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*Boplendido... Uma inteligencia bicida e por derosa,” Eric Hobshawm, New Statesman “Fxtremamente agraildvel.. Uma grande con Iruledo @ soctslogta histiried. Donald Macrae, New Society "Uma narrativa somplexa, seguro, marwvithosa- mente tweidu, dos antivos gregos ds monarquias ab- Sohutistas moderna... estimulante, " ‘Moses Finley, The Guardian “Osurpreendente uleanice das concepedes ea habi- lidadte rquiteroniea com que fol exeeutada fazer desta obra uma experiéneia intelectual Formiidivel,” Keith Thomas, New York Review of Books “Uma fascinante insroduezo ao entendimento da ‘ooderi yociedude capitalista.... A amplitude da dinerpretagao de Anderson impressions. E sina sintese que oferece explicacdo convincente para o desewvatvtinento desigual do feudaliseuo europess, niu Teste enn Ocidenie, no Béltioo @ no Mediterrd- Rodiiey Hilton Areas de Interesse: Historia, Politica sson:98.11 13067" t PERRY ANDERSON ans } Colesio Tudo € Histia a PASSAGENS ‘Bota «Vide ‘A Camiaho da Ide Média A wsure. eee ee Waldir Freitas Oliveira DA fe os iy ‘As Conta Vi pels Abe io neo Fe ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO ‘ea ea O Egito Antigo Aint 0 Const Cae tamara Cardo ees ier ial et Fo Fano J Alda Medi Tac Remteente a ocidews © impti Bieacino Beat Sou Hilario Franco Je. Hilatio Franco Je. * Ostler nt Idee Média © Mundo Ania Jrquests Gat Bae fe 3? edicno Rae ee ce Meenas j aa arene per ores | Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal- ‘Sonia Regina de Mendonca Micky Goce Pree tual editora brasiliense Copyright © by Perry Anderson, 1974 Titwo original em inglés: Passages Copyright © by da traducao braieira: Edtora Brailiense S.A, Nenhuma parte desta publicacio pode ser gravada, armazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada, reroducida por meios mecdnicos ou outros quaisquer sem autorizacdo prévia do editor. ISBN, 85-11-13007-5, Primeira edicto, 1987 38 edicdo, 1991 Copydesk: José Romero Antonia Reviso: Leila Nunes de Siqueira e Mario R. Quaiato Moraes comPRA DATA Rua da Consolacao, 2697 01416 S20 Paulo SP Fone (O11) 280-1222 - Fax 881-9980 Telex: (11) 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL from Antiquity o Feudalism. + Indice Preficio .......+++ Spi pean pele ome a Primeira parte 1. Antiguidade Classica Omotio de produgdoescravo AGrécia Omundo helénico . Roma .... ani 2. ATransigao Ocenério germainico ... 103 Asinvasbes....... Em busca de uma sintese. ‘Segunda parte 1. Europa Ocidental O modo de produgao feudal «.....2+4+6 143 ‘Tipologia das formages sociais ......+4.+++++ 150 Oextremonorte . iat easeia 168 A dinamica feudal . meedecic: 17 191 Acrisegeral .. INDICE 2. Europa Oriental AlestedoElba . Oatrasomdmade ........ ‘O padrio do desenvolvimento... ActisenoLeste .. Aosul do Danio Indice onoméstico . . Indice de autores . Prefacio Algumas palavras necessétias para explicar o escopo e a intenglo deste ensaio. Ele esta concebido como pr6logo a um estudo mais am- plo: Linhagens do Estado Absolutista. Os dcis livros sto diretamente articulados entre si, e propdem um tinico argumento. A relagio entre ambos — Antiguidade e feudalismo por um lado, ¢ por outro, 0 abso- lutismo — ndo esta aparente a primeira vista, na habitual perspectiva dda maioria de suas abordagens. Geralmente, a Hist6ria antiga & sepa- ada da Historia medieval por um cisma profissional, que muito poucos trabalhos contemporfineos tentam cobrir: o golfo entre os dois esté, €-claro, institucionalmente entrincheirado pelo ensino ¢ pela pesquisa. A distncia convencional entre a Hist6ria medieval e 0 inicio da Hist6- ia moderna ¢ (paradoxal ou naturalmente?) muito menor: ainda as- sim, tem sido suficiente para excluir qualquer exame do feudalismo do absolutismo dentro — como deveria — de um mesmo enfoque. O argumento destes estudos interligados 6 0 de que, em muitos e impor- tantes aspectos, este é 0 modo pelo qual as sucessivas formas que sto a sua preocupagio deveriam ser consideradas. Este ensaio explora 0 ‘mundo social e politico da Antiguidade clissics, a natureza de sua tran- sigfio ao mundo medieval e as resultantes estrutura ¢ evolugdo do feu- dalismo na Europa; um tema central que o atravessa por inteiro co as divisbes regionais do Mediterraneo e da Europa. Sua seqiéncia discute ‘© absolutismo contra o pano de fundo da Antiguidade e do feudalismo, ‘como seu legitimo herdeiro. As razdes que fizeram com que uma visto ‘comparativa do Estado absolutista precedesse uma excursao através da 4 PERRY ANDERSON Antiguidade classica e do feudalismo se tornardo evidentes no decorrer ddo segundo trabalho, e serio sintetizadas em suas conclusdes, que ten- ‘am situar a especificidade da experiéncia européia como um todo den- ‘ro de um panorama internacional mais amplo, & luz das anilises dos dois volumes. necesstio, no entanto,salientar logo no inicio o cardter limi- tado e proviséro dos relatos apresentados em cada trabalho. Neles es- tio ausentes a erudigfo e a habilidade do historiador profissional. cserto hist6rico no sentido mais adequado ¢ inseparavel da pesquisa dlireta aos registosoficiais do passado — arquivos, epigrafes ¢ arqueo- Togia. Os estudos que se seguem nao reivindicam esta nobreza. Mais do aque um documento real da historia como ta, eles estio baseados sim- plesmente na leitura dos trabalhos disponiveis de historiadores moder- nos: uma questo bastante diferente. O aparato das referéncias que os acompanham é, portanto, oopesto daquele que denota um trabalho de historiografia erudita, O que tem autoridade nfo cita: as proprias fon- tes — matérias fundamentais do passado — falam através dele, O gé- nero e a extensAp das notas que apgiam 0 texto nos dois trabalhos sho apenas indicadores do nivel secundrio em que se situam. Os préprios historiadores, naturalmente, tém oportunidade de produzir trabalhos comparativos ou de sintese sem necessariamente ter sempre o contato dlireto da prova no campo a que se referem, embora seu julgamento seia provavelmente temperado pelo dominio em sua especializagao. Em Si, oesforgo pare descrever ou compreender estruturas ou épocas histé- riecas muito vastas nfo precisa de desmesuradas escusas ou justificat- ‘vas: sem ele, pesquisas locais ou especificas ttm diminuido seu proprio significado poteacial. Contudo, é verdade que nenhuma interpretagio 6 to falla come aquelas que se apéiam em conclustes sleangadas em ‘outros locais como suas unidades elamentares de prova: estas perma- nnecem sempre abertas 8 invalidagto por novas descobertas ou revisbes de alguma inves:igagdo anterior. © que geralmente é aceito por histo- rindores de uma geragio pode ser invalidado pela pesquisa da geragao seguinte, Qualquer tentativa de generalizar sobre os fundamentos de ‘opinises vigenies, por mais erudita que seja, sera ineyitavelmente pre- chria e condicional. Neste caso, os limites dos ensaios envolvidos sao ‘especialmente grandes, em razio do espaco de tempo coberto. Real- mente, quanto maior o aleance du histGria estucada, mais rectrita ten deré a ser o tratamento relativo a cada fase. Neste sentido, a comple- xxidade total c dificil do passado — que somente pode ser captada na rica tela pintade pelo historiador — permanece em grande parte fora PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AG FEUDALISMO 9 do objeto destes estudos. As anélises a seguir, tanto por questdes de ‘competéncia quanto de espago, sto diagramas rudimentares: nada -mais, Breves rascunhos para uma outra histria, elas tencionam propor clementos para diseussio, mais do que expor teses fechadas ou porme- norizadas. ‘A discussfo para a qual foram destinadas esté basicamente den- ‘ro do campo do materialismo histérico. Os objetivos de uma escolha do método de uso do marxismo nestes dois estudos esto colocados no prefécio de Linkagens do Estado Absoluista, onde elas se tornam muito claramente visiveis na estrutura formal do trabalho. Aqui nio hi necessidade de mais que afirmar os prinefpiss que governaram 0 uso dessasfonies, em ambos os estudos. As autoridades consultadas para esta pesquisa, como para qualquer investigagdo basicamente compa- rativa, so, 6 natural, extremamente diversificadas — variando muito zo carter intelectual e politico. Nenhum privilégio especial foi conce- ido a