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Sombras na oração

James Martin

Nova Iorque / Religião – Um desafio para os leitores de Madre Teresa: Venha, seja minha
luz, a coleção de cartas da Beata Teresa de Calcutá publicada no outono passado é o de
distinguir entre as palavras escuridão, aridez, desolação, incredulidade, depressão e
desespero –os sete "D’s"–. A nível popular, alguns jornalistas, analistas e bloggers
misturaram a "escuridão" com a "incredulidade" da Madre Teresa.

Christopher Hitchens, escritor ateu, autor de God Is Not Great (Deus não é grande), não
foi o único a se perguntar, após ler algumas seleções do livro, se a "santa dos
desamparados" era uma atéia encoberta. Inclusive devotos católicos tiveram dificuldades
para entender como a Madre Teresa, considerada um modelo da fé, podia ter sentido uma
sensação de abandono da parte de Deus. Enquanto alguns católicos viram seu exemplo
como de fidelidade digna de se destacar, outros se sentiram perturbados ao ler frases como:
"Não tenho fé". Uma mulher me perguntou: "Como posso rezar, quando ela não podia
crer?"

Estas reações mostram quão fácil é para os meios e o público se sentirem confundidos pelas
complexidades da vida espiritual e, também, quão confusa pode se tornar a terminologia,
inclusive para aqueles que têm o costume de rezar.

Há muito tempo os guias espirituais cristãos usam termos específicos para se referirem a
diferentes experiências. Um pode experimentar secura sem depressão (por exemplo,
durante um retiro quando se intui que o período de secura na oração é temporal). Pode-se
estar na escuridão sem ser incrédulo (como sucedeu com a Santa Teresa de Lisieux, que
seguiu crendo apesar da secura espiritual no final de seus dias). As experiências também se
podem encobrir. A escuridão pode levar à dúvida ocasional, como no caso da Madre
Teresa. E a depressão pode levar, tal como sabem inclusive ateus e agnósticos, ao
desespero.

Escuridão visível
Desde São Gregório de Nyssa, século quarto, a escuridão foi um tema importante na
espiritualidade cristã. Talvez a fonte mais citada a esse respeito é São João da Cruz, um
místico espanhol. Ironicamente, é possível que seja também o mais mal citado, como se
pode ver pelas freqüentes referências à "noite negra do espírito". Seu poema original do
século XVI se chama simplesmente Noite escura.

"Noite escura"; entretanto, é só uma maneira de descrever uma particular maneira de se


sentir afastado de Deus. Ao mesmo tempo em que São João escrevia, Santo Inácio de
Loyola escreveu sobre "desolação" em seus Exercícios Espirituais. De modo que se pode,
inclusive, perdoar aos cristãos mais educados que se perguntam: estes dois santos falam de
dois fenômenos iguais, parecidos ou diferentes?

Para aumentar a confusão, quando um diretor espiritual usa "escuridão" outro pode usar
"aridez" para descrever o mesmo fenômeno. "E, às vezes, os diretores também podem ser
presumidos", diz Jane Ferdon, OP, que capacitou diretores espirituais na Califórnia durante
20 anos. "As pessoas podem dizer que estão na escuridão e nós, os diretores espirituais,
assumimos que sabemos do que estão falando!"

Talvez a confusão surja não só de um uso impreciso, variante das palavras, que se
sobrepõem umas às outras, mas também de não se dar conta que todos os que rezam em
algum momento se encontrarão em muitos destes estados.

Quais são estes estados? Como afetam nossa relação com Deus? A quaresma é um bom
momento para refletir sobre estas categorias, não apenas como uma maneira de nos
conectarmos com nossa espiritualidade, mas também como um convite para meditar sobre a
própria expressão de solidão de Cristo na cruz: "Deus meu, por que me abandonaste?"

Em seguida fazemos uma breve revisão dos diversos estados espirituais, começando por
algumas definições simples, seguidas de comentários de mestres espirituais do passado e do
presente.

Definições e descrições

1. A escuridão é um sentimento da ausência de Deus depois de ter desenvolvido uma


relação pessoal com Ele. Para S. João da Cruz existem dois tipos de "noites escuras". A
"noite escura dos sentidos" é uma experiência de nossas próprias limitações e a ausência
dos laços que implicam o consolo proporcionado pela oração. É "uma influência de Deus
na alma, que a purga de suas ignorâncias e imperfeições habituais", escreveu S. João. Em
uma etapa posterior, alguns experimentam "a noite escura do espírito", que é um desafio
ainda maior para a fé. Porém, ambos são passos em direção a uma união mais profunda
com Deus.

