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A biopolítica da população

TEMAS LIVRES FREE THEMES


e a experimentação com seres humanos

The bio-power of population


and experiments with human beings

Sandra Caponi 1

Abstract Taking as starting points the Foucault’s Resumo A partir do conceito foucaultiano de
concept of bio-power of population, the Giorgio biopolítica da população, das considerações de
Agamben’s considerations about nude life and the Giorgio Agamben (2002) sobre a vida nua e esta-
Hannah Arendt’s comprehension of human con- do de exceção, assim como das teses de Hannah
dition, we analyze experiments with human be- Arendt relativas à condição humana, analisamos
ings that were made in the beginning and in the dois estudos experimentais com seres humanos
end of twenty century. Initially, we discuss the ex- realizados em inícios e fins do século 20. Inicial-
periments that were made in India, between 1894 mente nos referimos às experimentações realiza-
and 1899, for determinate the Anopheles role in das na Índia entre 1894 e 1899 para determinar
the transmission of malaria. Finally, we analyze o papel do Anopheles na transmissão da malá-
the way by which recently, in Africa, were con- ria. Por fim, analisamos um estudo de transmis-
ducted researches over pregnant women infected são vertical de HIV recentemente realizado na
by the HIV. África com mulheres grávidas portadoras do vírus.
Key words Bio-power, Nude life, History of Palavras-chave Biopolítica, Vida nua, História
medicine, Experimentation with human beings da medicina, Experimentação com seres humanos

1 Departamento de Saúde
Pública da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Campus Universitario
Trindade. Caixa Postal 476.
88040-900
Florianópolis SC.
sandracaponi@newsite.
com.br
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Caponi, S.

Introdução ções. Particularmente, centraremos nosso estu-


do na questão do uso experimental de seres hu-
Sem dúvida a problemática da experimentação manos como cobaias para a realização de pes-
com seres humanos é uma das questões de quisas médicas. Assim, tomando como ponto
maior peso nas discussões atuais da bioética. de partida o conceito foucaultiano de biopoder
De fato, podemos dizer que a bioética se estru- pretendemos analisar as experimentações reali-
tura como um espaço de saber autônomo e in- zadas na Índia no fim do século 19 (1894-1899)
dependente a partir do momento em que a so- para determinar o papel que o Anopheles ocu-
ciedade se defronta com a existência de experi- pava na transmissão da malária. Analisaremos
mentações abusivas com seres humanos e com também de que modo, cem anos mais tarde, no
a necessidade de estabelecer limites claros entre fim do século 20 (1998-2000) foram conduzi-
o que pode e o que não pode ser admitido. das as pesquisas sobre HIV na África a partir
Dentre essas experimentações que foram divul- de um estudo com mulheres grávidas porta-
gadas e conhecidas fundamentalmente a partir doras do vírus. Esses estudos suscitaram críti-
dos anos 70, quiçá a mais discutida foi o estudo cas da comunidade científica às quais os pes-
de história natural da sífilis realizado numa co- quisadores responderam defendendo a necessi-
munidade negra do Estado de Alabama entre dade de aceitar a existência do chamado “rela-
1932 e 1972, conhecido como Caso Tuskegee tivismo ético” ou “duplo standard” (Amann,
(Goldim, 1999). Muito antes, as Declarações de 2001; Rothman, 2001; Garrafa, 2001). Argu-
Nuremberg e de Helsinque já tinham estabele- menta-se que é possível não aceitar as normas
cido os fundamentos legais e éticos das pesqui- que constam na Declaração de Helsinque (1996)
sas com seres humanos como resposta aos hor- por tratar-se de pesquisas realizadas em socie-
rores cometidos nos campos de extermínio du- dades pobres, sem condições de ministrar as-
rante a Segunda Guerra Mundial. Já no inicio sistência à população, cujos governos se ma-
dos anos 70 surgem diversas reflexões sobre ex- nifestam favoráveis à realização das mesmas
perimentação com seres humanos entre as (Amann, 2001).
quais podemos destacar as Reflexões filosóficas Esta situação nos coloca diante do dilema
sobre a experimentação com seres humanos de de legitimar a existência de dois mundos: um
Hans Jonas (1970). regido por leis e normas éticas e outro ao qual
A problemática da experimentação com se- essas normas, nesse caso específico da Declara-
res humanos é um dos temas recorrentes nas ção de Helsinque (1996), não se aplicam.
discussões da bioética. Do momento que surge Tomamos como ponto de partida certa pro-
esta disciplina até hoje, diversos estudos foram ximidade que parece evidenciar-se entre as
dedicados à problemática abordando as decla- pesquisas que aceitam e defendem a existência
rações e as legislações, estudando os limites aos do “duplo standard” e aquelas realizadas no fim
quais devem se submeter as pesquisas e os pes- do século 19 e início do século 20 com as po-
quisadores, explicitando questões relativas à pulações nativas das colônias. Como tentare-
metodologia das pesquisas ou às exigências es- mos analisar aqui, hoje resulta necessário criar
pecificas para cada tipo particular de experi- artifícios teóricos para legitimar aquilo que no
mentação (Vieira & Hossne, 1987; Berlinguer, século 19 não precisava ser justificado, pois era
1996; Freitas & Hossne, 1998; Lecourt, 2000; aceito por todos. A existência de uma popula-
Nouvel, 2000; Benoit-Browaeys, 2001; Goldim ção cuja saúde exige cuidados, corpos que de-
& Rossi 1999; Amann, 2001; Rothman, 2001; vem ser maximizados e melhorados, e a exis-
Garrafa, 2001; Salomon-Bayet, 2003). Neste tência de populações e indivíduos considera-
trabalho não pretendemos analisar essa extensa dos postos “fora da jurisdição humana” (Agam-
literatura proveniente da bioética da qual men- ben, 2002).