historiografia marxista como tal. Apesar das mudangas das tl- timas décadas, o imenso volume de trabalhos histéricos sérios no sé- culo XX tem sido escrito por historiadores estranhos ao marxismo, O zmateriaismo histrico nfo 6 uma ciéncia fechada, nem todos os que © praticam tm um calibre similar. Ha campos da historiografia que sto dominados pela pesquisa marxista; hé mais alguns onde as contribui- es nio-marxisas sto superiores em qualidade e quantidade as mar- xistas; € hf, talvez ainda em maior nGmero, aqueles onde nto existe intervengio alguma do marxismo. © tinio eritério permissive! para discriminagio num estudo comparativo que deva considerar trabelhos provenientes de tio diversos horizontes 6 sua intrinseca solidea e inte- ligéncia. A méxima consciéncia e respeito pelo conhecimento de histo- riadores fora dos limites do marxismo no & compativel com a busca rigorosa de uma investigagio histrica marxista: € sua condigdo. Inver- samente, 0s prOprios Marx e Engels nunca podem ser tomados simples- mente ao pé da letra: os erros de seus escritos no passado nfo devem ser desconsiderados ou ignoradas, ¢ sim identificados e eriticados. Faz®-1o nto 6 abandonar o materialismo histérico, mas antes aproximar-se dele, Nao hé lugar para fidefsmo no conhecimento racional, que & ne- cessariamente cumulativo; ¢ a grandeza de fundadores de novas cign- cias jamais foi provada contra juizos erréneos ou mitos, mas, isto sim, tem sido prejudicada por estes. Tomar '‘liberdades” com a assinatura dle Marx nesse sentido é simplesmente penetrar na liberdade do mar- AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a Anthony Barnett, Robert Browning, Ju- dith Herrin, Victor Kiernan, Tom Nairn, Brian Pearce e Gareth Sted- rnrau Joues por seus cumeutirios eritieus sobre este ensalo ou sua se- 4qiéncia. Dada z natureza de ambos, é mais do que convencionalmente necessario absolé-los de qualquer responsabilidade pelos erros, de fato ‘ou de interpretaylio, que estes contenham. PRIMEIRA PARTE 1. Antiguidade Classica A delimitagio do Leste ¢ do Ocidente na Europa hé muito tem sido uma delimitagdo convencional para os historiadores. Ela existe, na verdade, desde Leopold Ranke, o fundador da historiografia positiva moderna. A pedra angular do primeito trabalho maior de Ranke, es- ctito em 1824, era um “esbogo da unidade das nagées latinas e germa- nicas", no qual ele tragava uma linha através do continente excluindo 1 eslavos do Leste do destino comum das grandes nagdes do Ocidente {que vieram a ser o assunto de seu livro. "Nao se pode sustentar que cesses povos também pertengam d unidade de nossas nagBes; seus cos- ‘umes e sua constituigao sempre os separaram. Naquela época elas no exerciam influéncia independente, mas simplesmente apareciam subor- dinadas ou antag6nicas: eram tocadas aqui ali, por assim dizer, pelas ‘marés dos movimentos gerais da Histéria.” "Era 0 Ocidente sozinho que participava das migragdes barbaras, das cruzadas medievais ¢ das ‘conquistas coloniais modernas — para Ranke, as drei grosse Atemslige dieses unvergleichlichen Vereins, “as txés grandes inspiragies dessa in- ‘compardvel associagdo".? Poucos anos mais tarde, Hegel abservou que eslavos até certo ponto foram retirados da esfera da Raztio ociden- tal’, jé que “algumas vezes, como uma guarda avangada — uma nacio- nnalidade intermediéria —, cles tomaram parte na luta entre a Curopa (1) Leopold von Ranke, Geschichte der Romanishon und Germanischon Volker om 1494 bis 1314 Lipo, BRS, p. XIX. (2) Ranke op ty pO 16 PERRY ANDERSON cristd ea Asia ndo-crista", Mas a substincia de sua visto da histéria da regido leste do continente era bastante similar a de Ranke. “Todavia, todo este grupo de povos fiea excluido de nossa consideracto, porque até agora ele nio apareceu como um elemento independente nas séries de fases que a Razio assumiu no mundo.” Um século e meio depois, historiadores contemporneos normalmente evitam tais maneiras de falar, As categorias éinicas deram lugar aos termos geogrificos: mas a propria distingio e sua origem na Idade das Trevas permanecem vir- tualmente inaleradas, Em outras palavras, sua aplicagio comeca com © surgimento do feudalismo, na época histérica em que 0 relaciona- ‘mento cléssico de regides dentro do Império Romano — o Leste avan- {gado e 0 Ocidente atrasado — comega a ser decididamente invertido, Esta mudanca de sinais pode ser observada em praticamente todas as anilises da transigdo da Antiguidade para a Idade Média. Assim, as cexplicagses sugeridas para a queda do proprio Império no mais recente © monumental estudo sobre o declinio da Antiguidade, Later Roman Empire, de Jones, gira constantemente em torno das diferengas estru- turais entre 0 Ocidente ¢ o Oriente, Este, com suas intimeras e ricas cidades, economia desenvolvida, um campesinato de pequenas proprie- dades, relativa unidade civiea e distfncia goografica da violéncia dos ataques barbaros, sobreviveu; o Ocidente, com sua populagao mais es- parsa e cidades mais fracas, aristocracia grandiosa e qampesinato ex- plorado em arrendamentos, anarquia politica e vulnerabilidade estr tégica as invasées germfnicas, naufragou.*O fim da Antiguidade foi ‘entio selado pelas conquistas frabes, que dividiram as duas margens do Mediterraneo. O Império Oriental se tornou Bizdneio, um sistema social e politico distinto do resto do continente europeu. Era neste novo espago, que emergia da Idade das Trevas, que a polaridade entre 0 Oriente ¢ 0 Ocidente iria mudar sua conotagio. Bloch pronunciou 0 julgamento autorizado de que “do século VII em diante houve um gru- po de sociedades nitidamente demareado na Europa Ocidental e Cen. tral, cujos elementos, embora diversos, estavam solidamente cimentados por profundas semelhancas ¢ pelo constante relacionamento”. Foi esta ito que deu origem & Europa medieval: “A economia européia na Idade Média — no sentido em que este adjetivo, emprestado da velha ‘nomenclatura das ‘cinco partes do mundo’, pode ser usado para desig- nar uma realidade humana yerdadeira —, que a do bloco latino (3) G.W.F Hegel, The Philosophy af History, Londres, 1878, p. 363, (4) A. H.M, Joes, The Later Komen Empire, 282-602, Oxiord, 1964, vl I, pp. 1026-1088 PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AC FEUDALISM. 0 germanico, flanqueado por umas poucas ilhotas eélticas e franjas esla- vas, gradualmente conquistou uma cultura comum... Assim compreet- ida, assim delimitada, a Europa é uma cviagio da nascente Idade Média”,* Bloch expressamente excluta as segibes que sao hoje a Eu- ropa Oriental desta definigdo social do continente: “As grandes por- ‘96es do Leste eslavo de maneira alguma pertencem a ela... & impossivel considerar suas condigdes econdmicas e as de seus vizinhos ocidentais juntas no mesmo objeto de estudo cientifico. Sua estrutura social total- ‘mente diferente e uma linha muito especial de desenvolvimento prot bem completamente tal confusdo: cometé-la seria o mesmo que mistu- rar a Europa ¢ 0s paises europeizados com @ China ou a Pérsia num estudo econdmico do séeulo XIX".° Seus sucessores respeitaram essas injungdes. A formagio da Europa e a germinagio do feudalismo tém sido geralmente confinadas @ Histéria da metade ocidental do conti: nente, excluindo da anélise 2 metade orientel. O excelente estudo de Duby sobre a economia feudal, que parte de séeulo IX, jé se intitula Rural Economy and Country Life in the Mediaeval West.’ As formas culturais e politicas criadas pelo feudalismo nesse mesmo perfodo — a “revolugo secreta destes séculos”® — sto a foco principal de The Making of the Middle Ages, de Southern. 4 generalidade do titulo ‘esconde uma elipse, identificanda implicitamente um tempo especifieo ‘em determinado espaco; a primeira frase diz: “A iormagio da Europa Ocidental do final do século X ao principio do século XIII & 0 objeto deste livro".* Aqui, o mundo medieval se torna Europa Ocidental tout court. A distingdo entre Oriente e Ocidente reflete-se, assim, na histo-y/ riografia moderna diretamente a partir do inicio da época pés-classica. Suas origens so efetivamente contemporineas as do proprio feuda- lismo. Qualquer estudo maraista do desenvolvimento histbrico diferen- cial dentro do continente deve considerar inicialmente a matriz geval do {feudalismo europen. Somente quando essa matriz é estabelecida, € que seré possivel ver quanto e de que maneira uma histéria divergente pode ser tragada em suas regibes ocidental e oriental. () Mare Bloch, Méanges Historique, Paris, 1963, vl 1. 