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CLAUSEWITZ E A POLITICA OLIVEIROS 8. FERREIRA Nao se deve iniciar a leitura de Clausewitz simplesmente porque Engels recomendou a Marx que lesse Vom Kriege, ou porque a histéria diz que Lenin passou parte de seu exilio em Genebra anotando o tratado do general alemao para escrever sobre ele, mais tarde, como cita Camille Rougeron: "Clausewitz, um dos escritores militares mais profun- dos, um dos maioves, um dos mais noldveis fildsofos e historiadores da guerra, um escritor cujas idéias fundamentais se tornaram hoje o bem in- contestado de todo pensador". Lé-lo pelos elogios ¢ o mesmo que nao lé-lo pelas criticas — severas — as suas concepgdes do que seja a guerra e de como conduzi-la. Liddell Hart incumbiu-se de mostrar aquilo que a seu ver tinha sido o erro fundamental de Clausewitz: preconizar a batalha na- poleénica de aniquilamento, o ataque frontal, quando a li¢do da histéria ensina que venceu aquela concepgfio que ao encontro frontal preferiu a aproximago indireta. Foi Sun Tzu, 500 anos AC, quem escreveu que “submeter o exército inimigo sem combate é o fim do fim". Na leitura moderna de Clausewitz — que vem em boa parle dos ensinamentos de Foch na Primeira Grande Guerra e que nos ¢ oferecida pelos comentarios de Liddell Hart ¢ outros — essa possibilidade assinalada por Sun Tzu nfo existe. Quem niio ler com atengio o Da Guerra sera obrigado a concordar com seus criticos. Apenas o leitor atento observaré que numa frase ele dé por desnecessdria a batalha para o éxito do plano de guerra: se 0 engaja- mento nao se der porque o inimigo a ele fugiu, é como se tivesse dado eo inimigo sido derrotado, De igual maneira nao se deve iniciar a leitura de Vom Kriege s6 porque aprendemos que Clausewitz considerava a guerra como a conti- nuagiio da polftica per outcas meios, Talvez se devesse |é-lo para aprender que na guerra sdo os objetivos polfticos que devem predominar, nio os 28 LUA NOVA N34 — 94 militares. Ainda hoje se discute nos dois lados do Atlintico se ag decisdes de Eisenhower, impedindo Patton de ocupar a Tchecoslovaquia, foram corretas ou nfo. Do ponto de vista militar, o comandante-chefe tinha raziio, pois a ecupagiio daquele t rio nao tinha grande significado mil tar, além de comprometer vidas, Patton conhecia as informagGes de que os alemies tinham tropas reservas no seu desejado caminho — mas sobre as consideragGes a respeito de ser ou no estrategicamente validos a operagaa eo seu custo em vidas humanas, ele colocava o problema politica: os so- viéticos poderdie ocupar a Tchecoslovaquia. Pessoalmente, creio ser temerario escrever alguma coisa sobre Clausewitz depois de tudo o que se disse ¢ escreveu, especialmente a opera magna de Aron, Penser La Guerre — Clausewitz. O convite de Lua Nava, no entanto, € irrecusdvel e leva a algumas consideragdes que talvez, sejam titeis a quem se preocupa em conhecer a sociedade, os processos so- ciais ¢ essencialmente os processos politicos, Parecerd estranho que se tome um autor ‘militar como referéncia para o estudo da sociedade. Espe- cialmente numa época em que, no Brasil, a lembranga, quase a memoria indelével do perfodo militar, torna qualquer preocupagao com estratégia e arte da guerra, para nado dizer qualquer preocupagiio tedrica com os mili- lares, objeto de desconfianga. Se ao risco de despertar velhos rancores afirme que o estudo de Clausewitz € importante, é porque creio que as ligGes dele sao fecundas; e, depois, porque ele sabia buscar na sociedade, na politica ¢ na vida econémica muito em que fundamentar seu raciocinio ¢ construir seus dois tipos de guerra: a absoluta ¢ a real. Comecemos pelo mais