cionamos só alguns nomes, tentaremos refletir Acreditamos que o conceito foucaultiano
sobre nosso presente, a partir da análise de cer- de biopolítica da população, as reflexões de
tas experimentações realizadas no passado to- Giorgio Agamben (2002) sobre o que denomi-
mando como eixo de análise o conceito de bio- na vida nua e estado de exceção, assim como os
política das populações. estudos que Hannah Arendt dedica à compre-
Tentaremos analisar as condições históricas ensão da condição humana, podem nos auxili-
que permitiram legitimar a existência de práti- ar na tarefa de tentar entender as condições
cas de submissão dos indivíduos em nome do históricas que legitimaram práticas de submis-
bem comum, da saúde e do vigor das popula- são dos sujeitos em nome do bem comum, da
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saúde das populações, do futuro da espécie ou um poder sobre a vida preocupado com os me-
da vitalidade do corpo social (Foucault, 1978). canismos que podem contribuir para melhor
modelar os corpos e melhor controlar e conhe-
cer os fenômenos populacionais. A partir do
A biopolítica da população fim do século 18, inicia-se uma nova adminis-
tração dos corpos e uma nova “gestão calcula-
O conceito de biopolítica foi enunciado pela da da vida” (Foucault, 1978), essa nova admi-
primeira vez numa conferência que Foucault nistração permite a emergência de uma rede de
ministrou em 1974 na Universidade Estadual saber sobre as populações que inclui os estudos
de Rio de Janeiro. A palestra foi publicada em estatísticos sobre demografia; as taxas diferen-
1977 com o nome de O nascimento da medici- ciais de mortalidade; os registros de nascimen-
na social (Foucault, 1989). Nesse texto Foucault to e doenças; o conhecimento da distribuição,
aponta um deslocamento significativo nas es- concentração e controle das epidemias.
tratégias de poder, o controle da sociedade sobre Então, e pela primeira vez na história, o bi-
os indivíduos não se opera simplesmente pela ológico ingressa no registro da política: a vida
consciência ou pela ideologia, mas começa no passa a entrar no espaço do controle de saber e
corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somáti- da intervenção do poder. O sujeito, na qualida-
co, no corporal que, antes de tudo, investiu a so- de de sujeito de direitos, passa a ocupar um se-
ciedade capitalista. O corpo é uma realidade bio- gundo plano em relação à preocupação políti-
política (Foucault, 1989). Porem, será no quin- ca por maximizar o vigor e a saúde das popula-
to capitulo da Vontade de saber que Foucault ções. Deveríamos falar de biopolítica para desig-
esclarece e aborda detidamente o conceito de nar o que faz com que a vida e seus mecanismos
biopoder por oposição ao direito de morte que possam entrar no domínio de cálculos explícitos,
caracterizaria o poder do soberano (Michaud, e o que transforma o saber-poder num agente
2000). Por fim, essa temática será retomada no de transformação da vida humana (Foucault,
curso do College de France dos anos 75 e 76, 1978). Os estudos e as estratégias eugênicas são
dedicado à problemática da guerra de raças e as que melhor definem as características dessa
das suas relações com o biopoder (Foucault, biopolítica da população que, ao mesmo tem-
1992); no curso dos anos 77-78 “Segurança, ter- po em que se propõe o melhoramento da raça
ritório e população”, e no curso dos anos 78- e da espécie, parece precisar do controle e da
79 dedicado ao nascimento da biopolítica (Fou- submissão de corpos sem direito que se confi-
cault, 1997). guram como simples vida nua, vida que se man-
Como afirma Didier Fassin (2003), as leitu- tém nas margens, vida que pode ser submetida
ras contemporâneas do conceito de biopoder se e aniquilada.
limitaram a utilizar essa referência em diferentes Uma característica do biopoder é a impor-
contextos sem ter feito uma abordagem teórica tância crescente da norma sobre a lei. A idéia
ou conceitual do mesmo, com exceção de dois de que é preciso definir e redefinir o normal
autores provenientes da tradição filosófica – Ag- em contraposição àquilo que se lhe opõe, a fi-
nes Heller (1994) e Giorgio Agamben (2002). gura dos anormais, incorporada logo à catego-
Não deixa de ser significativo que as duas obras ria de degeneração que se inscreve nas margens
que mais contribuíram para repensar esse concei- do jurídico. Esses sujeitos se definem, como
to se inspiram no trabalho de Hannah Arendt que afirma Agamben, por seu caráter de “exceção”.
fundou paralelamente a Foucault uma teoria do Lembremos que: a exceção se situa em posição
governo referido á vida (Fassin, 2003). Será na ar- simétrica em relação ao exemplo, com o qual for-
ticulação entre o conceito foucaultiano de bio- ma um sistema. Esta constitui um dos modos pe-
poder, a releitura de Agamben do mesmo e as los quais um conjunto procura fundamentar e
preocupações de Arendt sobre a política e a vida manter a própria coerência (Agamben, 2002).
que tentaremos nos situar para analisarmos dois Mas, ela tem uma função estratégica, ela auxilia
estudos experimentais com seres humanos rea- na conformação da identidade de um grupo,
lizados no início e fins do século 20. pois a relação de exceção é uma relação de ban-
Para compreender a existência de certa do. Aquele que foi banido não é, na verdade, sim-
proximidade entre as pesquisas realizadas no plesmente posto fora da lei e indiferente a esta,
fim do século 19 e inícios do século 20 nas co- mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colo-
lônias de ultramar e aquelas realizadas recente- cado em risco no limiar em que vida e direito, in-
mente na África resulta indispensável falar de terno e externo se confundem (Agamben, 2002).
