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(RELACAO ENTRE 0) TELHADO E A DUVIDA Por mais andares que uma casa tenha termina sempre no telhado. E assim a vida i do homem: por mais certezas que tenha, termina sempre na duvida. (Malgorzata Zajac) TERRA OCA até ao cimo do Ararat foi difi- E AS VARIANTES cil e ele descreveu 0 frio como DO PREDIO algo mais gelado do que o seu nariz. Depois de ter circunda- Galib al-Wadi empreendeu | do o Ararat por muitos anos, uma grande viagem com o | Galib al-Wadi encontrou, nao objectivo de subir o Ararat a | a Arca de Noé, mas um estra- procura da Arca de Noé. Foi | nho buraco que se prolongava um dos primeiros a fazé-loe | por uma distancia incaleu- a registar a epopeia. A subida | lavel. Galib acreditava que 0 diltivio teria acontecido, nao por causa das chuvas, mas sim causado por Agua que ir- tompera do chao através do buraco conhecido por tufan ou tannur e que se situa em Kufa. Ao descobrir o buraco no monte Ararat, Galib al- -Wadi reconsiderou a localiza- ¢ao desse Axis Mundi, O livro que escreveu, intitu- lado Os Interiores do Mundo, foi um sucesso na Pérsia dos séculos xv e xvi e ignorado pe- los séculos posteriores. Em re- sumo, 0 livro de Galib al-Wadi conta a histéria de como este entrou dentro da Terra através do Umbigo do Mundo e des- cobriu um mundo absoluta- mente extraordinario. Primei- To observou que muitas das descrigées biblicas, bem como. descrigoes mitologicas, se re- feriam aquele mundo e nao a este que esta a superficie. Um mundo que nao tem pro- fundidade nao pode ser ver- dadeiro, disse Galib al-Wadi. O mundo interior, o mundo de dentro é que 66 verd Galib comegou por atray um rio descrito por He que fazia sonhar quem m gulhasse nele. Se nadassi direccdo 4 nascente, son com o passado; e se nad em direccao a foz, sonha com o futuro. Depois de a varios dias, Galib chegou jun- to ao mar onde viu um poyo. que vivia dentro de peixes muito grandes. Cada fami- lia vivia dentro de um desses. animais. Com umas langas especiais abriam-lhes a boca e sentavam-se naquelas lin- guas a apreciar o por do Sol ou a pescar. O Sol do interior da Terra, segundo Galib al-Wadi, €o micleo desta. O trecho mais conhecido deste viajante prende-se com os monges bibliofitas, uma ordem com raizes nas trés religides monoteistas, que haviam construido uma enor- me biblioteca, com todos os classicos do mundo (conhe- cidos e desconhecidos, perdi- dos, queimados e aclamados) numa escarpa rochosa, com- pletamente lisa. Os monges viviam, sem nunca pisarem © chao, naquela imensa pra- teleira que se estendia até as nuvens e deslocavam-se através de um sistema de cestos e roldanas. Dormiam nos varandins das prateleiras, alimentando-se de passaros que cagavam com a ajuda de armadilhas e do produto de pequenas hortas suspensas. Galib al-Wadi, no entanto, garante que parte da sua sub- sistencia se devia também a dadivas do povo, de pessoas que viviam no solo, mesmo por debaixo das imensas pra- teleiras onde os monges bi- bliofitas habitavam. Filon de Alexandria dizia que a Tord € um ser vivo, e Origenes era da mesma opiniao (de principiis, iv, 2,4): o sentido literal € 0 cor- poe o sentido oculto é a.alma. Os monges bibliofitas, por sua vez, consideravam todos os livros como seres viventes, tal como a prépria biblioteca. Os livros tem uma das ca- racteristicas fundamentais dos seres vivos: reproduzem- -se (como qualquer bibliéfilo sabe}, com pudor mas sem conten¢ao, quando nao esta- mos a olhar para eles. Preci- sam de ser alimentados pela leitura ou acabarao por mor- rer inanes. Os monges tam- bém classificavam os livros por sexos, e a biblioteca era dividida em duas partes: a parte macho e a parte fémea. Os mundos para la das canalizacgdes Um dia, Stepunin descobriu, ao desmontar o ralo da pia da cozinha, um buraco. Stepu- nin, por curiosidade, esprei- tou 14 para dentro e viu como era escuro. Pegou