abstrato, estabelecendo uma petigao de ptinefpio: o que Clausewitz formula para a guerra é valido para as aniilises politicas ¢ estratégicas. Acrescento que aquilo que cle estabelece para a guerra é, ao nivel do método, valido para a polftica, especialmente a con- ceituagéio do fato politico. Nao se deve cenfundir a agao politica com ¢ fate politico. A distingtio, necessiria, obriga a que se procure definir 0 "fato” para que se possa, ent&o, ver o que, na vida social, é politico, distinguindo esse reina espeeffico daqueles em que ocorrem outras fatos, econémicos ou simples- mente sociais. A politica 6, sem divida, agao — agao politica. Como tal, pode ser "fraca" ¢ "forte" como definia Bertrand de Jouvenel, a agao politica fraca se exemplificando no ato eleitoral, em que o sujeito da agao pouca importincia emocional empresta a seu ato de votar, sabendo estar cumprinde um ritual, necessario, do qual n&o abdica em hipétese alguma, mas com o qual tem uma ligaggo que seja simpatica, em hipétese alguma patética. A acao politica forte, pelo contrério, é aquela a que @ sujeito se (CLAUSEWITZ.E A POLITICA 29 liga pateticamente — patcticamente, porque deseja transformar o mundo. Um ¢ outro tipo de agiio, apesar da diferenga que as separa, sdo fatos politicos. E a natureza intima delas que importa apreender se se pretende compreender diferentes formas de ago politica. E isso, em dltima instiincia ¢ com perdao pela redugiio simplificadora, que Clausewitz faz com a guerra: sem reduzir ao que tém de comum as acdes que comumente se chamam guerra, no sera possfvel compreender a esséacia dela, nem as diferentes formas sob as quais se apresenta na sociedade humana. O fato politico € essencialmente uma relagdo entre segmentes sociais (para ficar na linguagem tradicional). Para sermos mais precisos & atendo-nos & definigio de Lourival Gomes Machado, o fato politico é uma relag¢déo de aproximagao ou afastamento intersegmentar consciente (ao nivel da consciéncia individual ou grupal dos valores e objetos culturais que se pretende conservar ou nao ceder ac opesitor). Nem sempre ¢ uma relagao em que se tem consciéncia de conflite — e entéio poderfamos que a agdo que decorre dessa aproximagao ou afastamento correponderia & agao politica fraca. Freqilentemente, porém, & uma agiio de afastamento ¢ hostilidade — ¢ sera tanto mais hostil quanto maior for o desejo de trans- formar o mundo. Da mesma maneira com a guerra: “Nao comecemos por uma definigao pesada e pedante; limitero-nos a sua esséncia, ao duclo. A guerra ndo é outra coisa senao um duelo a uma mais vasta escala". Nas "Regras do método", Durkheim escreveu que a forma politica de uma soci- edade era a forma pela qual os diferentes segmentos se relacionavam uns com 6s outros — diria eu, trocavam experiéncias, conviviam, em outras. palavras, se aproximavam ou s¢ afastavami tendo em vista possuir ou ndo ceder valores ¢ objetos culturais a tereciros. A coalescéncia segmentar cria campos de aproximagao, mas que tendem a ser cada vex mais restritos; no limite, diz Durkheim, seriam os direitos individuais tiio-somente. guer- ra é, pois, um ato de violéncia destinado a constranger 0 adversdrio a exe- cutar nossa vontade”. Que outra coisa é a Politica na sua esséncia se no isso, j4 que é conflito? Ou a ago hegeménica, como diria um disc{pule de Gramsci’? Sei que associar o nome de Santo Antonio & guerra despertara, como se viu no passado recente, iras por parte de alguns. Desgragadamente para os nibelun- gos, porém. Os nibelungos, vives fossem, compreenderiam a proposigiio, porque morrcram todos diante da ira de uma mulher que lhes queria impor a sua vontade, politicamente, para vingar-se da afronta