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Os biopoderes e a doença tropical anos e franceses; falam também das dificulda-


des de um pesquisador pouco preparado nos
A percepção do corpo na perspectiva popula- estudos da entomologia para reconhecer entre
cional sofrerá, na última década do século 19 e a multiplicidade de insetos chupadores de san-
nas primeiras décadas do século 20, uma altera- gue aquele que pudesse servir como agente in-
ção diretamente vinculada à criação de centros termediário vivo do paludismo.
de pesquisa europeus nas colônias de ultramar, Muitas dificuldades são relatadas, expecta-
que pouco a pouco começavam a ser ocupadas tivas frustradas, medo do fracasso, necessidade
por europeus brancos. A colonização deixou, de encontrar o inseto antes dos franceses e ita-
nos corpos desses primeiros colonos, marcas de lianos, falta de clareza nos objetivos. Falam tam-
doenças exóticas e desconhecidas que se trans- bém da distância entre dois mundos, o mundo
formaram em objeto de estudo privilegiado dos pesquisadores ingleses e a miséria dos po-
dos principais institutos metropolitanos e dos vos colonizados, neste caso o povo indiano. Fa-
médicos militares enviados aos trópicos. lam dos recursos disponíveis para os pesquisa-
Os estudos estatísticos evidenciavam que a dores diante da extrema pobreza dos sujeitos
suscetibilidade às doenças dos europeus bran- que serão submetidos a tratamento e que serão,
cos, que pretendiam habitar os trópicos, dupli- ao mesmo tempo, sujeitos de pesquisa. Essas
cava as mortes dos habitantes originários dos cartas relatam a colaboração entre os dois pes-
territórios conquistados, impulsionando a cri- quisadores, falam dos mosquitos que atravessa-
ação, a partir do estabelecimento do primeiro vam o mar conservados em glicerina para se-
Instituto Pasteur da Argélia, no ano de 1894, de rem observados por Manson (1898), narram as
uma série de institutos de pesquisa europeus nas análises realizadas nos dois lados do mar e os
colônias de ultramar. A Inglaterra, por sua vez, estudos comparativos, falam do trabalho con-
enviou seus médicos militares às colônias da Ín- junto de dois intelectuais com um mesmo ob-
dia para estudar fundamentalmente a malária. jetivo. Porém, revelam também as misérias da
Com a Fundação da The London School of medicina imperial, as mentiras ditas aos supos-
Tropical Medicine em 1898, Patrick Manson tos voluntários, as experiências com mosquitos
inaugura formalmente os estudos de medicina infectados que levaram muitos à doença e à
tropical. Anos antes, Manson tinha impulsio- morte, falam da leviandade e da falta de cuida-
nado outro médico militar, Ronald Ross, a ini- do com que eram tratados os povos coloniza-
ciar uma série de pesquisas na Índia para de- dos. Elas revelam o lado oculto da pesquisa, o
terminar o rol do mosquito na transmissão da que não se fala publicamente, o que não faz par-
malária. Existe um interessante registro das di- te da clássica e heróica história da medicina.
ficuldades que Ross teve de enfrentar até che- Então a tênue linha que separa a história
gar ao prêmio Nobel que, em 1902, lhe seria interna das descobertas científicas realizadas na
concedido pelo descobrimento do papel do assepsia do laboratório, com protocolos bem
Anopheles na propagação do paludismo aviá- delineados de pesquisa que se definem como
rio. Cada uma dessas dificuldades foram rela- imparciais e objetivos, se mistura com a histó-
tadas com paixão, temor e com as dúvidas que ria dos medos e das misérias humanas que es-
existiam na mente desses dois homens simples, tão por trás de certas descobertas científicas.
ambiciosos e nacionalistas, nas correspondên- Poderíamos afirmar com Bruno Latour
cias que ambos mantiveram entre 1894 e 1899 (1997) que essas cartas revelam a irracionalida-
(Bynum & Overy, 1998). de da pesquisa científica, que deixam transpa-
Essas cartas, que foram cuidadosamente recer a falta de objetividade do estudo e a pre-
conservadas e arquivadas, e que foram recente- cariedade do saber científico. Preferimos, pe-
mente publicadas (Bynum & Overy, 1998), lo contrário, aceitar a tese de Pierre Bourdieu
constituem hoje uma fonte valiosa para com- (2001) e observar esses documentos como ele-
preender algo a mais sobre a história das ciên- mentos que podem contribuir para compreen-
cias e particularmente das doenças tropicais. der melhor uma conquista científica.
Elas adquirem uma enorme relevância quando Como afirma Bourdieu (2001) é necessário
pensamos em realizar a história segundo os en- observar dois níveis no discurso científico. Ini-
sinamentos de Porter (2002), isto é, de baixo cialmente um discurso formal, que se vale da
para cima. As cartas falam sobre a malária, o forma impessoal, reduzindo ao mínimo as in-
plasmodium, a hipótese do mosquito, sobre a tenções dos investigadores. Logo, aquele outro
ameaça representada pelos pesquisadores itali- nível de discurso, que por muito tempo foi ex-
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cluído da história da ciência: o discurso priva- ta de um cronista do Jornal do Commercio de
do, em que aparece o que não pode ser publi- 25 de março de 1880: irei em linha reta ao alvo
cado. A historia da ciência centrou-se, classica- que pretendo atingir, provar com fatos irrecusá-
mente, nos relatos formais, ocupando-se do veis que a pretendida invenção (...) é um martí-
discurso privado para exaltar o heroísmo e o rio horrível (senão a morte!) imposto aos míseros
valor dos grandes homens de ciência. Pelo con- enfermos (apud Benchimol, 1999).
trário, os erros e fracassos foram sistematica- Ainda existindo certa preocupação pela “le-
mente esquecidos. gitimidade moral das experiências”, elas eram
Na pesquisa sobre a malária, conjuga-se a realizadas sem dificuldade. No caso específico
relevância científica da descoberta, reconheci- da correspondência entre Manson e Ross, não
da anos mais tarde quando Ross conquista o parece existir nenhum tipo de questionamento
prêmio Nobel (1902), com o discurso privado. moral sobre a utilização da população pobre
As cartas revelam que para a conquista desse que habita nas colônias como objetos de pes-
prêmio tudo era permitido, incluídos enganos quisa. Será preciso, então, tentar analisar e com-
e mentiras, como lemos na carta 203, quando preender as estratégias de poder que legitima-
Ross relata que havia afirmado para um doente ram a utilização de populações vulneráveis, po-
que a picada de um mosquito infectado com bres e imigrantes, para as pesquisas médicas.
