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Ellen Meiksins Wood A Origem do Capitalismo Emir Sader ar Editor Capitulo 1 O modelo mercantil e seu legado A maneira mais comum de explicar a orige do capitalismo é pressu- For que seu desenvolvimento foi o resultado natural de préticas hu rhanas quase tao antigas quanto a propria espécie, e que requereu penas a eliminagao de obsticulos externos que impediam sua mate- rializacao. Essa modalidade de explicagao — ou naio-explicagao ra exista em muitas variagdes, constitui o que se tem chamado ce “modelo mercantil” do desenvolvimento econdmico, podendo-se angumentar que ele ainda é 0 modelo dominante. E isso se observa até mesmo entre seus criticos mais severos. Ele nao esta inteiramente au- nam té-lo substituido, sente das explicagoes demogrificas que nem tampouco da maioria das explicagdes marxistas. O modelo mercantil nhecer que © mercado se tornou capitalista a0 se to nar compuls6rio,a maioria das narrativas histéricas sugere que 0 ca pitalismo surgiu quando 0 mercado foi libertado de antiquissimas Jiram-se as resirigoes e€ quando, por uma ou outta razao, expat comiércio. Nessas argumentagoes, 0 capitalismo oportunidades representa menos um rompimento qualitativo com formas anterio res do que um macigo aumento quantitativo: uma expansio dos mercados € w .cente mercantilizagao da vida econdmica A explicagao tradicional — que aparece na economia politica {ssica, nas concep¢des iluministas do progresso e em muitos textos modernos de historia — @ a seguinte: com ou sem uma inclinagao natural para “comerciar, permutar e trocar” (na célebre formulaga0 ie Adam Smith), individuos racionalmente voltados pai seus pré prios interesses tém-se empenhado em atos de troca desde o alvore cer da historia, Esses atos tornaram-se cada vez mais especializados coma evolugio da divisao do trabalho, que também foi acompankh ade aperfeigoamentos técnicos nos instrumentos da produgao. Em. s dessas explicagdes, na verdade, os aumentos da produtivida ie podem ter sido o objetivo primordial dessa divisto do trabalho ada vez mais especializada, donde a tendéncia a haver uma estreita ligacao entre essas explicagdes do desenvolvimento mercantile uma espécie de determinismo tecnoldgico. O capitalismo, portanto, ou ‘sociedacle mercantil”,estigio mais elevado do progresso, represen to amadurecimento de préticas comerciais antiquissimas (junta mente com avancos técnicos) e sua libertacao das restrigoes politicas Mas somente no Ocidente, segundo consta, essas restrigaes fo nte e decisiva, No antigo Medi- srineo, a sociedade mercantil jé estava bem estabelecida, mas sia im eliminadas de maneira abrang evolucio posterior foi interrompida por uma ruptura antinatural ahiato do feudalismo e dos varios séculos obscuros durante os quais vida econdmica tornou a ser aprisionada pela irracionalidade e pelo parasitismo politico do poder senhorial A explicagio clissica dessa interrupgao invoca as invasdes do império Romano pelos barbaros, influente desse modelo foi elaborada pelo historiador belga Henri osterior emuito irenne. Ele situou a ruptura da civilizagao mercantil mediterranea muito depois — na invasao mugulmana, a qual, segundo sua tese eliminou o antigo sistema de comércio ao fechar as rotas com do Mediterraneo entre o Oriente ¢ o Ocidente. Uma crescente “eco. nomia de troca”, liderada por uma classe profissional de mercado es, foi substituida por uma “economia de consumo” —a economia centista [rentier] da aristocracia feudal, Mas, com o tempo, ccordo com Pirenne e seus predecessores, © comércio ressusgitou com o crescimento das cidades ea libertagao dos comerciantes, Nesse ponto, deparamos com um dos pressupos. 108 mais comumente ligados ao modelo mercantil: a associagao do capitalism com as cidades — a rigor, a suposicao de que, desde o omeco, as cidades foram um ¢ 10 embrionsrio, Na Europa, diz a tese, surgiram cidades com uma autonomia singular e sem pre- cedentes, cidades dedicadas a0 comércio e dominadas por uma clas: se auténoma de habitantes de burgos (ou burgueses), que viria a se tbertar de uma vez por todas dos grilhoes das antigas restrigdes cul taraise do parasitismo politico, Esta libertagao da economia urbana a atividade comercial e da racionalidade mercantil, acompanhada| zelos inevitaveis aperfeigoamentos das técnicas de produgdo que de im, evidentemente, da emancipagio do comércio, aparente- mente bastou para explicar a ascensao do capitalismo moderno, Todas essas explicagoes tém em comum alguns pressupostos so: a continuidade do comércio e dos mereados, desde suas mani festagoes mais primitivas de troca até sua maturidade no moderno capitalismo industrial. A antiquissima pritica de auferir lucros comerciais sob a forma de “comprar barato e vender caro” nao é nessas explicagoes, fundamentalmente diferente da troca ¢ da acumu Ihgao capitalistas através da apropriagao da mais-valia. Hé também outro tema que tende a ser comum nessas versdes histéricas do capitalismo: o burgt 's como agente do progresse Estamos tao ha ituados a identificagao de burgués com capita que 0s pressupostos ocultos nessa fusdo tornaram-se invisiveis nossos olhos, 0 cidadao do burgo ou but és €, por definigio, um morador da cidade. Afora isso, especificamente em sua forma fran «esa, a palavra nao costumava significar outra coisa senao alg sem status de nobreza que, embora trabalhasse para viver, em geral nao sujava as maos e usava mais.a cabega do que o corpo no te Iho. Esse antigo uso nada nos diz sobre capitalismo, e tem tanta pti to a um comerciante| No deslizamento ‘obabilidade de se referir a um profissional liberal, um servid blico ou um intelectual quan © para capitalis! pasando pelo cc nerciante, deslizamento este que veio a ocorrer nos usos posteriores de burgués, podemos acompanhar a légica do modelo mercantil: 0 antigo morador da cidade deu lugar ao habitante do burgo medieval jue, por sua vez, evoluiu imperceptivelmente para o capitalista mo. Jerno. Nas palavras com que um famoso historiador descreveu sar processo, a historia éa perene ascensao da class Isso nao quer dizer que todos os historiadores que subs. esses modelos tenham deixado de reconhecer que 0 capitalisme presentou uma ruptura ou uma transformagio histérica deste ou ns tenderam a encontrar nao apenas ‘© comércio, mas um pouco do proprio capitalismo, em quase tod parte, especialmente na Antiguidade mana, sempre apena a espera de ser libertado dos empecilhos externas. Mas até esses at. rande mudanga dos principios econdmicos do feudalismo para a nova racionalidade da sociedade mercantil, ou capitalismo, Fala-se com freqiiéncia, por exemplo, n: transigao de uma economia “natural” para uma economia monet- ria, ou até na transigao entre pro ca, No entanto ugdo para uso e produgao para tro- histéricas, nao é na natureza do comércio e dos mercadas em si. A mudanga se da, antes, no que acontece com as forgas ¢ instituicaes ral do comércio eo amadure cas— que impediram a evolugio cimento dos mercados, Nesses modelos, quando muito, é 0 feudalismo que representa verdadeira ruptura histérica. A retomada do desenvolvimento co mercial, iniciada nos intersticios do feudalismo e rompendo suas estrigdes, étratada como uma grande mudanca na hist6ria da Euro. pa, mas aparece como a retomada de um processo hist6rico que so- frera um desvio ten m periodo ririo— ainda que dristico e por bastante longo. Esses pressupostos tendem a apresentar um outro corolirio importante, qual seja, 0 de que as cidades e © comércio eram, por natureza, antitéticos a0 feudalismo, de modo que sew crescimento, como quer que tenha ocorrido, solapo tema feudal as bases do sis Mas, se 0 feudalismo trouxe o descarrilamento do progresso da essas explicagdes, nunca se modificou significativamente. Desde © ela implicou individuos racionalmente e vistas, que maxi mizavam sua utilidade vendendo mercadorias em troca de lucr modelo mercantile seu lgad ‘empre que surgia essa oportunidade. Em termos mais particulares, Ja implicou uma divisio do trabalho e uma especializagao cada vez umn reds cada vez mais complexas de comeércio e, maiores, que exig: atima de tudo, técnicas de producao sempre mais aprimoradas, para reduzir custos ¢ aumentar os lucros comerciais, Essa légica podia ser prejudicada de varias maneiras. Podia até ser suprimida em carter mais ou menos completo — de tal sorte que, por exemplo, os senho- res feudais puderam elimins-la, fazendo sua apropriagao nao pelo jamento no intercimbio lucrativo ou pelo incentivo ao aperfei dutivas, mas pela exploracao do trabalhe goamento das técnicas pr forcado, arrancando o trabalho excedente dos camponeses por m de um poder superior. Em principio, no entanto, a logica do merca éo teria permanecido a mesma: sempre uma oportunidade a set aproveitada em todas as ocasibes possiveis, sempre conducente ac crescimento econdmico eao aperfeigoamento das forsas produtivas, sempre fadada a acabar produzindo o capitalismo industrial, se The fosse dada liberdade para por em pratica sua l6gica natural Em outras palavras, 0 modelo mercantil nao demonstrou ne hum reconhecimento de imperativos que sao especificos do capita lismo, dos modos especificos de funcionamento do mercado ne apitalismo e de suas leis de movimento especificas, as quais, de modo singular, obrigam as pessoas a entrarem no mercado ¢ obri “ do produtividade do trabalho —as leis da competigao, da maximizaga0 1 05 produtores a produzirem “com eficiéncia”, aumenta do lucro e da acumulasao de capital, Decorre dai que os adeptos des. v2 modelo nao viram necessidade de explicar as relagoes sociais de ropriedade especificas e © modo especifico de exploragao que de erminam essas leis de movimento especificas. Segundo 0 modelo mercantil, na verdade, nao havia nenhuma ‘ecessidade de explicar o surgimento do capitalismo, que o capitalismo existiu, pelo menos sob forma embriondria, desde + da histéria, se nao no proprio cerne da natureza humana } alvor jonalidade humana, Dada essa oportunidade, presumiu 0 ricionalidade capitalista, visando o lucro e, nessa busca, procurandc neios de melhorar a produtividade do trabalho. Assim, a historia gem do capitalismo na verdade, teria avangado de acordo com as leis do desenvolvimen. to capitalista, num processo de crescimento econdmico sustentado por forcas produtivas em desenvolvimento, ainda que com algumas, grandes interrupgdes. Se o surgimento da economia capitalista ma. dura requeria alguma explicagao, era para identificar as barreiras que se ¢ mM no caminho de seu desenvolvimento natural ¢ 0 processo pelo qual essas barreiras foram superadas, Hi nisso, é claro, um grande paradoxo, Supds-se que o mercado seria 0 campo da escolha e que a “socie dad ade mercantil” seria aliber- m sua perfeigao. Mas essa concepgao do mercado parece ex cluir a liberdade humana. Tende a se associar a uma teoria da historia na qual o capitalismo moderno € o resultado de um pro- cesso quase natural e inevitavel, que segue certas leis universais, transist6ricas e imutaveis. A operagio dessas leis pode set prejudi- cada, a0 menos temporariamente, mas nao sem um grande nus. E seu produto final, o mercado “livre”, é um mecanismo impessoal que, até certo ponto, pode ser controlado ¢ regulado, mas que, em todos 0s riscos—ea inutilidade — acarretados por qualquer tentativa de violar as leis, da natu tltima instancia, nao pode ser impedido sen Depois do modelo mercantil classico Houve varios aprimoramentos do modelo mercantil basico, desde Max Weber até Fernand Braudel.” Weber por certo nao deixou de perceber que o capitalismo plenamente desenvolvido 36 surgiu em condigoes historicas muito especificas, e nao em outras, Mostrou-se mais do que disposto a vistumbrar algum tipo de capitalismo em €pocas anteriores, inclusive na Antig dade clissica. Mas, final, sua intengao era distinguir a Europa de outras partes do mundo ¢, evi dentemen ele enfatizou a singularidade da cidade ocidental e da religido européia, especialmente para explicar © desenvolvimento mpar do capitalismo ocide al. Maso fato é ques mpretendeua fa lar dos fatores que impediram 0 desenvolvimento do capitalismo noutros lugares — as formas de parentesco, as formas de domina. G40, as tradigoes religiosas que prevaleciam nel rescimento natural e niio obstaculizado das cidades e do comércic alibertagao das classes urbanas e burguesas significassem, por defi- igo, 0 capitalismo. Convém acrescentar que Weber também compartilhou com muitos outros © pressup sto de que 0 desenvolvi rento do capitalismo foi um proceso transeuropeu (ou europeu cidental) — nao apenas que algumas circunstncias, ss foram condigoes necessirias do capitalismo, mas que toda a Europa, a despeito de todas as suas variag0es internas, seguiu essenci almente uma mesma via hist6rica Mais recentemente, houve alguns ataques frontais a0 modelo tilem merc rae tese de Pirenne em particular, a qual € hoje ge ralmente desprestigiada, Entre os mais recentes e influentes desses ataques esté 0 modelo demogrifico, que atribui o desenvolvimento econdmico europen a certos ciclos autonomos de erescimento e de. dinio populacional. Mas, por maior que tenha sido a veeméncia com que se questionou o antigo modelo, nao fica realmente clarc que os pressupostos bisicos da explicagio demogritica estejam tao distantes do modelo mercantil quanto afirmam seus expoentes. A premissa subjacente ao modelo demografico, afinal, & que a transigao para o capitalismo foi determinada pelas leis da oferta e d proctra.’ Essas leis seriam determinadas de modos mais complexos do que o modelo mercantil seria capaz de explicar. Teriam menos ver com os processos sociais de urbanizagao e comércio crescente do que com complexos:padroes ciclicos de crescimento e declinio po- pulacional, ou barreiras malthusianas. Masa transigaio para 0 capita lismo continua a ser uma resposta as leis universais transist6ricas do mercado — as leis da oferta e da procura. A nat de suas leis nunca € realmente questionada, © modelo demogrifico certamente questiona algumas teses convencionais sobre a primazia da expansio do comércio como de rminante do de volvimento econdmico europeu. Talver nem hegue a negar, ao menos explicitamente, que o mercado capitalista é qualitativamente diferente dos mercados das sociedades nao capi alist e nao apenas quantitativamente maior e mais abrangente do jue eles, Mas tampouco representa um questionamento frontal des: sa convencao e, a rigor, loma-a como certa Numa variacao do antigo tema da mercantilizagao, alguns histo. riadores sugeriram que o capitalismo resultou de um proceso cu mulativo em que, a medida que o centro de gravidade comercial foi-se deslocando de um ponto da Europa para outro — das cida des-estados italianas para a Holanda ou para as cidades da Liga Han. sedtica, e da expansao colonial espanhola para outros imperialismos + cada um de ' baseou-se nas realizacoes do anterior, nao s6:am pliando o alcance do comércio europeu, mas também aprimorando seus instrumentos, desde as técnicas de contabilidade por partidas dobradas da Italia até os aperfeigoamentos das tecnologias de pro. dusao, culminando na Revolucao Industrial inglesa. O resultado fi nal desse “processo baseado na agregagao de valor” (talvez com a ajuda das revolugdes but sguesas) foi o capitalismo moderno.' De um modo ou de outro, portanto, seja por processos de urba nizacao e de comércio crescente, seja pelos padroes ciclicos do cres cimento demografico, a transicao para o capitalismo, em todas essas explicagdes, foi uma resposta as leis universais e transistéticas do imercado. E desnecessirio dizer que a economia neoclassica nada fez para desarticular esses pressupostos — até porque, em geral, nac tem 0 menor interesse na historia, Quanto aos historiadores de hoje e durée tendem a pertencer a escola demogréfica, a menos que estejam mais interessados nas mentalités ou no discurso do que nos processos econdmicos. Outros, e cial mente no mundo de lingua inglesa, costumam desconfiar muito dos processos de longo prazo e se interessam mais por hist6rias muito localizadas ou episédicas e pelas causas imediatas. Na ver‘ chegam propriamente a questionar as teorias existentes do desen. volvimento longo prazo, mas meramente as descartam ou evitam A nova onda da sociologia historica é diferente. Interessa-se pri mordialmente, € claro, pelos processos de mudanga social a longo prazo. Mas, mesmo nesse caso, hé uma tendéncia a fugir da questio de varias maneiras. Por exemplo, em uma das mais importantes obras recentes nesse género, Michael Mann adota explicitamente que chama de “vies teleol6gico”, segundo o qual o capitalismo in dustrial ja estava prefigurado nos arranjos sociais da Europa medie val Como nao € de surpreender, es tese, apesar de todas as suas cemplexidades, situa a forga impulsionadora do desenvolvimento evropeu na “aceleragiio das forgas intensivas da praxis econémica” e tos da mercadoria” —em out no “extenso crescimento dos ci ok explicagao, mais uma vez, decorre ¢ capitalismo teve liberdade para se desenvolver na Europa porque palavras, no progresso De ni nercantil,’ E essa pansiio uséncia de cerceamentos: 0 uma organizagao social essencialmente acéfala (a ordem politica descentralizada e fragmentada do feudalismo) concedeu a varios agentes (sobretuco aos comerciantes) um grau substancial de auto: nomia (com a ajuda do racionalismo e da ordem normativa propor Gonados pelo cristianismo). Além disso, a propriedade privada pode evoluir para a propriedade capitalista porque nenhuma comu nidade ou organizagao de classe detinha poderes de monopélio. Em suma, no s6 0 surgimento do capitalismo, como também sua matu- 250 eventual e aparentemente inevitavel para sua forma industrial s20 explicados, sobretudo, por uma série de auséncias. Portanto, nam que seja por falta de outta indicagao, o tradicional modelo mer cantil contin subterranea. ua a prevalecer, quer na superficie, quer sob forma mais Uma excegao digna de nota: Karl Polanyi Em seu classico A grande transformagao (1944), assim como noutros trabalhos, o historiador econdmico e antropélogo Karl Polanyi afir mou que a motivacio do lucro individual, associada as trocas no mercado, nunca foi, até a era moderna, o principio dominante da vida econémica.’ Mesmo nos casos em que havia mercados bem de senvolvidos, disse ele, € preciso fazer uma clara distingao entre as so ciedades com mercados, como as que existiram em toda a histéria escrita, ea “Sociedade de mercado”, Em todas as sociedades anterio: res, as relagdes e priticas econdmicas estavam inseridas ou imersas em relagdes ndo econdmicas — de parentesco, comunais, religiosas epoliticas. Havia outras motivagoes impulsionando a atividade eco. ‘ndmica, além das motivagdes puramente econdmicas do lucro ¢ do sino material, tais como a rutengao da solidariedade comunitiria, Havia outras maneiras de onquista de status e prestigio ou a ma. ganizar a vida econdmica que nio os mecanismos das trocas de mercado, em particular a “reciprocidade” ¢ a “redistribuigao’ complexas obrigagdes reciprocas que eram determinadas, por exemplo, pelo parentesco, ou a apropriagio autorizada dos exceden es por algum tipo de poder politico ou rligioso e sua redistribuigao a partir desse centr Polanyi contestou diretam nte os pressupostos de Adam Smith sua “propensio [natural] a comerci ar, permutar ¢ trocar”, afirmando que, antes da época do proprio Smith, essa propensio nunca havia desempenhado o papel prepon. derante que ele he atribufa,¢ s6 veio a regular a economia um século depois/ Quando existiam mercados nas sociedades pré-mercadc s casos em que estes eram extensos ¢ importantes, eles s mantinham como um aspecto subalterno da vida econdmica, domi nada por outros principios de comportamento econdmico. E nao is mercados, mesmo nos sistemas comerciais mais penas issc »s ¢ complexos, funcionavam de acordo com uma légica muito tinta da do mercado capitalista moderno. Em particular, nem os mercados locais nem o comércio de longa distancia que racterizow as economias pré-capitalistas eram esser cialmente con petitivos (e muito menos, cor le poderia ter acres. centado, ms ios pela competigao). Essas formas de comércio entre a cidade ¢ © campo, num dos casos, e as zonas climéticas, no iu Polanyi, mais “complementares” do que competitivas (mesmo, evidentemente, quando a complementarid: de era distorcida por relagdes de poder des outro — eram, sug iguais)] O comércio exte em “transportar”. Nele, a tarefa do rior consistia sim ment comerciante era deslocar as mercadorias cle um mercado para outro, enquanto, no comércio local, no dizer de Polanyi, a atividade mer cantil era estritamente regulada e excludente, Em geral, a competi {Gao era deliberadamente eliminada, porque