maior. Por que nos recu- sarmos a entender o fato politico como um duele de forma distinta do tergar armas na academia de esgrima, ou na mais vasta escala que é aguera? O importante a reter é que o combate entre dois segmentos ou (a outrora chamada "guerra de classes") é a esséncia do [ato politico 30 LUA NOVA N® 34. — 94 — em menos que fagamos dele agao tio fraca que nos contentemos sim- plesmente a votar porque alguém pediu que votdssemos, e nao em- Prestissemos a menor importincia a coisa alguma. Sucede, porém, que nao é possivel tratar as coisas com essa leveza de espirito; a aproximagdo. ou o afastamento segmentar — ¢ a eleigio é isso — da-se colacando em jogo valores ¢ objetos culturais que é necessdrio ceder, conservar ou con- quistar, esse ato de cesséo ou conquista vindo carregado de emogio maior ou menor, forte ou Fraca. Posse supor que simplesmente deposito 9 voto na urna e me vou alegre e contente pelas ruas, cantarolande, © vote, porém, tem con- seqtiéncia, como as palavras. Por mais que possamos dizer que o inferno so o8 outros, fomos danados a viver com os Outros, a ceder, ou negar ou conquistar coisas que so deles e que almejamos para nds, ou so nossas e nao Ihes entregamos. E preciso ter em mente que na aproximagao ou afastamento in- lersegmentar — no ato de negar ou conquistar — podem colocar-se duas maneiras de proceder: ou se emprega uma violéncia moral ("nao existe violéncia fora dos conceitos de Estado ¢ de Lei") ou uma violéncia fisica. (Na greve, o piquete é a um tempo violéncia moral, porque expressa a Lei do grupo que deeretou a greve, ¢ fisica, evidentemente dirigida contra os. que querem furar a greve}, Nao é essa violéncia, no entanta, que marca a guerra nem a agao pol apli olen primir pela violénci ntelectuais dos grupos adversdrios os prépries grupos: "A violéncia, isto é, a vieléncia ffsica (...) é pois 0 meta; 0 fim & impor nossa vontade ao inimigo". Fixemo-nos em alguns pontos antes de prosseguir. No duelo, sio duas pessoas que se confrontam; na guerra, sao dois Estados, mas o confronto se dd entre exércitos, isto é, entre organizagties. Na politica, sao segmentos que se aproximam ou se alastam. Dizer isso, v.g., que siio seg- Mentos que se aproximam se ou afastam, é o mesmo que dizer que sido 08 Estados que entram em confronto ¢ no seus exércitos, A tendéncia de al- guns cientistas politicos e mesmo de boa parte da Sociologia moderna tem sido falar de “classes sociais" como sujeitos de agiio, esquecendo-se de que as classes, se podem ser consideradas "segmento", sio vastas demais para serem tidas como sujeitos de agiio. Gurvitch se incumbiu de mostrar isto com muita pertindcia: as classes sdo multissegmentadas. Marx, alids, havia assinalado esse fate ao estudar a crise francesa, mostrando como a burguesia se dividia em diferentes fragdes. Ora, o rigor sociolégico impor- ta dizer que se a burguesia, enquanto classe, se divide em fragdes (uma das quais, convém lembrar, era um jornal — O Nacional, tal qual Crecce era ca forte enquanto fim. A finalidade da guerra nao & CLAUSEWITZ EA POLITICA 31 um comité de propaganda, cle sozinho), o proletariado também deve divi- dir-se nelas, Alids, toda a crise entre reformistas ¢ revoluciondrios no seio da Tl Internacional apenas retratava conseqiléncia da dindmica do capitalis- mo ¢ do imperialismo — e os estudos de Karl Korch a respeito da crise do marxismo sao ainda validos para quem pretende fazer uma andlise cerrada das classes ¢ das organizagGes partidarias que dele se reclamam. Tudo isso € para deixar claro que, embora o fato politico seja uma aproximagio ou um afastamento intersegmentar, o agente dessa aproximagdo ou desse afastamento s6 