numa pica- reta e abriu mais o buraco. Pa- cientemente foi ampliando o canal formado pelo esgoto da pia e conseguiu, apds dois dias de trabalho, enfiar a cabega no espaco escavado. Foi quando © espanto tomou conta dele. Ao fundo do buraco podia ver distintamente um céu com estrelas. O facto de haver um céu por baixo dos nossos pés foi uma surpresa enorme. Ste- punin, um homem respeita- do, neto de um dos maiores peritos em Pushkin, apareceu em Vilnius com a sua desco- berta: debaixo desta casca que pisamos esta um céu, dizia ele. Levou para a Academia das Ciéncias uma série de es- tudos ¢ desenhos que cle pré- prio fizera do mundo. A partir daguele momento, os homens precisavam de vergar-se a evi- déncia de que a Terra € oca e que dentro dela existe uma espago sideral, igual ao que vemos quando olhamos para cima. Stepunin argumentava que no meio desse céu — que se via através do esgoto da sua Casa — estariam planetas como © nosso e, porventura, num desses astros, haveria um homem chamado Stepu- nin, também ele assombrado pelo que descobria ao arranjar os seus canos. Também ele andaria sobre uma fina casca que envolvia outro céu estre- lado, com outros planetas e outros Stepunins. A comuni- dade cientffica achou que ele tinha enlouquecido e nem 0 testemunho de duas criadas de Stepunin levaram aquelas eminéncias a espreitar pelo famoso esgoto. Um ano mais tarde, © exército soviético acabou com as canalizacdes daquela casa — onde a casca entre os mundos era muito fininha — precisamente no instante em que Stepunin, de gatas, enfiava a cabeca no esgoto para ver aquele céu deslumbrante que, sem que- rer, andamos a pisar. As ma- quinas, cegas como todas as maquinas, passaram a casa a ferro ¢ Stepunin desapareceu deste mundo. Provavelmente caiu naquele espaco imenso que andamos a pisar. yo O pai dele, quando soube do sucedido (0 corpo nunca apa- receu), foi até ao monte das Cruzes (Kryzi Kalnas), perto de Siauliai, ¢ pés 14 uma cruz pelo filho desaparecido. As cidades do segundo esquerdo Empédocles chamava Discér- dia |Neikos) a uma substancia que pode ser misturada com agua e corante e usada como tinta. A sua acgao, quan- do aplicada sobre as coisas, provocaum afastamento, uma expansao e foi assim que o universo foi criado. No Inicio foi adicionada uma quantidade razoavel desta Discérdia a um ponto muito concentrado de Matéria e 0 universo comecou a existir. A substancia responsavel pela expansdo do universo, segun- do a métrica de Friedman- -Lemaitre-Robertson-Walker, foi comercializada, nas pri- meiras décadas do século xx, com o nome de Quadraturin. Foi posta a venda em peque- nos tubos e deveria ser apli- cada como um verniz. Um tusso de nome Sutulin acabou por se tornar a vitima mais conhecida desta substancia. Usou a esséncia de Quadra- turin para aumentar o local onde vivia que, de tao peque- no, parecia uma caixa de fés- foros (para usar a expressio do proprio). Na verdade, esta his- t6ria foi relatada pelo escritor Sigizmund Krzhizhanovsky. Num pequeno conto, Krzhi- zhanovsky descreve como as paredes do cubiculo de Sutu- lin, depois de pinceladas com Quadraturin, comegaram a afastar-se como um universo _aser criado. Sutulin ficou jun- to a sua cama, sozinho, inca- paz de chegar 4 porta do quar- to, que era uma realidade cada vez mais distante. Os seus gri- tos perdiam-se no deserto de soalho onde estava. Em 1957, Melquisedeque San- tos, enquanto visitava um coleccionador que dava pelo nome de Visconde Anagra- miatico, deparou-se com um pequeno frasco (vazio) de Qua- draturin. O rétulo dizia outra coisa (Tetratox], mas a subs- tancia era a mesma: a forga medieval que fazia o univer- so expandir-se sem qualquer consideragao pela proprieda- de privada. O Visconde ex- plicou a origem do produto referindo-se 4 cosmogonia de Empédocles. Alertou Melqui- sedeque Santos para 0 uso de uma substancia tao perigosa. A Discérdia (Neikos) do