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Gilberto Aparecido Angelozzi Mestre em Histéria Social pela Universidade Federal Flumin Professor Universitario de Hist6ria do Direito no Brasil Participante do World Public Forum Dialogue of Civilizatic Historia do Direito no Brasil 340-4 A 584? iB bx 2 Freitas Bastos Editora Copyright © 2009 by Gilberto Aparecido Angelozzi Todos 0s direitos reservados ¢ protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. E proibida a reprodugao total ou parcial, por quaisquer metos, bem como a prévia, por escrito, da E produgao de apostilas, sem autorizay Dircitos exclusives da edigio ¢ distribuigdo em lingua portuguesa: Maria Augusta Delgado, Livraria, Distribuidora e Editora Isaac D. Abulafia Leonardo Cabral da Silva Revisdo de Texto: /4élio José da Silva Diagramagéo: Leonardo Cabral da Silva NACIONAIS PARA CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO (CIP) DADOS INTE AS93h Angelozzi, Gilberto Aparecido. Histéria do direito no Brasil / Gilberto Aparecido Angelozzi. - Rio de Janeiro : Maria Augusta Delgado, 2009. 354p. ; 2lom, Inclui bibliografia, ISBN ; 978-85-99960-74-5 1, Direito ~ Historia. 2. Direito ~ Brasil ~ Historia. I. Titulo, CDD- 340.0981 Freitas Bastos Editora Tel./Fax: (21) 2276-4500 freitasbastos@freitasbastos.com.br vendas@freitasbastos.com.br Rio de Janeiro ~ RJ Agradecimentos Agradego a Deus, a0 Senhor Iahweh, Senhor da minha existé ea sombra do qual eu me refugio (SI. 90,1). Com justiga Ele ore seus preceitos e por isso justiga etema é sua alianga (SI. 118, 137.1 A Ele a honra, 0 poder e a gloria pelos séculos sem fim (Ap. 4,11 Agradego a Laura Maria Ferraz Alves e a Aurélio Mendes 1 roso Rebello pela amizade, carinho e por todo o auxilio na revisa« meus textos, Voeés so muito importantes na minha caminhada. Agradeco a minha irma Angélica Aparecida Angelozzi, histo dora como eu € uma brava mulher que traz os amores no peito, v flores no cho, mas guarda a certeza na frente e a Historia na mao Agradeco a Fernando Bigi, que acompanhou todo o processc elaboragao da obra e incentivou o projeto. Agradego ao meu editor Isaac Delgado Abulafia e 4 Editora F tas Bastos, que acreditaram no projeto desde o principio e incenti ram a sua conclusao. Agradego aos meus alunos, eles sempre foram 0 motivo e a deste projeto ¢ participaram indiretamente em minhas aulas, quai cada capitulo ia se consolidando. A todos e especialmente a Deus, o meu muito obrigado! Prefa Quando me predispus a escrever um livro sobre a Histéria Direito no Brasil eu sabia que teria pela frente uma tarefa érdua, porque, existem outras obras que tratam da Historia do Direito e ¢ uma delas tem as suas caracteristicas e so valoros s para o estude disciplina. Entretanto, eu buscava uma obra que tratasse da discip Historia do Direito no Brasil em um contexto diferenciado. Na mi concepgao, nao basta compreendermos que uma lei foi adotada um periodo, por um governante ou por um regime politico, antes tudo é necessario inseri-la no contexto em que foi produzida ¢ que vigeu e teve validade Por isso, logo no inicio desta obra vamos discutir a questio-te deste livro, ou seja, Hist6ria do Direito no Brasil. Sabemos que a nor juridica surge em um contexto cultural, social, econémico e politic que € legitimada por aqueles que viveram ou vivem este momento e ¢ a validade de um contrato social depende de a quem ele se destina da concessao ou nao de legitimidade a este contrato social. Sei tambx cu a legitimagao pode acontecer pela nao manifestacdo em contrat © que nao quer dizer que isso seja sempre omissdo. Assim, conhe: © contexto cultural, social e politico do momento