Janet Ruffin, RSM, professora de espiritualidade e direcionamento espiritual de Fordham


University, descreve a noite escura de São João como uma "experiência mística de Deus
que abruma nossa maneira normal de apreender a Deus, que leva não só a um aumento da
fé, da esperança e do amor, como que finalmente a um lugar de luz". Ela crê que quase
todos os que rezam seriamente encontrarão a noite escura dos sentidos, mas relativamente
são poucos os que viverão a noite escura da alma.

Uma experiência de escuridão pode ser uma porta para encontrar Deus no vazio e uma
entrada para a via negativa. Ruth Burrows, monja carmelita, escreve em seu livro Essence
of Prayer (Essência da oração) que Deus "quer que confiemos nele o suficiente para que
vivamos com ele sem temor, totalmente indefesos em sua presença. Podemos realmente
dizer que os ensinamentos de S. João da Cruz têm como único fim nos levar rumo à sua
pobreza interior".

Uma pessoa na escuridão se sente distante de Deus. Entretanto, com paciência (se é que
podemos identificar qual "noite escura" se está vivendo ou não) se pode abandonar a
necessidade de sentir a presença de Deus constantemente e gradualmente circular pela
escuridão para descobrir uma maior intimidade com Deus.

2. A aridez é um tempo limitado em que se sente vazio na oração. "A aridez é mais
temporal que a escuridão", diz William A. Barry, S.J., autor de God and You: Prayer as
aPersonal Relationship (Deus e você: a oração como uma relação pessoal). Qualquer um
que reze de vez em quando sentirá aridez na oração, quando parece que não sucedeu nada.
"Não existem muitas possibilidades de consolo sensato", disse o Pe. Barry em uma
entrevista.

Estas partes naturais da vida espiritual podem incrementar nossa apreciação de momentos
mais enriquecedores. Nunca se sabe que tipo de mudanças interiores ocorre durante tempos
de "seca", e estar com o Deus vivente em oração, sempre terá a capacidade de produzir
mudanças. Sendo noviço jesuíta, em uma oportunidade confessei a meu diretor espiritual
que não acontecia nada durante minhas orações. Parecia uma perda de tempo. "Estar na
presença de Deus é uma perda de tempo?", me perguntou.

Inclusive amizades íntimas às vezes têm períodos de tédio ou silêncio, assim também nossa
relação com Deus pode atravessar por épocas de aridez. Porém, estar com os amigos nesses
momentos é necessário se quiser que a amizade se mantenha e seja mais íntima.

3. A desolação é sentir a ausência de Deus unida a uma sensação de desesperança. S. Inácio


de Loyola descreve-a assim: "escuridão da alma, turbação nela, moção rumo às coisas
baixas e terrenas, inquietude de várias agitações e tentações". "É se sentir desalentado e
triste". “Com freqüência se confunde desolação com simplesmente se sentir mal"; diz
Barry. "Porém é mais certo dizer que é uma sensação de estar separado de Deus".

Margaret Silf, colunista de America e autora de Inner Compass: An Invitation to Ignatian


Spirituality, (Compasso interior: um convite à espiritualidade inaciana), afirma que a
desolação implica em isolamento. "Os que estão desolados estão de costas à luz da
presença de Deus", me disse, "e mais concentrados nas sombras". O Padre Barry concorda.
"Na desolação há mais ênfase na pessoa que em Deus", diz. "Finalmente, isto leva ao
desespero".

A desolação é distinta da noite escura de São João. Na desolação, escreve Santo Inácio, o
indivíduo é levado para uma "falta de fé" e é deixado "sem esperança nem amor". Na noite
escura ocorre o contrário, à medida que um se muda para o completo abandono de Deus.
"Para o que experimenta isto, pode ser mais fácil vê-lo em retrospectiva", diz Jane Ruffing.
"Porém, desde o ponto de vista inaciano, a noite escura é em realidade um consolo".

A desolação que descreve Inácio pode parecer muito distante da vida do cristão médio.
Contudo, é um estado comum e doloroso experimentado por muitas pessoas, acompanhado
por sentimentos de "corrosiva ansiedade", como diz Inácio. Ele aconselha que em tempos
assim se deve, entre outras cosas, redobrar os esforços na oração, e lembrar dos momentos
em que Deus parecia estar mais presente ou se lembrar que isto finalmente passará.
Também nos recorda que todos os frutos da oração são em realidade presentes de Deus, que
não podemos controlar.