filé- sofo pré-socratico opunha-se a outra forca, o Amor (Philia). A Discordia fazia com que as coisas se afastassem, enquan- too Amor as aproximava. Em certo sentido, o Quadraturin era um produto infernal, tene- broso. Melquisedeque Santos ignorou Os avisos e, maravi- lhado pelo potencial daquele produto, tentou reproduzi-lo em laboratorio, seguindo as instrugées do préprio Viscon- de e de um antigo livro de Aristeu. Entretanto, sonhaya com cidades inteiras. Imagi- nava que, no prédio onde vi- via, caberiam varias cidades, No segundo esquerdo, que era o seu andar, poderia meter uma espécie de Londres. Do outro lado, algo como Bagda- de ou Lima. No terceiro direi- to punha uma cidade como Zagreb e, no rés-do-chao, para nao ter de subir escadas, Mar- raquexe. E, naquele prédio, onde poderia ter inimeras cidades, poderia, dentro dos prédios de cada apartamento dessas cidades, ter mais um sem-numero de cidades. Ci- dades dentro de cidades como uma boneca russa comprada numa loja de turismo. Poderia ter universos inteiros dentro de apartamentos mintisculos. E dentro desses universos, ainda mais universos, ad in- finitum. E, visto de fora, esse conjunto de universos nao passava de um prédio de su- burbio, com umas plantas no Atrio e um elevador para quatro pessoas. Acabavam-se assim os problemas globais, haveria espago para uma po- pulagdo imensa, culturas imensas e, claro, sem qual- quer prejuizo para 0 meio am- biente. Na verdade, o mundo poderia ser uma grande area natural a cercar um Unico prédio, o tal com elevador Para apenas quatro pessoas. Porém, Melquisedeque San- tos, racionalista como qual- quer Platao, sabia que tudo isto continha algo de impro- vavel. Procurou a solugaéo na Matematica que é a ciéncia mais geométrica. Lembrou- -se do grande Hotel de Da- vid Hilbert e dos nimeros transfinitos de Georg Cantor. Esta historia convenceu-o de que estava no bom caminho: Imagine-se um hotel com quartos infinitos. Um dia, chega uma excursao de infi- nitos excursionistas. O recep- cionista coloca cada pessoa em cada quarto. Mas, no dia seguinte (porque é Agosto no Sul de Espanha) chega mais uma excursao de infinitos turistas. O recepcionista fica baralhado, mas ha varias so- lugées simples, esta é uma delas: os turistas infinitos da primeira excursdo ficam nos quartos pares e os da segunda excurs4o nos quartos impares. Assim, caberiam pelo menos dois infinitos no mesmo hotel, do mesmo modo que, usan- do o tal produto, 0 Quadra- turin, poderiamos ter varios mundos dentro de um pré- dio. Alias isso explica como € possivel existirem infinitos universos paralelos no uni- verso apertado onde vivemos. E se a Matematica consegue meter duas excursées infini- tas no Hilbert de Marbella, nao haveria motivo para San- tos duvidar da eficdcia de um produto como o Quadraturin. Depois de varios anos de ten- tativas frustradas, Melqui- sedeque Santos conseguiu finalmente fabricar Quadra- turin (ow Tetratox). Exultan- te, misturou uma chavena de produto num balde de 4gua, e aplicou-o nas paredes. Ador- meceu de exaustao, depois de pincelar a casa durante horas. Santos nunca chegou a acor- dar do seu sonho de cidades dentro de cidades. As paredes nao chegaram a expandir-se e aandlise quimica do produto aplicado naquele apartamen- to, que enchia a casa com um cheiro de gengibre, revelou ser um veneno que provoca para- lisia muscular. Porque nao se conseguia mexer, para Mel- quisedeque Santos, as paredes da sua casa, a porta, o telefo- ne, estavam a uma distancia inalcancavel. Tao longe quanto as estrelas mais distantes do nosso uni- verso. A parede dos bibliofitas Gomez Bota alega ter atraves- sado o deserto de Sofronia em 1889. Dois anos depois voltou {se € que chegou a partir) com uma teoria tao fantastica que acabou internado. Quando 0 vi pela primeira vez, tinha o cabelo despenteado, castanho- -escuro, e caido sobre a testa. Engelhava