que acham
mais convenientes para a série.

É muito lisonjeador. Penso que os livros


falam da universalidade da fantasia… um
gênero que nos toca a todos, qualquer
que seja o país onde nascemos ou a
língua que falamos.

Penso que a maioria das pessoas procura


entretenimento nos livros, certo tipo de Adoraria visitar o Brasil um dia desses.
escapismo. Não querem ter que ler sobre Devo dizer que estou com a minha agenda
violência e morte, e aceito essa decisão, cheia até 2016 ou 2017, mas, se for possível
mas não estou interessado em escrever um dia concretizar uma visita, certamente
finais “felizes para sempre”. Não é esse terei todo o prazer em conhecer os meus
o tipo de livro que me interessa. Já disse leitores brasileiros.
antes que faria um final agridoce, muito
à semelhança de O Senhor dos Anéis. Os

40 /// BANG!
BBAANNGG! ///// 41
4
A primeira vez que vi o nome de Joe Hill foi em
uma prateleira do Extra, na instigante capa de
A Estrada da Noite (Heart-Shaped Box, 2007). Em
uma era de tomos grossos, confesso que duvidei
– à primeira vista – de que poderia me interessar
pelo conteúdo daquelas poucas páginas. Bastou
uma conferida na sinopse e uma rápida folheada
para sentir algo, em algum lugar de minha
mente, sussurrando: – Compre.
Você não vai se arrepender. Não comprei.

A
penas dois mal; afinal, a nona arte era uma
anos depois, de suas maiores paixões, especial- 1
após descobrir
que Joe Hill
era discípulo
mente graças a Brian K. Vaughan
e Frank Miller, dois de seus rotei-
ristas favoritos, descobertos por
L ocke & Key conta a história
da família Locke e sua adap-
tação na velha Keyhouse, uma
de sangue de ele entre seus 20 e 30. mansão localizada em Lovecraft,
meu adorado escritor e mestre do Nessa tentativa de encontrar seu Massachusetts. Após o assassina-
terror Stephen King foi que deci- lugar no mundo, Hill teve alguns to do pai, os irmãos Tyler, Kinsey
di dar uma chance ao novato. Foi trabalhos recusados – normal para e Bode, junto à mãe Nina, tentam
preconceito, eu sei, mas que feliz- quem se aventura em tornar-se refazer suas vidas em uma nova
mente pude corrigir. Não posso escritor, roteirista e derivados. A cidade, na tentativa de deixar os
dizer que Joe lembra King; ainda Marvel, inclusive, recusou dois: traumas do passado enterrados.
que andem lado a lado no estilo, um foi Baby Hulk (inspirado pela Infelizmente, não será algo fácil,
Joe compõe ideias com roupa- raiva de seu próprio filho, na épo-
gem própria, sem apoiar-se no pai ca com dois anos e cheio do vigor
para se autopromover, tanto que infantil e cruel dessa espécie), e o
cita em diversas entrevistas Alan outro foi Locke & Key, sobre uma
Moore e Neil Gaiman como seus velha mansão cheia de chaves má-
favoritos na adolescência (imagi- gicas. A história foi recusada, mas
no se King teria sentido ciúmes não esquecida. Joe ficou com ela
ao saber disso). na cabeça, e passou noites em cla-
Antes de lançar A Estrada da ro criando toda a sorte de chaves
Noite, antes mesmo até de estou- e suas “especialidades”.
rar como escritor, Joe Hill ganha- A IDW Publishing, uma em-
va a vida com histórias curtas, presa de quadrinhos norte-ame-
e um dos últimos trabalhos no ricana, procurou Joe quando seu
anonimato foi um roteiro para segundo romance, Fantasmas do
a revista Spider-Man Unlimited, Século XX X (20th Century Ghostss,
um dos vários títulos da Marvel lançado originalmente nos Esta-
Comics. O enredo não era lá mui- dos Unidos em 2007, e no Brasil
to bom, era até bem genérico (pa- em 2008), começou a conquistar
lavras do próprio Hill), mas rece- prêmios. Estavam interessados
beu a arte de Seth Fisher (falecido em transformar contos de auto-
em 2006) e acabou parecendo res cultt em quadrinhos. Joe falou
muito melhor. Vender suas nove- de seu projeto engavetado sobre
las não estava se mostrando uma chaves mágicas, que poderia ser
tarefa fácil, então imaginou se seu contado em apenas seis edições, e
futuro não estava naquele ramo eles compraram. Nunca sonharia
alternativo. Não seria de todo que a série chegaria tão longe.

42 /// BANG!
pois, além das doloro- uma garota traumati-
sas cicatrizes da tragé- zada pela vida e por
dia, os Locke desco- seus próprios precon-
brirão que Keyhouse ceitos, diante da pos-
possui um morador sibilidade de se rela-
disposto a tudo para cionar com um rapaz
conseguir o que deseja. pela primeira vez; o
Rotular a série como caçula, ainda em pos-
terror seria ultrajante, se da coragem infan-
pois há muito mais til, descobrindo um
ao longo das páginas novo mundo atrás de
ilustradas pelas mãos portas mágicas. Trans-
habilidosas do talento- mitir determinados
so Gabriel Rodriguez. sentimentos é missão
Há drama, suspense, primordial dos escri-
romance, cada qual se tores, e nem todos o
encaixando como uma conseguem em cente-
chave na fechadura nas de páginas de um
certa. O desenvolvi- livro. Nesse quesito, o
mento dos persona- feito de Hill é pleno,
gens acontece gradual- e estamos falando de
mente, como deve ser. quadrinhos. Quais-
Nada de personalida- quer discussões sobre
des rasas ou mal traba- o motivo do sucesso
lhadas. Como em toda de seus romances ter-
boa história que se pre- minam aqui.
ze, são os personagens
os responsáveis pelo
carisma de Locke &
Key. Seria muito mais
fácil conduzir uma van
repleta de adolescen-
tes bêbados, drogados
e ninfomaníacos até
Keyhouse, e fazê-los
N ão posso compa-
rar Locke & Key
com a história publi-
se perder, um a um, em cada em Spider-Man
algum canto da casa, Unlimited, a qual pa-
onde encontrariam receu melhor do que
uma miríade de chaves realmente era graças a
com poderes distintos, uma bela arte, e o mé-
e transformar tudo rito de Joe é indiscutí-
num slasherr teen pipo- vel, mas seria injustiça
ca. Evolução de personagem pra ser que te impedem de progre- não citar Gabriel Rodriguez como
quê, se pode-se jogar sangue pra Rotular dir, de enfrentar o medo. Agora a outra metade responsável pelo
todo lado e deixar peitos à mostra a série como pense na possibilidade de tirar, que a série se tornou. Gabriel não
em uma correria desenfreada pela definitivamente, essa memória somente desenhou, mas ajudou
vida? Fique tranquilo, não há nada
terror seria de sua cabeça, e prendê-la dentro Joe a criar. Exceto por pontos
disso aqui. ultrajante, de uma garrafa ou apenas jogá-la específicos, Joe não descrevia em
Assim como há crescimento pois há na privada e dar a descarga. Você muitos detalhes o aspecto visu-
comum, há também crescimento não o faria? Isso é evolução for- al do quadro, mas era detalhista
forçado. Deixe-me explicar este
muito mais çada. em termos de informações que
último: existe uma chave com o ao longo Joe Hill trabalha com domínio queria transmitir em certas cenas.
poder de abrir cabeças – literal- das páginas sobre o medo do desconhecido, Joe era bem específico quanto aos
mente. Esse “procedimento” dá e não me refiro apenas ao sobre- sentimentos dos personagens, sua
acesso às memórias da pessoa, em
ilustradas natural. Uma família que, de re- linguagem corporal, o clima ne-
algo que permito-me intitular país pelas mãos pente, teve o pilar da família ar- cessário para a cena. Então, entre-
das maravilhas. As lembranças têm habilidosas rancado de forma brutal de seu gava o roteiro para Gabriel, como
formas e correm livres pelo inte- meio, e precisa reaprender a ser um desafio, e com a licença para
rior de uma cabeça oca. É pos-
do talentoso família; crianças chegando em modificar elementos que fun-
sível tanto vê-las como pegá-las Gabriel uma nova cidade, afastadas da cionariam melhor visualmente.
para observar detalhes mais mi- Rodriguez. rotina aconchegante e obrigadas Gabriel fez a lição de casa direiti-
nuciosamente. Imagine você que a recriar laços com outras pes- nho. Seu estilo é bastante distinto,
há traumas tão vinculados em seu soas, e, pior, consigo mesmas; e nota-se em Locke & Key uma

BANG! /// 43
1

linguagem visual própria. É como apresentação da equipe, geral- lise, mas sei bem do que falo. Lo-
alguém quando lê um trecho de mente entre a primeira e quarta cke & Key é mais do que apenas
algum livro de Stephen King e páginas. Em vez do típico rotei- quadrinhos. No Eisner Awards
sabe, de algum modo, que é dele. rista: fulano, desenhista: beltrano de 2009, foi indicado como Me-
As ilustrações de Gabriel para a em fontes e posições frias, os lhor Série Limitada, enquanto Joe
série pertencem à série, ponto. É nomes são dispostos em tom de Hill foi indicado como Melhor
uma arte diferente de qualquer brincadeira, como, por exemplo, Escritor. A série venceu o British
outro quadrinho mainstream. É gravados no tronco de uma árvo- Fantasy Award ainda em 2009
possível sentir a delicadeza no re, com direito a coração talhado, como Melhor Comic ou Graphic
traço, o capricho, o respeito para ou como ingredientes no rótulo Novel, o Eisner Award de 2011
com o leitor, em trazer um traba- de uma bebida. São particularida- como Melhor Escritor (Joe Hill),
lho lapidado em seus mais indis- des que podem passar desperce- e foi indicada como Melhor Edi-
pensáveis detalhes. Aqui o imper- O leitor lê bidas para olhos desatentos, mas ção Única, Melhor Série Contí-
ceptível ganha destaque. uma a uma que mostram a qualidade do que nua e Melhor Desenhista. Em
Passei minutos demais em di- se tem em mãos. 2012, ganhou o British Fantasy
versos pontos analisando cada e imagina Como em qualquer história, o Award como Melhor Comic ou
centímetro dos desenhos, e as as histórias vilão sempre corre o risco de pa- Graphic Novel.
capas são um show à parte. Por escondidas recer caricato se não for dosado.
exemplo, a capa da segunda edi- Joe conseguiu criar um com ca-
ção do arco Head Games mostra por trás de risma suficiente para carregar o
a cabeça do caçula, Bode, em per- cada seção, título. Inicialmente apresentado
fil, com uma espécie de radiogra- até se dar como uma linda garota no fundo
fia colorida exibindo seu cérebro de um poço – que não conse-
dividido em várias seções, cada
uma dedicada ao que habita a
conta de que
se esqueceu
gue esconder sua verdadeira face
diante de um espelho – e passan-
E m 2011, no San Diego Co-
mic-Con International, foi
exibido um teaser do que seria o
cabeça de uma criança: mãe, qua- de ir direto do para um rapaz de traços an-
episódio Piloto de uma série tele-
drinhos, meus brinquedos, luga- dróginos e, ainda assim, bastante
res em que consigo subir, lugares à história masculino, é um dos personagens
visiva baseada no roteiro de Joe
Hill. À primeira vista, a novida-
em que não consigo subir, TV, e principal. mais bem desenvolvidos. Suas
de foi recebida com entusiasmo,
por aí vai. O leitor lê uma a uma ações não se justificam somente
mas, à medida que tudo (elenco,
e imagina as histórias escondidas pelo mal; há toda uma história
efeitos, adaptação) era processa-
por trás de cada seção, até se dar por trás de seu intento. Os dedos
do e avaliado pelos fãs e pela mí-
conta de que se esqueceu de ir folheiam ávidos, tomados pelo
dia, a possibilidade de aquilo fun-
direto à história principal. Outra desejo de descobrir os mistérios.
cionar foi minguando, até perder
grande sacada se dá na página de Pareço exagerado em minha aná-
a força e, até hoje, não há notícias

44 /// BANG!
positivas sobre o projeto. Particu- chaves mágicas para se livrar de
larmente, para transpor Locke & problemas, inimigos, ou tornar a
Key em toda sua totalidade, seria vida um pouco mais fácil, mes-
preciso uma produção mais HBO mo a custos altos, é assustador
e menos ABC, o que se nota ao por si só. O caminho mais rápido
assistir ao vídeo de divulgação. O para uma solução pode não ser Tiago Toy é escritor de literatura fantástica e criador
elenco só é reconhecido quando o certo, e uma vez que se decida da saga Terra Morta, considerado o primeiro romance
prestamos atenção ao sexo e à segui-lo, é preciso encarar as con- de zumbis nacional de sucesso, lançado em 2011.
idade. Fisicamente não possuem sequências. Então chega-se ao O primeiro livro da série, subintitulado Fuga, dominou
fidelidade alguma com os perso- verdadeiro terror. o 1º lugar de Mais Vendidos de Horror da Amazon.
nagens criados por Gabriel e Joe. A última edição de Locke & Atualmente, Tiago trabalha na revisão do segundo
Kinsey, na HQ uma garota com Key está prevista para outubro volume a sair em 2013, na produção do roteiro de
piercings e dreads,s se tornou uma de 2013, fechando o arco Alpha uma HQ, e na organização da coletânea Terra Morta –
patricinha que pratica natação. & Omega e, consequentemen- Relatos de Sobrevivência a um Apocalipse Zumbi. Tiago
Nina, a mãe alcoólatra e depres- te, a série. Joe e Gabriel plane- Toy também é colaborador do portal de Horror Boca do
siva, transmite calor materno, o jam partir para outros projetos, Inferno e contista presente na lista de Mais Vendidos
oposto da original. Seria muito mas afirmam o desejo de voltar da Amazon.
bom ter uma série de Locke & a Keyhouse para mais diversão. about.me/tiagotoy
Key, mas se for pra pisar na jaca Segundo a dupla, há 300 anos de facebook.com/terramortaoficial
dessa maneira, é melhor continuar história para explorar lá. Inclusi-
apenas como um desejo longín- ve, Joe conta que há uma histó-
quo. ria passada durante a Segunda
Os efeitos não são dos piores, Guerra Mundial, quando o sub-
mas, comparados às mais recen- terrâneo sob a mansão era usado
tes produções, como o citado A como ponto de observação sub-
Guerra dos Tronoss ou mesmo The marino, que pretende contar em
Walking Dead, d estão mais para um arco de seis edições. Tenho
666 Park Avenue. Se eu disser que certeza de que a IDW manterá
esta última foi cancelada, talvez a porta aberta para a dupla. Essa
você entenda parte do motivo não precisará de nenhuma chave
de minha crítica. O plot segue especial.
o primeiro arco, Welcome to Eis o convite para entrar em
Lovecraft, e não parece se dis- Keyhouse e descobrir as chaves
tanciar muito dos quadrinhos. mágicas escondidas em suas en-
A adaptação manteve a tragédia tranhas. Aliás, estou curioso: qual
do início da série, mas escolheu chave você gostaria de encontrar?
por contá-la em flashbacks; não
atrapalha a narrativa, e a torna
ainda mais dramática. Infeliz-
mente – ou seria felizmente? – o
vídeo não saiu do pouco mais de
dois minutos. Talvez, com o lan-
çamento de Horns (adaptação
cinematográfica do livro homô-
nimo, lançado em 2010 e tradu-
zido no Brasil como O Pacto)
pelas produtoras Mandalay Pic-
tures e Red Granite Pictures, e
dependendo da repercussão, o
interesse em levar Locke & Key,
seja para o cinema ou TV, se rea-
cenda no peito de algum produ-
tor competente.
O terror presente na série é efi-
ciente. Não se apoia unicamente
no sentido visual, mas no psico-
lógico. Keyhouse possui seus de-
mônios, mas os Locke, e também
outros personagens vinculados ao
passado da mansão, como desco-
brimos no decorrer das páginas,
escondem os seus próprios. Estar
diante da possibilidade de utilizar