123-124. (6) Bloch ep ct. tos. ©) Georges Duby, L'Beonomie Rural et fo Vie dis Campagnes dans 'Occdent ‘Mirai, Pars, 1962; tradugdo ingles, Landes, 1968, (© R. W. Southern, The Making of the Middle Ages, Londres, 1953, p. 13, (©) Southera,op et, pt O modo de producio escravo smo fem sido objeto de muitos estudos inspi rados pelo materialismo historico, desde que Marx the dedicou eapitu- los eélebres de O Capital. Em contraste, a génese do feudalismo per- ‘maneceu em grande parte sem estudos dentro da mesma tradig&o: como um diferenciado tipo de transiedo para um novo inodo de pro- dugio, jamais foi integrada ao corpo geral da teoria marxista, Mas, ‘como veremos, sia importincia em relagao ao padrao global da Hist6. ria talvez seja apenas pouco menor do que a da transigao para o capi- talismo. O solene julgamento de Gibbon sobre a queda de Roma ¢ 0 final ds Antiguidade emerge hoje paradoxalmente, e talvez pela pri- ‘meira ver, em toda a sua verdade: “‘uma revolugio que serd sempre Tembrada, e que ainda é sentida pelas nagdes da Terra”. Em oposigio a0 carater “cumulativo” do advento de capitalismo, a génese do feuda- lismo na Buropa derivou de um colapso “‘catastréfico” e convergente de dois modos de produgao distintos ¢ anteriores, ¢ a recombinacdo de seus elementos desintegrados libero a adequade sintese feudal, que, (CD) The Histor of the Decline and Fall ofthe Roman Empire, vo. 1, 1856 (ed. Bun). p. 1. Gibson arrependeuce dessa fase nama nota manvseria pata 0 proeto de uma reviso de seu lito, restingindo sua referencia aos paises da Eutooa apense © ‘io aes do mundo, "Terlo a Asia ea Alves, do Japho ao Marroos, algun seimento 0 meméris do Impéio Romano?” perguna ele (op. cit, p. xxx). Ele escreveu odo demas pas ver come o resto do mundo ita cealmente "sentra impacto da Europa, © ‘com st Uldmas consegdéncias da “rovolueio” que teystrous nein 0 Temoto apis nemo adjacente Marocoseslariam imunes& Histna qu la inaaguro PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 0 Portanto, sempre manteve um caréter hibrido. Os predecessores do modo feudal de produgo foram naturalmente 0 modo de produgio eseravo em decomposigao, sobre cujos fundamentos todo o enorme edificio do Império Romano fora construido outrora, e os primitivos modos de produgio distenciidos e deformados dos invasores german es, que sobreviveram em suas novas pattias, depois das conquistas bar- baras. Esses dois mundos radicalmente distintos haviam passado por ‘uma lente desintegrago e uma uti interpenetrago nos dltimos sécu- los da Antiguidade. Para saber como isso aconteveu, & preciso othar para trés, para a ‘matriz original de toda a civitizagao do munde clissico. A Antiguidade greco-romana sempre constituiu um universo centralizado em cidades, Oesplendor ¢ a solider da antiga polis helénica e da posterior Rept. blica romana, que ofuscaram tantos perfodos subseqiientes, traduziamn um nivel de organizagdo ¢ cultura urbanas que jamais seria igualado em outro milénio. A filosofia, a cincia, a poesia, a historia, a arqui tetura, a escultura; o direto, a administragao, a economia, os impos. {os;.0 voto, o debate, o reerutamento — tudo isso chegou a nivcis de sofisticagda ¢ forea inigualéyeis, Ao mesmo tempo, esse friso de civil zagHo citadina teve sempre algo do efeito de uma fachada rrompe l'oeil sobre su posteridade, Por trés de toda essa organizacio e cultura no hhiuma economia urbana de alguma forma equiparavel a elas: a0 con. tririo, a riqueza material que sustentava sua vitalidade intel cfviea era extraica de forma esmagadora do campo, O mando clissico cra inalterdvel e macigamente rural em suas proporedes quantitativas bisicas. A agricultura representou airavés de saa ist6ria 0 setor intel Famente.dominante da produgdo, fomecendo invariavelmente as pri cipais fortunas das préprias cidades. As cidades greco-romanas nunca foram predominantemente comunidades de artifices, mereadores ou negociantes: elas eram, em sua origem e principio, conglomerados ur- banos de proprietérios de terras. Cada agrupamento municipal, fosse dda democrética Atenas, da Esparta oligérquica ou da Roma senatorial, era essencialmente domninado por proprietérics agrérios. Sua renda provinha do milho, do azeite e do vinho — os trés grandes produtos bisieos do Mundo Antigo, vindos de terras e fazendss fora do perime- {ro fisico da prépria cidade. Dentro dela, as manfaturas permaneciam Poueas e rudimentares: 0 géncro das mercadorias urbanas normais hhunea ia muito além dos téxteis, cerdmica, mobilia e os utensilios de vidro. A técnica era simples, a demanda, limitada e o transporte era ‘exorbitantemente custoso. O resultado era que as manufaturas da An- 20 PERRY ANDERSON tiguidade se desenvolviam tipicamente no por um aumento da concen- ‘tragio, como em épocas posteriores, mas pela descentralizagao e dis- persio, j& quea distancia ditava mais os custos relativos da produglo do que & diviséo do trabalho. Uma idéia do peso comparativo das cco- ‘nomias urbans e rural do mundo classico é fornecida pelos rendimen- tos fiscais respectivos pagos por todos no Império Romano no séeulo IV a.C., quando 0 coméreio da cidade ficou sujcito finalmente a uma arrecadagao imperial pela primeira vez, através da collatio lustralis de Constantino: arenda deste imposto nas cidades nunca subiu a mais de S por cento da taxa imposta as terras.? Certamente, a distribuigao estatistica da produgo nos dois seto- res nio era bastante para diminuir o significado econiimico das cidades da Antiguidade. Para um mundo homogeneamente agricola, a renda bruta do coméreio urbano podia ser muito pequena, mas a superiori- dade liquida qve ela poderia proporcionar a uma dada economia agri ria sobre qualquer outra poderia ainda ser decisiva. A preeondigio desta feigdo diferenciada da civilizagio classica era seu carter cos- teiro® A Antiguidade greco-romana era essencialménte mediter- ranea em sua mais profunda estrutura. O coméreio interlocal que a reunia s6 podia se fazer por agua: o transporte maritimo era o Gnico ‘meio vidvel para a troca de mereadorias a médias ou longas distancias, A colossal impertancia do mar para o comércio pode ser avaliada pelo simples fato de que na época de Diocleciano era mais barato transpor- tar otrigo da Siria para a Espanha — de um extremo a outro do Medi- terrfineo — por embareagdes do que levar por 120 quildmetros por via terrestre.* Nao é acidental portanto que a zona do Egen — um labirinto de ihas, baias ¢ promontérios — tenha sido o primeiro bergo da cx dade-Estado: que Atenas, seu maior exemplo, tenha tido no transporte ‘maritimo os fundamentos de suas fortunas comerciais; que, quando a colonizagio grega se espathou pelo Oriente Proximo no perfodo helé- nico, 0 porto de Alexandria se tenha tornado a maior cidade do Egito, ‘primeira capital maritima em sua historia; e que Roma, por sua ver, (2) A. H. M.Jones, The Later Roman Empire, vol. I 9, 465, Era.o impos paso eles negtitore, cu sea. quase todos os que se dedieavars& produto comercial de ‘qualquer expécie na cidades, tanto artesion quanto mercadores, Apesar de seus min ‘Mos rtores, ele provou ser intensamenteeprimentee nao-popular para popula scbana, io dgiLena propris economia a evga. (3) Max Webe fio primeio estudiogn a dar toda Enfase a este fato Funan ta, em seus dois randesestudosesqueldes, Agrorverkilinise im Altertume Die So: silen Grinde des Uterganss der Antiken Kultur. Ver GesammelteAufsate sur Sect: und Winschafsgerchohte, Tobingen, 1924, pp. 4e segs. 293 sex. (4) Jones, The Later Roman Einpire Ip. 41-882. PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO a situada as margens do Tibre, se tena tomado uma metropole costeirs, A agua era 0 meio insubsiitufvel da comunieagdo e do coméreio que tornava possivelo crescimento urbano de ura sofisticagdo e uma con: centragdo bem distantes do interior rural quchavia por tris. O mar era © condutor do britho duyidoso da Antiguidade. A combinagdo espe cifiea de cidade e campo que definia o mundo léssico, em diltima instan- cia, s6 era operacional porque havia um lago em seu centro. © Medi. terréneo