constantemente o nariz e, quando falava, lim- ava os cantos da boca com 0 dedo médio e 0 polegar. Mos- trei-lhe uma das suas fotogra- fias. Ele nao pareceu reagir, apesar de ter engelhado o nariz. Mas isso, fazia-o cons- tantemente. A fotografia mos- trava uma parede. Bota passou os dedos pela imagem. — Era uma parede sem fim. — Na fotografia, € apenas uma parede. — Uma parede sem fim nao cabe numa fotografia. Eu nao estou louco. — Claro que nao — assenti. —No fim do deserto de Sofr6- nia, existe uma parede cujas dimensées sao incalculaveis. Nao se consegue ver-lhe o fim e os homens que levava comigo, apesar de escavarem varias dezenas de metros, nao encontraram sinal de ter um fim. Bota, uma década antes ti- nha empreendido uma das mais aventurosas viagens ex- ploratorias, ao decidir atra- vessar 0 deserto de Sofronia que, como se sabe, é uma das maiores incognitas da nossa geografia. Os nativos contam, sobre aquelas areias, lendas fabulosas. — Andamos durante meses ao longo daquela parede, Pare- cia nao ter fim. —Ea agua? — Escorria pela parede. As nuvens batiam no cimento (a parede era feita de cimento} e, por condensacao, formavam- -se gotas. Nés encostavamos a boca a parede e sorviamos a agua. Nao era saborosa mas mantinha-nos hidratados. Gomez Bota afirmava — ¢ © seu testemunho funda-se claramente na fantasiosa des- crigdo do viajante persa do século xv, Galib al-Wadi — que junto a parede, depois de caminharem quilémetros, encontraram uma prateleira imensa onde viviam monges que nunca pisavam o chao. Viviam nas prateleiras junto dos livros e cultivavam pe- quenos canteiros e cacavam passaros. Mesmo no meio da prateleira havia uma porta que Bota transpés, vendo-se entao no atrio de um prédio. Experimentou abrir outras portas € reparou que cada uma encerrava universos completamente diferentes. Uma das portas, a do primei- to esquerdo, dava para 0 es- paco sideral enquanto outra, no segundo direito, dava para um universo com apenas um metro e oitenta de altu- ra. Bota garantia que, porque media um metro e oitenta e trés, tinha de andar agachado. Alguns universos, pela sua ex- pansdo, davam a sensacao de serem redondos quando trans- posta a porta, mas, do lado de fora, nado passavam de um apartamento vulgar. Gomez Bota estava acima de tudo perplexo pela possibilidade de cada um dos apartamentos conter prédios como aque- le. Prédios esses que teriam, por sua vez, varios univer- sos diferentes dentro deles. Mediquci-o com morfina ¢ prescrevi uma terapia de cho- ques. Gomez Bota, ao fim da primeira semana, comegou a mostrar algumas melhoras, apesar da apatia decorrente da terapia. Julgo que a loucura de Bota se deve a uma neces- sidade de encontrar o marayi- Thoso:na Yotina, nda lugares onde vivemos e por onde pas- samos todos os dis, Ha outra coisa que poderé ser irrele- vante, mas que nao posso dei- xat de andtiat: o'tique nexvoso de Bota, o engelhar do nariz, lembra-me um coelho ¢ tal- vez nao seja despiciente lem- brar que as viagens de Galib al-Wadi — cuja influéncia nas efabulagées do meu paciente sao evidentes — sao a descri- cao de um mundo maravi- lhoso que 0 viajante encontra depois de entrar num buraco. E demasiado semelhante a uma toca para passar desper- cebido a um olhar atento aos simbolos. Quando voltar a encontrar Lewis Carroll no meu consultério, pedir-lhe-ei asua opinido, sem, claro esta, comprometer 0 sigilo médico. Numa das nossas consultas, resolyi perguntar a Bota se a humidade que escorria pelas paredes néo destrufa os livros. — Os monges — disse-me ele — estio constantemente a copiar os livros. Aquela bi- blioteca é como o nosso san- gue, esta sempre a renovar as suas células. Curiosamente, desde que ouvi o testemunho de Gomez Bota, passei a ter um certo te- mor cada vez que entro num apartamento desconhecido. (Arseny Bobrov, Extracca9 Craniana da Arte)

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