NG! ///
BANNG!
BA //// 45
4
46 /// BANG!
barco a vapor trouxe-nos de a ela. Apoiava-se no noivo quando ca- damente de costas para as rochas para
Constantinopla até à cos- minhava e ficava sentada com bastante que não pudéssemos ver os seus dese-
ta da ilha de Prinkipo, onde frequência para descansar, enquanto nhos – disse eu.
desembarcamos. Não eram uma pequena tosse seca e persistente – E nem precisamos vê-los – disse o
muitos os passageiros. Havia interrompia os seus murmúrios. Sempre jovem polonês. – Temos à nossa frente
uma família polonesa, pai, que tossia, o seu acompanhante parava paisagem suficiente para admirar. – Um
mãe, filha e o noivo desta, e atenciosamente a caminhada. Ele olha- pouco depois, acrescentou: – Parece-me
nós dois. Oh, sim, e não pos- va sempre para ela com um ar de com- que está nos retratando como uma es-
so esquecer-me de que, quando paixão sofredora, mas ela lhe devolvia o pécie de pano de fundo. Bem, deixe-o
já estávamos na ponte de madeira que olhar e dizia: para lá!
liga o Chifre Dourado a Constantino- – Não é nada. Estou feliz! Tínhamos realmente paisagem sufi-
pla, juntou-se a nós um grego, um ra- Eles acreditavam na saúde e na feli- ciente para olhar. Não existe canto do
paz bastante jovem. Era provavelmente cidade. mundo mais bonito ou mais feliz do que
um artista, a avaliar pela pasta que trazia Por recomendação do grego, que Prinkipo! A mártir política, Irene, con-
debaixo do braço. Os cabelos longos, se separou de nós assim que chegamos temporânea de Carlos Magno, viveu ali

pretos e ondulados, flutuavam-lhe até ao cais, a família instalou-se no hotel da durante um mês, quando estava no exí-
os ombros, o rosto era pálido e os olhos colina. O encarregado do hotel era um lio. Se eu pudesse ali viver durante um
negros estavam profundamente enter- francês e todo o edifício estava confortá- mês, viveria feliz com as memórias da-
rados nas órbitas. O rapaz despertou vel e artisticamente equipado, seguindo quele lugar para o resto dos meus dias!
o meu interesse desde o início, princi- o estilo francês. Jamais esquecerei aquele único dia que
palmente pela sua delicadeza e conheci- Tomamos o café da manhã juntos passei em Prinkipo.
mentos das condições locais. Só que fa- e, quando o calor do meio-dia esmore- O ar era tão límpido como um dia-
lava demais e acabei me afastando dele. ceu um pouco, decidimos subir para as mante, tão suave e meigo que a nossa
A família polonesa era bem mais colinas, onde, no bosque de pinheiros alma pairava nele, elevando-se na dis-
agradável. O pai e a mãe eram pes- siberianos, nos deliciamos com a vis- tância. À direita, para lá do mar, eleva-
soas bondosas e simpáticas, o noivo, um ta. Mal tínhamos acabado de encon- vam-se os acastanhados picos asiáticos;
moço jovem e bonito, de modos diretos trar um lugar adequado para nos ins- à esquerda, ao longe, estendiam-se as
e refinados. Dirigiam-se a Prinkipo para talarmos quando o grego reapareceu. violáceas costas íngremes da Europa. A
passar os meses de Verão por causa da Cumprimentou-nos levemente, olhou vizinha Chalki, uma das nove ilhas do
filha, que se encontrava um pouco aba- ao redor e sentou-se a poucos passos Arquipélago do Príncipe, erguia-se com
tida. A bonita e pálida moça ou estava de nós. Abriu a pasta e começou a de- as suas florestas de ciprestes até uma al-
se recuperando de uma doença grave ou, senhar. tura pacífica como um sonho lamento-
então, uma doença séria estava chegando – Acho que ele se sentou proposita- so, coroada por uma grandiosa estrutu-

BANG! /// 47
lágrimas. A mãe dela comoveu-se tam- das. Sentamo-nos sob a bonita varanda
bém e chorou, e eu – até eu – senti uma coberta do hotel.
estran
anha pontada. Tínhamos acabado de nos sentar
– Aq
Aqui, o corpo e a mente têm de quando começamos a ouvir sons de bri-
melhorar – murmurou a moça. – Que ga e impropérios. O nosso grego estava
terra feliz é est
esta! discutindo com o encarregado do hotel
– Deus sabe be qque não tenho inimi- e nós ficamos escutando, por pura diver-
gos, mas se os tiv tivesse, seria capaz de são.
perdoá-los aquiqui! – exclamou o pai com A diversão não durou muito tempo.
a voz trêmul
mula. – Se eu não tivesse mais hóspedes
E fi
ficamos
ca mais uma vez em silêncio. – rosnou o encarregado, subindo os de-
Estáv
távamos todos com uma disposição graus na nossa direção.
maravilhosa – todo o cenário era indes-
ma – Mas me diga, por favor, senhor –
critivelmente doce! Cada um de nós sen- pediu o jovem polonês quando o fun-
tia um mundo de felicidade dentro de si cionário se aproximou –, quem é aquele
e todos partilharíamos a felicidade com cavalheiro? Como ele se chama?
o resto do mundo. Todos nós sentíamos – Oh! Quem sabe como se chama
o sujeito? – resmungou o encarregado,
olhando venenosamente para baixo. –
ra – um asilo para aqueles
aque cujas mentes Nós chamamos-lhe de o Vampiro.
estavam
am doentes. – É um artista?
O Mar de Mármara
M agitava-se sua- – Mas de rico ofício! Ele só desenha
vemente e exi
exibia todas as cores, como cadáveres. Assim que alguém morre em
uma opala brilhante. Ao longe, o mar Constantinopla ou aqui na vizinhan-
era branco como o leite, depois rosado; ça, ele tem, no próprio dia, um retrato
entre ambas as ilhas, brilhava em tons completo do falecido. O sujeito pinta-os
alaranjados e, por baixo de nós, era ma- com antecedência e nunca se engana – é
ravilhosamente azul-esverdeado, como como um abutre!
uma safira transparente. Era resplan- A velha mulher polonesa gritou as-
decente em sua própria beleza. Não se sustada. Em seus braços, repousava a
avistavam grandes navios – apenas duas filha, branca como a cal. Tinha desmaia-
pequenas embarcações com a bandeira do.
da Inglaterra corriam velozes ao longo Em um só impulso, o noivo desceu
da costa. Uma delas era um barco a va- os degraus. Com uma mão agarrou o
por do tamanho de uma torre de vigia, grego e, com a outra, a pasta dos dese-
a outra tinha cerca de doze remadores nhos.
e, quando os seus remos se erguiam Corremos atrás dele. Os dois ho-
da água simultaneamente, caíam deles mens rolavam pela areia. O conteúdo da
pingos de prata derretida. Os golfinhos pasta espalhou-se por todo o lado. Num
confiantes nadavam ao redor e mergu- dos desenhos, feito a carvão, estava a jo-
lhavam com longos e arqueados voos vem polonesa, de olhos fechados e com
à superfície da água. O céu azul era uma coroa de murta na cabeça.
ocasionalmente cruzado pelas calmas
águias que planavam, medindo a distân-
cia entre os dois continentes.
Toda a encosta que se estendia por
baixo de nós estava coberta de rosei-
ras carregadas de rosas cuja fragrância
inundava o ar. A música viajava até nós
através do ar límpido, vinda do café per- o mesmo – e, por isso, ninguém pertur-
to do mar e ligeiramente abafada pela bou ninguém. Mal tínhamos reparado
distância. no grego que, passada cerca de uma
O efeito era encantador. Ficamos to- hora, se levantara, fechara a pasta e com
dos sentados em silêncio, deixando que um ligeiro aceno de cabeça anunciara a
as nossas almas embebessem comple- sua partida. Nós ficamos.
Finalmente, depois de várias horas, Jan Neruda (1834 – 1891) nasceu em Pra-
tamente aquela imagem do paraíso. A
quando, ao sul, a distância se começava a ga e foi um jornalista, autor e poeta checo,
jovem polonesa estava deitada na relva,
tingir de um tom violeta escuro, tão ma- um dos representantes mais notáveis do
com a cabeça apoiada no colo do noivo.
gicamente bonito, a mãe recordou-nos Realismo Checo, assim como membro da
Seu rosto pálido, oval e delicado, estava
que estava na hora de partir. Levanta- “Escola de Maio”.
ligeiramente tingido com uma cor suave
e de seus olhos azuis começaram a cair mo-nos e caminhamos até o hotel com
subitamente lágrimas. O noivo enten- os passos soltos e descontraídos que
deu, curvou-se e beijou cada uma das caracterizam as crianças despreocupa-

48 /// BANG!
Se perguntarmos ao grande público o que Castelo de Otranto (1764), do inglês Horace que lhe atribuímos hoje e uma definição
é o Fantástico, certamente, não haverá Walpole (1717-1797), a origem do gêne- possível e bastante abrangente: fantástico
muita dificuldade na resposta e nos exem- ro; outros dizem que foi somente com o é uma narrativa que subverte e/ou ex-
plos: são histórias de coisas que não exis- contista alemão E. T. A. Hoffmann (1776- trapola as regras e limites daquilo a que
tem e trata-se do gênero mais frequente 1822) que o fantástico começou de fato, chamamos de Realidade.
nas grandes bilheterias do cinema, da base já no início do século XIX; e outros ainda, No Brasil, essa questão torna-se
da maioria das Histórias em Quadrinhos acreditam ter sido o romance O Diabo um pouco mais simples, uma vez que é
e é aquele que domina grande parte das Enamorado, do francês Jacques Cazotte somente no século XIX que a literatura,
listas dos livros mais vendidos em quase (1719-1792), publicado pouco depois de fato, brasileira se consolida. Em outras
todo mundo. Contudo, a origem desse do livro de Walpole, o primeiro texto palavras, o fantástico brasileiro nasce
gênero (que, a princípio, era “apenas” fantástico propriamente dito. Por fim, há, praticamente ao mesmo tempo que a
literário) é, e sempre foi, muito discutida inclusive, quem diga que o gênero sempre noção de literatura nacional, quando, após
e questionada, e seus limites não são tão existiu; segundo essa vertente, ele derivaria a independência, os primeiros românticos
óbvios assim. diretamente das grandes narrativas épicas, brasileiros conquistaram seu espaço e a li-
Muitos críticos e historiadores li- tais como A Ilíada e A Odisseia, de Home- teratura fantástica stricto sensu, nascida com
terários atribuem ao romance gótico O ro, o livro As Mil e uma noites e a epopeia o romantismo gótico do final do século
de Gilgamesh. Entretanto, sem entrar nessa XVIII, na Europa, ganha
discussão, é inquestionável que foi no final formas mais definidas.
do século XVIII e no século XIX que o
gênero fantástico ganhou os contornos

BANNGG! ///// 49
BA 49
ra, ou se tudo não se passou acorda pela manhã ainda
de um sonho. A aparente no cemitério e as únicas
coincidência suscitada pela “provas” de que tudo não
morte da menina intensi- foi apenas um sonho são
No início, as manifestações do fantástico fica a hesitação do leitor, as urzes quebradas junto a
eram poucas. Raros são os textos com hesitação que torna o texto um túmulo. A cena acaba
elementos fantásticos antes de 1850, verdadeiramente fantástico, e permanece a dúvida. Um
pois, naquela época, o Brasil (e por con- segundo a teoria de Tzvetan ano depois, o rapaz retorna
sequência, sua literatura) ainda estava se Todorov, autor de Introdução a Roma e novamente se
estabilizando enquanto nação e, por isso, à Literatura Fantástica. depara com o insólito: em
os textos da primeira metade do século um templo vazio encontra
XIX são, sobretudo, obras de inspiração NOITE NA a mesma moça que jul-
nacionalista e ufanista, ou mesmo regio- T AV E R N A gara ver no ano anterior
nalista, no intuito de exaltar a identidade É, porém, com Manuel abandonada em um caixão
nacional e buscar as nossas raízes histó- António Álvares de Azeve- aberto; tudo leva a crer que
rico-culturais. Contudo, alguns român- do (1831-1852), que o fan- ela está morta, mas, inexpli-
ticos herdeiros do romantismo gótico tástico de fato ganha força cavelmente, ela acorda. Não
já davam mostras de um ainda invisível no Brasil, ainda que com se pode saber ao certo se
fantástico brasileiro. poucos elementos verda- estava morta e por milagre
deiramente brasileiros. acordou, ou se estava viva
UM SONHO Considerado o maior e seria enterrada enquanto
Salvo relatos esparsos de mitos e lendas expoente do chamado dormia; esta dúvida entre
de nosso folclore, talvez a primeira ma- ultrarromantismo, Álvares uma explicação sobrenatu-
nifestação propriamente fantástica na de Azevedo tinha em Lor- ral e uma explicação lógica
literatura brasileira tenha se dado com de Byron (1788-1824) seu possível é ainda corrobora-
o conto “Um sonho”, do esquecido grande mestre e, por isso, da pelo fato de Solfieri estar
Justiniano José da Rocha (1812-1863), trouxe não apenas muito ébrio quando a encontra.
político, jornalista e escritor romântico. do romantismo melancó- Ao fim, ele a salva, mas a
Seu conto “Um sonho”, publicado em lico inglês para suas obras, moça acaba morrendo.
11 de janeiro de 1838, no jornal O Cro- mas também a atmosfera
nista,
a traz a história de Maria e Teodora, gótica de terror, mistério MACÁRIO
avó e neta, que vivem pobremente em e sonho, este último tal Já na peça Macário, o fan-
residência que parece ter sido bela e rica, como se viu no conto de tástico está presente desde
um dia. A menina nada sabe de seus pais Justiniano. o começo e permanece em
até que, em seu leito de morte, Maria Azevedo morreu cedo, todo o texto que se inicia
resolve contar o segredo de suas origens: antes de completar 21 com a chegada de Macário
Teodora era filha de Tereza, filha única anos, mas foi autor de uma a uma estalagem. Lá, pede
de Maria, que fugiu da casa materna e obra relativamente extensa, a ceia e descobre que seu
seguiu uma vida de excesso e devassidão. permeada por elementos burro fugiu levando consi-
Anos depois, Maria, que sempre procu- sobrenaturais tipicamente go suas bagagens. Enquan-
rara pela filha, recebe uma carta de Te- fantásticos, como se vê em to come, entra o “desco-
reza pedindo-lhe que venha encontrá-la. Noite na taverna,
a seu único livro de contos. nhecido”. Desconsolado por ter perdido
A moça, antes tão bela, é achada suja Essa obra conta a história de um o cachimbo – que estava junto na baga-
e envelhecida, à beira da morte. Pouco grupo de boêmios que, após uma orgia, gem que o burro levava – e por não ter
antes de morrer, entrega a pequena filha narram suas aventuras dramáticas e vinho na taverna, Macário se queixa ao
à mãe. Isso tudo Maria conta a Teodora surpreendentes aventuras amorosas. As desconhecido, que prontamente tira uma
antes de falecer. Mais alguns anos se histórias estão repletas de crimes e per- garrafa das vestes e dá-lhe outro ca-
passam e Teodora se deixa corromper versões desde homicídios até necrofilia, chimbo; quando Macário pede-lhe fumo
e segue os passos da mãe. Fraca e infec- antropofagia, fratricídio, incesto e infanti- recebe a resposta: “É uma invenção
tada pela tuberculose, é acometida pelo cídio, inferindo aos contos um ar trágico nova. Dispensa-o.” O jovem agradece e
remorso. Então, uma noite, o fantasma e macabro, típico do romance gótico. pergunta o nome do desconhecido que
de Tereza aparece para a filha e diz: “não Apesar disso, dentre todas as narrativas se nega em dizê-lo. Cria-se, então, um
quiseste seguir os conselhos de tua avó, do livro, a única que traz de fato o sobre- suspense em torno de sua identidade,
preferiste o exemplo de tua mãe: pois natural é o conto “Solfieri”. mas ao fim ele admite ser o diabo. E para
bem! venho aplaudir-te; daqui a três dias Ele começa com a visão de uma desconcerto do leitor, Macário não se
estarás comigo... no inferno”. A moça bela noite enluarada, Solfieri passeia surpreende com essa revelação.
acorda desesperada e dá-se conta de que pelas ruas de Roma quando vê ao longe Um tempo depois, já na casa de
tudo foi somente um sonho, arrependi- uma sombra que parecee ser uma mulher Satã, os dois conversam frente a uma
da, jura a si mesma que mudará de vida. chorando. A cena é teatral: luzes se apa- janela; bebem, fumam. Ouve-se um grito
Contudo, passados os três dias, Teodora gam, a lua desaparece, começa a chover. agourento ao longe; o diabo comenta
cessa de existir. Solfieri tenta seguir a sombra em meio à que é meia-noite. O diabo leva Macário
O conto, portanto, lança a dúvida se escuridão e, de repente, percebe estar em para o campo e adverte que ele deve dor-
de fato o fantasma apareceu para Teodo- um cemitério. Sem saber como adormeceu,u mir. O rapaz acorda sobre um túmulo,