malária o ajudaria em sua recuperação e o li- Tomando emprestadas as palavras de Giorgio
bertaria definitivamente dos parasitas da doen- Agamben em Homo Sacer, poderíamos afirmar
ça (Bynum & Overy, 1998; Ross, carta 203). que: a questão correta sobre os horrores cometi-
Causa surpresa observar que, por exemplo, dos não é, portanto, aquela que pergunta hipo-
no caso das pesquisas realizadas no Brasil por critamente como foi possível cometer delitos tão
Domingo Freire a partir de 1880, as experi- atrozes para com os seres humanos; mais honesto
mentações realizadas com animais, particular- e sobretudo mais útil seria indagar atentamente
mente a vivissecção, produziam mais rejeição quais procedimentos jurídicos e quais dispositi-
e revolta do que aquelas realizadas com popu- vos políticos permitiram que seres humanos fos-
lações vulneráveis. Como afirma Benchimol sem tão integramente privados de seus direitos e
(1999) em seu estudo sobre a febre amarela no de suas prerrogativas, até o ponto em que come-
Brasil: O uso de animais como fonte de conheci- ter contra eles qualquer ato não mais se apresen-
mento aplicável à biologia do homem provoca tava como delito (Agamben, 2002).
sarcasmos, ofende os pruridos morais dos padres, Os novos dispositivos políticos que aqui
das beatas e dos provedores de muitos hospitais entram no jogo já não dizem respeito a sujei-
da cidade. O uso indiscriminado de pacientes in- tos de direito, nem respeito de cidadãos que
ternados nos hospitais como cobaias para as ex- pertencem a uma determinada nação ou Esta-
periências dos clínicos (e bacteriólogos) não des- do. No registro da biopolítica da população, as
pertavam tanta indignação, uma vez que eram leis são substituídas pelo império dos fatos, pe-
operários, imigrantes, marinheiros, escravos ou la urgência e o imediatismo. O que entra em
gente que trazia ainda a marca do cativeiro na jogo aqui já não é o direito à vida ou à saúde
cor e na aspereza da pele (Benchimol, 1999). dos pacientes, membros de uma comunidade
Não pretendemos realizar uma denúncia política, o que se converte em objeto de pesqui-
retrospectiva de faltas morais cometidas quan- sa é, em palavras de Foucault, “o corpo espé-
do a problemática da ética na pesquisa ainda cie”; ou, em palavras de Agamben “vida nua”; o
não era claramente tematizada, porém, é preci- mesmo que para Hannah Arendt (1993) repre-
so afirmar com Benchimol que: mesmo assim, a senta o espaço da necessidade vital muda e si-
compaixão ou o parti pris inspiravam constantes lenciosa. Isto é, o sujeito político foi identifica-
protestos contra a prática (uso de pacientes para do com o domínio das necessidades vitais, o
pesquisa) que só fazia agravar o estigma dos hos- corpo deixa de ser de alguém para ser transfor-
pitais: antecâmaras da morte, que a população mado em um elemento na mecânica geral dos
encarava com compreensível horror (Benchimol, seres vivos que serve de suporte aos processos
1999). De um modo mais ou menos sutil já se biológicos de nascimento, mortalidade, saúde,
manifestava certa inquietação por essas estra- epidemias. O corpo individual importa só na
tégias de poder que legitimavam as interven- medida em que ilustra os processos que podem
ções sobre as populações pobres com o objeti- acontecer em nível populacional; que podem
vo de produzir um conhecimento aplicável a indicar o modo de agir, de adoecer e de respon-
todos. Como pode ser observado na breve car- der aos estímulos do conjunto da população.
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Os indivíduos deixaram de ser sujeitos de é imposto um olhar do qual ele é objeto, e um ob-
direito e passam a ser – no interior dessa bio- jeto relativo, pois o que se decifra nele está desti-
política da população, analisada por Foucault nado a um melhor conhecimento dos outros
como própria de fins do século 19 – corpo es- (Foucault,1978).
pécie, isto é, corpos transidos pela mecânica do Do mesmo modo, para que pudessem exis-
vivente limitados a seu estatuto vital. A partir tir os estudos relativos à distribuição das epi-
desse momento, os sujeitos submetidos a ob- demias, ao reconhecimento de agentes causais
servação deixarão de ser sujeitos individuais específicos, à identificação de vetores, acredita-
para passar a ser corpos valiosos exclusivamen- va-se que seria indispensável poder contar com
te pela identidade vital que os unifica. Os cor- um grupo populacional que além de estar ex-
pos de Abdul Kadir ou do misterioso Lutch- posto a doenças, tivesse as mesmas característi-
man, referenciados na correspondência entre cas dos doentes que habitavam o Hospital Ge-
Manson e Ross como sujeitos de pesquisa ral no momento da emergência da clínica. Era
(Bynum & Overy, 1998), têm um significado preciso contar com uma população pobre, ne-
preciso, o que se revela neles, suas dores, seu cessitada de assistência e alheia ao espaço dos
sofrimento, o fato de tolerar ou não a exposi- direitos.