histérico estuda € fundamental para que se possa compreender a norma ou o conjur de normas que ele produziu. Sem diivida, a Teoria Tridimensional Direito de Miguel Reale seré importantissima para isso. Também, F esses motivos, este livro faz uma op¢o por apresentar a histéria cons tucional do Brasil, 4 qual se junta a legislaciio dos periodos estudados vit vill _ ___ Gilberto Aparecido Angelozzi como foi exposto, apresentando de forma geral o contexto socioecond: mico, politico ¢ cultural de cada época. Seguindo essa proposta, proponho que em uma introdugao te caseguida de doze capitulos possamos estabelecer uma andlise da evo- Sumario (ria, cultura e Direito, Uma introducao. lugao do Direito no Brasil desde a chegada do colonizador portugués, até os nossos dias. Nesta proposta outro desafio se avizinha. Estudar 0 passado sem comprometimento — papel do historiador — torna-se mais, Primeira Parte: Da formagao de Portugal a crise do tranquilo quando se trata de um passado distante. A situacdo torna-se antigo sistema colonial. mais completa quando este passado & recente ¢ envolve momentos, Capitulo 1: A formacao do reino portugués e as situagOes ¢ fatos histéricos vivenciados direta ou indiretamente pelo Ordenagées Afonsinas. - . historiador. Essa situagao foi enfrentada por Erie Hobsbawn na obra A Capitulo 2: O periodo colonial brasileiro: a Terra de era dos extremos e também em Tempos interessantes, esta tiltima uma Santa Cruz nos séculos XVI e XVII autobiografia do historiador. Mesmo assim, fago minhas as palavras Capitulo 3: O periodo colonial brasileiro: transformages e de Hobsbawn: Esse é 9 momento em que sai de cena o historiador e conflitos do século XVIII ¢ inicio do século XIX. é entra em cena o jornalista. Para as partes finais da obra, especialmente os capitulos 9, 10, 11 Segunda Parte: © Brasil Monarquico (1822-1889) ¢ 12, recorri a imprensa ¢ assim a arquivos da midia escrita e televi- Capitulo 4: A fundagao do Império do Brasil ¢ a siva. Por isso deixo o meu agradecimento a estes érgdos que possibi- Constituigao outorgada de 1824 litam a pesquisa através de seus arquivos disponiveis na internet. Sio Capitulo 5: Legislagao penal e civil do Periodo Monrquico, eles: Globo News e Rede Globo (G1), Fotha de Siio Paulo, Universo, questdes internacionais e o fim do Tmpério do Brasil. On Line, Jornal O Globo, Jornal O Estado de Séo Paulo. Fsta obra nio pretende ser uma obra pronta, completa, ela pre- Terceira Parte: O Brasil Republicano (1889 aos dias atuais) .. tende ser um instrumento para professorés, alunos e para todos que Capitulo 6: A Replica eas medidas para a queiram conhecer e estudar a Histéria do Direito no Brasil ¢ assim como a Histéria ¢ 0 Direito esto em constante construgdo, também esta obra estard sendo vista ¢ revisada, Espero que ela possa contri- buir para a pesquisa da Histéria do Direito no Brasil e que.o leitor tenha tanto prazer em Ié-la, quanto eu tive em escrevé-la modernizagao do Brasil. eee Capitulo 7: A Era Vargas — O governo constitucional 1934-1937 Gilberto Aparecido Angelozzi x Capitulo Capitulo 10: O Brasil dos anos 50 aos anos 80. Guerra Fria, populismo e golpe militar Capitulo U1: O Es © Emenda Constitucional de 1969 Capitulo 12: Dos anos de Chumbo ao proceso 9 do Brasil de redemocratiz: Resumo cronolégico da Histéria do Dit Bibliografia Exereicios propostos .. Gabarito : A Repiiblica brasileira e a Guerra Fria Gilberto Aparecido Angetozzi 179 ADL ado Autoritario — Os Atos Institucionais 213 241 261 281 287 318 Historia, Cultura e Direito Uma Introdugio Diz um velho adagio popular que a justiga é cega porque pode distinguir entre ricos ¢ pobres e