tendia a desorganizar 0 Polanyi assinalou que somente os mercados in um fendmeno muito tardio e que deparou com grande resistén. cia dos comerciantes locais ¢ das cidades autonomas nos centros co. merciais mais avangados da Europa — viriam a ser conduzidos de acordo com principios competitivos/Mas, durante algum tempo, até os mercados internos dos estados nacionais europeus do inicio cds era moderna foram simplesmente uma coletinea frouxa de mer: cados municipais separados, unidos por um comércio transporta dor que mal diferia, em principio, do comércio uliramarino de longo curso. E 0 mercado interno integrado tampouco foi um des- cendente direto ou uma evolucao natural do comércio local ou de longa distancia que o antecederam. Foi produto, argumentou Po: laayi, da intervengao do Estado — e, mesmo nesses casos, numa ada na producao de fami lies auto-suficientes de camponeses que trabalhavam pela subsistén- economia que ainda era grandemente ba cia, a regulagao estatal continuou a preponderar sobre os prineipios de concorréncia Somente na moderna sociedade de m do, segundo Polanyi, é que ha uma motivasao econdmica distinta, instituigoes econémicas distintas e relagdes separadas das relagdes niio econdmicas. Visto a — sob a forma do trabalho e da que os seres humanos e a natur terra — sao tratados, ainda que da maneira mais ficticia, como mer- cadorias, num sistema de mercados auto-regulados e movidos pelo mecanismo dos precos, a propria sociedade torna-se um apéndice do mercado. A economia de mercado s6 pode existir numa sociedade de mercado, isto é, numa sociedade em que, em vez.de uma econo. mia inserida nas relagdes sociais, as relagoes sociais que se na economia Polanyi nao foi o tinico, é claro, a assinalar o papel secundario do mercado nas sociedades pré-capitalistas. Qualquer historiador ec ndmico ou antropélogo competente esti fadado a reconhecer 0s vi rios principios nao mercadol6gicos de comportamento econdmice que funcionavam nessas sociedades, desde as mais “primitivas” igualitérias até as altas civilizagdes mais complexas, estratifi exploradoras. E outros historiadores econdmicos (embora, talver, nie tantos quantos se poderia imaginar) assinalaram algumas mu dancas nos principios do comércio.[Mas a descrigao de Polanyi ¢ particularmente notavel por sua clara demarcagao da ruptura entre a sociedade de mercado ¢ as sociedades nao mercadoligicas que a precederam, inclusive as sociedades com mercados — nao apenas as diferengas entre suas respectivas 16g ti ctivas I6gicas econdmicas, mas também ss mudangas sociais que essa transformacao dos mercados auto-r acarretou. © sistem: tuladores, insiste Polanyi, foi tao perturbador a vida humana, que a teve que ser, ao mesmo tempo, a historia historia de sua implantag Ja protecao contra su s devastacdes. Sem “contramovimentos pro etores”, particularm: © por meio da intervengio estatal, “a socie dade humana teria sido aniquilada’ enfatizam as continuidades (mais ou menos o anti nignas) entre o anti g0 comércio e a economia capitalista moderna, mesmo quando elas observam o antagonismo entre os principios me principios mi mica) do feudalismo. Mas, nportantes, a descrigdo de Polanyi preserva a hidacles significativas com os textos de historia econdmiea mais con vencionais. Os problemas principais dizem respeito 3 explicagao ate edade de merca ¢ isso implica em le fornece sobre as cond condigoes em que surgi a soc do, a0 processo histérico termos de sua compreensao do mercado como forma social. Aqu nao € o lugar para entrarmos num debate pormenorizado sobre a atureza da posse da terra na Inglaterra medieval, © mercantilismo, o sistema de Speenham! 0u outras questes historicas especifi cas sobre as quais os especialistas de hoje teriam razio para discordar de Polanyi. A questao aqui é 0 alcance mais amplo da narrativa his. (6rica de Polanyi e suas conseqiiéncias para nossa compreensao A, capitalismo moderno. Em primeiro lugar, hé mais do qu ais do que t minismo tecnol rave eatsipinaie a narrativa historica de Polanyi é a maneira como a Revolt h o Indus numa sociedade mercantil, a inver i 40 de maquinas complexas tor a substincia natural e humana da soci dade em mercadoria’." “Dado que as 1 ado que as maquinas complexas s: nos que se produzam des quantidades de mercadorias”, escreveu ele; e, para atingir a esca la de produgio necesséria, a produgio tem que ser ininterrupta, « dos os fator que equivale a dizer que, para o comerciante, plicados devem estar venda”."'O iiltimo e mais desastroso passo na criagao das condigoes necessdrias — isto 6, na criagao da sociedade de mercado originalmente requerida pela producdo mecanica com plexa — 6 a transformagio do trabalho num “fator” da produgio mercantil A seqiténcia da causagio é significativa nesse ponto. A Revol ‘20 Industrial foi “meramente o comeco” de uma revolugio “extre ma e radical”, que transformou profundamente a sociedade, a0 converter a humanidade e a natureza em mercadorias.” Essa trans: formacio, portanto, foi o esforco do progresso tecnolégico, Em seu cemne estava tos da produgao”y” e, conquanto tenha acarretado uma transforma nos da sociedade, ela foi, em si mesma, o auge dos aperfei anteriores da produtividade, tanto nas técnicas quanto na org ¢20 do uso da terra, sobretudo no cerco de grandes propr s na Inglaterra. particul Embora discorde da crenga no “progresso espontaneo”, nem por um momento Polanyi parece duvidar da inevitabilidade desses tal ayangos, pelo menos no contexto da sociedade mercantil o nas urbanas livres, ‘com suas instituigdes livres, sobretudo suas com e com a expansao do comércio — o que ele chama de “tendéncia de mento ¢ progresso econdmico da Europa Ocidental”."* Seu arg sso espontineo é, simplesmen reas visoes convencionais do pr fe, que elas nao consideram o papel que o Estado exerce ao afetar ais particularmente, reduzir — a velocidade da mudanga (tal -omo @ reinado dos Tudor eo inicio do dos Stuart reduziram o rit mo do enclosure (cercamento de terras]). Sem intervengoes desse ter sido desastrosa e tipo, “a velocidade desse progresso pod trensformado o préprio proceso num acontecimento degen jo mesmo modo que a propria Revolugao ru ver de construtive”, Industrial precisou da intervengao do Estado para preservaro tecida ns aspectos, portanto, os contornos principais da narra tiva histérica de Polanyi nao sao inteiramente diferentes do antigo modelo mercantil » dos mercados caminha de maos da das com o progresso tecnolégico na produgao do capitalismo indus. trial moderno. E, embora esse proceso culmine na Inglaterra, trata-se de um processo europeu geral. A propésito, parece rocesso que levou da mercantilizagao a industrializagao ea dade de mercado” pode ter sido, afinal, um fendmeno mais on me- 10s natural num mundo cada vez mais mercantilizado, um fendmeno que s6 se completou na Europa pelo simples fato de ali nao ter tido seu caminho barrado por