ção sistemática a mosquitos infestados, poderá A análise foucaultiana dos diferentes sabe-
ser de utilidade para os outros. Pode possibili- res e estratégias que compõem a chamada bio-
tar a prosperidade e o desenvolvimento das co- política da população pode ter um papel cen-
lônias inglesas ou, pelo contrário, pode signifi- tral para desnaturalizar as condições, não trans-
car uma confirmação das teorias que falam da cendentais nem necessárias, mas históricas e
“periculosidade dos trópicos”, de ameaças que contingentes que possibilitaram a construção
não podem ser controladas e entre elas, a mais dos saberes relativos à saúde das populações.
temida, a ameaça que a malária representa para Não existe um imperativo transcendental,
o homem branco. nem uma exigência inevitável que seja uma
Se voltarmos, novamente, para a pergunta precondição para a realização desses estudos.
formulada por Agamben veremos que ela in- O que é poderia não ser. Para melhor compre-
clui duas questões. Primeiro, trata-se de anali- ender o caráter de “evento” desses modos de
sar os dispositivos políticos que permitiram produzir um saber nada melhor do que anali-
que essa ordem de coisas fosse aceita. Podemos sar os mecanismos de poder que possibilitaram
responder essa questão por referência ao estrei- sua construção. Nem sempre os estudos relati-
to vínculo que, a partir do século 19, se deu en- vos às epidemias utilizaram populações pobres
tre a vida, entendida como zoé, e a política. Em ou necessitadas. Muitas vezes os próprios mé-
segundo lugar, deve ser questionado quem são dicos dirigiram a si mesmos certos procedimen-
esses sujeitos que foram privados de seus direi- tos de pesquisa mostrando o caráter contingen-
tos. Veremos então que, ainda que o privilégio te e evitável da utilização dessas populações.
concedido ao elemento biológico possa apagar Dizer que a assimetria social resultou na
as diferenças, tornando o saber derivado desses condição histórica de possibilidade do conheci-
corpos aplicável à humanidade como um todo, mento médico referente às epidemias, e não sua
os sujeitos observados foram escolhidos entre a condição necessária, significa afirmar a contin-
população pobre e necessitada de assistência – gência e a “evitabilidade” desse modo de pro-
no caso concreto das pesquisas de malária, a po- duzir o conhecimento científico. Não se trata
pulação indiana. Tanto os experimentos relata- de julgar o passado com as categorias morais
dos por Manson e Ross em suas cartas, quanto atuais, trata-se de “eventualizar” nosso presen-
outros estudos e observações realizados a pro- te, de mostrar que aqueles procedimentos que
pósito das doenças tropicais e de outras doen- aparecem, ao olhar de muitos pesquisadores,
ças contagiosas à semelhança do acontecido no como naturais e evidentes, como a condição
nascimento da clínica conduzem à reiteração necessária de possibilidade para a construção
de uma mesma e velha pergunta: do saber, têm uma historia recente que não
Com que direito se pode transformar em ob- precisa ser perpetuada nem naturalizada.
jeto de observação clínica (ou em objeto de expe-
rimentação) um doente ao qual a pobreza obri-
gou a solicitar assistência hospitalar? Ele requer
um auxílio do qual é o sujeito absoluto na medi-
da em que este foi criado para ele; mas agora lhe
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Atualidade da biopolítica nasceram do grupo controle foram, em sua
maioria, HIV-positivas. Segundo Márcia An-
Assim, quando analisamos o modo como re- gell: os pesquisadores violaram os princípios de
centemente foram construídas certas pesquisas Helsinque e demonstraram possuir um desprezo
de uma das epidemias emergentes que mais desumano pelo bem dos pacientes (apud Roth-
desafios apresentam para os pesquisadores, a man, 2001). Como afirmam Garrafa e Macha-
AIDS, vemos reiterarem-se os mesmos proce- do (2001): A perplexidade manifestada no refe-
dimentos e argumentos que caracterizaram os rido editorial aconteceu porque um estudo de tal
estudos médicos e epidemiológicos do século natureza não poderia ter sido realizado nos Esta-
19 e inícios do século 20. Hoje as pesquisas dos Unidos, ou em qualquer outro país desenvol-
com seres humanos relativas à AIDS concen- vido, onde seria esperado que esses pacientes com
tram-se na África, onde a incidência da doença HIV fossem alertados e tratados.
atinge, em algumas populações, até 50% dos De fato, a resposta dada à demanda inter-
habitantes. nacional sobre um posicionamento ético dos
Tudo parece ser permitido nessa lógica na pesquisadores quando se questionou os limites
qual os sujeitos necessitados podem ser utiliza- os quais toda pesquisa deve respeitar foi a se-
dos em beneficio do melhoramento do vigor, guinte: Nossas pesquisas não são realizadas con-
da vida e da saúde das sociedades opulentas: forme as regras da ética? Pois bem, mudemos as
um exercício de biopolítica da população, que regras da ética (apud Rothman, 2001).
reproduz as velhas estratégias de poder pró- A dificuldade está na nova posição geográ-
prias do século 19, tão utilizadas e bem aceitas fica dos pesquisadores americanos e europeus
quando as pesquisas eram referidas aos sujeitos que até os anos 90 conduziam suas pesquisas
sem direito que habitavam as colônias pobres. com sujeitos de seus próprios países. O peso
É o que parece estar ocorrendo na África. econômico e as restrições éticas e legais que são
Tomemos como exemplo a pesquisa realizada exigidas no Primeiro Mundo não são idênticas
nos anos 98-99, que envolveu 16 equipes de às exigidas nos países pobres. Aquilo que antes
pesquisadores para a realização de um estudo da Declaração de Helsinque (e ainda depois des-
sobre a efetividade de um tratamento reduzido ta declaração como o evidencia o Caso Tuske-
de AZT no caso de mulheres aidéticas grávidas. gee) podia acontecer no interior de cada país
A população estudada foi de 17.000 mulheres com as populações consideradas marginais e
grávidas. Sabia-se, por estudos prévios, realiza- que décadas de discussão impediram de conti-
dos em 1995, que o tratamento da mãe com nuar a acontecer, hoje foi deslocado dos indiví-
AZT reduz em 66% a transmissão de HIV para duos que estão nas margens da sociedade (lou-
o filho. O custo desse tratamento era de oito- cos, delinqüentes, crianças) para as populações
centos dólares. E o objetivo da nova pesquisa carentes dos países localizados nas margens
era determinar se um tratamento curto com do mundo: os países mais pobres do Terceiro
AZT (por um valor de cinqüenta dólares) po- Mundo.