que por isso deve aplicar as de forma igualitéria, Mas esse ¢ 0 ponto. Para ser aplicada, a just depende das fas Se Originam na sociedade leis, ¢ es ‘Todos sabem que a génese ¢ a evolugao do Direito ocorrem contexto social, na medida em que as transformagées culturais se p cessam dentro da sociedade. A feoria tridimensional do direito estal lecida por Miguel Reale! demonstra que o fato incide sobre um va ou um grupo de valores ¢ estabelece um leque de possibilidades; den essas possibilidades 0 Estado escolhe aquela que melhor atenda 4s 1 cessidades da sociedade e dos Sefnidos pelo Estado idadaos, estabelecendo assim a norm Toque de posslbiidades Diante do exposto, surgem questdes fundamentais: o que é Est do? o que é sociedad? o que siio culturas? REALE, Miguel. Liedes proiminares de cifeto, Sto Paulo: Saraiva, 2006, p. 64-68; idem. Filosc do dirt. S80 Paulo: Saraiva, 2002 Gilberto Aparecido Angelozzi De acordo com Max Weber, 0 Estado é aquela comunidade humana que, dentro de um determi nado territério — este, ‘0 territério’, faz parte da qualidade caracte ristica ~ reclama para si (com éxito) 0 monopolio da coagéio fisica legitima, pots 0 especifico da atualidade é que a todas as demais mente se atribui o direito de associagdes ou pessoas individuais s exercer coagdo fisica na medida em que o Estado 0 permita. Este é considerado a tinica fonte do ‘direito’ de exercer coergdo.? Neste caso, 0 Estado corresponde ao ente, ao elemento juridico que através do contrato social estabelecido representa todas as pes- soas que vivem em um dado territério e que se distinguem por uma identidade comum ou uma pertenga de nacionalidade. Essas pessoas entregam ao Estado 0 direito de decidir em nome de todos, para qu se estabelega a paz e a ordem no contexto da sociedade. O Estado dita s, visando pretender algo para 0 as normas e fixa os limites dos home! bem comum, de modo a atender a todos os cidadios.* Na medida em que concedemos ao Estado 0 direito de escolher em beneficio do coletivo, fica claro que o conjunto da sociedade ¢ o Estado. E nas transformagdes culturais dessa sociedade que se es- tabelecem os valores, definidos de maneira sistematica ou segundo a sua coeréncia interna como 0 conjunto de tragos culturais, ideolégicos ou institucionais. Além dos valores ba os costumes, as tradigdes, os elementos religiosos, enfim, todo um conjunto de elementos presentes nas culturas. Os elementos dio origem aos valores, estes as institui- g0es sociais e estas, por sua vez, ao Direito. Entdo surge o Estado 2 WEBER, Max. Economia e sociedade. Volume Dois. Brasilia: 2000, p. 625-626. 3) REALE, Miguel. Licdes preliminares de aire, p. 63 para proteger 0 Direito e consequentemente a sociedade da qual ele originou, Podemos esquematizar assim:* ESTADO, lf DIREITO INSTITUIGOES VALORES: USOS, COSTUMES, TRADIGOES, PRATICAS HARMONIZACAO DO ESPAGO_ ESPAGO Ha que se recordar ainda que a norma social tende a gerar cc 40, porém o seu objetivo é educar. E a partir do momento da con lidagao do proces que fere a norma passa a ser considerado doloroso. 0 educativo a coergiio nao mais ¢ sentida e aqu De acordo com Claude Levi-Strauss, A originalidade das culturas reside antes na maneira particu como resolvem seus problemas e perspectivam valores que : aproximadamente os mesmos para todos os homens, porqué dos os homens, sem exceedo, possuem linguagem, técnicas, a conhecimentos do tipo cientifico, crencas religiosas, organiza, social, econémica e politica. Ora, esta dosagem néio é nunca e tamente a mesma em cada cultura, a etnologia moderna dedica *Adaotado a pat de LYRA FILHO, Roberto, O que ¢ crete, Sao Paul: Brasilense, 