certos obstiiculos nao econd- micos. Como explicou um estudioso de Polanyi, numa descricao das aulas deste sobre a “Histéria Econdmica Geral”, Polanyi afirmava que, em contraste com um Oriente igualmente mercantiliz feudalismo da Europa Ocidental nao se caracterizara por lagos fortes de parentesco, cla tribo, de modo que, “quando os lagos feudais se enfraqueceram ¢ desapareceram, restou pouca coisa para barrar a rcado”. F, embora a intervengao go: vernamental tenha sido necessiria para criar “mercados de fatores”, a economia de mercado entio em desenvolvimento ajudon a des uit as instituigdes economicas e politicas feudais O que nao emerge disso tudo é uma apreciagio das maneiras pe las quais uma transformagao radical das relagoes sociais precedew a industrializagao. O revolucionamento d: s forgas produtivas pressi pos uma transformacao d: na forma d relasdes de propriedade e uma mudang exploragao que criaram uma necessidade historicamen te nica de aumentar a produtividade do trabalho. Ele pressupds a emergencia dos imperativos capitalistas: competigao, acumul. maximizagao dos lucros. Dizer isto nao equivale meramente a act sar Polanyi de por a carroga adiante ios bois. O ponto mais funda mental é que sua ordem de causagao s ere uma impossibilidade de ‘ratar 0 mercado capitalista em si como uma forma social especifica Os imperativos especificos do mercado capitalista— as pressoes da acumulagio e da produtividade crescente do trabalho — sao trata dos nao como produto de t lagoes sociais especificas, mas como re Itado de aperfeigoamentos tecnolégicos que parecem mais ou menos inevitaveis, pelo menos na Europa. ansformagiio foi um desvio si Persiste 0 fato de que A grand r hificativo da historiografia convencional sobre a “transigao”. Con tudo, & impressionante ver quao pouco esse importante livro afetou modelo dominante, ainda que agora parega estar havendo um res 1-gimento do interesse em Polanyi. Em geral, continuamos onde estavamos. Oua questao do capitalismo e suas origens nao surge, ou, mo quando se levantam questoes sobre como ¢ por que ele sur jar num caso ou casos especiais, elas tendem a ser dominadas po outa pe ; 2 Alguns leitores talvez estejam familiarizados, por exemplo, uunta: por que © capitalismo rao emergiu noutras situa nm a fdéia das “transigoes falhas” como maneira de descrever o que yeontecet — ou deixou de acontecer — nas cidades-estados mer itis do norte da Italia, ow na Holanda. Essa expressio, “transiga0 aha”, ja diz tudo. A maneira como entendemosa hist6ria do capitalismo tem mu fendmeno em si. Os mo entendemos toa ver com a maneira como e antigos modelos do desenvolvimento capitalista foram uma mescla paradoxal de determinismo transist6rico e voluntarismo do “livre mercado, na qual o mercado capitalista era uma lei natural imutavel 0 supra-sumo da escolha e da liberdade humanas. A antitese desses ! lista que reconhe modelos seria uma concepsao do mercado capi : ém oferecido sistematicamente mas 0s historiadores marxistas nag esse tipo de alternativa. Capitulo 2 Debates marxistas Nesses debates hist6ricos, houve tanta discordancia entre os marxis: tas quanto entre historiadores n rxislas e nao marxistas. Muitos marxistas mostraram-se nao menos apegad: Pessoa ao antigo model ainda mais ac fos do que qualquer outra lo mercantil, amitide, talvez, com uma dose iada de determinismo tecnolégico. Outros critica muito esse modelo, embor: t a, mesmo nesses casos, persistam all guns resfduos. Com o debate ainda em andamento, resta muito trabalho por fazer O fato de haver duas narrativas diferentes na obra do proprio Marx’ nao facilita a questio| U amd Jelas é muito semelhante ao mo. delo convencional, no qual a histéria é uma sucessio de etapas na divisdo do trabalho, com um processo transistérico de avango tecno l6gico e com o papel principal atribuido as classes bury tiam dado origem ao capitalismo pelo simp fato de serem libertas do jugo feudal. Na verdade, o capitalismo jé existiria no feudalismo, lavras de Marx I usar as pa € entraria na corrente principal da histéria a0 romper” os grilhoes clesse sistema, F essa, basicament a narrativa de alguns de seus primeiros textos, como A ideologia aeOma as marxistas tradicion is da “revolugao burguesa”. Mas hd uma outra versio, ou pel enos seus fundamentos, nos Elemtentos de a politica e no Capital, que tem mais aver com amu- danga das relagoes de propriedade, ¢ pecialmente na zona rural in lesa: a expropriacao dos produtores dirctos que nova form: jeu origem a uma de exploracao e a novas “leis de movimento” sistémicas. (Os mais importantes textos hist6ricos marxistas desde entdo tém-se Odebate sobre a transigao Em vez de explorarmos detidamente as idéias do proprio Marx, exa minemos as visdes hist6ricas marxistas mais recentes. Podemos des censiderar por completo aqueles tipos mais toscos de determinismo tecnologico que, com demasiada frequéncia, tém-se feito passar por teorias marxistas da historia, para nos concentrarmos, em ver disso, iarxistas mais sérias e questionadoras. Em 1950, houve uma divergencia entre o economista Paul Swee zy eo historiador econdmico Maurice Dobb, cujos Estudos sobre 0 fo do capitalismo (1946) Sweezy havia criticado, Essa ande debate entre wi desenvolvin a vasta gama divergéncia ampliou-se em um g de historiadores ilustres, principalmente marxistas, na revista Science ate este que depois foi compilado e publicado em ‘and Society forma de livro.’ Ele ficou conhecido como o “debate sobre a transi 0” e, desde essa época, tornou-se um ponto de referéncia central ntre outros. para as discussBes do assunto entre os marxistas — O livro de Dobb representou um grande avango na compreensi6 da transigdo, Representou um poderoso questionamento do antigo rrodelo mercantil, na medidaem que situow as origens do capitalismo nna campo, nas relacies feudais primdrias entre proprietirios e cam- poneses. Como outros trabalhos dentro dessa tradigao, muito especi almente os escritos de RLH. Hilton, historiador da Europa medieval esa analise abalou os alicerces do antigo modelo, contestando alg mas de suas premissas basicas, em particular o pressuposto de que a se do feudalism, que o teria dissolvidoe dado origem ao capita anti des e no coméreic ntre Sweezy e Dobb era ond lismo, se encontraria nas cida tuar A questao centrale “motor primordial” da transigdo do feudalismo para o capitalis. mo. Deveria a causa primaria da transigao ser buscada nas relagoes constitutivas basicas do feudalismo, nas relagdes entre senhores e camponeses? Ou teria 0 motor primordial sido externo a essas rela: ‘ies, situando-se particularmente na expansao do comércio? Dobb c Hilton, no debate que se seguiu, enunciaram argume: tos de profunda importincia para demonstrar que nao foi o comér cio em si que dissolv tudalismo. Na verdade, o comércio ¢ as Gidades nao cram intrinsecamente a 0 mente antagnicos.ao regime feudal, Ao niririo, este foi