deria garantir uma redução da transmissão. Lembremos que a Declaração de Helsin-
Partiu-se da hipótese de que por ocorrer a que, de 1964, afirma que o bem-estar de cada
transmissão no fim da gravidez e no momento sujeito (pertença ou não a um grupo vulnerá-
do parto, um tratamento curto seria tão eficaz vel) deve prevalecer sobre as necessidades da
quanto um tratamento longo (Rothman, 2001). ciência ou da sociedade. No entanto, parece que
A população foi dividida em dois grupos, o quando passamos essa afirmação para escala
grupo de observação no qual se aplicaria o tra- planetária, ela tende a perder sua força.
tamento curto, e o grupo controle. Para este úl- Na medida em que se pretenda restringir a
timo, existiam duas alternativas, ou um trata- validade dessa declaração para determinadas
mento completo (longo), ou o uso de placebo. regiões do mundo e considerar que outras re-
Por avaliação de custos escolheu-se a segunda giões podem ter menores exigências éticas na
alternativa. Isso significa que os sujeitos que realização de suas pesquisas, essas populações
participavam do grupo controle não sabiam se situadas nas margens deixam de ser pensadas
estavam ou não sendo tratados. Foi constatado como sujeitos de direito para passarem a ser
que o tratamento curto reduz em 50% a trans- consideradas exclusivamente em termos de
missão, isto é, ele é menos eficaz que o trata- corpos vivos que para poder contar com algum
mento longo, porém 50% mais eficaz que o tipo de assistência devem contribuir para a
não tratamento. Desta forma, as crianças que construção de um conhecimento aplicável a to-
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Caponi, S.

dos. O poder de morte aparece como comple- propósito de manter o processo vital tinha entra-
mento de um poder que se exerce positivamente da na esfera da política (Arendt, 1993). A fome,
sobre a vida, que procura administrá-la, aumen- as necessidades, a dor tornavam as pessoas es-
tá-la, exercer sobre ela controles precisos e regu- cravas. Era necessário em primeiro lugar que
lações gerais (Foucault, 1978). A partir do sécu- os sujeitos pudessem se libertar da escravidão,
lo 19, o poder de morte encontra sua legitimi- que impõe o vital, para então ingressar na esfe-
dade na gestão calculada da vida. É em nome ra do político, no espaço dos direitos. Para rom-
da saúde de todos, da vitalidade da espécie, do per com essa escravidão, era permitido o uso
controle das epidemias, que a biopolítica se da força e da violência, ambas alheias àquilo
transforma e convive com sua fase obscura: a que caracterizava a condição propriamente hu-
tanatopolítica (Agamben, 2002). mana: aquela que se realizava no espaço dialó-
Se pretendermos construir uma história gico e argumentativo da Polis. Não é por acaso
dos saberes relativos ao corpo que seja capaz de que Agamben terá como referência privilegia-
prescindir de certezas e reducionismos, que se- da de seu texto dois autores: Michel Foucault e
ja capaz de analisar os múltiplos discursos, su- Hannah Arendt. Ainda que Arendt nunca te-
as confrontações e alianças, assim como a resis- nha falado sobre biopolítica a questão que lhe
tência ou a aceitação das práticas médicas, sem preocupa é a mesma que preocupa a Foucault,
deixar de tornar explícitos os abusos que foram o governo referido exclusivamente à dimensão
e que ainda são cometidos em nome do bem do vital.
comum, e do melhoramento da saúde das po- Para poder compreender as dificuldades
pulações, não poderemos deixar de questionar nesta sobreposição entre vida e política, deve-
essa categoria ambígua que é a de biopolítica. remos fazer uma rápida referência ao pensa-
Certamente a experimentação com seres hu- mento grego, pois como afirma Arendt (1993)
manos é um dos muitos modos pelos quais se os filósofos gregos, seja qual for sua posição a res-
manifesta a biopolítica da população que pos- peito da Polis, não duvidaram de que a liberdade
sibilita a consolidação dos estados-nação. se localiza exclusivamente na esfera política, que
a necessidade (o bios) é de maneira fundamental
um fenômeno pré-político (...) e que a força e a
A biopolítica: violência se justificam nessa esfera porque são os
entre o poder e a dominação únicos meios para dominar a necessidade e che-
gar a ser livres.
Foucault considera fato determinante da cons- A grande novidade que se produz no mun-
trução das sociedades modernas o processo pe- do moderno, da qual falaram tanto Foucault
lo qual a vida, isto é, a vida nua, a vida natural quanto Arendt e Agamben, está dada pela iden-
que compartimos com os animais, passa a ser tificação entre o vital e o político. No mesmo
investida por cálculos explícitos e por estraté- momento em que o homem moderno conquis-
gias de poder. O momento em que a vida in- ta os direitos que se pretendem universais, é o
gressa, como elemento privilegiado, no registro domínio do vital o que entra em questão. A vi-
da política. Para compreender o alcance e a sig- da, o corpo, a saúde, as necessidades, a repro-
nificação dessa mudança, é preciso entender o dução, que antes faziam parte da esfera pré-po-
papel que a vida ocupava no pensamento grego lítica, se transformam nas questões políticas
em relação ao espaço da política. É por oposi- por excelência. As estatísticas contribuem para
ção à concepção aristotélica de “homem” que dotar esse processo de maior objetividade, ta-
Foucault pensa o exercício da biopolítica: Por xas de mortalidade e morbidade, taxas de nata-
milênios o homem permaneceu o que era para lidade, concentração de epidemias e doenças,
Aristóteles: um animal vivente e, além disso, ca- todo um novo domínio de saber e de interven-
paz de existência política; o homem moderno é ção política que se refere exclusivamente ao es-
um animal em cuja política está em questão a paço do vital e a seus fenômenos correlatos: de
sua vida de ser vivente (Foucault, 1978). natalidade, reprodução e morbi- mortalidade.