pode ser uma organizagéio. Pela simples ¢ boa razdo de que uma organizagiio pode ser sujeito de agdo, na medida em que tem uma visio do mundo que desenvolveu mais ou menos ligada a uma classe so- cial ¢ possui os meios para realizar o confronto, afora ter uma vontade a impor a seus adversdrios. © estudo da guerra, assim, nos remete diretamente a considerar a agio politica nio como agko de segmentos sociais designados como tal, mas de organizagdes que neles podem ter sua raiz ¢ ncles deitar por assim dizer boa parte de seu tronco, como a Social-Democracia alema do inicio do século, ou o Partido Trabalhista inglés. Podem, no entanto, apenas deitar raizes, como os bolchevistas, ou entdo nio ter contato orgdnico com a classe, ¢ desprez4-la, alids, como os blanquistas. A forma de ligagdo da organiza¢do com a classe determinard, se seguirmos as consideragées de Trotsky, a inércia que a organizag&o necessariamente ter4, conformando sua atitude mais ou menos revoluciondria na luta pela transformagio da sociedade, Crescida dentro da classe, a Social-Democracia alema sofria do “cretinismo parlamentar"; nela apenas deitando rafzes, os bolchevistas podiam dar-se ao luxo de um certo voluntarismo, expresso na famosa "co- ragem de ousar' que Luxemburgo elogiava neles; sem ligagdo alguma com a classe, sofrendo apenas a forga da inércia da prépria organizagao, aliés pequena se ndo mfnima, os blanquistas entregavam-se ao maior dos voluntarismos. Antecipando razées, eles faziam a guerra absoluta com ob- jetivos polfticos absolutos, A finalidade da ago politica forte (da guerra), como vimos, é impor nossa vontade ao adversdrio (a vontade da organizagiio). O meio para tanto € a violéncia fisica, mas também pode ser a violéncia moral, via Lei, isto & tribunais. © importante a assinalar é que a guerra ndo se limita ameio ou fim; ela tem objetivo: "Para atingir esse fim (impor a vontade ao adversdrio) em toda a seguranga é preciso desarmar o adversdrio, e esse desarmamento € por definigdo @ objetivo propriamente dito das operagées de guerra". Vern em seguida a observagao capital: “Ele toma o lugar do fim, e 0 afasta por assim dizer, como qualquer coisa que n3o pertence a guerra ela prépria". Desarmar 0 adversdrio, na agdo politica forte, ¢ tomar 32 ELIA NOVA Nt 34-94 © aparelho de Estado. Apenas pela posse do aparelha de Estado; ¢ que seré possfvel, usando da violéncia lisica "legalizada" e da violéncia moral, impedir o adversario de conquistar esse mesmo aparelho. Ora, € porque a iomada do apavelho de Kstado tende a assumir o lugar da imposigio de uma visio do mundo & sociedade (de nossa vontade ao adversirio) que so- ios tentados muitas vezes a confundir a tomada do aparetho de Estado (via eleig6es...) com a finalidade mesma da ago politica ¢ a nos contentar com ocupar ministérios e fungées de DAS (na nomenclatura brasilicnse). Quando se confunde o objetivo com o fim, a agio politica tende a ser ne- cessariameute fraca, porque deixou de ter finalidade, de ser pateticamente mobilizadora das massas, que, como Trotsky assinalou, sabe apenas que nfo podem mais suportar o status guo, a diregio do movimento e da insa- factio de sous anseios sendo dada pela organizacaio. Uma das grandes discusdes que tom marcado a Ciéncia Politic: a Filosofia Social e a Btica, é saber se os fins justificam os meios. Questdo dificil de resolver, sobretuda quando se esti engajaclo numa agio pe forte. Trotsky, A sua maneira, resolveu-a — diria cu, com britho: "quem quer os fins, aceita os meios". O mesmo para a guerra, as almas pieclosus podem imaginar que haja uma maneira mais suave de fazé-la, sem derra- mar sangue. "Por mais desejavel que isso parega, 6 um