dissolvico ¢ o capitalismo se materializou por fa te < primarias do proprio feudalismo, nas as de classe entre senhores e camponeses, Hilton, em particula assinalou que se havia demonstrado ser empiricamente falha a tee irenne, e explicitou como o dinheito, dinheiro, 0 comércio, as cidades e até a chamada “revolugao mercantil” mn hh aha «740 mercantil” nao eram estranhos ao sistema feudal, mas, ao contrsrio, tinham si n im sido parte integrante dele. Isso si. nificou que, embora houvesse, indubitavelmente, um processo complexo segundo o qual esses fatores contribuiram para a transi So, eles nao podiam ser encarados como o que hava desrticale 0 feudalismo. : “ De virias maneiras, Dobe Hilton sugeriram que a dissolugao bertagao da pequena produgio mercanti, desta iberayao do jugo do feudalismo, sobretudo por meio da luta de classes entre seth ses camponeses. Dobb, por exemplo, afsinou que embers ita ‘ava o pequeno modo de produgao em relacao aos senhores feudais ¢ para acabar libertando o pequeno produtor da explora sao feudal, Foi do pequeno modo de produsao, portanto (na me dida em que ele asseguro z egurou a independéncia de sua ver, a diferenciagao social desenvolveu-se em seu bolo) tea nasceu 0 capitalismo “ Similarmente, Hilton, cujos estudos sobre os ampe ne portantes sobre a historiografia de qualquer periodo, ligou essa trans gods tas entre senhores e camponeses. As presses impostas pelos senhores aos camponeses para que estes transferissem o trabalho ex. dugao mercantil simples. Ao mesmo te 'Mpo, a resisténcia dos cn poneses a essas pressies foi de importancia crucial para 0 processo Jetransicao para ocapitalismo, para “a libertacao das economias rurale artesanal para o desenvolvimento da produgie mercantile, eventual mente, para o surgimento do empresirio capitalista dalismo, im seu contra-argumento, Sweezy insistiu em que o feu pesar de todos os seus tragos de ineficiéncia e instabilidade, era in tuinsecamente tenaz e resistente 4 mudanga, e em que a principal forga propulsora de sua dissolugio tinha que vir de fora. O sistema feudal podia tolerar e, rigor, precisava de uma certa dose de comé: jo: mas, com a criagao de centros de comércio e transbordo urba io de longa distancia (a ns Tocalizados, baseados no con propasito dos quais Sweezy citou a autoridade de Henri Pirenne), dssencadeou-se um processo que estimulou o crescimento da pro dugao para troca, que se opunha ao principio feudal da produgao No entanto, argumentou Sweezy, 0 capitalismo nao foi o resul tado imediato desse processo. A expansio do comércio foi suficiente para dissolver o feudalismo e introduzir uma fase transicional de srodugao mercantil pré-capitalista”, que em si mesma era instavel preparando o terreno para © capitalismo nos séculos XVII e XVII rns houve uma fase posterior distinta no desenvolvimento do capi A-esse respeito, Si talismo. zy fez a importante observagao de que ‘cJostumamos pensar na transi¢io de um sistema social para outrc como um processo em que os dois sistemas se enfrentam diretamen erro” pensar na tee lutam pela supremacia”, mas seria um “grave transicao do feudalismo para o capitalismo nesses termos. Sweezy nao se propés explicar a segunda fase do processo, mas levantow algumas questdes cruciais sobre as explicagdes oferecidas por outros. Duas delas se destacam, em particular. Primeiro, ele ex- nressou ceticismo quanto a plausibilidade da idéia — decorrente da cdo convencional da teoria marxista da “via realmente re Je que os capitalistas, interpre volucionéria” para o capitalismo industrial lo das file’ fas dos pequenos produtores. Ao industriais teriam su contririo, propds que entendéssemos a “Via realmente revolucion4 ra” como um proceso em que o produtor, em vez de passar de pe queno produtor a comerciante e a capitalista, “comepou como empregador de mao-de-obra assala ada”, e em que em plena maturidade, e hum proceso gradativo que houvesse brotado do sistema de producao doméstica artesanal por encomenda Os as empresas capitalistas jé foram langad do ponto ressaltado por Sweezy foi que a gen a0 da produgao mercantil nao poderia explicar a ascensio do capitalis. Por exemplo, na Itilia ou na Flandres medievais — nao necessaria mente o produziu.’ Em sua argumentacao, ce frisou outro aspecto ‘0. Em oposigao a teoria de Maurice Dobb de que o declinio do uudalismo resultou da exploragao excessiva dos camponeses ¢ dos conilitos de classe gerados por ela, Sweezy propds que seria mais exato dizer que o declinio do feudalismo europeu ocidental deveu-se A impossibilidade de a classe dominante manter o controle sobre a capacidade de trabalho da sociedade e, portanto, explo eh” Este resumo, € claro, constitui uma abreviagao e simplificagac sgrosseiras dos arguentos complexos fornecidos pelos participan tes do debate, mas deve ser antar algumas questoes is sobre os pressupostos em que se pautou cada um dos lados, A primeira vista, a coisa parece muito clara: Dobb estava atacando o modelo mercantil, enquanto Sweczy o defendia. De fato, algum tempo depois, o historiador marxista Robert Brenner acusou Swee- zy, juntamente com outros, tais como Andre Gunder Frank e Imm. nuel Wallerstein, de serem neo-smithianos, precisamente por aderirem a algo st ante ao modelo mercantil classico, tal como originalmente delineado por Adam Smith.’ Brenner desenvolveu bre o modo como alguns marxistas, com efeito, engoliram os pressupostos do antigo mod oa tendén: cia a tratara dinamica especifica do capitalismo— e sua necessidade de aumentara produtividade da mao-de-obra—como um desfecho el da expansio mercantil. Mas havia algo mais complexo acontecendo no debate entre Sweezy e Dob. A tes n seus contornos princi pais, & com letamente compativel com @ modelo mercantil, en quanto a explicagao de Dobb é um ataque frontal a ele. Na met em que Sweezy parte da tese de Pirenne, em particular, e sugere, em Tinhas mais gerais, um antagonismo fundamental entre o sistema crescente de comércio a longa distancia e os principios basicos do feudalismo, ou, vez por outra, atribui aos agentes econdmicos »cé-capitalistas uma racionalidade especifica do capitalismo, jd deve estar claro para os leitores que a tese deste livro difere da dele) A ai gamentacao aqui exposta, especialmente na Parte II, € compativel com Dobb e Hilton —a rigor, influenciada por eles — em diversos aapectos importantes: os de que as cidades € © comércio nao eram eza ao feudalismo, de que © necessariamente antagonicos por na notor primordial” encontra-se nas relagoes primdrias de proprie dade do feudalismo, e de quea luta de classes entre os senhores e os camponeses foi central nesse proceso. Porém havia mais do que isso em discussao. $1 aspecto que tende a se perder nas consideragdes do debate sobre transigao. Decerto atribuiua dissolugao do te expansdo comercial e ao crescimento das cidades. Mas insistiu em qe tal dissolugaio nao seria suficiente para