50 /// BANG!
despertado por Satã, que lhe pede
que conte o que sonhou; Macário
diz que sonhou com uma mulher
pensativa que caminhava nua
entre cadáveres e que os tomava
nos braços. Ouve-se, então, novo
grito; Satã diz que é “o último
suspiro de uma mulher que mor-
reu”. O jovem treme de medo,
e pergunta de quem é o suspiro,
ao ouvir de que é de sua mãe já
morta, começa a chorar e Satã a
rir. Macário pede que o outro vá
embora, este vai, não sem antes
dizer que pela manhã Macário o
chamará de volta. Acaba a cena.
Tal como em Noite na ta-
vernaa a atmosfera fantástica se
intensifica e o horror, frente ao
que lhe é narrado, surpreende o
leitor. Novamente se está, como
no conto de Solfieri e no de Jus-
tiniano, no âmbito do fantástico O Pesadelo, Fuseli
onírico. E o fantástico apenas se
intensifica na cena seguinte, quan-
do Macário acorda na estalagem
janela uma orgia. A peça termina Inesperada- mortos e pelo cheiro, ele conclui
com as duas personagens ouvin- que são fantasmas. Tudo o que
onde conhecera Satã. A moça do os homens que conversam lá mente, a mú- se sabe é que o conde se juntou a
da estalagem lhe informa que dentro. fantasmas nesta horrível cavalgada
faz horas que tenta acordá-lo; ao sica cessa, a silenciosa, pois embora muito
vê-la, Macário faz perguntas sobre O CONDE LOPO donzela desa- tenha tentado falar, por falta de
o burro e sobre o desconhecido; Para além de seus textos em pro- resposta se calou. Cansado pela
ela lhe responde que o burro está sa, Álvares de Azevedo também parece, tudo cavalgada, o conde cai; ouve-se o
amarrado na baia, que ninguém
lhe fez companhia à noite e que
se valeu do fantástico em alguns se esvai, o som das gargalhadas dos fantas-
poemas, como em O Conde Lopo, mas; com esforço, consegue sair
ele não deixou a estalagem um só longo poema narrativo, ou, como conde percebe do alcance das patas dos cavalos.
momento e conclui, benzendo-se: preferem alguns, longo “romance E exausto, desmaia, não como
“Se não foi por artes do diabo, o metrificado”.
que tudo não um morto, mas como um bêbado.
senhor estava sonhando.” Alivia- O livro conta a história das passou de um Acordou um tempo depois sen-
do, Macário chega à conclusão aventuras do conde. Em uma das tindo as pernas serem puxadas,
de que tudo não passou de um passagens mais interessantes, ele sonho “abriu os olhos turvos – viu em
sonho, mas eis que vê uma mar- está num jardim, meio ébrio, não torno/ Um batalhão de folgazões
ca no chão; mostrando-a para a se sabe ao certo se dormindo, e espíritos/ Diabinhos pigmeus
moça esta se assusta e diz: “Um então eis o primeiro acontecimen- d’olhos brilhantes”. “Ergueu-se
pé de cabra... um trilho queiman- to estranho: surge um fantasma. maldizendo a noite aziaga”; ouviu
do... Foi o pé do diabo! O diabo Os dois conversam e o fantasma uma risada aguda e avistou ao lon-
andou por aqui!” Desta forma se revela uma moça, ou uma síl- ge outro fantasma, que lhe vendo
termina o primeiro episódio, de fide, e o conde lhe cobre de per- tremer de horror foi com ele falar.
modo que, assim como em rela- guntas. Mas “a visão não falou” e O fantasma queixa-se de frio e
ção ao sonho que teve no cemité- vão juntos para a beira de um lago então oferece guarida ao rapaz em
rio, Macário fica sem saber se seu onde se encontram com um bar- seu túmulo de pedras. O Conde
encontro com o diabo realmente queiro e para pagar-lhe os serviços Lopo, entretanto, logo o deixa
aconteceu. Sonho dentro do so- o conde dá-lhe um rico colar. O e caminha até uma Igreja onde
nho. O relato da moça, a presença barco se lança às águas e a sílfide soavam os sinos da meia-noite.
do burro, tudo leva a crer que começa uma canção belíssima. Novamente, meia-noite. Conti-
foi apenas um sonho, porém, há Mas, inesperadamente, a música nuando em sua errante caminha-
a marca no chão – assim como cessa, a donzela desaparece, tudo da, chega a um banquete, no qual
havia marcas ao redor do túmulo se esvai, o conde percebe que todos os convivas estão mortos.
na narrativa de Solfieri. tudo não passou de um sonho. Isso, curiosamente, agrada-lhe;
O fantástico retorna nas Em outro trecho, vê-se uma senta-se com eles e toma para
últimas páginas do livro, quando, cavalgada, um corcel infernal guia- si uma taça de vinho, porém, ao
Macário se reencontra com Satã. do pelo conde; logo, juntam-se a provar, sente o gosto de sangue;
Ambos se dirigem a uma “sala ele outros cavaleiros. Percebe-se, com isso já não mais lhe agrada a
fumacenta”, e veem através da então, que estes parecem estar cena; acha-a pavorosa. Eis que se

BANG! /// 51
levanta um fantasma pútrido, que outrora fora uma mulher, e Já com Macedo, e seu conto
convida-o a dividir-lhe o leito; o conde não aceita, inesperada- “O Fim do Mundo” o Brasil se
mente os fantasmas em coro repetem: “À dança! à dança!” e, torna palco dos acontecimentos
formando um círculo em torno do conde, começam a dançar, insólitos e das aventuras do último
e tanto dançam e giram que o conde sente vertigens. Tudo se homem da terra. Mas o fantástico
dissipa. de Macedo não se limita a este
O livro continua assim por muitos trechos, nesse imenso conto. Ainda na década de 1860,
percurso entre o sonhar e o despertar que confunde o leitor publica o livro A Luneta Mágica,a
e suscita o fantástico. O Conde Lopo pode ser cotejado com os outra história de viés alegórico,
outros textos de Azevedo, pois em todos há a possibilidade ambientada no Brasil, livro que foi
de explicação natural dos sonhos, como havia em Macário, em considerado o primeiro romance
“Solfieri” e no conto de Justiniano, mas ainda assim, perce- fantástico brasileiro.
be-se o elemento fantástico tão caro a Álvares de Azevedo.
A LUNETA MÁGICA
AS BRUXAS O livro conta as aventuras de Simplí-
Passando, então, a outro texto emblemático, encontramos o cio, um rapaz quase cego que sonha
também ultrarromântico Fagundes Varela (1841-1875) que nos em enxergar. Por isso, procura o
deixou seu conto “As Bruxas”. Publicado muitos anos depois Reis, um vidraceiro, que, após muito
de sua morte, “As Bruxas” traz outro tipo de fantástico, no tentar, percebe que nenhuma de suas
qual há a certeza do elemento sobrenatural. Neste conto, um lentes pode ajudá-lo. Com pena de
grupo de marinheiros é encantado por bruxas que chegam Simplício, Reis o apresenta ao armê-
voando em suas vassouras. Já no navio, as bruxas, transfor- nio, um mágico europeu com quem
madas em belas mulheres, seduzem-nos e o grupo parte em trabalha. O armênio promete-lhe
viagem para mundos estranhos, onde os jovens colhem plantas então uma luneta, mas adverte que
típicas. Quando voltam, elas retomam a aparência grotesca e se olhar por ela por muito tempo
voam em suas vassouras. No dia seguinte, mostram as plantas verá o que há de pior no mundo. A luneta acaba lhe trazendo
que trouxeram ao capitão que, surpreso, conclui que em uma infelicidade e uma série de infortúnios e, depois de um tempo, ele
só noite haviam ido à Índia e voltado. retorna ao armênio que lhe faz uma nova luneta, desta vez, com
Neste conto, não há o sonho propriamente dito, porém, lentes capazes de mostrar apenas o bem. Todavia, novamente,
tal como em Macário ou “Solfieri” o elemento sobrenatural essa luneta lhe traz problemas, pois, enxergando somente o bem,
aparece à noite, e somente à luz do dia é que se consegue Simplício passa a ser enganado por todos. No fim, o armênio
questioná-lo e, neste caso, confirmá-lo. lhe presenteia com a luneta do bom senso com a qual Simplício
pode ver o mundo em sua totalidade, com seu lado bom e seu
O FIM DO MUNDO lado mau.
Por fim, como um último exemplo do fantástico onírico vale
lembrar o conto “O Fim do Mundo”, de Joaquim Manuel de DANÇA DOS OSSOS
Macedo (1820-1882). De modo muito diferente, Bernardo Guimarães (1825-1884),
Mais conhecido como o autor de A Moreninha, a Macedo o último dos românticos de que iremos falar, também retratou
foi autor de alguns textos significativos para o fantástico brasi- o Brasil. Mas outro Brasil. Em seu conto “Dança dos Ossos”,
leiro. Em 13 de Junho de 1857, quando havia rumores de que publicado no livro Lendas e Romancess em 1871, temos um “cau-
um grande cometa colidiria com a terra, Macedo publicou no so” típico das regiões rurais do país. Nesta história, Cirino, um
Jornal do Commercioo o conto “O Fim do Mundo”. Texto alegó- velho barqueiro, conta ao narrador a fatídica vida de Joaquim
rico, de viés pseudocientífico e bastante político, traz a história Paulista, assassinado, à traição, no meio da mata, por um anti-
do homem que resolve fugir do fim do mundo criando uma go pretendente de sua namorada, e, em seguida, Cirino conta
escada imaginária com os bancos do país, na base da escada como veio a se encontrar com o fantasma de Joaquim. O caso
está o Banco do Brasil e acima dele os bancos menores. Com é que a alma de Joaquim Paulista permanecia vagando e as-
isso, consegue se refugiar na Lua e voltar à terra após a passa- sombrando a redondeza, pois seu corpo não fora devidamente
gem do cometa. Já na Terra, descobre que todos os seres estão enterrado e seus ossos se espalharam pelo local. O conto traz
mortos e que é o último homem do planeta. Ao fim, acorda e alguns elementos da narrativa de horror de fantasmas, mas, ao
comemora que o mundo não acabou. mesmo tempo, tem um veio de humor satírico, tal qual o con-
to “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, do escritor americano
Washington Irving (1783-1859), com o qual se assemelha em
diversas passagens.

ORGIA DOS DUENDES


Já em “Orgia dos Duendes”, um longo poema narrativo,
Se por um lado Álvares Azevedo foi muito importante por ter Guimarães conta a história de uma espécie de sabá, onde
sido um dos primeiros a tratar largamente do gênero fantástico bruxas, duendes, um lobisomem, uma mula sem cabeça,
no Brasil, por outro, não se preocupou em dar ares nacionais diversos diabinhos, um crocodilo e alguns sapos se reú-
a seus textos que se passavam todos na Europa ou em locais nem frente a uma fogueira para danças macabras enquanto
imaginários. Com Fagundes Varela, um tema como as viagens contam as histórias de suas perversões para sua rainha. Ao
às Índias vem à tona, algo muito mais próximo ao imaginário fim de vários horrores, a orgia dos duendes acaba. O dia
brasileiro da época, ainda de maneira tímida. amanhece, os pássaros cantam, pareceria ter sido um sonho,

52 /// BANG!
se uma bela donzela virgem não tivesse
assistido a tudo escondida nas sombras
de um arvoredo.

CONTOS A ficção científica, que nada mais é


AMAZÔNICOS do que uma das possíveis variantes do
Em caminho semelhante, o escritor rea- fantástico, difundiu-se no século XIX,
lista Inglês de Sousa (1853-1918) compôs sobretudo, a partir das obras de Júlio Ver-
seus Contos Amazônicos,s publicados em ne (1828-1905), seu principal precursor.
1893. Neste livro, tal como Guimarães No Brasil, Júlio Verne foi muito lido e
fez em “Orgia dos Duendes”, o autor também muito traduzido. E até imitado.
brincou com o folclore nacional e mitos Outros ainda fizeram obras à sua maneira,
amazonenses que resultaram em contos como é o caso de Augusto Emílio Zaluar
como “Acauã” e “O Baile do Judeu”. (1825-1882), escritor português natura-
O primeiro conta a história do Ca- lizado brasileiro, autor do romance Dr.
pitão Jerônimo Ferreira que, certa vez, Benignus,s publicado em 1875 e considerado
perdido na floresta encontrou uma meni- o primeiro livro de ficção científica brasi-
ninha em uma barca, a qual deu o nome leiro.
de Vitória. Levou-a consigo e a criou O livro conta a história de Dr. Benig-
como irmã legítima de sua filha Aninha. nus, um cientista que busca transcendên-
Quando cresceram, Vitória tornou-se cia espiritual através do conhecimento
uma criatura estranha de hábitos escusos científico e do recolhimento. Para tanto,
e Aninha tornou-se quieta e melancólica, parte com sua família para regiões desabi-
ainda que bela. No dia do casamento de tadas e inicia uma vida de naturalista. Em
Aninha, Vitória não apareceu; porém, meio às suas pesquisas, encontra uma ca-
durante a cerimônia, Aninha começou a verna onde indícios levam-no a crer que
convulsionar e a gritar “Acauã, Acauã”, o sol é habitado por uma espécie de vida
nome de uma ave de rapina da região. O inteligente. Por fim, um dos habitantes
Capitão desesperado olhou ao redor e viu do sol entra em contato com o doutor e
por um instante Vitória que logo desapa- conta-lhe que eles o estão observando e
receu, e então um grito agudo foi ouvido que ele deve continuar suas pesquisas em
no telhado, Aninha parou de se mover. sua busca espiritual.
“Todos compreenderam a horrível
desgraça. Era o Acauã!” Com este final DEMÔNIOS
enigmático, o conto termina deixando ao
leitor a tarefa de imaginar se Vitória era
Já o conto “Demônios”, do escritor na-
turalista Aluísio de Azevedo (1857-1913),
“Demônios”
Acauã ou se foi Aninha quem se tornou publicado em 1893, traz à literatura traz à literatura brasileira
o pássaro. brasileira toda a carga cientificista do fim
Já o conto “O Baile do Judeu” é do século ao contar a história do último toda a carga cientificista do fim
aquele tipo de texto que não se mostra casal de humanos na terra que, inespera- do século ao contar a história
fantástico até quase o final. A história damente, desperta em meio a um mundo
começa com os preparativos da festa do morto e em decomposição. Inicia-se do último casal de humanos
judeu que convidou todas as pessoas das
redondezas, inclusive Dona Mariquinhas,
então um processo de involução, no qual
as personagens vão voltando a estados
na terra que, inesperadamente,
uma bela senhora recém-casada com o primitivos, passando de homens a bichos, desperta em meio a um mundo
tenente-coronel Bento de Arruda. Em de bichos a vegetais, e então a minerais,
meio à festa, surge um estranho de gola para por fim cessarem de existir. O morto e em decomposição
alta e chapéu que lhe tira para dançar. conto, muito bem elaborado, transmite
Chegam a desconfiar que se trata de Lulu com maestria toda a carga de horror das
Valente, um dos pretendentes que Dona personagens no início, mas depois vai
Mariquinhas tivera quando solteira. A tratando as
dúvida permanece e o casal começa a transforma-
rodopiar assustadoramente rápido. Preo- ções com
cupado, o tenente-coronel se levanta para naturalidade,
pará-los; no entanto, neste mesmo instan- à medida que
te, o estranho deixa cair o chapéu e com elas perdem
assombro todos veem que há um furo a capacidade
em sua cabeça como o boto do mito. Ele, racional.
então, se precipita pulando no rio, levan- O texto
do Dona Mariquinhas consigo. termina com
o despertar
do narrador
que percebe