é 0 énico grande mar interior em teda a superficie da Terra: 6 ele oferecia a velocidade do transporte maritimo com protegie terrestre contra os fortes ventos out ondas em zona geografica ampla A excepcional posigto da Antiguidade classica dentro da Historia univer sal no pode ser isolada deste privilégiofisco. Em outras palavras, o Mediterrineo proporcionou 0 adequado cenario geogrifico para a civilizagio antiga. Seu contetido historico © sua novidade, no entanto, estdo na fundamentagio social do relaciona: mento entre cidade e campo dentro dela, O modo de produgio escravo foi uma invengio decisiva do mundo greco-romano, que constituiu a base definitive tanto para suas realizagées quanto para seu eclipse. A riginalidade deste modo de produgio deve ser sublinhada. A escravi- «dao em si tinha existido sob varias formas através da Antiguidade no Oriente Préximo (como aconteceria mais tare em outros lugares na Asia); mas ela sempre fora uma condigio juridieamente impura — to- ‘mando com freqUéncia a forma de servidio por débitos ou de trabalho penal — entre outros tipos mistos de servidao, formando simplesmente ‘uma categoria muito baixa num continuum amorfo de dependénciae fal {a de liberdade que se estendia bem acima na escala social Também hhunea foi o tipo predominante de apropriagao do excedente nas mo- narquias pré-helénicas: era um fenémeno residual que existia mar- gem da principal forga de trabalho rural. Os impérios Sumério, Babi- Jbnico, Asstio ¢ Eefpeio — Estados ribeirinhas construidos sobre uma Agricultura irtigada e intensiva que contrastava com as culturas sim- Ples de solo seco do futuro mundo mediterrineo — no eram econo. mias de base escrava, e seus sistemas juridicos nfo tinham concepgo nitida da propriedade de bens moveis. Foram as cidades-Estado gregas ue primeiro tornaram a escravidio absoluta na forma e dominante na ‘extensio, transformando-a assim de sistema auxiliar em nm modo sis: femfitico de produgao. © mundo helénico classic, é claro, jamais re. Pouson exclusivamente no uso do trabalho eseravo, Os caniponeses li (5) S41, Finley, "Between Slavery and Freedom, Comparative Studies in So: ewyand History. V1, 1983-1968, pp, 237238 = OO n PERRY ANDERSON Yes, of rendetos dependentes ¢os artesios urbanos sempre coexisi- Fam com os escravos, em variadas combinagdes, nas diferentes cidades. Estado da Gricia. Sev préprio desenvolvimento externo ou interno, além do mais, podiaalterar muito as proporgdes entre escravos e ta: bathadores livres, de um século para outro: cada formagio social con. creta€sempreuma combinacio especifica de diferentes modos de pro. do qucestmatvs mal as oo als baa: Mas das moder ‘as Hits da Antguidade lo prejladae pel austci basca de nformagtes en fri soe tumanhn das populates ¢ das class sri Tones pe cotptar & roprgto dos esernos em flag aor sdadton no stele IV, quando ¢ poplegse — PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 2 cravos em Quios, Egina ov Corinto foi em varias ocasibes provavel- mente maior; a populaglo hilota sempre ukrapassou bastante a dos cidadios em Esparta. No século IV a.C., Aristteles podia observar ‘com naturalidade que “os Estados tendem a conter escravos em grande nimero”, enquanto Xenofonte elaborou um plano para restaurar as fortunas de Atenas, pelo qual “o Estado possuria escravos pablicos até due houvessetrés para cada cidado ateniense”.4 Na Grévia clssica, os eseravos foram, assim, empregados pela prineira ver na ganufatura, na indistria e na agriculture, além da escaia doméstica Ao mesmo tempo, enquanto o uso da escravidio se tornava generalizado, sua natureza, de mancira correspondente, se tornava absoluta: ela jf no era mais uma forma de servidio relativa entre muitas, no decorrer de uma continuidade gradual, e sim uma condigdo polarizada da perda completa da liberdade, justaposta a uma nova liberdade sem impedi- rmentos:Pois foi exatamente a formagao de uma subpopulagao escrava nitidamente delimitada o que, inversamente, elevou a cidadania greg a alturas até entio desconhecidas de lberdade juridica eonsciente. A eseravidao ¢ a liberdade helénicas eram indivisiveis: uma era a condi ‘io estrutural da outra, num sistema difgico sem precedente ou equi Valente nas hierarquias sociais dos impérios do Oriente Proximo, que também ignoravam tanto @ nogio de livre-idadania quanto a de pro- priedade seril? Esta profunda mudanea jurkica foi em sio correlato Social e ideolégico do “milagre” econdmico forjado pelo advento da modo de-produgao escrava ‘A civilizagao da Antiguidade clissica representou, como ja vi-+ mos, @ supremacia andmala da eidade sobre 9 campo numa economia esmagadoramente rural: uma antitese do mundo feudal primitive que Ihe sucedew. A condigto para a possibilidade desta grandiosidade me- tropolitana na auséncia de uma industria municipal era a existéneia do trabalho escravo no campo: somente ela poderialiberar uma classe de proprictrios de terra tio radicalmente de suas raizes rurais de maneira 1A, com base nas importagdes de Demooracy, Oxord, 1987, pp. 76-99. Foley, por outro a fe poderia estarem tome de 30s 4:1 em poriodes de peo, tanto no séeulo V como IV: "Was Gresk Civilization Basod on Slave Labour?” Horie, VIM, 1989, pp. 58:59. 8 fualscompreensiel, apesardeincompeta, monogralia edema sobre a esravidi anti The lave Systems 07 Urek ana Kaman Anau), oe W. L. Westermann, Feds, 8, chega a algo aproximado deste mesmo némeo aesito por Andrewes& Finley 0 il servos no nisi da Guerra do Pelcpone=. ) Arstteles, Potie, VI, ie, 4: Xenotonte, Melos e Métodas, 17, (0) Westermann, The Slave S)soms of Greek and Roman Antigally, pp. 42-3 ley, "tween Savery and Freedom, pp. 236239. u PERRY ANDERSON ‘a poder ser transmutada em uma cidadania essencialmente urbana que ainda assim continuava tirando suas riquezas do solo. Aristételes ex- pressou a resub-ante ideologia social da Grécia classica tardia com esta despreocupada abservagio: “Aqueles que cultivam a terra devem ideal- ‘mente ser eseravos, nem todos recrutadas de um s6 poyo, nem ardentes ro temperamento (de modo gue sejam laboriosos no trabalho e imunes 4 rebelifo), ou, nfo tio idealmente, servos barbaros de semelhante ea- iter” Era tipico do modo de produgio escravo plenamente desenvol- vido no ¢ampo romano que até fungées de administragio fossem dele- sgadas a escravos supervisores e feitores, que punham as turmas escra- ‘vas para trabalhar nas terras.}-O estado escravo, ao contririo da her- dade feudal, permitia uma disjungio permanente entre a residéncia eo rendimento; o produto excedente que proporcionava as fortunas da clas- se possuidora padia ser extraido sem a sua presenga na terra. A conexao ‘que unia oprodutor rural imediato eo apropriador urbano desua produ- ‘glo nao era um ago habitual, endo era mediada pela localizagao da pré- pria terra (coma ocorreu mais tarde na servidao adscritiva). Ao contri tio, era caracteristicamente o ato comercial ¢ universal da compra de ‘mercadorias realizada nas cidades, onde 0 comércio escravo tinha seus préprios mercados. O trabalho escravo da Antiguidade cléssica, por- tanto, incorporava dois atributos contraditérios em cuja unidade esti 0 segredo da patadoxal preeocidade urbana do mundo greco-romano. Por um lado, a escravidio representava a mais radical degradagao rural imaginivel do trabalho — a conversdo de seres humanos em meios inertes de producdo, por sua privagdo de todo direito social e sua legal assimilagdo as bestas de carga: na teoria romana, o escravo da agri- cultura era designado como sendo um instrumentum voeale, um grau ima do gado, que constituia um instrumentum semi vocale, e dois ima do implemento, que era um instrumentum mutum. Por outro lado, a eseravidio era simultaneamente a mais drastica comercializa- glo urbana corcebivel de trabalho: a total reduedo da individualidade do trabalhador a um objeto padronizado de compra e venda, nos mer~ cados metropolitanos de coméreio de mereadorias. A destinagio da (40) Police, VI x9. (LD A propria wbiqdidade do trabatho eseravo a auge do Principado e da Reps- ‘Stes rexponsives poofisonais ou administra, que por sua ver Taciitars 4 ber- lagto ea subseqienteintgragto do ihoe ds homens livre capacitados & lase dos ‘adios. Ese proceso no era tanto um palativo humanitirio da eeravidto elisicn, ‘as