4. A dúvida é uma indecisão intelectual sobre a existência de Deus. Muitos crentes


enfrentam esta dúvida em algum momento de suas vidas. "A maioria das pessoas se sentem
aliviadas de poder falar sobre a dúvida no direcionamento espiritual", diz Ruffing. "Porém
ninguém chega à fé adulta sem ter tido dúvida. E com freqüência as pessoas têm dúvidas e
logo se mudam para uma fé que é mais complexa, paradoxal e finalmente, mais adulta".

A dúvida é uma experiência humana por excelência, compartilhada por quase todos os
cristãos desde São Tomás Apóstolo. Recentemente, na obra de teatro ganhadora do Prêmio
Pulitzer "Doubt" (Dúvida), do autor John Patrick Shanley, um sacerdote (que enfrenta suas
próprias dúvidas e as dúvidas de seus paroquianos sobre sua origem) aponta esta
universalidade em uma homilia: "Quando está perdido, não está sozinho".

5. A incredulidade é um estado intelectual de não aceitar a existência de Deus. Alguns


comentaristas concluem que como a Madre Teresa sentiu a escuridão, ela não cria em Deus.
Uma vez, em suas cartas, escreveu sem rodeios: "Não tenho fé". Porém, como explica o Pe.
Barry, "ela continuava rezando e escrevia cartas a Deus".

Às vezes a incredulidade é uma maneira de descartar velhas imagens de Deus que já não
funcionam para um crente adulto. Margaret Silo reflete sobre sua própria experiência:
"Passei por etapas em que todos os antigos fundamentos caíram e senti que já não podia
seguir crendo. O que fazer então? Reforçar este velho sistema ou deixar que as coisas
aconteçam e ver o que sucede? Para mim, isto finalmente me permitiu irromper para um
nível mais profundo de fé, que chamaria confiança". A incredulidade é um grande desafio
na vida espiritual. Se o caminho termina neste ponto, há pouco espaço para Deus. A chave
está em continuar buscando, inclusive em meio da incredulidade.

6. A depressão é uma forma profunda de tristeza. Na comunidade médica e psicológica


tem uma definição mais técnica. "É uma categoria clínica que com freqüência pode ser
tratada medicamente", diz Barry, que também é psicólogo. "Não queremos espiritualizar
problemas que são principalmente psicológicos"; diz Jane Ferdon. "Porém, hoje em dia",
agrega, "também podemos psicologizar temas espirituais. Desta forma, é muito importante
descobrir as verdadeiras razões da depressão".

Em "The Dark Night and Depression" (A noite escura e a depressão), um ensaio sobre o
livro Carmelite Prayer (Oração carmelita), de Keith J. Egan, Kevin Culligan, sacerdote
carmelita, escreve que na noite escura há uma aguda consciência de nossa própria pobreza.
Entretanto, nesta escuridão não é freqüente "fazer fortes declarações de culpabilidade, de
ódio em direção a si próprio, de inutilidade e idéias suicidas", como ocorre durante
períodos de depressão clínica.

Assim se pode estar na escuridão, mas não deprimido. E vice-versa? O Padre Barry
responde: "é raro que a pessoa que está clinicamente deprimida encontre consolo na
oração".

Therese Borchard, que escreve um blog sobre a depressão, "Beyond blue" para a página de
espiritualidade Beliefnet, sofreu depressões. Ela entende desde o ponto de vista teórico e
pessoal, e concorda com Barry. "Quando se está deprimido se está muito transtornado com
Deus", me disse. "Algumas pessoas podem se aproximar de Deus enquanto lutam para
expressar sua ira e também se aferram a Deus como última esperança. Outras podem se
distanciar e se afastarem de Deus. Em geral, contudo, a depressão geralmente leva à
escuridão e aridez da oração." A depressão clínica tem que ser tratada por profissionais
médicos como também deve ter um espaço de tratamento espiritual.

Como os diretores e conselheiros espirituais distinguem entre escuridão e depressão?


"Quando estou com pessoas deprimidas, me sinto engolida por sua depressão", diz Jane
Ruffing. "É o oposto com pessoas que estão transitando pela noite escura. Em uma
oportunidade acompanhei uma de nossas irmãs, que estava morrendo, em uma experiência
deste tipo, em sua presença senti a luminosidade de Deus - apesar dela não ter podido
senti-la em absoluto".