Lembremos que para o pensamento grego Mas falar na novidade que implica a biopo-
o espaço do vital, isto é, o espaço da sobrevi- lítica da população significa afirmar um pro-
vência, da natalidade e da reprodução, era a cesso complexo e de duas faces. Por um lado, o
precondição necessária e imprescindível para domínio do vital (natalidade, saúde, mortali-
participar da vida em comum da Polis. Mas, de dade e reprodução) que para os gregos era emi-
fato, nenhuma atividade que servisse só para o nentemente privado passará a fazer parte da es-
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fera do social e conseqüentemente do político. dos provenientes da bioética com a análise das
Os direitos das mulheres, das crianças, dos tra- estratégias biopolíticas referidas às populações
balhadores, o reconhecimento dos direitos bá- situadas nas margens do mundo político regi-
sicos à alimentação e à assistência, ainda que do por leis, normas e estatutos aceitos e discu-
duramente conquistados, falam da positivida- tidos por todos. A partir do momento em que
de dessa biopolítica. Mas existe outra face, ob- essas populações situadas nas margens da soci-
scura, desse mesmo processo. edade são reduzidas ao estatuto de “vida nua”,
Se a condição humana é definida pela vida elas deixam de ser pensadas como sujeitos de
política e pelo diálogo argumentativo entre direito para passarem a ser pensadas exclusiva-
iguais, isto é como zoon logon ekhon (como ser mente como corpos vivos. Assim enquanto exis-
vivo capaz de fala); seu contrário, como afirma tem sujeitos que não são reconhecidos como
Arendt (1993), o que caracteriza a vida nua e cidadãos com direitos e deveres mas como pura
sem conseqüência política é o aneu logou (sem e nua corporeidade, eles podem passar a ocu-
logos), uma vida sem significação alguma, uma par esse espaço politicamente perigoso e ambí-
vida que se esgota no próprio fato da sobrevi- guo de uma “vida nua”.
vência, na sua característica única de “ser vivo”. Mas como compreender essa relação entre
A esse “corpo espécie” não lhe correspondem sujeitos que pertencem e que não pertencem ao
outros direitos mais que sua natalidade, sua re- mundo dos direitos, que, a partir de Hannah
produção e sua morte. Ela pertence inteira- Arendt, se vincula com os conceitos de nação e
mente ao registro do biológico, da pura corpo- de estado a partir do conceito foucaultiano de
reidade. Conseqüentemente, suas conquistas e poder? Sabemos que para Foucault onde existe
lutas prescindem de argumentos e devem estar poder existe resistência, que as relações de po-
fundados na aceitação passiva de ordens ou na der são reversíveis, móveis e instáveis, mas o es-
violência e na força. paço da vida nua, da pura e muda força vital
A vida nua, isto é, “a vida matável e insacri- parece, muitas vezes, fugir dessa reversibilida-
ficável do Homo Sacer” (Agamben, 2002) per- de. Então, o que se revela como alheio ao jogo
siste nas margens da mesma sociedade que diz do poder e da resistência, aquela vida que não
garantir os direitos humanos fundamentais e pode se contrapor aos jogos de poder, pode ser
universais. Esse é o paradoxo assinalado, pri- pensada a partir do conceito foucaultiano de
meiro por Arendt e depois por Agamben, da fi- “dominação”: As relações de poder são cambian-
gura dos “refugiados”: A concepção dos direitos tes, reversíveis e instáveis. Deve ser considerado
do homem e do cidadão, baseada na suposta que não podem existir relações de poder a menos
existência de um ser humano como tal, caiu em que os sujeitos sejam livres. Se um sujeito está
ruínas tão logo aqueles que a professavam encon- completamente à disposição de outro, se ele se
traram-se pela primeira vez diante desse homem tornar uma coisa, um objeto sobre o qual se pode
(o refugiado) que havia perdido toda e qualquer exercer uma violência infinita e ilimitada, não
qualidade e relação específica, exceto o puro fato há relações de poder. Para existir uma relação de
de ser “humanos” (Arendt, apud Agamben). É poder, deve haver, em ambas as partes pelo me-
preciso observar a funcionalidade estratégica nos, certa forma de liberdade. Isso significa que
do Homo Sacer. Ele é hoje, como em tempos de nas relações de poder existe necessariamente a
Aristóteles, a precondição que permite garantir possibilidade de resistência. Porém, existem esta-
a existência política e argumentativa entre iguais. dos de “dominação”. Trata-se das relações de po-
Hoje, como no mundo grego, a política ain- der fixas, perpetuamente assimétricas onde a
da se define em função de uma exclusão funda- margem de liberdade é extremamente limitada
mental, a daqueles que tem o único estatuto de (Foucault, 1996).
“corpo espécie” ou “vida nua”. Assim como o Foucault analisa como exemplo de domina-
espaço da necessidade era a precondição da vi- ção a relação conjugal na sociedade dos séculos
da comunicativa e ativa da polis, na biopolítica 18 e 19. Perante o poder masculino, a mulher
da população é a vida nua, a pura corporeidade podia responder de formas diversas, sendo in-
se considera a precondição que possibilita a fiel, rejeitando sexualmente o marido, etc. Po-
existência propriamente humana da cidadania rém, nenhuma dessas pequenas resistências
e dos direitos. possibilitava que a situação de assimetria fosse
Nesse horizonte, as experimentações com verdadeiramente revertida. Ainda se mantinha
seres humanos podem ser analisadas a partir de intacta a distinção grega entre os cidadãos que
uma perspectiva que permita integrar os estu- participam das relações de poder e as mulheres
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Caponi, S.