BANG! /// 53
que tudo não passou de um sonho, tal e ele começa a pregar os A SEGUNDA
qual acontecia nos textos de Álvares de vícios e a condenar as VIDA
Azevedo e nos contos de Justiniano e virtudes. Sua nova religião Por fim, no conto “A
Joaquim Manuel de Macedo, reforçando, logo se espalha por todo Segunda vida”, temos o
novamente, a importância do tema do o mundo e, pela primeira relato de um homem que
sonho para a literatura da época. Seme- vez, ele conhece o sucesso; alega ter morrido, subido
lhante ao texto de Macedo quanto ao entretanto, sua alegria dura aos céus e, por ter sido a
tema do fim da humanidade, o conto de pouco, pois percebe que milésima alma do grupo
Aluísio se distingue, porém, por ser natu- alguns humanos passaram que o recebeu, foi escolhi-
ralista e não alegórico, preocupado como a praticar suas antigas do para reencarnar e viver
estava em mostrar o caráter científico e virtudes, às escondidas. uma nova vida. Não havia
não político da vida dos últimos habitan- Revoltado, sobe aos Céus opção, tinha de reencarnar,
tes da Terra. novamente para questionar mas poderia escolher como
Deus, que, simplesmente viria, e ele escolheu reviver
lhe responde que assim com todo o conhecimento
contraditória é a natureza que tivera na vida anterior.
humana. Tudo isso conta José Maria,
o homem reencarnado, ao
UMA VISITA monsenhor Romualdo, que,
Paralelamente a todas essas publicações, DE ALCIBÍADES desconfiado, não tira os
como não poderia deixar de ser, Macha- Já em “Uma visita de Al- olhos de José Maria temen-
do de Assis (1839-1908), talvez o mais cibíades”, Machado brinca do que este esteja louco. O
versátil dos autores brasileiros do século com uma ideia absurda: homem então continua seu
XIX, escrevia contos e mais contos do e se uma personagem do relato e conta que o saber
gênero fantástico. Em estilo variado, passado simplesmente não lhe trouxe felicidade,
Machado compôs textos alegóricos, satí- entrasse por nossa porta? tornou-se desconfiado, me-
ricos, de horror e de humor, ou mesmo Como reagiríamos? No droso, covarde e conforme
absurdos, antecipando o que faria Franz conto, o desembargador narrava se tornava mais de-
Kafka (1883-1924) ou mesmo Italo Cal- X escreve ao chefe de sesperado, agressivo e agi-
vino (1923-1985) anos depois. polícia da corte o que lhe tado. Em dado momento,
Dentre sua vasta produção des- sucedeu quando ninguém José conta que sonhou com
tacam-se os contos “As Academias de menos do que Alcibíades, o o Diabo e que o Diabo ria
Sião”, “Uma visita de Alcibíades”, “A grande general grego, saiu de sua péssima escolha e
Igreja do Diabo”, “A Segunda vida”, “O das páginas das crônicas de sua juventude perdida.
Imortal”, “O Esqueleto”, “Mariana”, “O do passado para visitá-lo. José então se levanta ante o
anjo Rafael”, “O Capitão Mendonça”, Felizmente, o desembarga- padre que começa a recuar
“A vida eterna”, “O país das quimeras”, dor era versado em grego e com olhos ensandecidos
“O anjo das donzelas”, “Os óculos de antigo e assim consegue José Maria lhe declara que
Pedro Antão” e “A mulher pálida”, além conversar com o general. não há como escapar. O
de, é claro, o romance Memórias Póstumas Alcibíades se mostra surpreso com as conto termina com o som de espadas e
de Brás Cubass que, embora não traga novidades pelas quais o mundo passou pés e a ação em suspenso.
nenhum acontecimento propriamente desde sua época e o desembargador Machado, portanto, inovou em di-
fantástico em seu enredo, parte de uma conta-lhe tudo em uma estranha atitude versos pontos: trouxe o tema da loucura
premissa sobrenatural: a história da vida que parece aceitar a visita insólita. Ao que estava em voga na Europa, sob a
de Brás Cubas contada por ele mesmo, fim, Alcibíades morre de um ataque, pena de Guy de Maupassant (1850-1893)
depois de morto. inconformado com as roupas da época. e Robert Louis Stevenson (1850-1894)
Dentre os contos, destacaremos al- E o desembargador se desespera por para seus contos fantásticos. O fato é
guns para demonstrar a diversidade e não saber o que fazer com o que o tema da loucura vinha substituin-
maestria de Machado. Comecemos cadáver vestido à maneira do o sonho como explicação para o
pelo célebre “A Igreja do Diabo”. grega caído em sua sala. sobrenatural, uma vez que possibilitava
textos mais elaborados e suscitava a dú-
A IGREJA DO vida do leitor. Por outro lado, Machado
DIABO também inovou ao escrever contos in-
Nesse conto, o Diabo, enfadado sólitos como “Uma visita de Alcibíades”
do Caos em que vive e de ter sido nos quais não há explicação coerente
sempre relegado ao segundo plano, nem dentro nem fora da narrativa, de
resolve fundar uma Igreja pró- modo que é o desconcerto do leitor ante
pria. Sobe, então, aos Céus a aceitação da personagem que cria essa
para contar tudo a Deus. nova poética do absurdo que irá se de-
Deus lhe diz que pode senvolver no século XX e dará origem a
tentar e o Diabo vem a diversos subgêneros fantásticos.
Terra. Assim, a Igreja
do Diabo é fundada

54 /// BANG!
Por fim, para concluir este breve panorama, escolhemos falar
da novela “O Sapo”, de Nestor Victor (1868-1932), publicada
no livro Signoss em 1897. Nestor Victor ficou conhecido como
o mais importante crítico do movimento simbolista. Amigo
fiel de Cruz e Sousa (1861-1898), cuidou de publicar as obras
do poeta após sua morte com uma dedicação ímpar. Talvez por
isso, a própria obra poética e ficcional de Victor tenha perma-
necido esquecida, como é o caso desse brilhante livro Signoss e,
sobretudo, da novela “O Sapo”.
Neste conto, um jovem rapaz, em uma atitude tipicamente
decadentista, alheia-se da sociedade de maneira radical até que
se vê transformado em um sapo horrível com manchas amare-
las e verdes. Escrito em linguagem expressionista, como aconte-
cia com muitas das obras em prosas do simbolismo, “O Sapo”
lembra de imediato o livro A Metamorfose,e de Franz Kafka que
só viria a ser publicado em 1915. O conto de Victor, portanto,
parece uma espécie de conto kafkiano, escrito antes de Kafka e,
por isso, pareceu a escolha ideal para finalizar este panorama.
Infelizmente, tivemos de deixar de fora muitos nomes im-
portantes, tanto de autores, como Afonso Arinos (1868-1916),
como de obras dos autores citados. Tentamos destacar os textos
que nos pareceram mais importantes e representativos dentro
do gênero fantástico em seus primórdios, retendo-nos, portan-
to, apenas ao século XIX, no intuito de evidenciar as origens e
transformações pelas quais o gênero passou em suas primeiras
décadas até se consolidar e se diversificar, de Justiniano a Nestor
Victor, do relato onírico ao absurdo, passando pelo “causo”,
pela lenda folclórica e pelo tema da loucura, de maneira a mos-
trar como o fantástico se tornou no século XXI um dos gêne-
ros mais lidos e comentados, no Brasil e no mundo.

PARA SABER MAIS:


BATALHA, Maria Cristina. O Fantástico Brasileiro – Contos
Esquecidos. Rio de Janeiro: Caetés, 2011.

CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção Científica, Fantasia e Horror no


Brasil – 1875 a 1950. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MATANGRANO, Bruno Anselmi e RODRIGUES, Ana


Cristina. Insolúsitos: Narrativas Insólitas Luso-brasileiras – Século
XIX. Rio de Janeiro: Llyr Editorial (no prelo).

TAVARES, Braulio. Páginas de Sombra – Contos Fantásticos


Brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

TAVARES, Braulio. Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção


Científica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.

Bruno Anselmi Matangrano é bacharel em letras (português e francês) e mestrando


em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP. Editor e contista, dedica-se, sobretudo, à
literatura fantástica, policial e ao movimento simbolista nas literaturas brasileira,
portuguesa e francesa.
Fotos: Lucas Anselmi
56 //
56 /// BAN
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ta, é um m sub u gêneero tipica- chefiada por Lord Byron e enriquecida
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me ntee amamere ican no. por inteligências artificiais baseadas no
computador diferencial proposto por
Charles Babbage em 1822; é uma Lon-
dres poluída, saída das páginas de Di-
ckens, cuja influência sobre a imagética
do gênero é impossível exagerar. É, de
Em 1987, 7 o mundo da FC estava ainda certa forma, um mundo representado prolongada Idade d Méd dia – ddei eixo
xoou
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rbererando o com os ecos da revolu- de forma inesquecível nas pranchas uma marca indelével no ima magi giná
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ção
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u k que William Gibson de- com que Kevin O’Neill ilustrou o fa- posterior. Assim, e ao fim de qu quararene ta
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se ncadadeaearara em 1984 com Neuromancer. r buloso The League of Extraordinary Gen- anos de desenvolvimento, o st stea
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O cy cybe
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rpununkk era o movimento literário tlemenn [A Liga Extraordinária], de Alan traduz uma consciência críti t ca da pr pro-
o
o-
icon
ic onoc oclálásticoo e irreeverente da moda, e, Moore (1999-2000) a obra-prima steam- gramada obsolescência da teccno nolo logi
giaa
como
co o tall, ere a exigente com os autores punk em termos de graphic novels. moderna, aplicando-o retroativvam amen en--
que o in
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gravvam; entre eles contava-se Normal e justificadamente excluí- te ao período da história europeeia qque ue
K. W. Jete ter qu
q e, juntamente com Tim do do cânonee steampunk, Pavanee (1968), construiu o mundo em que hoje vi vive
ve-
P we
Po w rs e Jam mes Blaylock, eram pratica- mos. Fazendo a ponte entre as or origigen
enss
ment
me ntee os únicos a escrever num outro da FC e a História Alternativa, o st stea
eam-
m-
subg
su bgênêner eroo do qual eram reis e senho- punk parece manifestar um profun undo do
res.
re s A rev evis
ista Locuss referia-se aos seus descontentamento com o presente e a
text
te x os ccom
xt omo uma forma “gonzo-histo- “ desistência do futuro; ao regressaar às
r ca
ri call” de escrita de fantasia. Nas suas origens do mundo d moderno, naasccid ido o
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nass dedebabatia-se qual dos três come- do Ilumiinism mo oi oito
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c r prrim imeiro esse modo de lizanddo a es
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ca ddoo gêgêneneroro llit
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J te
ter, de forma mais ou menos que semp
mprere ttraansspo
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joco
jo cosasa, submetia o seu Mo M rlock Nightt à fal deesse me
mesm smo o mumund ndo,o, a FC, C ob blli--
apre
ap reciiação edi d tori rial, reeferinddo-se a ele terando o umm e o out
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co m uma m “fa fantntas asia ia vit i or
oria
i na”. Ele protesto por vez ezes
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avaa quq e pop deria zes injusto,
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vi serr a grande d moda com im mensososs ve
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guinte, de d sde miríade de ffut utur
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92 ), de for o ma per erti
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co mo m metetáfáfororra do d aatr trasaso
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– ffo orm mam am o indu
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adda do o João Seixas nasceu em Viana do Castelo,
cato
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mo Esspa p nhol
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o so obbre
re a Ingnglal teer- Portugal, em 1970. Licenciado em Direito
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eth I. I Se a te t máátiiccaa e a fo orr-
r- e advogado, é também crítico na área do
fantástico e publicou contos e ensaios
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me em diversos suplementos, revistas e
Paavvaannee do es e pípíri
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gu m s antologias portugueses.
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a é umaa refferrên nciciaa aoo ccon
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raordi d nári r o”, quue tem m coc mo
m foco: nasceu como um gênero literário,
mas ganhou vida própria e dominou a
“Uma antítese das visões utópicas da Ficção Científica de moda e as artes plásticas, tornando-se 1
meados do século XX, nas quais futuro é igual a evolução cada vez mais conhecido. Se a cultura
sócio-cultural. O Cyberpunk é um subgênero da ficção que da era vitoriana virou inspiração
trabalha a ideia de que, se nossa sociedade seguir seu curso para essa estética, em Vaporpunk
atual, o futuro próximo será um lugar onde o capitalismo – Relatos steampunk publicados sob
predatório impera ao lado alta tecnologia e o nível de as ordens de Suas Majestades, os
vida geral é péssimo. Daí o nome cyber, da tecnologia organizadores Gerson Lodi-Ribeiro
avançada, do ciberespaço, onde muitas das estórias se e Luis Filipe Silva imaginaram essa
ambientam, e punk, da visão negativa em relação ao época tão distinta sob a ótica brasileira
desenvolvimento social, da degradação do indivíduo.” e portuguesa, repleta de inovações
Depois
Depo i delelaa su
surg
rgir
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d out u roso livros do gênero. “Va- tecnológicas e acontecimentos inusitados.
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unk’k pubbllicaados sob as ordens de Suas Com a presença de renomados autores
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n a de contos fantásticos base- da ficção especulativa dos dois países,
addos n noo un niv
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tendo como foco Brasil e Octavio Aragão, Flávio Medeiros, Eric
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el é uma pirata aérea en- Novello, Carlos Orsi e o próprio Gerson
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pelo Brasil; Jorge Candeias, Yves
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s u? O release da obr b a: Robert e João Ventura por Portugal;
a coletânea traz oito noveletas movidas
Com força mundial, a estética a vapor, disputas políticas, personagens
steampunk vem angariando cada vez famosos e armas engenhosas. Tudo isso
mais fãs brasileiros e portugueses. regado a muita aventura e surpresas,
Seu apelo visual e o rico conteúdo porque, mais do que repensar o gênero,
inspirados no século XIX são o Vaporpunk é um convite para conhecer
combustível certo para a produção um mundo alternativo, e o que Brasil
de uma literatura que pode ser e Portugal poderiam ter sido com
intensa, mas também descontraída. tamanhas novidades.
Descubra o que oito autores
Mas,
M s se a fi ficç
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coo.

60 ///
60 /// BAANNGG!!
//
Desde o nascimento os Bnei
Shoah são treinados para fazerem
parte da Kabalah, a elite do
exército do Quinto Império. encenaram algumas das mais
Sacerdotes, Profetas, Guerreiros, terríveis batalhas de que a
Amaldiçoados, eles não conhecem humanidade já presenciou. De
outros caminhos, apenas a conflitos e duelos isolados a
implacável luta pela manutenção confrontos sangrentos entre os
da ordem estabelecida. Depois exércitos das trevas e da luz.
de dois anos servindo o exército,
Sehn Hadjakkis finalmente Para encerrar, a cultura Steam-
punk não é apenas literatura e
tem a chance de voltar para casa
música. Ela é um conceito, um
e cumprir uma promessa feita resgate aos velhos hábitos do
na infância: casar-se com seu cavalheirismo vitoriano, deixan-
primeiro e verdadeiro amor, Maya do de lado o preconceito contra
Hawthorn. a mulher e o negro. Nas aven-
Entretanto a traição de seu turas do “retrofuturismo” há
espaço para garotas heroínas e a
melhor amigo põe Sehn perante
escravidão é, quase sempre, mal
um dilema: cumprir a promessa vista.
à amada ou rumar a um trágico Para aqueles que desejam
confronto, sabendo que isso poderá saber mais sobre o movimen-
destruir não só o que jurou amar e to Steampunk, o que não falta
Os calendários são simplesmente é material gratuito. Se você é
proteger, mas aquilo que aprendeu
ignorados por aqueles que mulher e adora moda, também
como a verdade até então.
combatem pelo bem ou pelo mal, vai gostar dos sites de moda
numa guerra sem vencedores. que dão referências para se
Por fim, a Editora Estronho
Por
As grandes batalhas distribuem vestir melhor ou apresentam
t ab
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oportunidades para novas ves-
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gê n ro ro,, am ambo boss coleetâneas e louros entre os dois lados, em timentas.
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meiriro deles or- balança. Mas esse equilíbrio
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robô
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nas vo oadoras, via- a estranheza dos acessórios e
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61
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anos 70 dos Sex Pi P stolls e nas bota tas Do
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Martens.s 2007 foi o ano em que o sistem ma
bancário iniciou o seu colapso gradual,
provocando desemprego em larga escala
e males econômicos num meio em que
os cidadãos deixaram de confiar em seus
políticos e instituições como a polícia,
igreja, sindicatos, bancos e todo o resto.
Como se isso não bastasse, tivemos
de lidar com instabilidade política,
empregos exportados para a China,
alterações climáticas, motins e guerras
no Irã e Afeganistão.
Por tudo isso, não surpreende
que, nos últimos anos, muitos jovens
desencantados – assim como alguns
mais velhos como eu – optaram por
separando as fronteiras. E, como se isso
se afastar de nossa sociedade estéril
não fosse ruim o suficiente, a Espanha
e violenta e olhar para um passado
tornou-se um deserto e é controlada por
imaginário que nunca existiu, no qual
um Império de engenheiros genéticos
damas e cavalheiros cortejam-se uns ao
maléficos.
outros com boas maneiras e vestuário
requintado, droides movidos a vapor
servem-nos cocktailss de absinto, e
cientistas de casacos de couro produzem
Quando entreguei A Corte do Arr ao manualmente objetos para nossa
meu editor, o fenômeno do steampunk maravilha e deleite.
ainda não tinha grande força – existiam Este mundo pode nunca
apenas alguns livros retratando realidades
ap ter existido fora de nossas
alte
al ternr ativas vitorianas, como a magnífica imaginações, mas talvez fosse
ob
obra
bra ddee Wi W llia i m Gibson, A Máquina melhor ter existido. Não sei qual
D fefre
Di renc ncia ial,l, o
ouu a HQ de Alan Moore, A será a evolução do steampunk
Liga
Li ga Ext xtraraor ordi
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Mass as inesperadas daqui para a frente, mas me
veend ndas as ele leva vada
dass de A Co C rtrte do Arr e
sinto feliz por ter feito parte
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ra o ve vencncereramam ttod odosos qqueu aqui
de sua origem, e tenho uma
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va quee va valiliaa a pe
penana inv n estigar. intensa curiosidade pelo seu
Deesd
Desd s e een ntã tão,
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vi mais ci cinco livros, futuro. Assim como A Corte do
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aliliza
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ivro os na min inha série Ar transformou a minha vida e
JJaack
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nos da min inha
h vida carreira, suspeito que o futuro
em m que tud u o mu mudo douu raadicaalm lmente. O do steampunk nos irá surpreender
ggêên neeror quee aaju jude
deii a po popupula l rizaar tem de formas que não conseguimos
aggo orra
ra ceent nten enas ddee au auto tore
res.
s. E não só is i so. prever.
O sstteaamp mpun unk
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mode rnaa – m máá
Stephen Hunt é um autor de ficção cien-
edduccaç a ão ão,, es estr
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ade ddee tífica e fantasia que vive atualmente no
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baixi oss, Reino Unido. Antes de se tornar escritor,
arqu
ar quitititet
qu etur
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ia, deesl slei
eixo
ei xoo no ve v ststuuáárriio e trabalhou com edição de conteúdos
tecn
te cnol
cn olog
ol oggiaiass de
descscar
sc artá
artáve
veeis
is.
is. para a web, incluindo o Financial Times.
S olh
Se harrmo m sp paara o ano o eemm Os seus livros já foram publicados no
Canadá, Reino Unido, EUA, e foram
q e co
qu c memeçço ou a re revo
vvooluuçã
ço traduzidos para mais de doze línguas.
A Corte do Ar é o primeiro livro
de sua série steampunk centrada
em uma Inglaterra vitoriana
alternativa.