outro indice de abstongio radical da clase gorernante romana de qualquer forma de ‘abalbo prodtivo. mesmo do po exes. Cee PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISM 2B maior parte dos escravos na Antiguidade clssca era o trabalho agrério (isto nfo aconteeia sempre assim em todos os lugares; mas era este 0 caso, no eonjunto): sua reuniao, aleeagao e despacho eram normal- mente efetuados a partir dos mereados das cidades, onde muitos dees, claro, eram empregados também. Assim, a escravidio era o_vinevlo! «qe unia cidade © campo, para o desmedido beneficio da polis. Ela tanto mantinha a apricultura cativa que permitia o dramatico distan- ciamento de uma classe dominante urbana de suas origens rorais, quanto promovia ocomérciointerurbano que era o complemento desta asricultura no Mediterraneo. Os escravos, entre outras vantagens, fram um bem eminentemente mével num mundo onde os transtornos do transporte condicionavam a estrutura de ‘oda a economia.” Eles podiam ser deslocados sem dificuldade de uma regito para outra; po- diam ser treinados em muitas diferentes espeialzagSes: em épocas de abundancia de estoque,além disso, eles seriam para manter os eustos baixos onde trabalhadores contratados ou artifice estivessem traba- nando, por consttuirem uma fontealtemativa de trabalho. A riqueza 0 conforto da classe urbana proprietiria da Antiguidade cissica — fcima de tudo, a de Atenas ¢ Roma em seu apogew — repousavam sobre o amplo excedente que rendia a difusa presenga desse sistema de trabalho, que nfo deixava nenhur outro intact. O preso a pagar por esse esquema brutal ¢ Iuerativo era, con- tudo, alto. As rlagbes excravagistas de produgto determinavam alguns limites insuperéveis para as antigas forgas de produgdo na época clas- sica, Acimarde tudo, els tenderam a paralisara produtividade na agri- cultura e na indistria. Houve, naturalmente, alguns methoramentos ‘téenicos na economia da Antiguidade clissica, Nenhum modo de pro- dhugto esta totalmente despravido de progres material em sua fase discenidente, e o modo de produg&o escravo em seus primérdios regis- {vou alguns avangos importantes no aparethamento econémico desen- Yolvido no areabougo de sua nova divisto social do trabalho. Entre eles podem contar-se a disseminagao de mais lueratvas eulturas de vinho e furite, a introdugio de moinhos rotativs para cereas e a melhoria na {qualidade do pio, Foram eriadas as prensas de parafuso, o vidro so- pro se desonvolveu ¢ os sistemas de produgo de calor refinaram-se ‘“ combinagio de culturas, 0 conhecimento betiinico e a drenagem do {ampo provaveimente também progredizam.® Nao howve, portanto, (12) Weber, Aprarerhinisse im Altertum, pp-5'. (1) VorespectalmenteF. Kishle, Slavenarbir nd Tachnischor Fortschr Im imichon Reich, Wiesbaden, 1569, pp. 12414; 1. A. Mert, Grail and Flour in 2% PERRY ANDERSON uma parada téenica no mundo cléssico. Ao mesmo tempo, aio ocor- eu um enxame de invengdes que impulsionasse a economia antiga para forgas de produgo qualitativamente novas. Nada & mais impres- sionante, em qualquer comparacio retrospectiva, do que a estagnagao ‘técnica global da Antiguidade."* Basta contrastar 0 registro de seus oito séculos de existéncia — da aseensio de Atenas 4 queda de Roma — com a extensio equivalenie do modo de produgio feudal que the sucedeu, para perceber a diferenga entre uma economia relativa- ‘mente estiticae uma dinamica. Mais dramético ainda, naturalmente, era 0 contraste dentro do proprio mundo elissico entre sua vitalidade cultural e superestrutural e seu embotamento infra-estrutural: a teeno- logia manual da Antiguidade era exigua ¢ primitiva nao apenas pelos adrées exterros de uma Histéria posterior, mas sobretudo pela me- dida de seu proprio firmamento intelectual — o qual, em muitos as- pectos criticos, sempre permaneceu bem mais alto que o da Idade Mé- dia ainda por chegar. Hé pouca davida de quo a estrutura da economia escrava é que foi fundamentalmente responsavel por essa extraordind- ria desproporgio, Aristételes, para as eras posteriores o maior ¢ mais epresentativo pensador da Antiguidade, concisamente resumiu o prin- cipio social da época em seu aforismo: “O melhor Estado nao faré de um trabathader manual um eidadio, pois a massa de (rabalhadores ‘manuais é hoje eserava ou estrangeira”.* Um tal Estado representava ‘a norma ideal do modo de produeto escravo, nunca realizado em al- ‘guma formagao social concreta do Mundo Antigo. Mas sua légica es- ‘eve sempre intrinsecamente presente na natureza das economias clés- * Uma vez tornando-se o trabalho manual profundamente asso- ciado & perda da liberdade, no havia uma légica social livre para a imaginacio. Os efeitos sufocantes da escravidio sobre a téeniea no ‘eram uma simples fungao da baixa média da produtividade do trabalho escravo em si, 9u mesmo go volume de seu uso: afetavam sutilmente todas as formas de trabalho. Marx tentou expressar o tipo de aco que exerciam mume famosa, sendo eritica, f6rmula te6rica: “Em todas as ‘Gasca Antiquity Oxford, 1988; K. D. White, Roman Farming, Londres, 1970, pp. 123-124, 447-172, 188-191, 360-261, 452 (4) © problema feral €colocado enersicamente comn some, pr Finley, “Technical Imnovation and Beonomie Prog inthe Ancient World”, Economic History Review, XVII, n? 1, 1885, pp. 29-1. Para ¢ especfico arquivo histrice Jo Impero Romano, yer. W. Walbank, The Awful Revelation, Lverpodl, 1969, pp, 4-41, 46:47, 06-110, (03) Politic, I. v2 PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISM 2 formas de sociedad existe uma determinada >rodugho e suas relacies, ue atribuem a todas as outras produgées e suas relagbes seu aleance ¢ sua influéncia. E uma iluminacio generalizada na qual todas as outras cores esto mergulhadas © que modifica suas tonalidades especifica Bum éter especifico.que-define a gravidade especifica de tudo que se encontra dentro dele”.%* Os escravos da agricultura notoriamenie ti ‘nham pouco incentivo para executar suas tarefas econémicas compe- tente e conseienciosamente uma ver. relaxada a vigiléneia; seu emprego otimizado era em vinhedos ou olivais compactos, Por outro lado, mui- tos artifices e alguns plantadores entre os eseravos eram na maioria das vores notavelmente habilidosos, dentro dos ‘imites das téenicas que prevaleciam. O retraimento estrutural da escravidio na tecnologia, as- sim, nfo assentava tanto numa causalidade intra-econémica direta, ‘embora isto fosse importante em si, quanto na ideologia social mediata que envolvia a totalidade do trabalho manual no mundo cléssict taminando o trabalho contratado e mesmo 0 independente com o es-_, tigma do aviltamento.” © trabalho escravo em geral nao era menos“ Produtivo do que o livre, embora, na verdade, em certos campos isso ‘corresse; mas estabeleceu o ritmo de ambos, de forma que nenhuma arande divergéncia jamais se desenvolveu entre os dois num espago eco- nomico que excluia a aplicaggo da cultura & técnica para invengdes. © divércio entre o trabatho material e a esfera da liberdade era tao rigoroso que os gregos no tinham uma palayra em sua lingua nem ‘mesmo para expressar o conceito de trabalho, tanto eomo func&e so- lal, quanto como conduta pessoal. O trabalho na agricultura e o tra- balho artesanal eram supostas “adaptagdes” é natureza, ¢ nao trans- formagoes dela; eram formas de servigo. Também Plato implicita.»! mente exeluia os artesios da polis: para ele, “o trabalho permanece alhcio a qualquer valor humano e em certos aspeetos parece mesino a antitese do que seja essencial ao homem”."