explicar a ascensio do ca pitalismo ¢em que, na verdade, esses foram dois processos distintos, Ai encontramos um contraste interessante entre Sweezy e Dobb: Dob parece mais inclinado do que Sweezy a tratar a dissolugao do ascensio do capitalismo, Por que isso é importante? Consideremos as implicagdes dessa argumentacao: se a dissolugao do feudalismo é suficiente para expli- cara ascensio do capitalismo, nao estamos de novo muito proximos ‘0s pressupostos do modelo mercantil? Pode ser que estejamos no mos concentrando na luta ‘campo, e nao na cidade, etalvez nos este e classes entre senhores ¢ camponeses, ¢ nao na expansao do co rnércio, Mas um pressuposto crucial permanece o mesmo: o capita smo surgiu quando os grlhdes do feudalismo foram retirados. De aigum modo, o capitalismo jé estaria presente nos intersticios do feudalismo, simplesmente a espera de ser libertado. Dobb e Hilton, portanto, nao parecem questionar todos 0s pres supostos bisicos do modelo mercantil,e algumas das questoes le jos problemas que eles deixaram por resolver. Um aspecto se destaca nas teses de D be Hilton: a transigao para 0 capitalismo teria sido uma questao de libertar ou soltar” uma Idgica econémica ja presente na pequena producto mereantil. Fica-nos a esmagadora impressao de que, havendo opor tunidade, © camponés (¢ 0 artesio) que era produtor mercantil se ransformaria em capitalista. O centro de gravidade dessa argumen: tagao deslocou-se da cidade para o campo ea luta de classes recebeu um novo papel, mas, até que ponto os pressupostos subjacentesa ela diferem de algumas das premissas principais do modelo mercanti? Quao longe estamos da premissa de que o mercado capitalista é mais uma oportunidade do que um imperativo, ¢ de que o que requer ex plic nna descrigio a. ascensao do capitalismo é a eliminacao dos ca econémica inteiramente nova? A luta de classes & central nesse Processo, mas 0 é, acima de tudo, como um meio para remover o tdculos a algo que ja seria imanente te ponto, os problemas que incomodaram Sweezy em seu onfronto com os argumentos de Dobb sao muito pertinentes, Pri meiro, 0 hdbito de tratar as transigdes como um confronto entre dois modos de produgao antitéticos tem servido, com demasiada requténcia, como desculpa para se evitar a questao. Como sugeri Sweezy, embora esse pressuposto possa aplicar-se d transicao do ca pitalismo para o socialismo, ele € problematico ao lidarmos com a fransigao do feudalismo para o capitalismo. Como vimos, o mos mercantil e outras explicagdes correlatas presumem, na verdade, a existéncia do cap alismo, ou de uma racionalidade italista, para explicar seu surgimento. O feudalismo ter-se-ia confrontado com um capitalismo ja existente, ou, pelo menos, com uma logica pro cessual capitalista jé presente, cujo aparecimento nunca é explicado. Embora, sob muitos aspectos, as explicagdes fornecidas por marxis {as como Hilton e Dobb sejam devastadoras para o modelo mercan. til ¢ para seus pressupostos sobre a antitese entre feudalismo e comeércio, elas nao escaparam por completo dessa armadilha, pois, em alguns aspectos importantes, a a pressupdem exatamente aquilo que precisa ser explicado, Elas tampouco oferecem uma resposta inteiramente convincen. respeito da “falha” de al- uuns centros comerciais avangadlos, como os da Italia e de Flandres. ¢ para a pergunta formulada por Swes Também nesse ponto, ha uma tendéncia a se presumir 0 capitali o, através da simples explicagao dos obs que impediram es. sas cidades mercantis de chegar & maturidade. A questao levantada sobre Flandres ea Itilia nio é tanto por que e em que circunstancia imperativos capitalistas se impuseram aos agentes econdmicos, comoaconteceu na Inglaterra, mas, antes, por que e de que maneias 6 econémicos das transicoes “falhas” mostraram-se sem isposigao ou incapazes —até por razoes ideologicas ou culturais ‘e romperem com seu apego ao feudalismo, a lim de criarem uma rova forma social. Quanto as duividas de Sweezy sobre a “via realmente revolucio réria”, éfato que, muma fase posterior do debate, ele ‘suas objecdes A interpretagao convencional do que Marx tinha em mente, mas nao necessariamente suas objecoesideia em si. Embora licado plenamente as razoes de seu mal-estar coma t es mercantis transformaram-se em capitalistas, ele parece have considerado isso intrinsecamente implausivel. E, com efeito, havia ‘ons motivos para seu ceticismo. E ponto, na ascensio do capitalismo industrial, a “via realmente revo. i interessado, nesse juanto Sweezy estava predominante lucionaria” aparece em Dobb, mais particularmente (e am termos exclusive a forma dos fazendeiros capitalistas que toriam saido das fileiras dos proprietérios rurais que trabalhavam a to a esses fazendei propria terra, © problema nao esta em dar cré Fos em ascensio como criadores ¢ n, mais parti capitalismo, pe uularmente, em que eles tendem a ser retratados como escolhendo nais ou menos livremente a via capitalista, uma vez libertos dos em. pecilhos feudais, ao passo que o capitalismo ¢ tratado como uma ra rificagao mais ou menos orginica da pequena produgao mercantil ‘mesmo que as revolugdes burguesas tenham sido necessarias para Jiminar 08 tiltimos obstaculos, O que quer que Sweezy tenha tido em mente em sua objegdo a “Via realmente revolucionéria”, decerto seria sensato dizer que ¢ preciso algo mais, para explicar a disposigao dos produtores a se portarem como capitalistas, do que sta simples libertagao das restrigdes ou sua passagem de médios a grandes pro- Prietérios, Em outras palavras, ha uma diferenga qualitativa, ¢ nao apenas quantitativa, entre a pequena produgio mercantile 0 capita. lismo, diferenga esta que continua a requerer uma explicagao, Perry Anderson sobre o absolutismo eo capitalismo Na década de 1970, quand ers eitor da New Lft Review, outro um estudo da transigao da A ‘i ! ntigdidade greco-romana para o feuda- lismo europeu (Pa to Feudalism), continuando com uma andlise do absolutismo europeu (Lineages of the Absolutist State) ¢ culminando num estudo sobre as revoltigdes burguesas ¢ 0 desenvolvimento do capitalismo, Embora esse terceiro volume, que deveria completar sua exposicao sobre a transicao para o capitals. mo, ainda nao tenha sido langado, ha muito que aprender com os dois primeiros, especialmente Lineages, e com varios fragmentos en contrados aqui e al Para n ins, podemos comecar pela definigdo andersoniana de feudalismo como um modo de produgao definido por “wma un dade orginica da economia e da sociedade”, que assumiua forma de uma “cadeia de soberanias fracionadas”, juntamente com uma ca deia hierirquica de posse condicional. © poder do Estado era frag- mentado entre os senhores feudais, © 0 dominio senhorial representava uma unio do poder politico com o econdmico. O fragmento de poderestatal que cabia aos senhores feudais —seu po: der politico, juridico e militar — constituia, ao mesmo tempo, seu poder econdmico