a quem estava reservado o espaço doméstico dores que se defrontaram com novas civiliza-
dos aneu logou, dos sem fala. Nas situações de ções, novas doenças e novas populações nas co-
dominação – econômica, institucional, sexual – lônias pobres de Ultramar podiam livremente
o problema está, de fato, em poder determinar realizar suas pesquisas com seres humanos sem
onde e de que modo será organizada a resistência grandes cuidados, seguindo o argumento utili-
(Foucault, 1996). tarista do benefício futuro que as pesquisas re-
No caso da experimentação com seres hu- presentariam para melhorar o vigor e a saúde
manos parece não existir essa mobilidade e re- das populações.
versibilidade do poder. A capacidade de resis- Nada impedia que os sujeitos de pesquisa,
tência dos sujeitos de experimentação é míni- considerados existentes puramente biológicos,
ma ou até nula se considerarmos que, muitas fossem pensados como “matáveis”. A eles era
vezes, como na experiência de transmissão ver- atribuído um estatuto alheio à “condição hu-
tical de HIV analisada, os sujeitos envolvidos mana”: pura corporeidade, vida nua. Como
não estão sabendo se fazem parte de um ou ou- afirma Foucault, esse poder de morte se man-
tro grupo, se serão beneficiados com a medica- tém como o limite exterior da biopolítica: é so-
ção ou se receberão placebo. Em tal caso, as res- bre a vida e sobre seu desenvolvimento que o po-
postas possíveis são limitadas. A margem de li- der estabelece sua força; a morte é seu limite o
berdade para dar respostas aos fatos é quase momento que não pode ser apresado (Foucault,
inexistente, fazendo com que os sujeitos envol- 1976).
vidos possam passar facilmente ao estatuto de Podemos tentar pensar a defesa atual do
cobaias. Eles se definem exclusivamente como chamado “duplo standard” ou do “relativismo
“corpo espécie”, como vida nua, como alguém ético” em relação a esta oposição entre um po-
que qualquer um pode matar impunemente der que toma a vida, o corpo e a saúde a seu
(Agamben, 2002). cuidado e sua contra-face, um poder de morte
que persiste como seu limite, como uma antiga
estratégia de poder que se refere à corporeida-
Conclusão de nua e sem direitos. Se esse espaço foi ocupa-
do sem maiores questionamentos pelas mulhe-
A biopolítica, modalidade de exercício do po- res e os escravos no pensamento grego; e se, no
der própria dos estados modernos, no momen- caso dos pesquisadores ingleses, Manson e
to que garante a sobreposição entre vida e polí- Ross, era o espaço da população indiana neces-
tica, possibilita que com um mesmo gesto se- sitada de assistência; hoje ainda podemos ouvir
jam definidas as populações que pertencem ao as vozes dos que defendem a persistência desse
espaço da vida nua e aquelas que fazem parte espaço reservado para as populações pobres do
da vida ativa, isto é, da condição humana que Terceiro Mundo. Especificamente, no caso das
deve ser cuidada, estimulada, multiplicada. pesquisas sobre transmissão vertical de HIV,
Mas para multiplicar a vida e o cuidado com os reservado para as populações pobres de África.
cidadãos, para garantir seus direitos, seu vigor Lembremos que depois do debate suscitado
e sua saúde pode resultar legítimo admitir co- pela divulgação dessa pesquisa, a revista The
mo precondição o uso experimental de seres Lancet publica uma declaração de “consenso”
humanos sem que eles se beneficiem dos melho- redigida por bioeticistas americanos legitiman-
res meios diagnósticos e terapêuticos existentes, do o “duplo standard” e o “relativismo ético” e
como é exigido pela Declaração de Helsinque criticando um universalismo que é considerado
de 1996 ainda em vigor. inaplicável, indiferente à realidade dos países do
Muito antes da Declaração de Helsinque, e Sul, além de suscetível de retardar gravemente o
muito antes dos atuais debates sobre os dilemas progresso das pesquisas contra patologias em ex-
éticos surgidos da realização de ensaios clínicos pansão (Amann, 2001). Estes pesquisadores
no Terceiro Mundo (Amann, 2001; Rothman, nos chamam ao realismo, nos convidam a dei-
2001; Garrafa & Machado, 2001), as pesquisas xar de ser ingênuos e a deixar de lado o que pa-
realizadas nos trópicos pelos pesquisadores in- recem considerar a velha e gasta idéia de eqüi-
gleses e franceses nos permitem refletir sobre o dade. Nos convidam a reconsiderar o caráter
papel político da desigualdade nas pesquisas moral das pesquisas realizadas, algo que para
médicas. Muito antes de que fossem utilizadas os pesquisadores ingleses que trabalhavam na
idéias legitimadoras como “duplo standard” ou Índia não representava nenhum conflito ético.
“relativismo ético” (Amann, 2001) os pesquisa- Para eles existiam dois mundos bem delimita-
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dos: a metrópole e as colônias de ultramar; entre pesquisadores que defendem a força do
dois mundos que não tinham por que ter as realismo e a aceitação de uma “ética da urgên-
mesmas regras. As desigualdades estavam ex- cia”. A diferença da lógica colonialista hoje re-
plicitadas e eram justificadas pela própria lógi- sulta necessário enunciar e justificar o que an-
ca colonialista. tes não precisava ser justificado: a existência de
Então, se queremos utilizar a história para dois mundos, o mundo dos direitos e aquele
melhor compreender nosso presente, quiçá das “exceções”, o mundo dos corpos que devem
possamos afirmar que existe algo que aproxi- ser cuidados e o mundo habitado por aqueles
ma as pesquisas realizadas no fim do século 19 que têm o estatuto de vida nua, de vidas que
e inícios do século 20 com as populações nati- foram postas fora da jurisdição humana de mo-
vas das colônias, do debate atual sobre as pes- do tal que a violência cometida contra eles não
quisas realizadas na África. Podemos procurar constitui nenhum sacrilégio (Agamben, 2002).
essa proximidade na declaração de “consenso”

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Versão final apresentada em 15/3/2004
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