BANNGG! /////// 63
BA 63
1
stava-se em 1953 e Alfred A viagem a que nos propomos
Bester vencia a única catego- fazer é uma de memórias e teste-
ria de ficção (na modalidade munhos, pois é a única desloca-
de romance) do primeiro ção temporal permitida à espécie
de todos os prêmios Hugoo com humana. Convocamos autores e
O Homem Demolido. Os marcianos apreciadores, procuramos na in-
desciam em uma América rural in- ternet e nas estantes lá de casa, e
suspeita a convite de George Pal, reunimos todos aqui, para um bre-
Quartermass salvava a Humani- ve desabafo, para que nos contem
dade de um alienígena vegetal e as suas experiências e, nestas, des-
o milionário Donovan era salvo cobrirmos o reflexo das nossas.
e condenado perante audiências Convocamos também a editora,
desconfiadas da ciência. Estreava que lamentavelmente se escusou.
na Espanha Luchadores del Espacio,
uma coleção de pulp fiction; a Itália
Não importa – só os
adiantara-se um ano com a Urania, a livros importam.
e a Presence du Futurr entraria no ano
seguinte no poderoso mundo da nio de Souza-Pinto, o fundador da empresa. Durou
Ficção Científica (FC) francesa. 562 números ininterruptos com periodicidade mensal
Vivia-se a Guerra Fria, um mun- (exceto nos últimos anos em que foi irregular), mais
do de terror atômico, cheio de es- o acrescento em 1968 do raríssimo n.º 130-A ((Estação
piões e ameaças veladas, de perse- de Trânsitoo – Way Station, de Simak)1. Continha essen-
guições anticomunistas e descon- cialmente FC, mesclada com alguma Fantasia, e era
fiança generalizada na capacidade relativamente atual: perto de quarenta títulos foram
do Homem em sobreviver às suas publicados apenas com um ano de diferença ao da res-
próprias criações. Ainda assim, pectiva edição original estrangeira, e aproximadamente
falava-se de futuros gloriosos, de duzentos com um máximo de cinco anos. Para a co-
contatos com seres de outras Ter- leção, contribuíram centena e meia de autores e meia
ras e de colonização galáctica nas centena de tradutores oficiais. Vendia-se em Portugal e
páginas da Astounding, g Magazine of no Brasil, não obstante uma indicação na ficha técnica
Fantasy and Science Fictionn e Galaxy. que proibia este ato na “República Federativa do Bra-
Estava-se a quatro anos do lança- sil”. E, se considerarmos uma dimensão média de 250
mento do primeiro satélite fabrica- páginas por livro, estamos perante 140 mil páginas de
do por mãos humanas, o Sputnik 1, literatura Fantástica e anos de leitura.
que deu início à atualmente desig- Nenhuma outra coleção de FC atingiu no espaço
nada Era Espacial, e a dezesseis da lusófono tal dimensão, importância e longevidade, nem
primeira viagem tripulada à Lua. contribuiu, até hoje, para a formação básica de várias
Estava-se em 1953, e, ainda gerações de apreciadores do gênero.
antes de terminar este movimenta-
do ano, nasceria uma nova coleção
portuguesa que ficaria nas vitrines
durante cinco décadas, apresenta-

A
ria autores de FC ao público lusi- ntes de mais nada, os dados

S
tano e atravessaria o oceano para biográficos: deu-se à luz em e há fator que una os apreciadores é aquele momen-
contaminar o paladar dos leito- Novembro de 1953 e reme- to ou circunstância em que a Argonautaa entrou em
res brasileiros. Uma coleção cujo teu-se ao silêncio em 2006, em suas vidas e que se torna uma memória acalentada
nome evocava tradição, epopeia e mês incerto. De mãe, a Editora e contada com os detalhes de quem descobriu um se-
aventura: a Argonauta. Livros do Brasil, e, de pai, Antó- gredo valioso. Cada qual conta a sua história, mas são os

BANG! /// 65
mesmos os pontos de união, mal dos meus pecados e do di-
são familiares os motivos que nheiro dos almoços e lanches es-
os integram na comunidade. colares, a Coleção Argonau-
Pode ter origem na reco- ta, argutamente, mantinha nas
mendação de um amigo ou primeiras páginas uma lista com
familiar: “uma tia minha, que
os últimos números publicados e
colecionava a Argonauta, con-
tou-me ao jantar sobre um lago nas últimas páginas uma peque-
de alcatrão, em um planeta per- na amostra do volume seguinte
dido na periferia da Galáxia, da coleção. Tudo isto servido com
onde residia um computador uma periodicidade mensal” (Ri-
que guardava o registo das ‘al- cardo Loureiro).
mas’ de toda a espécie humana Cria um vício de que não se
[e que] estaria defendido por quer fugir: “depois do primeiro,
milhares de morcegos gigantes” veio o segundo, e logo o terceiro”
(João Barreiros). (Jorge Candeias).
Surge por acidente, por Deixa na alma, gravados
estar-se ali, naquele instante, a fogo, o nome de mundos e
diante do mostruário de uma A sensação do primeiro con- autores, tão irreais e desconhe-
livraria e deparar-se com a capa tato transpõe oceanos: “descobri a
cuja ilustração, título ou autor Coleção Argonautaa em Janeiro de
despertam lembranças de 1977, em plena Rodoviária Novo Rio,
outras leituras ou imprimem quando estava prestes a embarcar numa
promessas de mundos mara- viagem de férias para o interior do esta-
vilhosos: “uma bela manhã em do. Como se tratava de um romance do
Sesimbra, com o calor já aper- Clifford D. Simak, meu autor predileto, 1
tando, entrei numa daquelas não hesitei em adquirir o livrinho de capa
papelarias/tabacarias que na prateada, n.º 227, O Outro Lado do
altura ainda vendiam livros e Tempo (Enchanted Pilgrimage) e”
eis que numa vitrine de arame, (Gerson Lodi Ribeiro).
daquelas que rodam sobre um Atravessa gerações: “é um bo-
eixo, deparo com uma série de cado difícil recordar coisas desses tempos
livrinhos que de imediato atra- iniciais, já lá vão 60 anos – quando saiu
em o meu jovem olhar” (Ricar- o número 1 em 1953, tinha eu 22 anos
do Loureiro). e cursava Arquitetura, e lembro-me de
Por vezes, a sedução de- que o primeiro livro que comprei foi o n.º
mora: “houve um livro da Ar- 7, Inconstância do Amanhã (To-
gonautaa que sempre exerceu um morrow Sometimes Comes), s de
terrível fascínio sobre mim: A Ár- F. G. Rayer, livro que me deixou então
vore Sagrada [n.º 224], um dos positivamente fascinado, e depois disso
livros de meus pais, publicado aqui passei a ser um consumidor assíduo da
em 1972, e que eu me lembro de ser coleção” (António de Macedo).
uma presença constante [pela casa]. Espalha-se por territórios e
Nunca li o livro, mas cresci fascina- culturas: “conheci a coleção Argo- cidos a princípio, como tão
do pela capa – melhor dizendo, pela rapidamente familiares: “o pri-
nauta por volta dos 12 ou 13 anos,
contracapa – onde uma gigantesca meiro livro da Argonautaa que li foi
na Livraria Pedrosa, em minha Os Frutos Dourados do Sol,l de
iguana verde está prestes a devorar cidade natal (Campina Grande,
um astronauta de imaculado branco Ray Bradbury [n.º 55], de quem eu
Estado da Paraíba). Era uma ex- já tinha lido alguns contos em antolo-
que paira sobre ela, filmando-a, con-
tra um céu de um laranja intenso”
celente livraria, até para os padrões gias”
s (Bráulio Tavares).
(João Seixas). de hoje” (Bráulio Tavares). Evoca-se aquela aventura
O rosto sorri-nos e dá uma Planta sementes no espírito tão íntima, mais tarde, com o
piscadela: “nessa bela manhã es- do leitor: “Quando, depois de ler toque de nostalgia e prazer da
colhi mais por virtude da capa que A Nebulosa de Andrómeda, recordação de uma descober-
mostrava um vaivém espacial – na pedi ao meu pai mais livros do mes- ta que não retorna: “[A histó-
altura ainda um protótipo, os primei- mo gênero, aconteceram duas coisas. ria contada pela minha tia] era a
ros voos seriam 3 anos mais tarde –, Por um lado, fiquei sabendo que do Ortog, g do escritor francês Kurt
dirigindo-se a um planetoide âmbar, existia uma coisa chamada ficção Steiner (André Ruellan), um dos
visivelmente artificial, do que por científica. Por outro, tive nas mãos o primeiros livros da Argonautaa [n.º
conhecer o nome do autor de algum meu primeiro Argonauta” (Jorge 66]. Li-o com um arrepio crescente
lugar, o livro Exilados da Terra Candeias). de horror, porque, aos meus olhos
(n.º 249), de Ben Bova” a (Ricardo O primeiro contato abre a por- inocentes de então, o livro era bem
Loureiro). ta que não se volta a fechar: “para sinistro. Depois descobri nas estantes

66 /// BANG!
minha imaginação, desfilava aquilo que ção Científica e a mesada não dava para
milhares de fãs de FC conhecem como o tanto. O que nos é negado alimenta a
sentido do maravilhoso ((sense of won- íntima vontade. Exemplar a exemplar,
der).
r Vastas naves enfrentavam-se em fui adquirindo, e lendo, o que estava dis-
batalhas cruéis e planetas recheados de ponível. A coleção tinha, já, quase trinta
alienígenas malévolos eram bases secretas anos, mais do dobro da minha idade – e
de Impérios do Mal” l (Ricardo Lou- eu, que andara tão distraído no limbo,
reiro). tardando em nascer.
Como eles, encontrei a Argo-
nauta,
a ou esta me
encontrou, depois
de ter descober-
to a existência de
Ficção Científica.

C
Pertenço à gera- omo qualquer boa coleção que se
ção das capas preze, e, em particular, numa de tão
prateadas, cujo longa duração como a Argonauta, a é
“tom metálico” possível demarcar períodos.
(Ricardo Lou- O mais óbvio será quanto ao for-
reiro) marge- mato. Desde o primeiro número, apre-
ava desenhos senta-se como livro de bolso com uma
enigmáticos, dimensão regular de duzentas páginas,
raramente ilus- um pouco menor que os livros em papel
trativos de uma jornal americanos, o que é mantido até à
cena do livro, decisão da editora, em 2004, de aumen-
mas compostos tar ligeiramente o tamanho com o n.º
“invariavelmente 553 ((A Grande Roda – The Big Wheell, de
de fotomontagens William Rollo) e seguintes – uma decisão
e/ou colagens com mal recebida pelos apreciadores2, talvez
naves, planetas e em parte pela transformação radical das
estranhos sóis”
s (Ricardo Loureiro). ilustrações num estilo quase abstrato que
A edição de entrada foi O Número representou um retrocesso face à revo-
do Monstro – 1.º volume,e do Heinlein lução de cores e imagens chamativas em
[n.º 294], mas admito que poderia voga no mercado editorial. Mas até en-
ter sido qualquer outra. Heinlein tão, a Argonautaa arriscou periodicamente
era o autor que melhor conhecia a mudança – que por vezes se estranha-
do conjunto de exemplares na va, mas que acabava por ser bem-vinda
vitrine de uma tabacaria de praia. – de alterar a composição das capas, de
Ali, tão mansa- introduzir estilos e técnicas de imagem
mente pousados, e de criar um corpo consistente de ilus-
como pepitas tradores de reconhecido mérito e ímpar
num concurso de numa coleção de FC publicada em Por-
garimpagem. “O tugal até aos dias de hoje.
da minha própria casa mais uns três ou prazer da descober- O primeiro foi Cândido Costa Ri-
quatro Argonautas. Peguei num. Mis- ta pela primeira vez beiro, que ilustrou as capas do n.º 1 ao
são Interplanetária, a do Van Vogt de livros-chave do 32 ((Robinsons do Cosmos – Les Robinsons du
[n.º 9]. Li-o às escondidas, por baixo gênero é uma expe- Cosmos,s de Francis Carsac), conhecido
do lençol, com a lanterna acesa. E, claro, riência tão intensa artista plástico e designerr gráfico portu-
voltei a morrer de medo, porque os mons- que é quase compa- guês que se radicou no Brasil no final da
tros nele descritos eram verdadeiramente rável à da descober- vida e cujas inclinações surrealistas terão
assustadores. Mais tarde descobri todos ta do sexo” (João influenciado os desenhos fortemen-
os livros do Stefan Wul e ele foi, durante Seixas). Porque te simbólicos daquela sequência. Mas
muitos anos, um dos meus autores favori- estes encerram será com o n.º 33, o agora famosíssimo
tos”
s (João Barreiros). as chaves do Fahrenheit 451, de Bradbury (em 1956,
A inocência deu lugar ao en- mistério. Ainda apenas três anos após o lançamento do
cantamento, e este perdura por hoje, sempre romance original e traduzido por Má-
uma vida: “Galactic Patrol,l de E. que passo pela rio Henrique-Leiria), que se dá início à
E. ‘Doc’ Smith com o apropriado títu- loja que substi- contribuição de Lima de Freitas, um dos
lo de Patrulha Galáctica (n.º 270), tuiu este local, mais conhecidos pintores e desenhistas
e com uma despropositada nave USS recordo-me. portugueses do século XX e figura mar-
Entreprisee na capa: foi este o livro Estava-se no tempo das es- cante na vida da coleção.
que verdadeiramente iniciou o dilúvio de colhas: as bibliotecas suburbanas Freitas vem trazer um dinamismo
FC para mim. Ali, perante os olhos da ou escolares não adquiriam Fic- e uma riqueza de composição a obras

BANG! /// 67
de autores tão distintos como prateada: título e autor voltam a autonomizar-se e a
Heinlein, Simak e Versins, e dominar o terço superior da capa, impressas sobre um
marca presença até 1975, dan- tom cinzento brilhante, relegando a ilustração para uma
do a última capa ao n.º 221 ideia de “janela”, talvez como recuperação da ideia da
((Eclipe Total – Total Eclipsee, de entrada num mundo maravilhoso. Começando no n.º
John Brunner). Este impres- 225 ((Em Busca do Futuro – Quest for the Futuree, de Van
sionante volume de trabalho Vogt), vai durar até ao n.º 300 (O Mistério de Valis – Valis
rivaliza com o ritmo dos tradu- – 1º volume,e de Dick), a partir do qual a margem cinzenta
tores e faz da coleção uma ver- é substituída por uma azul. As ilustrações são, primei-
dadeira fábrica de produção de ro, da mão de Manuel Dias, numa breve incursão após
FC – com o encargo adicional Lima de Freitas, e, logo após, de António Pedro, o qual
de que o pintor tinha de ilustrar vai assegurar o rol impressionante de centenas de capas
também a edição mensal da re- entre o n.º 254 ((As Vozes de Marte – I Sing the Body Elec-
vista correspondente de litera- tric,c de Bradbury) e o último. Refira-se que, apesar do
tura policial. “Lembro-me bem de expressionismo e ocasional simbolismo dos desenhos,
meus pais partilharem o trabalho de é por vezes um desafio conseguir relacioná-los com a
obra que ilustram ou sequer com uma cena particular
capas a partir de fotos, um método ex- da narrativa...
perimental que aparentemente granjeou A partir do n.º 333, desaparecem a margem e o con-
bastante popularidade, embora eu pes- ceito de janela, voltando à ilustração que domina a capa,
soalmente não apreciasse tanto, compa- à qual se sobrepõem o título e o autor, composição que
rado com algumas capas mais antigas vai permanecer até ao formato derradeiro que acima se
que ele tinha feito: umas mais estranhas mencionou.
e abstratas (lembro-me da do Síndico, o
de Cyril Kornbluth, ou a do Homem
Demolido, o de Bester, mais brutais e 1
expressionistas), outras mais realistas
((O Tempo das Estrelas, de Hein-
lein, por exemplo). Mas as fotos dura-
ram algum tempo, e por elas passaram os
pedaços dum foguete Apolo que eu tinha
construído com [ele] aos 7 anos, uma es-
tátua dum amigo nosso em O Planeta
ler os livros de FC e policiais que o Neutral,l uma figura de um astronauta
meu pai tinha que ilustrar. Era um que eu tinha comprado na França, em
ritmo razoavelmente forte, dois livros O Ponto Ômega, a e que reapareceu
por mês, mas a minha mãe era fa- em Os Homens das Estrelas ou,
nática devoradora de policiais e lia por exemplo, na Vampiro, o a minha
tudo num instante para contar ao tia Jenny (dinamarquesa) fazendo-se de
meu pai algum pormenor marcante Miss Marple!”” (José de Freitas).
que o inspirasse numa capa”” (José A fase seguinte da coleção,
de Freitas). talvez a que mais a marcou, é a
A contribuição de Frei-
tas atravessa alguns períodos
distintos de composição das