de apropriagdo do trabalho excedente dos campo neses dependentes. A dominagio senhorial era acompanhada por tum mecanismo de extorsao do excedente” —a servicio — no qual ‘se fundiam a exploragao econémica ea coersio politica-juridica Mas aconteceu algo que tornou instivel essa formacao fewdal Os antigos lagos feudais foram enfraquecidos pela substituigao dos tributos feudais pela renda monetaria e, mais particularmente, pelo rescimento de uma economia mercantil. “Com a transformagao yeneralizada dos tributos em renda monetéria”, argumentou Anderson, “a unidade celular da opressio politica e econdmica do campesinato foi gravemente enfraquecida eameacou desintegt C resultado foi um deslocamento da coergio politico-juridica para uma clipula centralizada e militarizada — o Estado absolutista Em outras palavras, para reforgar sua dominagao enfraquecida do campesinato, os senhores feudais concentraram seus antigos pode. res coercitivos fragmentados ou fracionados numa nova espécie de monarquia centralizada Entrementes, nos intersticios do sistema feudal fragmentado, nas cidades, emergiu uma esfera econdmica que nao era controlada a de inovagdes técnicas. Anderson concluiu que, embora “a ordem aristocracia, Ao mesmo tempo, essas cidades tornaram-se sede lade tornou-se cada vez. mais politica permanecesse feudal barguesa (O surgimento do absolutismo representa uma etapa crucial na se de Anderson sobre a ascensao do capitalismo. O absolutismo em si nao era um Estado capitalista ou protocapitalista. Se tanto, era essencialmente feudal em sua estrutura basica, “win aparato de domi € recarregado, destinado a reaprisionar as massas camponesas em sua posicao social tradicional”."" Mas foi ur momento axial no desenvolvimento do capitalismo. ronicamente, o efeito desse deslocamento do poder coercitivo feudal para cima — pelo menos, sua contribuigao principal para a evoluigio do capitalismo, segundo Anderson — foi romper a uniao entre economia e politica que havia caracterizado o feudalismo. Por 1m lado, 0 poder politico ficou concentrado no Estado monarquico. For outro, a economia comecou a adquirir uma certa autonomia. A 1edida que a coergio politico-juridica foi “deslocada para cima”,a economia mercantil ea sociedade burguesa que haviam crescido nos tersticios do feudalismo ficaram livres e puderam de em seus préprios termos. E essa, portanto, em linhas gerais, a concepgio de Anderson so re o absolutismo. E grande parte dela é também muito esclarecedo a, Sua caracterizagio do Estado absolutista como essencialmente feudal é de particular utilidade, embora exija um exame mais detido. ‘onvém guardar em mente o que Anderson quer dizer. O Estadc absolutista era essencialmente feudal, insiste ele, porque represen ‘ou 0 deslocamento para cima ea centralizacao dos poderes coerciti ‘0s politico-juridicos dos senhores feudais, separando-os da exploragao econdmica. Dito de outra maneira, o Estado absolutista separou os dois momentos da exploragao — 0 processo de extorsio. do excedente, de um lado, e 0 poder coercitivo que o sustentaya, de outro. A partir daf, os dois pross iram em esferas separadas. A fi so feudal da economia coma politica comecou a dar lugar & separa. ‘do que 6 caracteristica do capitalismo, deixando a economia evoluir de acordo com sua prépria Iogica interna Pois bem, ha outra maneira de ver 0 absolutismo, que consiste considerar que ele representou uma centralizagio do poder few. dal num sentido diferente, qual seja, que o préprio Estado mont quico tornou-se uma forma de propriedade, um instramento de apropriagio, de maneiras andlogas 4 dominagao senhorial feudal Os poderes econémico e politico continuaram fundidos, mas o se- nhor feudal passou a se apropriar de rendas, enquanto o Estado e 0s ocupantes de seus cargos apropriavam-se dos excedentes dos cam poneses sob a forma de impostos. Em alguns momentos, Anderson Parece pensar no absolutismo nesses termos, como sendo ainda uma unio das esferas econémica e politica, Mas toda a sua tese de que 0 absolutismo desempenhou um papel axial na transigdo para o cap) talismo decorre de uma fancio essencial do Estado absolutista: a de separar as esferas politica e economica. Ele se empenha muito em enfatizar que o que foi “centralizado para cima” no Estado absolutis ta ndo foi fusao feudal das esferas politica e econdmica, masa faceta politico-juridica ou coercitiva do feudalismo, em contraste com a faceta da exploragao econdmica, © Estado absolutista representa Para Anderson, simplesmente, 0 poder politico-juridico que impoe a exploragio econdmica, a qual se di em um plano diferente. Com efeito, o deslocamento ascend xler politico feudal desempenha, na tese de Anderson, o mesmo papel da retirada dos grilhGes em outras verses do antigo modelo, Na verdade, 0 absol smo parece ser um dos meios, se nao o meio essencial pelo qual os nomia, Assim, srilhoes do feudalismo foram retirados da ec dlir-se-ia que o absolutismo foi um ponto transicional necessério en ‘¢0 feudalismo ¢ 0 capitalismo. Pelo menos, livre da servidao poli a producio mereantil teria podido crescer e a economi ria podido seguir suas proprias inclinagdes. O capitalismo teria sido 0 resultado da libertagao da economia, da retirada da mao mor 2 do feudalismo e do desatrelamento dos portadores naturais da cionalidade econdmica — os habitantes dos burgos, ou burgueses, Hé alguns problem piricos sérios nessa abordagem do ab- s empiricos sérios nessa e entemente essencial da transi¢ao do fe alismo para o capitalismo. Dentre eles, um problema nada insignifi ante 6 0 fato de que o capitalismo inglés ndo desfrutou do beneficio Co absolutismo, enquanto o absolutismo francés nao deu origem ao apitalismo (tema de que falaremos mais na Parte II). Se €assim, tal vez sefa mais plausivel argumentar que o absolutismo nao foi uma’ fase transicional entre o feudalismo eo capitalismo, mas, ao contra nos deixar claro que, sob muitos aspectos fundamentais,a descri 0 de Anderson, como outras explicagoes anteriores da transigao P pretudo na retirada dos grilhdes de para o capitalismo, pauta-se sobretudo na re ma forma social que ja existiria — mais ou menos sem explicagao — nos intersticios do fendalismo, Apesar de toda a sofisticada complexidade da tese de Anderson, 4a €um aprimoramento — fascinante ¢ eselarecedor, sob muitos sspectos, mas mesmo assim um aprimoramento — do modelo mer antil. Os ecos dessa antiga explicagao fazem-se ainda mais audiveis +a formulagio mais recente que Anderson deu a essa tese, numa re senha que fez do livro de Robert Brenner intitulado Merchants a Revolution. Bis 0 que comentou Anderson a propésito da explicagao brenneriana do capitalismo como sendo, antes de mais nada, um fe smeno especificamente ingle A iia de capitalismo em um pals, omada literalmente, é apenas um mentos da biografia moderna foram distribuidos numa s

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