erro que se deve eliminar. Num assunto de tal mancira perigoso como a guerra, 0s erros de- vidos A vontade d'alma sao precisamente a pior das coisas". Segue-se a re- gra impiedosa, que encontra sua tradugéo na politica: "Como o emprego da forga fisica em sua integralidade nfo exclui de maneira alguma a cooperacao da inteligéncia, aquele que usa sem picdade essa forga ¢ nao recua diante de nenhuma efusdo de sangue tera a vantagem sobre seu ad- versirio se ele nfio agir da mesma maneira, Assim procedendo (iste 6, ndio tendo piedade), dita sua lei ao adversdrio, se bem que, cada um empurran- do 2 extremidade apenas o contrapeso que reside do lado do adversirio, estabelece os limites. (...) [gnorar o elemento de brutalidade por causa da repugndincia que ele inspira é um desperdicio de forgas, para niio dizer um erto”, Para as almias sensiveis & conveniente lembrar que falamos de agdes politicas fortes, que querem transformar o mundo, isto é, falamos do mo: inento em que a aga politica se potencia, que é ¢ revolugaio. E nao se di- zia que era do estagio de desenvolvimento da Inglaterra que se podia tragar o dos demais pafses? E preciso ter presente que a insurreigo para a tomada do poder, com a qual alguns confundem a revolugéo, é apenas um momento dela, possivelmente aquele que a histéria registra como a data fatal: 14 de julho. A revolugiio, porém, enquanto processo, nao tem data — a insurreigao, sim, pode t@-Id. O processo revoluciondrio, por néio ser uma tinica agao CLAUSEWITZ, POLITICA 33 isolada, é como a guerra, tal qual como Clausewitz a descreve enquanto sucessio de fatos, diria, sociais: "A guerra ndo irrompe assim sem mais, repentinamente", sua extensae nao é a obra de um instante, Cada um dos adversdrios (¢ na revolugiio sfo dois adversdrios que se opGem), partanto, em uma larga medida, forma uma opiniao do outro a partir daquilo que € ¢ do que faz na realidade, e nfo daquilo que em teoria deveria ser e deveria fazer. Entretanto, com sua organizacao imperieita, o homen sempre per- s deficiéncias mauece abaixo da linha do melhor absoluto, ¢, como ess ageim nos dois lados, clas se tornam um principio moderador Extraordiniria ligao, que se aplica néo apenas ao processo revo- luciondrio, mas ao processo politico em geral: é no decorrer do processo que se couhece de fato o adversdrio, & é esse conhecimento, associado ao fate de o homem uunca chegar ao melhor absoluto, que intreduz no processo de ages politicas fortes um principio moderador, A afirmagao de que o principio moderador se introduz no processo revoluciondrio deve ser tomada cam grane salis: cstabelecendo cla um principio politico por assim dizer absoluto a inspirar ¢ dirigi as ages, a agho revoluciondria (os com- bates na Irente, a agao repressiva na retaguarda, o tchekismo) tender a ser da amplitude do objective politico perseguido. Por isso as revolugGes sia crudis. E que “o objetivo politico, enquanto mdvel inicial, torna-se um fa- tor inteiramente essencial (...}. Quanto menor o sacrificio que exigimos do adversdrio, mais poderemos esperar [racos estorgos de sua parte para no-lo recusar". Ora, na revolugao, o que se pede ao adversdria é um sacrificio muito grande — portanto pode e deve esperar-se que ele faga grandes es- forgos para impedir que atinjamos nossos objetivos & que o processo seja da amplitude do sacrificio. Essa € a lei geral —~ sujeita, porém, para os chefes militares € os lideres politicos, as variagGes do meio em que a agio se da. Clausewitz chama sempre atengdo para o fate de que na guerra se tem a ver com reali- dade & nfo com puros conceitos — muito embora construa uma teoria da guerra absoluta que é em si um somatério de