* A téenica, como uma ins- (16) Grundrisse der Krk der Poittchen Okonome, Bern, 1983, p.27. (1) Finley nota que palavra green pera, normalmente oposta a pousas como ‘Pobrera” para “riqueza, na verdade tinha o-mals anplo siguficde peorative de vidio” ov “sompusto 20 trabalho penoso”, e podiasbarcar mesmo petsperes ‘eqvencspropretrios, eno trabalho eala soba! mesma sombra cultura. M1, ran, The Ancient Fonomy, Londres, 1973, 9.41. P, Vernant, Mths ot Ponsie ches las Grae, Basi, 968, p- 192, 197199, nas de Vernant, “Proméée et la Fonction Technique’ e “Travail ¢ Nature dans a Grése Aacienne”, propercionam uinaanfe sul das diferenga entre ‘let 6 prass, ¢ das reagdes do cultvador, do artifice edo que empresana Shiro om «polis, Alexandre Koyrétentou uma vee argument que a estagnagto tenia 6a Hani gropa no era devia &presenga da esrevidio ai & desvaloviayto do traba 2% PERRY ANDERSON ‘rumentalizasto progressiva e premeditada do mundo natural pelo ho- ‘mem, era incompattvel com a assimilago em grande escala do homem ‘a0 mundo natural como seus “instrumentos falantes”. A produtividade cra fixada pea rotina permanente do instrumentum vocalis, que des- valorizava todo 0 trabalho pela exclusto de qualquer preocupacio com estratagemas para poupé-lo, A via tiplea para a expansao na Antigui- dade, para qualquer estado, era assim sempre um eaminho “Lateral” 4 conquista geogrifiea — e nilo o avango econdmico. A eivilizagao clissia foi, por conseguinte, de cardterj smente colonial; a ci- dade-Estado celular invariavelmente ge reproduzia, nas fases de ascen- fo, pelo povoamento e pela guerra.!O saque, 7 «ramos objetos centrais do engrandecimento, tanto meios como fina- lidades para a expansio colonial.|O poder militar estava mais intima ‘mente ligado ao erescimento econéihico do que talvez em qualquer ou- tro modo de produgdo, antes ou depois, porque a principal fonte do trabalho escravo eram normalmente prisioneiros de guerra, enquanto 0 aumento das :ropas urbanas livres para a guerra dependia da manu- tengdo da producao doméstica por escravos; os campos de batalha for- neciam a mic-de-obra para os campos de cereais ¢ vice-versa — os trabathadores capturados permitiam a eriagio de exércitos de cida- dos. Tr8s grandes ciclos da expansao imperial podem ser tragados na Antiguidade clissica, cujas sucessivas feigdes variadas estruturaraim todo 0 padirio do mundo greco-romano: 0 ateniense, 0 macedénice eo romano, Cada um representow uma determinada solugio para os pro- Dlemas politicos e organizacionais das conquistas de ultramar, que era integrada e ulrapassada pela préxima, sem que as bases subjacentes dde uma civlizagao urbana comum fossem alguma vez transgredidas. tho, mas & ausénca da Fisica, imposibiltads pela incapacidade de eplicar a medigdo Imatemiiea ao mundo teresa: “Du Monge de TA Pet Ps Aintree tn Prt sion”, Crigue, sdembro de 1948, pp. 806808. Fazendo ito, explictamente espe ‘aya critaruma exslanagto socolien do febmeno, Mas, come ee proprio implica, ‘iene admit em outro lugar, [dade Média também nao eacheca\« Pisce, embers tenha produzide una economia dinmica: no flo ineciro a eiénla, mas ocuro dat ‘elages de produgio que imprimiuodetin da tenia. u A Grécia (© surgimento das cidades-Estado helénicas na regio egéia é an- terior a verdadeira época eléssica e apenas seus esbogos podem ser vis- Iumbrados em fontes nfo-escritas disponiveis. Depois do colapso da civilizagio micéniea por volta de 1200 a.C., a Grécia experimentou uma prolongada Idade das Trevas na qual desapareceu a escrita e a Vida econdmica e politica regrediu a um estigio doméstico rudimentar: ‘0 mundo rural eprimitivo retratado nos épicas homéricos. Foi na época soguinte da Gréeia arcaica, de 800 « 500 2.C., que o modelo urbano da civilizagio clissica Tentamente se eristalizou. Algum tempo antes do jvento dos registros historicos, monarquias locais foram derrubadas ‘por aristocracias tribaise cidades foram fundadas ou desenvolvidas sob dominio destas nobrezas, A lei aristocritica na Grécia arcaica coin- idiu com o reaparecimento do comércio a longa distncia (principal- ‘monte com a Siria eo Oriente), os prentincios da cunhagem (inventada ‘a Lidia no século Vil) e a eriagao da escrita alfabética (derivada da fsorita fenicia). A urbanizagao prosseguia com estabilidade, derra- ‘mando-se além-mar pelo Mediterrineo e Euxino, até que so final do perfodo de colonizagio em meados do século VI ja havia umas 1500 c- dads gregas nas terras helénicas fora delas — nenhuma virtualmente ‘mals de 40 quilometros para dentro da linha da costa, Estas cidades ‘am exsencialmente-pontos de concentragio de agricultores e propre {rion de terras: na cidade pequena tipica desta época,_os cultivadores ‘lontro das murathas da cidade e safam. para trabalhar no campo manhiis, retomnando & notte — emboza o territbrio das cidades 0 ,_ TTT 0 PERRY ANDERSON sempre incluisse um perfmetro agrério com toda @ populagio rural ali instalada. A organizasto social destas cidades ainda refletia muito do ppassado tribal de onde haviam emergido: sua estrutura interna era arti culada por unidades hereditérias cuja nomenclatura de parentesco te presentava uma tradusao urbana das divises rurais tradicionais. Por. tanto, os habitantes da cidade eram normalmente organizados — pela jordem descencente de tamanho e inclusio — em tribos, fratrias e clas, sendo os “elas” exclusivamente grupos aristocrétieos e as “fra: ‘tias” talvezoriginalmente sua freguesia popular.' Pouco se sabe sobre 35 consttuigdes politcas formals das cidades gregas na era arcaica, jd 4que elas ndo sobreviveram a prépria época eldssiea — ao eontririo de Roma em semelhante estagio de desenvolvimento —, mas é evidente ue eram baseadas na lei privlegiada de uma nobreza hereditéria sobre © esto da populagdo urbana, ctipicamente exercida através do governo eum conselho aristocritico exclusivo sobre a cidade, A ruptura desta ordem geral ocorreu no ditimo século da era arcaica, com 0 advento dos tiranos (c. 680-510 a,C.), Estes autocratas sromperam a dominagio das aristocravias ancestrais sobre as cidadest eles representavam proprietérios de terra mais novos e riqueza mais recente, acumulada durante o crescimento econdmico da época prece. dente, ¢ estendiam seu poder a uma regido muito maior gragas a concessbes 4 massa sem privilégios dos habitantes das cidades. As tira: nas do século VI realmente constituiam a transigfo erucal para a polis cléssica, Foi durante seu periodo geral de predomindncia que as funy dagves militares e econdmicas da Grévia classica foram langadas. Os tiranos foram © produto de um processo dualista dentro das cidades helénicas do Gitimo periodo arcaico. A chegada de um sistema mone- trio ea disseminago de uma economia financeira foram acompanha. os por uri rapide aumento na populacdo ¢ no comércio da Grécia. A ‘onda de colonizagdo além-mar dos séeulos VIII ao VI era a mais Gbvia expressfo deste desenvolvimento; entretanto, a maior produtividade hnelénica das culturas do vinho e das oliveiras, mais intensiva que a cul. {ure contemporanea dos cereais, tena talvea proporcionado & Grécia ‘um relativa van‘agem nos intercAmbjios comerciais na zona do Medi terraneo.? As opertunidades econémicas proporeionadas por este eres: cimento criaram am estrato de proprietérios agrarios recentemente en. quecidos, saidos de fora das classes da nobreza tradicional e em eet (D A Andrews, Grevk Society, Londres, 1967, pp, 7682. (2) Ver a argumentagto em Wiliam MeNeil, Phe Rise ofthe West, Chicago, 1963, pp. 201,273 PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISM 31 tos casos provavelmente tirando benelicios de empresas comerciais auxiliates, A nova riqueza deste grupo nfo era acompanhada pot ne- ‘nhum poder equivalente na cidade. Ao mesmo tempo, o aumento da Populasao e a expansto equebra da economia arcaica provocaram ten- ses sociais agudas entre a classe mais pobre na terra, sempre mais propensa a ser degradada ou sujeita aos nobres proprietitios ¢ agora ‘exposta a novas pressbes eincertezas.? A pressis combinada do deseon- tenttamento rural da base e das fortunas recentes da cGpula forgaram & ruptura do estreito anel de dominio aristocratico nas cidades. A eon- seqQnets earacterstica das sublevagdes politicas resultantes nas cida des foi o surgimento de tiranos transit6rios no final do século VII e no século VI. Os préprios tiranos eram em geral rovos-rieos competitivos de considerdvel fortuna, cujo poder pessoal simbolizava o acesso do grupo social onde eram recrutados as honrase posigio na cidade. Sua Yit6ria, no entanto, s6 era possivel geralmente por causa da utilizagio ‘que faziam dos ressentimentos radicais dos pebres, e seu mais dura- \douro empreendimento foram as reformas econémicas, no interesse das classes populares, que tinham de admitir ou tolerar para garantirem © poxter. Os tiranos, em conflito com a nobreza tradicional, na reali dade bloqucaram o monopélio da propriedade agréria, que era a prin- cipal tendéncia de seu poder irrestrito e que esiava ameacando causar lum crescente perigo social