2002p. - Gilberto Aparecido Angelozzi cada vez mais a desvendar as origens secretas dessas op¢des do que a tracar um inventirio de caracteristicas diferentes 5 As culturas (0 diferentes umas das outras e assim os povos tam- bém resolvem de maneiras diferentes os seus problemas e, ao tentar resolvé-los, estabclecem mecanismos de dominagalo através dos quais alguns grupos sociais se sobrepoem a outros e, na maioria das vezes, acabam por dominar 0 Estado, fazendo com que este seja uma expres so dos interesses das camadas dominantes. Por isso, se 0 Direito & cego, nao deveria expressar tais interesses dominantes. No entanto, isso nem sempre acontece. As sociedades so marcadas por diversos movimentos de carater econémico, social, politico, religioso e cultu- ral, todos produzindo fatos e situagdes histéricas e consequentemente . Esses movimentos influenciam a sendo objeto de estudo da Histéri: génese € a evolucao do Direito em uma cultura e por isso so objeto de estudo da Histéria do Direito, Raymundo Faoro, no seu classico Os donos do poder, mostra como o patrimonialismo presente na estrutura feudal de Portugal medieval foi transposto para o Brasil, onde se ins- talou, atravessando o Periodo Colonial, a Monarquia e a proclamagao da Republica. E continua presente até os nossos dias, tendo perpassa- do os periodos de revolugao e golpe, pois nem as leis trabalhistas da era Vargas nem a ditadura militar das décadas de 1960 a 80 impediram a sua perpetuidade. Quando se estuda a cultura de um povo, de uma naglo, é poss vel acompanhar as diversas mudangas nos valores ¢ conceitos desse povo. Porém, cabe observar que sé através desse processo de longa duragdo é que se pode perceber como se dio as trocas culturais entre achamada cultura de elite (a produzida nos meios académicos e pelos + LEVESTRAUSS, Claude. Rapa e histcia Lisboa: Edloral Presenga, 1980, p. $5-56 Histéria do Direito no Brasil _ intelectuais orgdnicos) ¢ a cultura popular. Nesse proceso de cire ridade cultural vai ocorrendo a assimilagéio de valores e até mesix transformagio desses valores, favorecendo assim a génese e a ev. (0 na sociedade. 0 do Dire’ Fernand Braudel escreveu Para 0 historiador, tudo comeca, tudo acaba pelo tempo, tempo matemidtico e demirirgico, do qual seria facil sorrir, ter como que exterior aos homens, ‘exdgeno’, diriam os econo tas, que os impele, os constrange, arrebata seus tempos parti lares de cores diversas: sim, 0 tempo imperioso do mundo. E no tempo que se estabelecem as mudangas sociais, sejam ler ou nao. Porém, mesmo quando uma sociedade passa por mudan bruscas como golpes, revolugdes ou contrarrevolugdes, tais mudan nao podem ser percebidas de imediato, ainda que isso represent instituicdio de regimes ditatoriais, 0 uso de instrumentos de repress etc. Qualquer mudanga na sociedade s6 sera compreendida a lor prazo. De imediato 0 que existe ¢ 0 trabalho do jornalista relatand momento. Até porque as consequéncias do projeto politico ou soci: suas implicagdes somente serdo conhecidas a longo prazo, quande poderd constatar as permanéncias, as mudangas ¢ as trocas cultur S6 a longo prazo é possivel estudar as representagdes construidas proceso histérico. ‘Um exemplo do trabalho do historiador diante da histéria em co trugao e sobre a qual nao se pode ainda inferir muito ou quase nada o feita por Eric Hobsbawm em A era dos extremos: afirmag * BRAUDEL, Femand. Escrtos sobre a histcria, $0 Paulo: Perspectiva, 007, p. 72. 