S
capas: até o n.º 100, a ilustra- e o aspecto é o fator de mudança mais óbvio, tam-
ção surge isolada do título bém quanto ao conteúdo a Argonautaa teve os seus
e do nome do autor, que a períodos distintos – ainda que mais duradouros.
encimam. Mas com o 101.º Primeiramente, pelas obras escolhidas. A coleção
((Nova Ameaça de Andrômeda dá partida com um autor pouco conhecido: Archibald
– Andromeda Breakthrough, de Montgomery Low, engenheiro e pesquisador inglês que,
Fred Hoyle e J. Elliot), título além de dezenas de ensaios, escreveu apenas quatro
e autor passam a incorporar, e romances de ficção para jovens, e nenhum dos quais
a influenciar, o corpo do entrou no cânone da FC. Mesmo assim, a aventura es-
desenho (veja-se o caso pacial de Perdidos na Estratosferaa (Adrift in the Stratospheree)
do n.º 136, Ave Marciana – parece perfeitamente adequada para atrair desde logo a
A Far Sunset,t de Edmund imaginação dos leitores.
Cooper). Será o evoluir dos títulos que faz suspeitar da au-
É evidente que este sência de um critério editorial sólido guiando a escolha.
espaço se torna, também, A primeira década é marcada por um predomínio
um laboratório para o ar- dos “grandes nomes” – Asimov (usando seu próprio
tista: “O meu pai passou nessa nome ou o pseudônimo Paul French), Bradbury, Hein-
altura (anos 70) a fase de fazer lein, Clarke – em, aproximadamente, um sexto dos li-

68 /// BANG!
vros, pertencendo os restantes a acontece ao lado da erradicação de ção Científica, desde Júlio Verne até
autores da época pulpp (Leinster, obras de origem não inglesa do ca- os Astronautas. Entre centenas de
Siodmak, Van Vogt)3 e obras reco- tálogo – sendo a última o n.º 107 autores, entre milhares de obras, fo-
nhecidas no gênero (O Cérebro de (O Império dos Mutantes – La Mort ram selecionados os mais belos contos
Donovan, Slan, Mundo de Vampiros); s Vivante,e de Stefan Wul). As exce- dos escritores mais representativos em
em suma, uma aposta evidente na ções pontuais representadas pelo todo o mundo, formando uma anto-
popularidade. francês Barbet (n.ºs 251 e 258), logia de características absolutamente
A presença regularr4, a partir pelo polaco Lem (n.º 264) e pe- inéditas entre nós”, ” destinado ao
do n.º 22 (Vigilância Sideral – Les los russos irmãos Strugatski (n.ºs que já se mostrava ser “um pú-
Étoiles ne s’en Foutent Pas,s de Pierre 307 e 308) explicam-se facilmen- blico fiel e, até, entusiástico”.
te: foram traduzidos a partir das Se é natural que diferentes
edições americanas, com todos os apreciadores tenham diferen-
problemas de fidelidade inerentes tes preferências e que orientem
à tradução de traduções... as seleções para as obras que
Há pelo menos um caso con- conhecem (e que são capazes
firmado de influência de um co- de ler), também decorre que
laborador na seleção das obras: “o a ausência de um crivo edito-
meu pai frequentemente sugeria os títulos rial coerente tenha contribuí-
a traduzir, embora isso normalmente do para manter e até salientar
não fosse creditado” (José de Freitas). certos defeitos de produção
Lima de Freitas foi também res- que foram prejudicando a co-
ponsável por organizar e traduzir leção e que, eventualmente,
os contos do n.º 100, uma antolo- antecipou-lhe o fim num con-
gia comemorativa “que reuniu uma texto de crescente competitivi-
quantidade notável de histórias, algumas dade em que tais falhas já não
Versins), de autores francófonos5, eram perdoáveis pelos leitores.
das quais foram consideradas das me-
representando um terço das es-
colhas dos primeiros 100 núme- lhores, como ‘Flores para Algernon’, e
ros – além das presenças pontuais penso que a primeira história traduzida
de Onochko (russo) para português de Love-
e Čapek (checo) craft, Jorge Luis Borges
–, anuncia uma in- ombreando com Arthur
versão da tendência Clarke, Efremov e Bra-
pró-americana, que dbury”” (José de Frei-
apenas surpreen- tas). Efetivamente,
de se, em vez de a a apresentação
entendermos como deste número é
uma aposta invulgar bastante explíci-
na FC europeia, con- ta6: “num volume
siderarmos que advém duplo de mais de
do uso de tradutores quatrocentas pági-
mais familiarizados com nas, posto à venda
a língua francesa. pelo preço de um
Esta desconfiança con- volume simples, o Alguns dos
solida-se se notarmos que a nº 100 da Cole- “grandes nomes”
ção Argonauta que marcaram a
entrada de Eurico da Fon- coleção Argonauta.
seca para a função de tra- oferece um pano- Asimov, Bradbury,
dutor, e a sua continuidade rama completo da Arthur C. Clarke,
evolução da Fic- Leinster e Heinlein.
durante centenas de títulos,

Luís Filipe Silva (blog.tecnofantasia.com) é au-


tor português de «O Futuro à Janela» (Prémio
[1] Vale a pena desvendar a rocambolesca história [3] A questão das preferências, aliás, será um dos Caminho de Ficção Científica), «Cidade da Car-
tal como contada por João Vagos em http://colec- apanágios menos felizes da coleção, ainda que, mais ne», «Vinganças» e (com João Barreiros) «Ter-
caoargonauta.blogspot.pt/2011/09/n-130-estacao- tarde, se manifeste sobre outros autores – Simak e rarium - Um Romance em Mosaicos» e além de
de-transito.html. Blish, por exemplo.
[2] J. J. Vagos conclui o inventário pessoal dos títulos [4] O primeiro francês foi Jimmy Guieu, logo no
vários contos, críticas e artigos em publicações
no 552.º com as seguintes palavras de desânimo: “úl- n.º 5, uma presença pontual. portuguesas, brasileiras e internacionais. Como
tima edição [...] no formato tradicional. A partir deste número, [5] Entre outros: Carsac, Russel, Aîné, Wul, Steiner, antologista, organizou «Vaporpunk – Relatos
aumentaram o tamanho dos livros e também o preço, tendo sido Hougron, com obras agora clássicas na FC fran- Steampunk Publicados sob as Ordens de Suas
publicados apenas mais dez números, que já não coleccionei. cesa. Majestades» (com Gerson Lodi-Ribeiro) e «Os
Para mim, a Colecção Argonauta terminou neste número” [6] Excertos retirados da apresentação deste volu-
(http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/08/n- me no n.º 99, presumivelmente da autoria do pró-
Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa» (com
552-os-vigilantes-do-imaginario-2-pat.html). prio organizador. Luís Corte Real).

BANG! /// 69
m Fahrenheit 451, de Ray ay Bra radb
ra dbur uryy,
y, o m mun unndo
d é uum m lu luga
gaar ciinz
nzenento
to o
onde seus habitantes ess uusa
sam
sa m a fe f liciidaade d com mo um umaa má máscar ara.
a Qua u ndndo o
esta cai, revela-se a so olilidã
dão
dã o, o dessespe essp ro op por
orr vivver em um mundo anes- s-
tesiado, a apatia e o conf coonfor
nfo
nf orrmimismsmo
sm o pepera
perar ntn e um um Est Eststad
ado
ad o que se enc n arregaa
de apagar da mem mór óriaiaa dos
dooss indiv
nddivvídduou s to oda
d s as as traagé gédid as que compõem o
di
quotidiano o. Quuem m ssee reevo v ltta é fa f cic lm
l en entete eelililimi
m na
mi n do do sistema, desapa-
rece da fo fototoo e duvuvididdaammos os se esssaa p pese so oa reealalme m nt
me ntee ch hegegou um dia a ser
nossaa vi vizi
zinhnha.
nh a.
Désp
Dé spot
sp otas
ot as e tir iran
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noss não o sup upor orta
or t m qu
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q err ati tivi
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dadedee cul ultu
t ral porque
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be ni-l-llas
a , es e tã
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ruin i dodo efi fica c zm
ca zmen e te a mem
en móró ia de um
povo
po vo.. Qu
vo Quan an
ando
ndo MonMononta tag,
ta gg,, o bom o be beiriroo pr p ottagagon onis
on ista
istaa da obra
ob bra
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bury
bu ry,, fina
ry n lm menentte desspe pert r a pap ra a verda errdadee e parra um nov o o muundo, o,, é graaças
à suua memómemó
me móri riaa quee co
ri onsn egegueu res
ue e isisti
tirr à opopreress
re ssssão o pololít
í ic
ít i a e cucullturalall. Se me-
m ri
mo r zzaar os os livivro
r s, sabe
ro abbe qu quee ja jama
maiss cor
mais
ma o reerá o risco issco
o dde perdê--los.
Em Ti Tigagaanaa, doo aututor or can a adden nse Guyy Gav avri riel
ri
riel
e Kay ay, o po povo v difi
vo ificilime
m n-n
te tem out u ra esc scol
olha
ol ha sen enão ão rrese isti
es isstiir à mald
maaldldição
içção ão llanannçada po orr Braran ndin de
Yggrath h. E resireesi
sist
stee pr
st prec ecis
ec isam
is amen
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a és da me memó móri riia.
a Resis
R istee, le lemmbra
bran-n
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ria.
ri a. Na Pe Penínííns
n ululaa daa Pal alma
ma,, quasse toda
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d s feit feiticiceeiro os Br Branan ndi
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graath e Al Albeb ri
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al povovvo pa p go gouu mu muitto ca caro
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os ass torrre res, manch ha ssuuuaa be
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om sua suua deesttru ruiç içãoão, deci
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nar suua memória, lançando
na o um m ffei eiti
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ço o pararaa qu q e nenh nh hum m hab bittan
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Peenínssula ula ja j mais se lembre de se s u no nome
nome me ou po posss a seequ quer er o ouv
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70 //
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P ublicado em 1990, Tigana, de
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tinha lançad ado o an ante
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avvar, de ffor orte
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ianna, mas fo
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ga naa que K Kayay encnconontr trou
ouu ssua
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narr
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ativivaa e o esesti
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su a obras tão ão famamos osasas e aamam da ds
em todo o munddo: a ffan antatasia his-
tóri
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Kay pega det eter
ermimina nadodoss evevenen
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nt asia. NãN o se
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trata de uma meraa re recoc nstituição
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te parra seus lilvr vros os. O re resuul-
tado
ta do fin nal
al é mui uita
tass ve
veze zess no
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vel.l.
Em m Os Os L Leõeões de AlAl-Rassan, um u
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tos de seus fãs, Kay vai bus usca
carr
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in spiriraç
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histtória med dieval
euro
eu r peia no o temp mpo o da p pre
resen-n
ça ddoso árabes em Portu tugagall e nan
Espa
Es panhn a. As figuras do guerrei-
ro eespspanhol El Cid e do poeta
d cidadde portuguesa de Silves,
da
Ibn Ammar, servem de inspi-
ração para a própria criação do
auuto
tor,
r, mas as,, at
atravé
véss ded suaas vívi-
d s pe
da perssononagagenens,s, a trans nsição ã de
uma erra pa
um p ra out utrara é roddeaada da de
tant
ta ntaa po poesesia
es ia,, no
ia noststal
stalgi
al giaa e ce
gi cert
rto
rt o
agri
ag rido
ri d cee qque
do ue esstta se ttor orno
or nouu um
no ma
d s su
da suasas o obr
b as maaiis ac
br aclalama
m das. s.
Esse
Es see p pod
o er ddee evvoccaç
od a ão o, eme o-o
ção
çã o prprofofun
of unda
un da e lam a en ento to
op por
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o
pass
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ss ado
ad o ququee já nãão o exi x st
s e, ou
está
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rend
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nd o, permi
err mi
mite te ao au
te au--
to
or crcriia
iar allgu
g maas daas ma maisaiss mma-a--
r viilh
ra hos
o asas e com mpl p exxass cen
ceennas
nasas de
seus
se us livivro
roos.

pros
pr osaa lííri
os r ca e emo moci
moci cion
onal
on a
al
não
nãão enco
enco
en con
ontraa par aral
alel
eloo em
neenh
nhum u o
um out
u ro
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nttas
asia
ia
quee euu ten
qu nhaa liddo,, ccom
om exc xceç
eção
eç ão
dee Urssul ula Lee Guiuin em sua sér
uin ériiee
érie
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Ea rrtths
hseaa. Kayy ddom
hsea omiin
om ina a liling
ina ngguaa-
g m co
ge comomo um ma maggogo ppod
oder
od erros
oo
teeceend ndoo um m encncan
antta
tame
tame
mentnto
nt o cocom
pala
pa laavrvras
ras ccuiuida
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sa mentntee essco
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BBAANNGG! //
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lh
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idas
as.. Nãão há uuma
as ma úúni nicca
ni ca ffra
r se qque
ra ue nnãoã
ão naarrrat
ativ
ivaa pr
iv prog
ogri
og ride
ride,, Br
de Bran
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an din
di n mo
m sttra um
seja
se j b
ja bon
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evococat
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iva.
a. c rá
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le o e tororna
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-s óbvi v o qu
vi quee
E ququemem mel elho
horr paara rrep
e re
ep rese
sent
nttarar ess
ssaa não
nã o é um ssim implpleses ant
ntag
aggonnis
i taa, e ququas
asee
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pe rfei
eiçã
ei ç o lílíri
çã rica
icaa ddo
o ququee a figu gura
ra de um cons
co nseg
eguiimomoss cocompmprereen
endederr seeu in inte
tens
tenso
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b rddo? Dev
ba evin
in dd’A
’ so
’A solili é uma das a p perso o- deesggosto pel elaa mo
mortee dod filho o Steteva
van
va neo
naage
g ns apr p ese enentaada
dass no inínícic o do livvro e
ci que o le
qu levo
vvo
ou a cometeer ta t ma
manhnhaa ata ro
r ciida-
da-
da
será
se rá eele
le que noss con ondud zirá na prrim imeira de contraa Tigana.