conceitos, Veja-se essa observagdo ainda sobre o objetivo politico: "um tinico e mesmo objetivo politica pode produzir em nagdes (ndo se paderia dizer "classes"? ) dife- rentes, ¢ em uma mesma nagio, reagdes diferentes em épocas cliferentes. x por isso que 0 objetivo politico nie pode servir de medida, a menos que tenhamos em conta sua influéncia sobre as massas a que cle interessa: é, pois, a nattreza dessas massas que é preciso levar en conta. Compreen- der-se-d sem dificuldade que o resultado sera completamente diverse con- forme as inassas representem fator de reforgo ou enfraquecimento da agi. Pode existir entre dois povos ¢ Estados uma tal tensiio c uma tal soma de elementos hostis que um motivo de guerra absolutamente min em si 4 LUA NOVA NY 34 = 94 mesmo pode produzir um efeito desproporcionado, uma verdadeira ex- plosdo"(grifos meus). Quanto mais o objetivo politico de um exige enorme sacrificios do outro, mais a guerra tenderd a ser absoluta, isto &, a nfo se encontrar li- mites para a manifestagdo da violéncia. Retenha-se esta afirmagio a todos os titulos aplicdvel a qualquer situagtio de confront, de aproximagao ou afastamento segmentar: "Cada um dos adversdrios faz a lei do outro, donde resulta uma ago reciproca, ¢ a primeira extremidade que encontramos" na guerra absoluta. Trata-se, porém, convém ressaltar, de um “conceito". O problema ¢ que sem conceitos ndo compreendemos a realidace — e, se recu- samos a lei das ages reefprocas, podemos correr o risco de perder a causa. : Nas agdes politicas fortes, o que A desejaésubmeter B a sua von- tade, isto é, fazer que B tenha as condutas € aceite os valores que A reputa importantes para poder exercer seu dominio sobre B. Como dizia o chefe de policia do Grande Irmao para Winstor, prestes a entrar no "Quarto 101", nao interessava a ele, em 1984, que o prisioneiro confessasse seus crimes sob torluras, mas que admitisse |hanamente que acreditava naquilo que lhe era dito: "dois mais dois igual a cinco". Ora, para submeter 0 adversdrio A minha vontade, devo “desarmé-lo", privé-lo de todos os elementos materiais so- ciais ¢ intelectuais que lhe permilam opor resist¢ncia as minhas preensdes. E por isso que a posse do aparelho de Estado é, na teoria politica, especial- mente naquela que cuida da hegemonia, equivalente ao objetivo da guerra, que é desarmar o adversdrio. Para tanto, tendo em vista o que acima Se disse sobre os esforcos que se exigirao dele, proporcionais aos sacrificios que se Ihe imporao, o fundamental (na politica como na guerra) é “coloca-lo numa situago mais desfavordvel do que seria aquela criada pelo sacrificio que Ihe pedimos". Resumidas raz6es, "ou a bolsa, ou a ; ou Oadversirio cede a propriedade, consente em perder 0 ensino religioso e em nao mais abrir as igrejas aos fiéis, ow sera condenado & morte. ‘Clausewitz vé longe o problema: “Todavia, a desvantagem da si- tuacio (o sacrificio exigido ser menor do que a situagiodesfavordvel em que adversirio € colocada) nfio deve ser naturalmente transitoria, nem deve pa- recer tal, sendo o adversdrio esperaria um momento mais favordvel ¢ nilo ce- deria". O que ambas as partes, no recontro politico ou belicoso, tém em vista, éque “a guerra nao é uma agio de forga viva sobre uma massa morta (...) mas sempre a colisdo de duas forgas vivas (...) Aqui ainda a ado é reciproca. En- quanto nilo abater o adversdrio posse temer que cle me abata. Nao sou meu prdprio senhor, porque ele me dita sua lei como cu Ihe dito a minha. Tal é a segunda agdo reciproca que nos conduz 4 segunda extremidade", Aqui j4 néio jogamos com conceitos, mas com a observagie da realidade, ¢ o que se escreve vale nio apenas para a revolugdo, para