6 - Gilberto Aparecido Angelozzi Trata-se de comentar, ampliar (e corrigir) nossas memérias. E falamos como homens e muiheres de determinado tempo e lugar, envolvidos de diversas maneiras em sua historia como atores de seus dramas — por mais insignificantes que sejam nossos pa- péis =, como observadores de nossa época e, igualmente, como pessoas cujas opinides sobre o século foram formadas pelo que viemos a considerar acontecimentos cruciais. Somos parte deste século. Ele é parte de nds’ Nao quer dizer que nao se produza Historia na curta duragao, mas sim que a anilise histérica pode ser prejudicada pela impossibilidade de se compreender 0 conjunto de representagdes sociais produzidas em dado periodo. Essas representagdes so fruto de acomodagdes, perma- néncias ¢ transformag6cs sociais ¢ culturais de determinada sociedade. As representagdes podem evocar ao mesmo tempo auséncia ¢ presen- ¢a, podem expressar a realidade representada, podem surgir como uma realidade invertida ou um jogo de espelhos.* Para compreendé-las ¢ preciso desmontar as bases da ideologia, desvendar o que esté oculto, ou seja, desmontar a infraestrutura, o no visivel, o conjunto das rela- ges econdmicas de produgao que no decorrer da histéria humana tem servido de base as diversas formas de pensar e sentir e A organizacéo juridica, cultural ou politica das sociedades (superestrutura). Para lidar com tais questdes é necessario ndo abandonar as me- mérias, pois elas so plenas pelas de representagdes. A meméria é um elemento essencial que se costuma chamar de identidade, indi- vidual ou coletiva,’ expressando as atividades fundamentais de uma ' HOBSBAWM, Eric. A era dos extemos. $80 Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 13, + GINZBURG, Caro. Othas de mactira, So Paulo: Companki das Letras, 2001, p85. *LE.GOFF, Jacques. Historia e memeria, Campinas: Ecltore da Unicamp, 1996, p. 476, Histéria do Direilo no Brasil __ _ sociedade e de seus individuos. Na memoria se manifestam angiist raduzem em arte, comportament alegrias, celebragdes, etc. que maneiras de ser e estar, moda, gastronomia, priticas religiosas, mo Jos de familia, entre muitos outros elementos. Isso tudo nos pern concordar mais uma vez com Eric Hobsbawm: A tinica generalizaa cem por conto segura sobre a Historia é aquela que diz que enqua houver raga humana haveré Histéria, A Historia de que falame F uma ciéncia em consteugao, construida pelos homens, agentes expressam no seu cotidiano, na sivos ou ativos da Histéria, que cultura, as representagdes decorrentes do proceso histérico. Nc contexto, 0 Direito é uma dessas formas de representagio, uma da cultura humana que mostra a necessidade dos homens pres se protegerem e de protegerem o Estado, Através do Direito comy s de ordem, de bom e mau, de certo ¢ errado. endem-se os conceitos Direito também esta presente a ideologia e consequentemente a a dos intelectuais orgénicos, tudo isso se desenvolvendo no context processo hist6rico. Assim, faz-se necesséria uma Histéria do Dir que de fato leve em consideragio os processos culturais; caso con rio, ela seria apenas um relato de leis que desconsidera a Histéria mundo, propiciando uma visio limitada por ignorar a quase totalic dos agentes dessa mesma Historia. PRIMEIRA PARTE Da forma a crise do an’ 0 de Portugal 0 sistema colonial Capitulo 1 A formacao do reino portugués e as Ordenagées Afonsin No ano de 1096, apds as vitérias na Guerra de Reconquist Peninsula Ibérica, D. Afonso VI, rei de Castela, entregou 0 gov do Condado Portucalense a D. Henrique, conde de Borgonha, primo deste, D. Raimundo, rei da Galicia. Assim, 0 Condado Pc calense deixava de depender do Reino da Galicia para prestat ve lagem ao Reino de Ledo. Tal fato provocou grande descontentam entre a nobreza galega A Guerra de Reconq) 1139 D. Afonso Henriques, filho de D. Henrique de