A
partee pela Pen nínsusula
la da Palm lm
ma e ap apre
r- Albberiico de Barbaddior io
or é o ou outr
utr
troo fe
f it
i i-- Península da Palma partilha
seent
ntar
aráá os aco onteccimimene tos po
en olílíti
ticoss e ceeir
iro
o qu
q e mantém a Palma sob seu do- uma língua comum e está
históricos. Um jovem e sen ensível e mú músisiico
co m ni
mí n o. Oposto de Brandin, é um senhor dividida em nove províncias:
talentoso que, ao de d scobrir a verdade de guerra bárbaro, talvez a figura mais Senzio, Certando, Corte, Baixa
acerca de suas origens, nunca mais volta u idimensional na obra de Kay. Apenas
un Corte (a antiga Tigana), Asoli,
a ser o mesmo. vêê a Península como um meio para atin- Chiara, Tregea, Astibar e Ferraut.
Attra
A traavé
véss ded le, conhecemos outras fi- gir umu fim, e tudo o que amb mbic icio
ic i na é A parte oriental é dominada por
guras qu quee formam, na aparência, uma glóriai e poder no Império de Barbadior.
ia Alberico, ao passo que o lado
mera companhia de músicos. No início Do lad ado opos
ad o to, Alessan, o príncipe
os ocidental é dominado por Brandin,
do livro, descobrimos qu que os músicos de Tigana, é o sup uppossto heróii de qu q em que reina a partir da ilha de Chiara.
têm uma identidade que escon sco dem de
sc se espera a redenção e a vinganç nçça,
a mas Duas luas orbitam em torno da
todos e uma missão que pretendem é uma figura que ganha umaa dimen e ssãão terra onde os habitantes veneram
desempenhar a todo custo. Todos eles cada vez mais humana e menos heroi- uma tríade de deuses, um deus e
fazem parte de um grupo secreto de ca. Constantemente atormentado por duas deusas.
conspiradores e rebeldes que planeja dúvidas, jurou livrar a Penínsulaa do d s fei-
derrubar os feit iticeiros e libertar Tigana, ticeiros tiranos, porém, ainda que tenha Ao contrário de fantasias mais
sua pátria subjugada e amaldiçoada, das companheiros tão leais como Devin, tradicionais, não imperam criaturas
garras de Brandin. Catriana e Baerd, o príncipe cresceu em míticas ou outras raças. A única
A guns são jovens, outros nem tanto,
Al exílio e em constante fuga, atorrme mentnta-
nt a criatura sobrenatural que figura na
m s to
ma todod s sentem intensamente a perda do pela memória de uma Tigana que jáá história é uma riselka cuja aparição
dee ssua
u terrraa natal. Alguns ainda desejam
ua não existe e de um pai corajoso que se traz presságios. A magia existe na
redi
re dimi
di mir os erros do passado ou preser-
mi tornou uma lenda e um mártir para os Península, mas não é disciplinada
varr as pou
va o cas me m mórias familiares que tiganenses. Para piorar as coisas, Alessan nem é ensinada, e muitos de seus
lhes
lh e res
es e ta
t m.
m sabe que, para alc lcan
a çar a vitória, terá de praticantes são forçados a esconder
Ass mul
A ullhe
ulhheres são tão importantes cometer atos questionáveis. Sua relação seus talentos dos tiranos ou se
quanto to os ho h mens em Tigana. Como com o feiticeiro Erlein propiccia alg l un
uns arriscam a uma sentença de morte.
eles, lutam por sua liberdade e dignida- dos episódios morais e éti tico
c s ma
co mais is ddes
esa-
a
de, apaixonam-se (às vezes pelas pes esso
so-
so fiantes do livro ro.
o Muito ao estilo da antiga Itália
as errradadasa ), e, muitas vezes, podem su- É difícil esco coolher uma m única c cena de- medieval, que era formada por
peeráá-los,
perá l demonstrando uma coragem e cisiva do livro entre tantas – o que dizer estados que constantemente
sacrifício imensos, estando sempre dis- do magnífico capítulo do “mergulho guerreavam entre si, assim é
postas a darr a vida para pagar o preço do anel” ou a Noite das Flamas com os apresentada a Península. Os
de san nguuee.. Andarilh hosos da Noite? Mas de uma coisa conflitos internos permitiram a
não há dúv ú id
idaa: o lei
e tor ficará certament ntte
n fácil conquista dos territórios,
marc rcad
addo pelos momentos finais de desta simultaneamente, mas de modo
ob bra mmono umental, em que Kay to omou independente, pelos dois feiticeiros
um ma decisão controversa quando o reve ela que estabeleceram uma balança
um dos o grandes seg e redos da sag a a.a Rese ta precária de poder.
ouutr
outr t a paart
rtee da
da nnara ra
ar r tiiva é ffoc
ocad
oc adaa na
ad aao
o leitor avaliar se essa decisão o nãnão o faaz
Ilha
IIlha de Chiara,, on o de B Brarand
ra nddin
in est
sta-
a- todo o sentido diante dos temass prrin in-
beele
l ceu sua corte, e, e é ccon onnta
tada
d através cipais do livro: a perda da identida dade
da dee, a
doss ol
do o ho
hoss de d Dia iano
nora
no raa, um ma beela l mulher vingança, o desejo por liber e dade e esco-
q e fo
qu oi ca
c ptptur
u ad
ur ada pe pelolos meerc
los r en
enár
árrios do lha pessoal, a necessidade de de compaixão.
r i Br
re B andi d n e qu
di q e ra rapi
pida
pi damente se tor
dam orno
or nou
no Pois afinal é o próprio Alessan que ad-
u a de sua
um uass am man a tees fa
favovoori
ritaas emm meio mite: Nesse mundo em que nos encontramos,
ao seue saissha hann. A hist
hiist
stór
ória
ór ia de Di D ana ora é penso que é preciso ter compaixão acima de
repl
re plet
e a de sollidão iddãoo, dúvi vida
ida
da,, du
d pla iden- tudo, ou estaremos todos sozinhos. Se você
tida
tidade
da de,, an
de angúúst s iaa e tri
rist
stez
ezas
zas imensas. Seu nunca leu Guy Gavriel Kay, posso asse-
pass
pa ssado
ss
ssad
addo é co ontad
nttad
ado o em
em flflaashbackss e logo gurar que está nas mãos de um exímio
desc
de s ob
sc bri
rimo
mo os seus
seeuss ver
erdddaaddeeiros
e objetivos. contador de histórias, que o fará viver
Ella é te test
stem
steem
munh
unnhaha do
do imenso poder de uma autêntica montanha-russa de emo-
Bran
Br an
ndidin so
din sobrbree seus súditos e seu bobo
br ções.
Rhun
Rh un,, de sua
un ua arrogância e frieza, mas
t mb
ta mbém ém do seu charme e sensualidade.
ém
N s sab
Nó bemos logo no início do livro
que ele é o vilão, mas, à medida que a

72 /// BANG!
1

74 /// BANG!
GUY GAVRIEL KAY é um autor canadense que se iniciou no mundo literário ao ser convidado por Christopher Tolkien
para editar O Silmarillion, de J. R. R. Tolkien. É o autor da trilogia de fantasia A Tapeçaria de Fionavar e das obras de fantasia
histórica Lions of Al-Rassan, A Song for Arbonne, The Sarantine Mosaic (dois volumes). Os livros Under Heaven e River of Stars, de
sua mais recente série, passam-se no Império da China. Tigana é uma de suas obras mais aclamadas. Seu trabalho encontra-se
traduzido em 21 línguas e recebeu numerosas nomeações e prêmios ao longo de sua carreira.

A
ntes de publicar mo, utilizi ando alguns desses elementos,
seu primeiro ro- m s cr
ma c ia
iand
ndo pe
nd p rsonagens mais moder-
mance, The Summer n s,, int
na n ro
rodu
duzi
du zinddo sexualidade e temas
Tree, você foi con- como
mo o lib
ibeer
erd de de escolha ou o preço
erda
vidado por Chris- (ou fardo) do poder.
topher Tolkien
para editar O Sil- Tigana foi o primeiro romance no qual
marillion, de J. R. R Tolkien, considerado você encontrou sua voz criativa. Sei que
uma obra-prima por muitos de seus fãs. não lhe agrada muito o termo “Fantasia
Foi uma decisão deliberada escrever A Histórica”, mas, ao recriar determina-
Tapeçaria de Fionavar, sua primeira trilo- dos eventos históricos em um cenário
gia de fantasia, na tradição de Tolkien? de fantasia, você acabou por criar um
Uma homenagem a um escritor que conjunto de obras único e forte. Em
influenciou tão intensamente o gênero? Os Leões de Al-Rassan há um grande
A tees de
An d qua ualquer co c is
isa, obrigado por fascínio pelo declínio da presença dos
esta
taa ent
n re
revi
vist
viist
sta.
a. É uum m pr
praz
a er ter a opor- mouros em Portugal e na Espanha. Em
tunida
dade
dee ddee pa
partrtilililha
rt harr algumas reflexões
ha A Song for Arbonne, foi a cruzada albi-
com meuss lei lei
eito
to
orrees. s. gense na Provença Medieval que captou
Fionavarr não foi exatamente uma a sua imaginação. Em Tigana, você se
homenagem, m mas sim uma tentativa de inspirou na Itália Medieval. Também
regressar às mesmas raízes, à capacidade Constantinopla e a China foram objetos
de moldar uma fantasia. Na época, a de estudo em romances recentes. A
maioria dos escritores de fantasia que fantasia permite-lhe maior liberdade em
eu conhecia estava se afastando da di- explorar os principais temas do livro?
mensão épica em direção a uma obra Suponho que hoje em dia me sinta mais
minimalista, deixando os grandes épicos confortável com o termo “Fantasia
para escritores que imitavam cinicamen- Histórica”, pois as pessoas gostam de
te Tolkien como forma de obter suces- rótulos e categorias. Tenho imensas
so comercial. Não era meu desejo que razões para trabalhar com o que um
um gênero tão forte em mito, lenda e crítico chama de “história com um pen-
folclore acabasse dessa forma. Fionavar dor para o fantástico” e escrevi ensaios
foi um desafio que impus a mim mes- e discursos sobre isso (quem lê inglês

BANG! /// 75
p de enc
po n on ontrtrar
ar alg
lguuns
uns de d st
s ese ttex
exto
ex toss na
to mesmo tipo de jugo político e tirania. form
forma.
rm a Ess
a. ssaa é um
uma da d s ra
r zõ ões por or que
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se ção
çã o “WWor o ds
ds”” de
d www ww.b.bri
.b riigh
righ
ghtw
twea
tw eavi
ea ving
vi nggs. Após várias décadas, a tirania política e não
nã o po
posssso
ss o si
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mp lesm
le menentee emp prega
g r
ga
c m). N
co Naa Am mér
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na,, qu
quee te
tem
m umumaa a financeira continuam a ser um tema pesq
pe squi
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ui s do
sa doreres:
res: tten
enho
enho o que ssererr eu
eu pr
pró-
ó--
trad
tr adiçi ão
iç ã rricicaa em rreaealilism
smo o má
mági gico
co,, acchoo vital em todo o mundo. Vinte e três p io a ffaz
pr azzê-
ê-lo
l , meerg
lo rgul
ulha
ul harr be
ha bemm fufund
ndo,
ndo,
quee co
qu c mp
mpre reen
ende
demm me melh lh
hor ccom mo estess anos antes de sua primeira publicação, d sccob
de o riir aqquiilo qqueue ssee ir
iráá to
torn
rnar
rn ar par
arte
te
lilige
geeir
iros
os des e vi
v os da re realalid
idad
adee popode
demm nan você previa que os temas de Tigana d meu liv
de ivro
ro. O lilivr
ro vro
vro mu
muda da eemm mi
mimm
verd
ve rdadadee iliumminarar ainindada maiis o nosso refletissem tão profundamente o estado enqu
en quan
anto
to o m mololldo
do.
munddo e a Histór ória
i . AlAlém dis i so, a fa
fan-
n- presente do nosso mundo?
taasiia pepermitte- e me
m usa sarr um maiorr n
sa núm
úmee-
úm e- Não
Nã o te
ten
nho tendência a penssar nisso em Em que você está trabalhando no
ro de ferramentas pa p raa sededuzir o lei eito
ei to
or!
r teerm
r os de “previsões”, sendo a minha momento? Quais são os seus futuros
persrsp
pectiva a de um historiador. Tigana planos de publicação?
Verifiquei em seu site a bibliografia que f i escrito como uma fantasia em parte
fo Terminei agora o tourr para o meu livro
você consultou para a pesquisa de Ti- po orq
r ue, ao ser escrito dessa forma, mais recente, Rivev r of Stars,
s por isso ini-
gana, e a maioria dos livros centram-se sobrbree um país fictício, po
br p de
de ttor
orna
or naar-
r se ciei a fase de ler e pensar (e praguejar!)
na Itália Renascentista ou na Idade a histtór
ó ia de muitos outros luugag res em soob
brre
re qu
qual será o tema de meu próximo
Média. O que o atrai tanto no passado diferent nttes
e tempo
pos. Eu adoro este para-
po livr
v o.
vro. Pre
reci
cis
ci
iso sempre de um pouco de
da Europa e o que o cativa tanto para o doxo: o cenário de fan a tasia fazz co
com m que tempo antes de começar a escrever, em
melhor e o pior da ascensão e declínio leitores do mundo inte teiro me perrguun-
te parte porque não quero repetir os te-
de Impérios? tem, ao longo dos anos: “Voc occê es
e crrevveu mas e o estilo do último livro.
Como você provavelmente deve sobre nós?”
saber, meus dois últimos romances Esta é a sua primeira publicação no
exploraram a História chinesa, nos Você é conhecido por criar persona- Brasil. O que gostaria de dizer aos seus
séculos VIII e XII, por isso não estou gens masculinas e femininas muito leitores brasileiros para convencê-los
de maneira nenhuma “casado” com a complexas: Alessan, Jehane, Dianora, a ler Tigana? Como ex-estudante de
Europa. Mas admito que me sinto fas- Ammar ibn Khairan, para nomear só Direito e advogado, como defenderia a
c na
ci nado por sua História desde os meus algumas. Até mesmo os seus vilões sua causa?
1 aano
18 nos, quaando fiz uma viagem pela afastam-se dos clichês habituais. O fei- Ah! Preciso de uma boa garrafa de uís-
Euuroropa
pa. Do
Dou-lhe razão quando aponta ticeiro Brandin de Ygrath é o opressor que de malte para ser veerddad adei
e ramen-
ei
quee mu
qu m itos de meus livros ocorrem em de Tigana, mas também vai muito além te persuasivo. A verdadee é que Ti Tiga
gana
ga
peerííod
o os
o de mudança política, religiosa disso. Pode partilhar conosco alguns de parece terr tido boas venda dass e im
da impacto
ou mililit
itar
ita . A tensão que essa transição seus segredos sobre o processo de cria- em toddo o mu m nd
n o. Tornou-se uma
ccaaussa às
à pere sonagens origina um gran- ção destas personagens? obra impmpor
mp orttante para lei
or eito
tore
to ress em
de imp pac
acto
to. Não diria que tenho segredos.. Su Supoponh
po n o país
pa íses
ís es ccom
omo
om o Co
C reia do SuS l e EsEstô
Estô
tôni
n a,
que seja tudo uma questã tão
tão de tem
empo po,
po da CChih na à Gré
hi r ciia. Sinto-me honrad a o
Em Tigana, a magia desempenha o pa- paciência e avvere são a uma simp plifi
liifica- e proffununda
dame
da mente grato. Os temass
me
pel principal na eliminação da identida- ção excessiva da das coisas
a . Como
m leitor, do livvroo, beem co
como as personaggens, s,,
de e memória. O legado dos tiganenses aprecio livros que me ofereçam per- toca
c raam pr
ca p of
o undamente muitas pes es-
e o caminho que eles têm de percorrer sonagens complexas e maduras, e não so
oass, e a minha esperança é que o
lembrou-me do livro de Amin Maalouf heróis ou vilões óbvios. Por isso tento meesm
m mo acconteça no Brasil. Assim m
As Identidades Assassinas. A identidade escreverr os lilvros que gostaria de ler. espe
es peeroo!
conduz sempre à loucura e à violência? Tamb bém
m sin
into t muiu ta curiosidade pelas aass
Não,
Nã o certaame mentntee nãão.
o Mass qque uestões
ue minh
nhhas
a personagens
er secundárias, que-
qu
dee iide
dent
n id
idad adee e su
suaa su
suprpres
pr e sã
ess o ou per- ro
o ssab
ab
aber
ber mais sobre elas à medidaa qu q e
daa sãoo ext
xtre rema
re mame
ma ment
me ntee impo
nt ortantes ao suurgem, por isso tento dar-lhe h s al
algu
guma
lo
ong
ngo ddaa His i tó
tória. Tiranos e ccon onqu
on quis
qu ista
is t-
ta p offun
pr undidade.
d rrees se
do sem
mpree sou soube
bera
bera r m qu quee a mamaneneir
ne iraa
ir
m is ceerta de reduzi
ma zirr a re
resi
sist
sistên
stênci
ên ciaa é
ci A riqueza de Tigana reside não só nas
dim
di minuir a identid dad
adee da naçção ão ocu- personagens fascinantes e no enredo,
paada
d . A ep píg ígrafefe de Tiga
Tiga
Ti g naa, dee autu oria mas também nos detalhes de cada
d mar
do a av
aravilililho
hooso
s poeeta gre rego
ego
go GGeo eorge
eo região e cultura. Como você integra a
S feeris,, é pre
Se reci
c same
cisaame
mentntte so obr
b e aquiilo o pesquisa na sua escrita? Quando está
q e me
qu me perergu gunt
n a:
a lem mbrbrar
arrmos
mos mu muit ito
ito lendo um livro de História, reconhece
do passado
do o pod
o e nonoss dedeststru
ruir
ru ir;; ma
ir m s nos imediatamente os elementos que irá
l mb
lembrarmos os ppou
ouuco ttama bé
am bémm pop de. assimilar em sua obra?
É uma boa pergunta. A resposta curta é
Sei que você já se referiu à Primavera não, pois à medida que leio e pesquiso
de Praga [tentativa de liberalização da são as coisas pequenas e inesperadas
Checoslováquia do domínio da União que muitas vezes captam meu olhar,
Soviética em 1968, que terminou nesse mas também acontece de eu fazer
mesmo ano com a invasão de Praga uma nota que acaba por nunca entrar
por tanques soviéticos] como um dos no livro. Também pode acontecer de
acontecimentos históricos que inspira- outras coisas irromperem de minhas
ram Tigana. O povo de Tigana sofre o notas enquanto o livro está tomando