na Gréeia areaica. Com a dnica excegdo da Dlanicie fechada da Tessilia, as pequenas propriedades camponesas fstayam preservadas e consolidadas por toda a Grécia nesta época. AS {ovmas diferentes em que ocorreu este processo tiveram que ser recons- Aiiuidas com base em seus efeitos posteriores, dada a falta de provas \locuinigntais do periodo pré-cléssico, A primeira grande revolta contra ‘:domindincia da aristocracia que levou a uma bem-sucedida tirania, ‘ivolada pelas classes mais baixas, aconteceu em Corinto.em meados do Ateilo VII, onde a famitia Baguiada foi despojada de seu tradicional Jjolor sobte a cidade, um dos primeiros centros de coméreio a florescer Js Gréeia, Mas foram as reformas de Sélon que proporeionaram 0 Inuls claro e melhor exemplo conhecido daquilo que era possivelmente ‘Algo como um padrao geral em seu tempo. Sélon, ele proprio ndo sendo {ui lrano,estava investido com o poder supreme para mediar as amar- {4s lls sociais entre os ricos e os pobres que irromperam na Atica na Were, Te Emergence o Grek Doe, Landes 1966 P55, BRR Neiaiatin ens crclscas secncs de hha Ahan at tin op BI cena Spr Se i 2 PERRY ANDERSON fa it cr sr priedades que dai em diante passaram a caracterizar 0 campo na Atica, Esta ordem econdmica foi acompanhada por uma nova adminis- Soteenee en amen Senna cpa (4) Mio certaque oampeinato pobre na Aca einer compost de re de propre de ss eras antes das flormas de Sion, Andie we ‘umn a ot mcs (Grek Sot. py. 106107, ma gre ga te Saan ni ral ribet do ra pr en, yon wes nin) ME il, The Ancon Grek, Londres, 1963 , 3, nce poli strato como de maior importancia para a independénela cconsen i. da Aiea do que arenas be Son 7 ae Ce PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO x priedade agréria modesta. Quase simultaneamente a este arranjo social nna era tirdnica, houve uma mudanca significetiva na organizagio mi- litar das cidades. Os exéreitos dai em diante se compunham essencial- ‘mente de hoplitas, uma infantaria pesadamente guarnecida que cons- tituia uma inovagio grega no mundo mediterraneo. Cada hoplita se equipava com armamento ¢ armadura as suas pr6prias custas — assim, tal soldadesca faz pressupor uma vida econémica razoavel, e, de fato, as tropas hoplitas vinham sempre da classe média agricultora das cida- des, Sua eficécia militar seria provada com as surpreendentes vitérias {gregas sobre os persas no século seguinte. Mas era sua posigo central dentro da estrutura politica das cidades-Estado que definitivamente eraomais importante. O pressuposto da posterior “democracia” grega, ‘ou da“oligarquia” ampliada, era uma infantar:a auto-armada. ~ Esparta foi a primeira cidade-Estado a incorporar os resultados sociais das operagdes de guerra dos hoplitas. Sua evolugio forma um curioso paralelo em relagio a Atenas na era pré-cléssica. Esparta nto tove uma tirania, ¢ esta omissio num episédio normal de situagto transitéria emprestou um eardter peculiar As suas instituigdes econd- ‘micas e polfticas, misturando feigSes arcaicas ¢ avancadas, numa con- figuragio sui generis. A cidade de Esparta conquistou uma porgiio relativamente grande do interior do Peloponeso numa époce primitiva, primeiro na LacGnia, para o leste, e depois em Messénia, para oeste, fe eserayizou o total dos habitantes das duas regides, que se tornaram hilotas do Estado, Este engrandecimento geografico e a sujeigao social ‘da populagio envolvida foram realizados sob um governo monérquico: [No decorrer do século VII, no entanto, a conguista inicial de Messénia ‘© a posterior represso de uma rebeligo tiveram como conseqiéncia ‘algumas mudangas radicais na sociedade espariana — tradicionalmente atribufdas a figura mftica do reformador Licuryo. De acordo com a len- da grega, a terra estava dividida em porgdes iguais, que eram distri- ‘uldas aos espartanos como kleroi, ou ltes, cultivados por hilotas, e que ‘oraim possuidos coletivamente pelo Estado; estas “antigas” propriedades nals tarde foram consideradas inalienAveis, enquanto tratos de terra Innis recentes eram julgados propriedade pessoal que poderia ser ven- did ov comprada.® Cada cidadio devia pagar contribuigies fixas ‘on exptcle pelos syssitia, releigSes fornecidas por cozinheitos e ser- (6) Arealidade de uma dvisto de eras eign, ca mesmo de uma inalieabil “le dow Alero, tem so posta em dvida: yer, por exempl, A. H. ML Jones, Sparte, ‘Oslo 196) pp. 44S. Andrenes, emboracautelos, dt mas eSito is crengas ate (0 Greek Sate, pp. 9498, au PERRY ANDERSON ‘ventes hilotas: os que se fornavam incapazes de fazé-lo automatica- mente petdiam a cidadania e se tornavam “inferiores", um infor- ‘tinio contra ¢ qual a posse de lotes inaliendveis por ter sido plane- jada de propésito, © resultado deste sistema era eriar uma unidade ‘oletiva intensa entre os espartanos, que orgulhosamente se designs: ‘vam como hoi homoioi — os "“iguais”, embora a igualdade econdmica ‘completa em tempo algum tenha chegado a ser uma feigio da verda- dcira cidadania espartana.’ sistema politico surgido das bases das propriedades klerot era ‘um sistema adequadamente novo para seu tempo. A monarquia jamais, desaparecen inteiramente, como aconteceu nas outras cidades gregas, ‘mas foi reduzida a um generalato hereditirio e restringida por uma dupla gestio, outorgada a duas familias reais.8 Em todos os outros aspectos, os “eis” espartanos eram apenas membros da aristoeracia, participantes sem privilégios especiais no conselho de trinta ancidos ou gerousia, que originariamente governavam a cidade; 0 tipico contflito ‘entre monarquia e nobreza no principio da idade arcaica foi aqui resolv do por um compromisso institucional entre ambas. Durante o século VII, no entanto, a classe cidada dos soldados-rasos chegou a constituir ‘uma completa Assembléia municipal, com poderes de decistosobrepoll- ticas a ela submetidas pelo conselho de ancitios, que se tornou, por sua ver, um corpocletivo; cinco magistrados ou éforos exerciam a suprema autoridade executiva pela eleicgo direta de todos os cidadios. A Assem- bigia podia set controlada por um veto da gerousia, ¢ os éforos eam dotados de uma excepcional concentrago de poder arbitrario. Mas a constituigdo espartana que assim se cristalizou na época pré-cléssica foi contudo a mais socialmente avangada de seu tempo. Ela representou nna verdade o primeiro direito de voto hoplita a ser efetivado na Grécia, Sua introduglo & muitas vezes datada a partir do papel desempenhado pela nova infantaria pesada na conquista ou no esmagamento da popu- lagi messeniana sujeitada, e Esparta passou a ser, dai em diante, naturalmente, sempre conhecida pela disciplina sem igual ¢ pelas proe- zas de seus soldados hoplitas. As excepeionais qualidades militares dos espartanos por sua vea eram uma fungdo do onipresente trabalho hi- Iota, que desimpedia os cidadios de qualquer trabalho direto na pro- (7 © tamanbo dos hoot qv conslldavam a solidariedade espartana tem sido muito asoutde, com extimativas Yavlando entre 20 ¢ 90 aces de tera cultrével: vee "Sporte and Her Soctel Problems, Amstrd-Prags, 1971, pp. S12. (6) Porawestratore da Consituiio,verJones, Sparta, pp. 1340, (©) Andeones, The Greck Tyrants, pp. 75-76. mal PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO as ugio, deixando-os livres para o treino profssional para a guerra em ‘tempo integral, O resultado foi um conjunto de uns 8 2 9 mil eidadtios espartanos economieamente auto-sufcientes 2 com direito de yoto poli fico, que era bem mais amplo e mais igualitirio do que“em qualquer aristocracia contempordnea ou qualquer oligarquiy’ postériot ne Gré= cia, Oextremo conservadorismo da formacio social espartana e do si tema politico na época cléssica, que o faria parecer decadent € atra- sado no século V, foi de fato resultado de suas transformagSes pionei- ras no século VII. Primeiro estado grego a chegar a uma constituigio hoplita, ele se tornou o ailtimo a modificé-Ia: © modelo primario da era arcaica sobreviveu até as vésperas da extingio final de Esparta, meio riléaio depois. Em outras resides, como ja vimos, as cidades-Estado da Grévia foram mais lentas para evoluir até sua forma cléssica. As tiranias eram fases intermedidrias necessérias de desenvolvimento: foram sua legis- lglo agraria e suas inoyagBes militares que prepararam a polis helé- niea do séeulo V. Mas foi preciso uma inovacao mais avancada e real- mente docisiva para o advento da civilizagie clissica grega. Esta foi, 6claro, aintrodugo em escala maciga da eseraviddo como bem mével. ‘A conservagio da pequena e média propriedade da terra havia resol vido uma erescente crise social na Alica e atredores. Mas, em si, ela lenderia a deter o desenvolvimento cultural e politico da eivilizagio igrega em um nivel “bedcio”, impedindo o aumento de uma divisto social mais complexa de trabalho e da superestrutura urbana. Comu- hidades camponesas relativamente igualitérias podiam-se congregar fisicamente em cidades; elas jamais poderiam criar uma luminosa civi- limigio citadina do tipo que a Antiguidade agora testemunhava pela [primeira vez em seu estado simples. Para isto era preciso um superdvit de trabalho escravo para a emancipacto de seu estrato governante ¢ a onistrugio de um novo mundo civico e intelectual. “Em seus ter- M05 mais amplos, a escravidéo era fundamental para a civilizagao 4 no sentido em que sua aboligéo € a substituigo do trabalho fe a alguém tal houvesse ocorrido, teria deslocado toda a socie ‘ade © syprimido 6'écio das classes mais altas de Atenas e Esparta.""