A pena é diferente da depressão. Como diz Barry: "A pena por uma realidade triste de sua
vida pode ser um sinal que está em contato com Deus". Jane Ferdon diz: "Estas são
algumas das pessoas que estão mais vivas, já que sentem profundamente".

7. A desesperança é uma sensação que tudo está e continuará sem esperança. O monge
trapista, Thomas Merton, definiu a desesperança em seu livro New Seeds of Contemplation
(Novas sementes de contemplação) como "o último estado de desenvolvimento de um
orgulho tão grande e arrogante que prefere aceitar a miséria total da condenação eterna
em vez de aceitar que Deus está por sobre nós e que não somos capazes de cumprir com
nossos destinos por nós mesmos". A forma de desespero que descreve Merton implica que
sabemos mais que Deus e o que "sabemos" é que as coisas nunca serão melhores. Este
orgulho conduz a um ponto morto espiritual: a desesperança.

Isto pode soar duro. Para aqueles que vivem em completa miséria, confrontados às
enfermidades que ameaçam suas vidas ou outro tipo de tragédia, a desesperança pode
parecer como uma resposta racional. Também pode surgir da depressão. "Quando se está
deprimido, freqüentemente não se tem esperança", diz Therese Borchard, "e isto pode levar
à desesperança".

Jane Ferdon crê que às vezes a desesperança não é um ponto morto espiritual, mas sim
apropriado. Lembra de uma mulher que descrevia suas dolorosas circunstâncias dizendo:
"Sinto como se caminhasse entre os mortos-vivos". Ferdon sempre pergunta às pessoas se
podem encontrar Deus neste estado. "Da mesma maneira, é importante saber se a
desesperança é um reflexo de outra coisa, por exemplo, solidão ou depressão e o que
sucede quando a pessoa leva essa desesperança para a oração. Às vezes a pessoa não quer
rezar sobre isso e, quando não quer, por que não quer? Talvez aqui entre a definição de
orgulho de Thomas Merton".

Com muito respeito, Ferdon diverge de Merton em identificar de maneira definitiva a


desesperança com o orgulho. "Pode ser que o orgulho seja realmente o contrário do que
está sucedendo. A desesperança pode ser uma experiência de abandonar nossa
necessidade de controlar tudo e pode levar a uma mudança, a revitalização e até ao
consolo". De maneira que enquanto uma desesperança que diz: "Nada pode mudar" é
perigosa para a vida espiritual, uma desesperança que diz: "Não sou capaz de conseguir
sozinha" pode orientar para o crescimento.

Distinções e libertação

Não é necessário ser um estudioso da espiritualidade cristã, um diretor espiritual ou uma


pessoa sob guia espiritual para se dar conta que desenredar estes laços espirituais pode ser
esperançoso, clarificador, consolador e libertador. Compreender que a maioria destas
experiências é freqüente nos pode alentar porque reduzem a ansiedade. "Estas são etapas
na vida espiritual de todos"; diz Janet Ruffing. Saber que estas etapas não são idênticas
pode ser esclarecedor e ajudar a discernir as respostas corretas frente a diferentes
acontecimentos de nossa vida espiritual. (S. Inácio, por exemplo, receita passos muito
definidos quando nos encontramos desolados). Ser capazes de levar estas experiências para
a oração pode ser consolador, dado que podem aprofundar nossa relação com Deus, da
mesma maneira que falar sobre um tema delicado com um amigo pode fortalecer a amizade
ou levar a uma maior intimidade.

Finalmente, é bom saber que todas estas experiências nos podem levar a Deus, nos podem
libertar do medo e que podem chegar até mutilar nossa vida espiritual. Porque o Deus de
quem Jesus se sentiu abandonado na cruz é o mesmo Deus que libertou Jesus da morte, lhe
dando nova vida. "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" é o começo do Salmo
22. Um pouco mais abaixo, não obstante, o salmista canta outra canção: "não esconde seu
rosto de mim, mas me escuta quando clamo por ele".

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James Martin, S.J., é editor de America e o autor de A Jesuit Off Broadway: Center Stage With Jesus,
Judas and Life’s Big Questions. (Um jesuíta em frente à Broadway: cenário central com Jesus, Judas e as
grandes perguntas da vida

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