76 /// BANG!
Por Safaa Dib

E
duardo Spohr é hoje um umas dicas preciosas com os nossos lei- mimos papéis arquetípicos, já passamos
nome popular entre os tores. por situações difíceis, já morremos e re-
nerds brasileiros. nascemos (metaforicamente, é claro).
A história de seu suces- Seu pai era piloto de aviões e você viajou
so já é conhecida. Tudo muito com ele por todo o mundo. Essa Em que medida a leitura de HQs e os jo-
começou quando ganhou um concurso infância e adolescência em constante in- gos de RPG influenciaram a criação de
literário que lhe permitiu publicar 100 teração com outras culturas influencia- seu próprio mundo ficcional?
exemplares de seu primeiro romance ram a mitologia que criou em seus livros? Sem dúvida tanto os quadrinhos quanto
A Batalha do Apocalipse. O autor propôs De certa forma, sim. Não que as viagens os jogos de RPG representaram influên-
uma parceria a seus amigos do site Jovem tenham influenciado diretamente no ce- cias essenciais no meu trabalho. No pri-
Nerd que venderam em sua loja on-line nário de fantasia que eu descrevo em mi- meiro caso, o que mais me inspirou fo-
todos os livros em uma questão de ho- nhas obras. O que elas (as viagens) me ram as revistas da Vertigo, um selo adulto
ras. Dos 100 exemplares, rapidamente proporcionaram foi a convivência com da DC Comics.
passou de 4 mil cópias. culturas e povos muito diferentes, o que Eu costumava ler histórias de super-he-
O sucesso de sua edição de autor cha- me fez compreendê-los e respeitá-los. róis desde pequeno, mas foram nomes
mou a atenção da Editora Record que, Essa postura, de respeito e compreensão, como Neil Gaiman, Alan Moore, Garth
em 2010, o convidou para publicar A me ajudou a, mais tarde, estudar várias Ennis e títulos como Sandman, Hellblazer
Batalha do Apocalipse. Mas a escrita não mitologias, crenças e tradições sem pre- e Preacherr que mais me inspiraram. Neil
ficou por aí. Em maio deste ano, Edu- conceitos, com um olhar aberto, amplo Gaiman e Alan Moore, por exemplo,
ardo lançou Anjos da Morte, o segundo e interessado. foram, ao meu ver, os grandes responsá-
volume da série Filhos do Édenn e prepara E foi com esse olhar interessado que eu veis por trazer a filosofia aos quadrinhos
o terceiro e último, Paraíso Perdido. O re- descobri que todas as histórias mitológi- norte-americanos. Já publicações como
conhecimento tem sido global: já publi- cas seguem um mesmo padrão univer- Hellblazerr e Preacherr me interessavam por
cou em vários países europeus e é um sal, padrão que também é adotado por explorar personagens anjos e demônios,
dos escritores brasileiros convidados a muitas obras populares, no cinema, nas assunto que sempre me fascinou.
fazer parte do time de futebol que irá histórias em quadrinhos, na literatura, no O RPG é uma ferramenta de criati-
desafiar o time de escritores alemães na teatro. Esse “padrão”, conhecido como vidade fascinante, que proporciona ao
Feira Internacional de Frankfurt, onde o “a jornada do herói”, tanto nos cativa mestre do jogo a possibilidade de inven-
Brasil é, este ano, o convidado de hon- porque está baseado em etapas narrativas tar uma história e testá-la imediatamente
ra. Apesar de ter uma agenda lotada, o que são metafóricas e que podem ser ob- com seu grupo de jogo, que o ajudará a
autor, superamável, arranjou tempo para servadas em nossa própria vida – todos ampliá-la e enriquecê-la.
conversar com a revista Bang! e partilhar nós, de uma forma ou de outra, já assu- O RPG também pode ajudar um escri-

BANG! /// 77
Todas as tor a criar personagens ricos. Qua-
se todos os personagens dos meus realidade. De fato, a grande maioria
pessoas têm livros foram criados por amigos dos heróis são rebeldes, de uma forma
um potencial meus em sessões de RPG – assim, ou de outra, figuras que se rebelaram
sempre que, ao escrever um capí- contra um sistema vigente. É o caso de
divino, o poder tulo, eu tinha dúvidas sobre como Jesus, que desafiou tanto os romanos
de fazer coisas um personagem deveria agir, eu quanto os sacerdotes judeus; é o caso
pensava em como o jogador agiria de Buda, que decidiu largar a sua no-
incríveis, mas ao controle do personagem, e até breza para seguir seu caminho; é o caso
às vezes esse os diálogos soavam mais consis- de Maomé, que se insurgiu contra as
tentes, menos artificiais. poderosas famílias de Meca iniciando a
potencial está O RPG é uma ferramenta de jihad; é o caso de Luke Skywalker, que
adormecido. criação coletiva, que auxilia o es- se revoltou contra o Império Galáctico;
critor em seu trabalho, trabalho é o caso dos robôs de Isaac Asimov,
Está em esse que em circunstâncias nor- que lutavam contra sua própria progra-
nossas mãos mais seria um bocado solitário. mação, etc.
Assim como esses heróis (da reali-
despertar esse De onde vem esse intenso fascí- dade e da ficção), nós também temos
potencial, nio pelo Apocalipse e pelo corpus dentro de nós o desejo de nos rebelar-
mitológico do Velho e do Novo mos contra as imposições sociais. No
escolher nossa Testamento que deu origem ao fundo, o que queremos é escolher o
trilha. Spohrverso? nosso próprio destino, queremos es-
Estudei em uma escola católica, colher uma atividade profissional que
fiz catecismo e primeira comu- nos dê prazer e satisfação, enquanto
nhão, e cresci dentro da tradição a esmagadora maioria das pessoas no
cristã. Talvez o fascínio venha daí, mundo são obrigadas a trabalhar em 1
mas eu diria que o meu fascínio, empregos de que não gostam, às vezes
de fato, é por todas as crenças, re- influenciadas pelos pais, pelos parentes,
ligiões e mitologias. por amigos ou pela própria sociedade.
A tradição judaico-cristã é É esse grito heroico dado pelos per-
aquela com que mais convivemos sonagens descritos acima que nós de-
no mundo ocidental, é a que mais sejamos dar, por isso tais figuras tanto
conhecemos e a que mais temos nos inspiram, pois tiveram a coragem
contato, por isso talvez eu a tenha de não ceder às imposições sociais e
escolhido como tema principal seguir os princípios que acreditavam,
das minhas histórias. mesmo diante da morte.
Em relação ao fim do mundo, Quanto à questão do Deus adorme-
está muito ligado à minha infân- cido, é também uma metáfora. Todas
cia. Cresci nos anos 1980, e com a as pessoas têm um potencial divino, o
iminência de um confronto nucle- poder de fazer coisas incríveis, mas, às
ar durante a Guerra Fria os livros, vezes, esse potencial está adormecido.
filmes e até músicas destacavam Está em nossas mãos despertar esse
bastante esse tema, de como seria potencial, escolher nossa trilha.
um mundo devastado, destruído
pela ação dos homens, um planeta Recentemente, você lançou no Bra-
a ponto de acabar, desprovido de sil Anjos da Morte, que segue a história
esperanças. de Denyel, um querubim exilado, que
testemunha a história bélica e sangui-
Em Paraíso Perdido de John Milton, nária europeia do séc. XX. O que o
a grande figura literária é Satanás, surpreendeu mais em sua investigação
sendo Deus uma figura ausente da Europa no tempo das duas Guerras,
e não tão carismática quanto Lú- da Guerra Fria e da queda do Muro de
cifer. Em sua obra, A Batalha do Berlim e nas viagens recentes que fez?
Apocalipse, Deus está adormecido Toda guerra é terrível, mas estudá-las
e são os arcanjos e outras figuras não deixa de ser uma atividade fasci-
celestiais que se tornam protago- nante. O que mais nos impressiona nas guerras é a incrível capacidade
nistas e movem toda a ação. O do ser humano em se adaptar às situações mais extremas. O homem,
fascínio de todos nós por pro- embora individualmente frágil, é uma máquina de sobrevivência, um
tagonistas que são anti-heróis, ser que fará tudo o que estiver ao seu alcance para resistir às mais duras
exilados, rebeldes é uma forma provações.
de refletir na ficção as próprias Impressiona também, ao estudar as guerras, como, no momento do
imperfeições e dúvidas da Huma- desespero e da morte, o ser humano é capaz de se superar, para o bem
nidade? e para o mal. É nesses momentos que a nossa natureza aflora, mostra a

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sua face verdadeira. É nesses momentos que nos tornamos
heróis, monstros, santos e selvagens.
Costumo dizer que existem três níveis de pesquisa. O
primeiro nível é por meio da internet, que dará ao escri-
tor uma visão geral sobre o assunto. O segundo nível de
pesquisa é a leitura e o estudo de livros – é necessário ler
livros completos sobre o tema que o pesquisador deseja se
aprofundar. Finalmente, o terceiro e mais profundo nível
de pesquisa é a visita ao local – no caso de Anjos da Morte,e
visitei os sítios históricos das duas grandes Guerras e da
Guerra Fria.
Visitar o local antes de escrever sobre ele enriquece a nar-
rativa, e muito, porque dá ao autor uma experiência não
apenas intelectual (que pode ser assimilada por livros), mas
principalmente uma experiência sensorial, fazendo com
que o escritor conheça não apenas os fatos, mas as sensa-
ções e emoções que o lugar proporciona. Em um romance,
Brinco com os essas sensações serão transmitidas para o leitor por meio do
protagonista, que é o fio condutor da trama.
meus colegas,
também Ablon e Denyel são duas de minhas personagens favoritas. Um é um
anjo renegado e condenado, outro é um querubim exilado e recrutado
autores de como anjo da morte. Qual o segredo de um escritor para criar uma
fantasia, que personagem memorável e carismática para os leitores?
Primeiramente, agradeço pelo elogio e fico feliz que tenha gostado dos
passamos personagens. Bom, não sei se existe um segredo específico nesse caso,
um, dois anos mas acho que todos os aspectos da produção literária devem ser genuí-
nos para o autor – não que ele deva acreditar naquela história de fanta-
escrevendo um sia, claro que não, mas ele deve acreditar que aqueles aspectos possam
livro, e o leitor de fato existir dentro do mundo fictício que ele criou.
Os personagens, feitos de tinta e papel, devem ser, no momento em
o devora em que o autor está escrevendo e bolando seus capítulos, “reais” para ele;
uma semana, devem ter atitudes coerentes com o que a história propõe.
É importante também que o personagem tenha características mar-
às vezes em cantes que o definam. Ablon, por exemplo, é um herói inabalável, en-
um dia. Sendo quanto Denyel é um malandro incorrigível. Eu, pelo menos, gosto de
trabalhar com arquétipos universais. Os arquétipos universais são pa-
assim, o leitor drões de personalidade comuns a todos nós, e por isso nos identifica-
vai procurar mos com eles tão facilmente.

outros livros, Você ministra um curso de “Estrutura Literária”. Que desafios apresen-
e é bom ta o seu trabalho como professor e como concilia com o seu trabalho
de escritor?
que o faça, É sem dúvida um trabalho que me exige muito, mas não há nada mais
porque dessa prazeroso. Lecionar é para mim uma atividade incrível. Não só aprendo
com os meus alunos como me torno amigo deles. Cada turma é uma
forma ele nova experiência e um novo grupo de colegas que se forma.
irá adquirir A fantasia e a ficção científica escritas em português (brasileiro ou euro-
e ampliar peu) podem vir um dia a rivalizar com a fantasia anglo-saxônica?
o hábito da Difícil fazer projeções para o futuro. De qualquer maneira, não acho
que exista, por parte dos autores, essa necessidade de rivalizar com es-
leitura. critores nativos de outras línguas. Eu mesmo nunca pensei sobre isso.
Creio que a maior vontade de um autor (se não é, deveria ser) é escrever
a sua própria história, para que ela seja lida, sem pensar se ela será pior
ou melhor que o trabalho de um colega. Penso que, enquanto artistas,
não precisamos nos preocupar em fazer melhor do que ninguém – pre-
cisamos, sim, fazer o melhor possível, o melhor que podemos, sem pen-
sar em competição ou rivalidade.

Sei que leu muitos livros portugueses de fantasia e ficção científica na


década de 1980 que eram importados para o Brasil. Hoje, o Brasil tem
uma oferta muito diversificada de publicações e muitas editoras (gran-

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des e pequenas) têm descoberto autores
brasileiros e traduzidos, bem como lança-
do coletâneas e romances. Como encara
este boom atual de fantástico no Brasil?
Encaro da melhor maneira possível. É
sempre bom ter muita oferta de literatu-
ra no mercado. O bacana desse ramo (o
ramo literário) é que não existe competi-
ção entre os autores. Brinco com os meus
colegas, também autores de fantasia, que
passamos um, dois anos escrevendo um
livro, e o leitor o devora em uma semana,
às vezes em um dia. Sendo assim, o leitor
vai procurar outros livros, e é bom que o
faça, porque dessa forma ele irá adquirir e
ampliar o hábito da leitura. Escreva todo dia, nem que seja
Faço questão de sempre em minhas Tenha um roteiro de todos
um pouco. Se você parar por
palestras e conversas com o público di- os capítulos, do primeiro ao
muito tempo, terá de voltar para se
vulgar o trabalho de outros autores para último, antes de começar a
recordar onde parou, dando início a
quem estiver presente – se mais pessoas escrever o seu livro. Assim
um processo sem fim.
lerem os nossos livros, todos sairemos você não se perde e evita os
ganhando. “brancos criativos”.

O que os leitores podem esperar de seu Organize-se, separando o seu


próximo livro, Paraíso Perdido, que encerra material em pastas, físicas ou
virtuais. Trabalhe com pequenas
a série Filhos do Éden?
metas. Foque-se em seu
Gosto de trabalhar com várias camadas
objetivo mais imediato,
em meus livros. É claro que se trata de
caminhe de capítulo em
livros de aventura, onde há lutas e muita
Estabeleça um horário para capítulo.
ação, mas penso que um romance deve
escrever, crie uma rotina.
ir além disso, deve incluir também uma
camada mais profunda, sem soar lento,
aborrecido ou professoral. Em minha
primeira obra, A Batalha do Apocalipse,e
além da trama e dos combates, explorei
três assuntos que muito me interessam:
filosofia, história e mitologia.
Quando comecei a desenvolver a tri-
logia Filhos do Éden, resolvi que cada livro
focaria um desses aspectos. O primeiro Procure conquistar os seus
deles, Filhos do Éden: Herdeiros de Atlântida, leitores antes de conquistar
é mais filosófico, questiona os aspectos a editora, pois se você tiver
da vida e a para onde vamos depois que leitores, as editoras virão atrás
morremos. Já o segundo, Filhos do Éden: de você – enquanto o contrário
Anjos da Morte,e é uma obra totalmente his- não é necessariamente verdade.
tórica, com uma forte carga de pesquisa.
O terceiro, Filhos do Éden: Paraíso Perdido,
então, será um livro que mergulhará fun-
do nos aspectos mitológicos, tanto da mi- Apresente o seu material da Procure agir de forma
tologia judaico-cristã quanto da mitologia melhor maneira possível, espontânea. Seja você
nórdica. tanto graficamente quanto mesmo. Seja verdadeiro.
O que Anjos da Mortee teve de realida- intelectualmente – bem Não compre brigas, não
de, Paraíso Perdidoo terá de fantasia, e leva- revisado, escrito de forma clara. invente números nem
rá a série a um nível acima. Herdeiros de tente ser quem você não é.
Atlântidaa teve como cenário o Brasil, em
Anjos da Mortee os personagens viajaram
pelo mundo e em Paraíso Perdidoo será a Se as editoras não aceitarem
vez de explorar outros planos e dimen- Procure escutar as críticas e tentar
o seu original, não desista, melhorar com elas, em vez de achar
sões. continue tentando publicar que seu trabalho é perfeito e intocável.
nem que seja de forma Somos humanos, cometemos erros e
independente. sempre podemos melhorar.

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