Borgonha, t a da Peninsula Ib¢rica prosseguiu vencido os mouros na Batalha de Ourique, declarou-se Rei dos tucalenses e nesse mesmo ano decretou a independéncia do Cond Somente em 1143, através do Tratado de Zamora, D. Afonso VI de Castela, reconheceu a independéncia do Condado Portucalen estabeleceu a paz. definitiva com Portugal. A partir dai Portugal passou a se organizar como reino ¢ n processo foi fundamental a Carta Foral, ou Carta de Foro. Tratav de um documento juridico auténtico, outorgado por uma autori« legitima, o rei, e destinado a regular a vida coletiva de uma po ¢&o, nova ou jé existente, formada por homens livres ou por aqu que o documento revestisse dessa condigao. Assim, a Carta Fora uma lei escrita, organica, local e relativa. Estabelecia as regras 1 — Gilberto Aparecido Angetozzi © povoamento ¢ o desenvolvimento agricola de uma regiao (Carta de Povoamento); normas morais e de conduta para melhorar o relacio- namento ¢ a vida coletiva da regio a que se destinava (Foral Breve); garantia a propriedade da terra ¢ o livre direito de aliend-la, em vida ou em caso de morte; determinava tributos e prestagdes devidos pelos vizinhos & entidade outorgante, visando evitar abusos e arbitrarieda- des (Foral Extenso). No mesmo periodo vigoravam em Portugal © Direito Canénico (que orientava também os demais reinos da Europa), 0 Direito Ro- mano € 0 Direito Visigético. Todos colaboraram para a formacao do Diteito Portugués, mais tarde aplicado no Brasil A formagao de Portugal fundamentou-se no patriménio, A época © lerrit6rio era dominado por uma nobreza feudal, embora jé surgis- se uma burguesia ansiosa pelo desenvolvimento comercial daquela Tego proxima ao mar, local de passagem de muitos comerciantes, entre os quais judeus, que acabaram ali fixando residéncia Dois séculos depois da independéncia de Portugal, o rein conti- ynuava mantendo a sua estrutura feudal. A peste-negra assolara a regio © outras partes da Europa. O anseio por mudangas tomava conta da burguesia. Com a morte do rei Fernando I, cognominado 0 Formoso, 0 Conflito se avultou especialmente porque todos sabiam que D. Leonor Telles, a vitiva do rei, desejava entregar Portugal ao Reino de Castela. Nesse momento eclodiu a Revolucao de Avis (1383-1385), que levou 40 trono D. Joao, filho bastardo de D. Femando e chamado de 0 mestre de Avis. Iniciava-se assim uma nova fase na Historia de Portugal Com a ascenstio de D. Joao I, 0 mestre de Avis, a0 trono por- tugués, fazia-se necessario organizar 0 reino. Assim, a nobreza ¢ a burguesia sairam favorecidas. Os nobres eram os homens bons que auxiliavam na administragao ¢ recebiam privilégios ¢ beneficios e os Histéria do Direito no Brasil - e favoreceram com o desenvolvimento comercial ¢ burgues bém ascenderam 4 condi¢ao de homens bons. Houve incentivo senvolvimento naval ¢ comercial e em pouco tempo Portugal re ‘a, Ceuta, no norte da Africa, em 141! va a sua primeira conqu No campo juridico, D. Joao I mandou reu- nir toda a legislagdo produzida em Portugal até aquela data e organiza-la em livros, por titulos © temas. Comegava a organizagaio das Ordena- Ges. O texto nao ficou pronto durante o governo de D. Joao I. Apés a morte do rei, em 1423, os trabalhos de elabora¢do continuaram no govern de D. Duarte (1423-1438). Porém foi 0 sucessor deste, D. Afonso V, quem publicou em 1446 0 texto juridico, com o nome de Ordenagdes Afonsinas. Nesse te ordenagées tratavam de questdes abrangendo todos os setores d econémica, social e politica de Portugal. Mas a forte influéncia « reito Canénico deixava transparecer nesse texto juridico um forte m dividido: ponente cultural-religioso. O