as CLAUSEWITZ & A POLITICA 35 ages politicas fortes, mas também para as agées politicas, se no fracas no sentido de Jouvenal, pelo menos as comuns: em qualquer jogo parlamentar, nfo son senhor de mim mesmo, porque o chefe cdo partido adversdrio me dita sua lei, como eu Ihe dito a minha, Uma delas € 0 “do ut des” — é aceitar ou largar o "é dando que se recebe", Nao cansarei o leitor mostrando as diferengas que a realidade es- tabelece forgosamente entre a guerra absolutae a guerra real. Nem citarei as varias passagens em que Clausewitz se refere 4s "forgas morais" que estdo em jogo, ou a comparagao da guerra com 9 calcule de probabilidades e, por- tanto, com 0 acaso, nem a passagem, literalmente bonita, emocionalmente apelativa, em que mostra que a forga é o clemento que mais convém ao espirito humano. Nio resisto, porém a oferecer ao leitor a oportunidade de meditar sobre ela: "Se bem que nosso entendimento se sinta sempre dirigido para aclarezae a certeza, nosso espirito é muitas vezes atrafdo pela incerteza A inteligéneia, em vez de abrir caminho através dos meandros da investi- gagilo filosdfica e das dedugdes légicas para alingir, apenas consciente de si propria, esferas estrangeiras onde todo objeto conhecido parece abandond- la, prefere se demorar pela imaginagao no reine do acaso e da sorte. Em lugar dese curvar A necessidade, folga no reino das possibilidades: transportada, a coragem toma asas, se bem que a auccia e o perigo se tornem o elementoem que ela se joga, comoo nadador intrépido se precipita na corrente". ‘Uma palavra final nisso que nada mais é que uma pequena intro- dugao ao pensamento de Carl von Clausewitz, que, reconhego, mereceria estudo mais acerado, especialmente sobre as relagGes que a teoria da guerra guarda necessariamente com a teoria da ago politica, porque "é uma forma de relagées humanas". A palavra final é dele: "Dizemos, pois, que a guerra nao pertence ao dominio das artes e das ciéncias, mas Aquele da existéncia so- cial. Ela é um conflito de grandes interesses regulado pelo sangue, e é apenas nisso que difere dos demais conflitos. Seria melhor compara-la, mais que a uma arte qualquer, ao comércio, que é também um conflitode interesses e de atividades humanas; ela se assemelha ainda mais 4 politica, que pode sercon- siderada por sua vez, a0 menos em parte, come uma espécie de comércio em grande eseala. Ademais, a pol oventre) em que a guerra se desenvolve; seus lineamentos, jd formulados rudimentarmente, nela se es- condem como as propriedades das criaturas vivas em seus embrides". Com isso, concluo, OLIVEIROS §, FERREIRA é jurnalista ¢ professor do Departamento de Cién- cia Politica da USP. 190 LUA NOVA N34 — 94 CLAUSEWITZ E A POLITICA OLIVEIROS FERREIRA E comum afirmar-se que Clausewitz considerava a guerra como a continugdo da politica por outros meios. Mais interessante, entretanto, é perceber que, para Clausewitz, sdo os objetivos politicos, mais do que os militares, que devern predominar na guerra. E é ainda mais importante per- ceber que aquilo que Clausewitz diz sobre a guerra é metodologicamente vélido para a politica, sobretudo para a conceituagao do fato politico. CLAUSEWITZ ON POLITICS Great anention is given to Clausewitz's view on war as a contin- uation of politics by different means. It is more interesting, however, to take note that for Clausewitz political objectives, rather than purely mili- tary considerations, should be given priority in war. Even more important is 10 perceive that what Clausewitz said about war is methodologically valid for politics, most of all for the conceptualization of politics.

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