® ‘Assim, nito foi por acaso que a salvagao do campesinato inde- Jponuente 6 0 cancelamento dos pagamentos dos débitos tivessem sido equidos prontamente por um novo e abusive aumento do uso do tra- 10) Anvtewes, Greek Society, p. 133, Comparaccom V. Enrenburg, The Greek ‘pats dient tera pode 078803 % PERRY ANDERSON batho escravo, no campo e na cidade da Grécia cléssica, Uma vez blo- _queados os extremos da polarizagdo social dentro das comunidades he- Linicas, era légico o recurso as importagdes de escravos para solucionar ‘a carfncia de m&o-de-obra para a classe dominante. O prego dos es- cerayos — tna maioria tricios, frigios e sirios — era muito baixo, nao ‘muito acima éo custo de um ano de manutengio;"! ¢ assim sua util zagio se tornoa generalizada na sociedade grega, a um ponto em que ‘mesmo os mais humildes artesdos ou pequenos agricultores podiam muitas vezes possui-los, Este desenvolvimento econémico havia tam ‘bém sido antexipado pela primeira vez em Esparta; fora a criagdo an- terior da massa rural hilota na Lacdnia ¢ em Messénia que permitiram ‘o surgimento da fraternidade servilizada dos espartanos, a maior popu- lagiio escrava da Grécia pré-cléssica e 0 primeiro dircito de voto ho- plita, Mas aqui, como em outros lugares, cada prioridade espartana etinha uma evolugo mais avangada: a classe hilota permanecia como ‘uma “forma nfo desenvolvida”,” pois os hilotas nao podiam ser com- ‘prades, vendidos ou manipulados e eram propriedade coletiva, mais do ‘que propriedade individual. A eseravidao como mercadoria, regida por juma bolsa de valores, foi introduzida na Grécia nas cidades-Estado ue seriam suas rivais, Durante o século V, 0 apogeu da polis clissica, ‘Atenas, Corinto, Egina ¢ virtualmente cada cidade de importancia, ‘continham. uma volumosa. populagZo escrava, freqilentemente. ultra: passando o nimero de cidadios livres. Foi o estabelecimento desta eco- rnomia de eseravos na mineragio, na agricultura ¢ na manufatura que permitiu o sibito florescimento da civiizaglo-urbana.grega. Seu im- ppacto, naturalmente — como visto acima —, ndo foi apenas econé- ico. “A escravidao, ¢ claro, nfo era simplesmente uma necessidade- econdmica, era vital a toda vida politica e social dos.cidadios.""" A ‘polis classica estava. baseada. na nova descoberta conceitual. da tiber= ‘dade, acarretada pela sistematica instituigdo da escravidto: o cidadao livre agora scbressaia plenamente contra 0 fundo de trabalhadores es: cravos. As primeiras instituigdes “democriticas” na Grécia. classi estto registradas em Quios, em meados do século Vi: a tradigao tam- ‘bém sustenta que Quios foi a primeira cidade grega a importar em grande escala escravos do Oriente barbaro." As reformas de Sélon er ‘Atenas havim sido seguidas por um brusco aumento na populagdo (AD Anénores, Greek Society, p15. {1D tine, Sparta and Fler Socal Problems, pp. 43-44. Os hilovas tab or sat sas propa fais em cota oases eram usados para 0 serigos militares (Un) Vieor Ehrenburg, The Greek Stare, p. 97. (4) Finay, The Ancient Grocks, p36. PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISM a ceserava a época da tirania;e isto por sua ver fora seguido por uma nova constituigdo legada por Clistenes, que aboliu as divisdes tribais tradi conais da populagéo com suas comodidades para a clientelaaristocré- tiea, reorganizou 05 cidadaos em demos tertoriais locais e instituiu a votagao por lote para um Conselho dos Quinhentos ampliado para pre- Sidir os neg6cios da cidade em combinaglo exm a Assembiéia popular. O séoulo V viu a generalizagio desta fSrmula politiea “proboléutica” nas eidades-Estado gregas: um Conselho menor propunha as decisbes piblicas @ uma Assembléia maior que as votava, sem direitos de ini- Ciativa (embora nos estados mais populares essa Assembléia viesse a receber tais direitos). As variagSes na composigio do Conselho © da ‘Assemblgia ena eleigo dos magistrados do Estado que conduziam sua ‘administragio definiam 0 grau relativo de “democracia’ ou “oligar- dquia” em eada polis. O sistema espartano, dominado por um eforado aiutoritério, era notoriamente antipoda ao ateniense, que vei a ser cen- iralizado na plena Assembléia dos cidadcs. Mas a linha bésica de ddemarcagio ndo passava por dentro da cidacania consttuinte da polis, no obstante ela estivesse organizade ou estatificnda: ela dividia a ck tiadania — fossem os 6 mil expartanos ou cs 45 mil atenienses — dos nho-tidadaos e cativos abaixo deles. A comunidade da polis clissiea, filo importava quao dividida em clases internamente, estava acima de luma forga de trabalho escravizada que suportava toda sua forma ¢ pubstfincia ssas eidades-Estado da Grécia cldssica estavam empenhadas em ‘onstante rivalidade uma contra a outra: « marcha tipien de sua ex: Dpanslo, depois do término do processo de.colonizagio.no final.do.sé- ule Vi, era. a conguista militar eo tributo. Com a expulsio das forgas porsas da Grécia no infcio do século V, Atenas gradualmente atingiu {im poder proeminente entre as cidades ccmpetitivas da bacia egéia. t limpério Ateniense que fora construfdo na geragdo entre Temistocles¢ Pérlcles parecia conter a promessa — ou ameaga — de unificagdo poli {ion da Grécia sob o governo de uma dnica polis. Sua base material era ‘proporeionada pelo perfil e situagio peculires da propria Atenas, ter Hiloral ¢ demograficamente a maior cidade-Estado helénica — apesar ide (or apenas uns 1 500 quilémetros quadrados ¢ talvez. uma populagao tie 280 mil habitantes, O sistema agrério da Atica exemplificava talvez tie manelra especialmente pronunciada 0 modelo generalizado da épo- toh Pelos padres helénicos, a grande propriedade cra uma herdade do W) « HO hectares.* Na Atica havia pouees grandes propriedades, ¢ (9) Foros, Phe Emergence of Grock Democracy, p46 38 PERRY ANDERSON ‘mesmo os ricos proprietiios possulam muitas pequenas exploragdes em ‘vez. de um latifindio concentrado. Propriedades de 30 ou mesmo 20 hectares estavam acima da média, enquanto as menores provavelmente nfo eram de muito mais do que 2 hectares; tr€s quartos dos cidadios livres possu‘am alguma propriedade rural pelo fim do século V."* Os ‘escravos prestavam o servigo doméstico, o trabalho no campo — onde cles caracteristicamente cultivavam as propriedades dos ricos no interior — eo trabalho artesanal; provavelmente eram excedidos em mimero pelo trabalho livre disponivel na agricultura etalvez.na manufatura, mas constituiam um grupo maior do que o total dos cidadios. No séeulo V haveria talvez.uns 80 a 100 mil escravos em Atenas, para uns 30 a 40 mil eidadacs.” Um tergo da populagao livre vivia na prépria cidade. A maior parte do restante vivia no interior imediato, em vilarejos. O ‘volume conjunto dos cidadaos era formaclo pela classe dos fas e a dos hoplitas, nas respectivas proporgées de 2:1 talvez, sendo os primeiros a classe mais pebre da populagio, que era incapaz de se auto-equipar para dever da infantaria pesada. A divisio entre hoplitas e tetas era ‘eenicamente uma divisao por rendimentos e nao por ocupacdes ou resi-

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