texto era ass Livro I -- ocupava-se do direito hoje denominado administra trazia’os regiments dos cargos piiblicos régios e municipais Mandamos, que 0 que for Juiz dos Noffos feitos faga Audi € ouga os feitos em cada hum dia, e defpois que forem cone faca Rolagom delles na Méfa principal, onde eftever 0 regec Cafa, prefente elle, e os Doutores, e Defembarguadores do 0s quaces todos deputamos pera a dita Méfa, e feita a dita rol. daré em elles Sentengas, e defembargos, fegundo que por tox fobre ditos, ou maior parte delles for acordado, fem havet Gilberto Aparecide Angelozzi arte; @ effe Juiz conhecerd de outro aggravo pera outra nenhud p mn de todos os feitos, e demandas, que pertencé a Nos, affi per ra: Regueengos, como de Juguadas, vinhas, e figueiraaes, e olivaaes, © cafas, e todos os outros direitos, que perteécem a Nos." Livro II ~ referia-se a Igreja C ‘olica Apostélica Romana, 4 jurisdigao das pessoas ¢ aos bens eclesidsticos, Incluia ainda a definigao dos direi- tos régios, a jurisdi¢o dos donatarios, o estatuto dos fidalgos e o esta- tuto dos judeus e dos mouros."' Esse livro tem elementos interessantes Preocupa-se, entre outras coisas, com a questo da propriedade ¢ com © uso da terra. Assim, o Titulo XIV ndo permitia que clérigos e ordens religiosas comprassem terras sem a ordem do rei de Portugal. Nao era permitido que as igrejas e mosteiros herdassem bens com a morte de seus professos. Lembremos que o rei eta 0 grande dono de todas as terras, o senhor absoluto. Mesmo assim, o Titulo X, ao referir-se a uma antiga lei do rei D. Pedro I (1357-1367), apresentado como de famosa meméria, estabelecia que os clérigos deveriam agir como servidores do rei ¢ mandava atribuir terras aqueles que fossem lavradores. Seguindo esta I6gica de submissao da Igreja ao poder real, no Titulo XII encon- tramos a definigdo de Beneplcito Régio, que impedia a livre circulagao de documentos eclesidsticos em Portugal sem a autorizagdo expressa do rei, ordem que depois se fez presente na Constituigdio do Império, de 1824, ¢ est na raiz dos conflitos entre a Igreja ¢ o Estado no Brasil do final do século XIX. Dizia o texto das ordenagdes: ® Ordenagdes Atonsnas, Lio, Tuo VI, Do hie des Nofos Fets. Em todas as cagbes das Or Pra ittatr Col Ro (1967), marao, eo emo expr ese nio incipioironicamente devido & av esi esnica prc ~apcado 0s reen-comeris (apni esto judsica & came de porea) ~tomouse um termo geal de repidio que no séeulo XVI se sso os ngs Eon oe. ona Gsatan ores ans & pone do dko que © espanol comum sentia pelos conversos com quem convviam. Seu uso const cotano caresato de preconcao tavou o signa onal do vocab, Erm Santa ng {error e nuagem, pines (1977) apresenta as definigBes: "Marranos: As dervagées mais ceme is aceitveissugerem a oigem hebraica ou aramaica do termo. Mumar: converso,apéstala. hao min azn oscar an Gass oma ono mena sb 6c: Marae, Tatar so, pi, de um voabuo hereto acomodado as ingues bcs, Marit é a, cristo apenas na eparéncia, Maranis:homem batzado & forga. Mumar- comers kaa, Cra jante a eiminagdo da primera si convertido &forga. Contragdo dos dois termos hebraicos, mediante a eliminagao da pr ‘Anus, em hebraicn, significa forgado, volentado, (Jane Bichmacher de Glasman) 2 BETHENCOURT, Francisco. Histia dos inqusces. Sao Pal: Companhia das Loves, 2 Hist6ria do Direito no Brasil _ — 32 ___ Gilberto Aparecido Angetozzi talidade em 1521, quando Portugal ja realizara as grandes conquistas € 0 Império Portugués do Oriente prosperava, 0 estatuto juridico den atengao ao comércio e A administragao. Assim, quando os portugueses iniciaram a colonizacao brasileira, trouxeram as Ordenagdes Manue- Linas com elas toda uma estrutura social, econémica ¢ politica voltada 20 patrimonialismo e ao favorecimento dos interesses comerciais da coroa portuguesa. Nao se tratava de uma exclusividade dos portu- gueses, pois afinal toda a Europa vivia sob 0 mercantilismo, funda- mentado na necessidade de obter metais preciosos para movimentar as economias europeias. Uma das formas de se obter esses metais Preciosos era 0 comércio e por isso Portugal resolveu investir na pro- dugaio de agticar na nova colénia e assim atingir multiplos objetivos, ou seja, colonizar, defender o litoral e desenvolver a econom ia por- tuguesa, Para tanto foi adotado o Sistema de Capitanias Hereditérias, segundo 0 qual a costa brasileira foi dividida em 15 lotes atribuidos a 12 donatérios.* Os donatarios recebiam dois documentos comumente denominados de Carta de Doagio ¢ Carta Foral ou Carta de Foro, como defini anteriormente. Cabe aqui frisar que ambas sao cartas de foro, com a diferenga que a chamada Carta de Doai Propriedade da capitania, 0 seu carater hereditario ¢ os direitos do estabelece a tei de Portugal. Jé a Carta Foral estabelece a obrigagdo do donatirio de povoar a capitania, criar vilas, o seu direito de doar sesmarias (la tiftindios incultos ou abandonados) a quem tivesse escravos e capi- tal para cultivé-las, exceto judeus e estrangeiros; a obrigagdio- de usar ® Maranhaio (1° ote: Aires da Cunha que se associoua Jodo de Barros; Maranhao(2* ote): Femando Avares de Ancrade; Cearé: Antonio Cardoso de Bers; Rio Grande do Norte: Jato de Barros, sécio de ‘Aires de Cunha; tamaraci: Pero Lopes de Sousa; Pernambuco ou Nova Lusitnia: Duarte Coelho; Bahia de Todos os Santos: Francisco Pereira Coutinho; héus: Jorge de Figueiredo Comele: Porto Seguro: Pero {do Camino Touro; Espo Santo: Vasco Femandes Coutinho; Séo Tomé: Pero de Giis; Seo Vicente (divdida em dois otes: Sao Vicente e Rio do Janta): Matin Afonso de Sousa F mao-de-obra escrava," o direito de escravizar a populagio nati indigenas para Lisboa. O dona de enviar anualmente 39 escravos uir ¢ explorar enger podia vender aos colonos licenga para cons plantar cana-de-agitcar e produzir agucar, cuja comercializag: ssim, 0 donatirio e os colonc limitada pela coroa portuguesa. A: lizava o agicar na Eur podiam vender para Portugal, que comer Também s6 podiam comprar de Portugal. Impunha-se, portanto, © Colonial. Todas as salina se convencionou chamar de Exclusive capitania pertenciam ao donatario ¢ a vigésima parte da renda au (o do pau-brasil deveria ser enviada para Portt da com a explore Tudo isso dificultava de tal maneira a vida de donatirios € cok do Vicente que apenas duas capitanias se desenvolveram de Sao Vicente o primeiro nambuco -- sendo que da capitani: (Sao Vicente) faliu e 0 segundo (Rio de Janeiro) foi invadido p franceses, que ali permaneceram entre 1555 € 1567. Apés a expu Sebastido do Rio de Ja dos franceses, tormou-se Capitania de ro, sob 0 comando de Salvador Correia de Sa. ‘Nessa época surgiram em So Paulo diversas vilas, destacat se Santos, Santo André da Borda do Campo e Sao Paulo dos Can de Piratininga. Mais tarde, a 3 de novembro de 1709, com o fin Guerra dos Emboabas (1707-1709), as Capitanias de So Paulo, de Janeiro e as Minas de Ouro foram unificadas sob 0 nome de C tania de Sao Paulo ¢ Minas de Ouro. ainda as Ordenagdes Filipinas, texto juridico que se perpetuou no } sil para além da proclamagao da nossa independéncia ® Monopiio do Rei de Portugs! que, como em outros monopétos, podia conceder o diel ‘explorago a terceros, que se comprometiam a pagar parte dos ucros coroa portugues,

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