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CAPITULO I OS CONCEITOS DE GUERRA A guerra pode ter para povos diferentes significagses distintas, Para uns, € uma praga que precisa ser eliminada; para alguns, um erro que deve ser evitado; para outros, um crime que deve ser punido e finalmente para muitos um anacronismo que ja nao tem nenhuma finalidade. Por outro lado, existem algumas pessoas que tém mais receptividade em relagdo a guerra e conside- ram-na uma aventura que pode ser interessante, um instrumento que pode ser Util, um procedimento que pode ser legitimo e apropriado, ou uma circuns- tancia da vida para a qual se deve estar preparado. Para as pessoas que se enquadram neste ultimo tipo a guerra nao é problema. Elas a admitem como certa, seja com impaciéncia, complacéneia ou preocupagdo. As peculiaridades dela podem ser surpreendentes ou desagradéveis, mas nao so interpretadas como apresentando um problema de guerra em geral. Podem ser tratadas satisfatoriamente por historiadores profissionais, diplomatas, juristas interna- cionais ou estrategistas. Para o primeito grupo, entretanto, a guerra em geral ¢ um problema, e ndo ha divida de que este grupo aumentou no ultimo século, especialmente nos tiltimos vinte e cinco anos, até vir a se constituir na maioria da raga humana, muito embora em alguns pafses e regides possa constituir minoria, 1, A Guerra Como Problema O desenvolvimento da opinifio de que a guerra é um problema pode ser atribuido a quatro tipos de mudangas: (a) a redugdo nas distancias no mun- do; (b) a aceleragao da Hlistéria; (c) o progresso nas invences bélicas e (d) 0 advento da democracia. a) A redugio nas distancias no mundo. — A moderna tecnologia reduziu os tempos que se gastam hoje em transportes em ambito mundial em relac&io ao que se gastava na Europa ou nos Estados Unidos, em 1790 e torou mais rapidas as comunicagées do que eram ou sdo na Camara dos Comuns ou no Saldo da Independéncia. O resulta- do foi que os povos de todos os quadrantes ficaram com a economia, a cultura e a politica interdependentes. Tomaram mais conhecimento e ficaram mais afetados pelas guerras em geral, mesmo as mais distantes. Outrora os conflitos passavam desapercebidos ao homem comum, a nao ser que fossem muito préximos. Hoje em dia qualquer guerra interfere no ritmo de vida de quase todos. b) A aceleragao da Historia. — O progresso da ciéncia, as invengbes e 0 rapido intercdmbio de idéias e de técnicas contribuiram para acelerar o ritmo das mudangas sociais. Antiga- mente uma pessoa podia admitir que a técnica e as praticas econdmicas, os cédigos sociais e morais e 0 esquema de valores que herdara de seus pais durariam por toda a vida;\hoje em dia cada um destes aspectos pode mudar varias vezes durante uma existéncia//A educagao enfatiza mais os processos de aprendizagem e de vida do que as técnicas e dogmas tradicionais. Mas mesmo com a educagdo moderna as répidas e radicais mudancas exigidas sfo dificeis, tanto para as pessoas quanto para os individuos. As mutagGes divergem entre regides, classes e grupos, gerando tenses maiores e mais guerras e conflitos do que em séculos mais tranqiilos. ©) O progresso nas invengdes bélicas. — A introdugo no mundo moderno, a partir do século XVIII do servi- go militar universal, de eficiente propaganda nacional, de governos com totali- tarismo centralizado e também a industrializago de equipamentos e transpor- tes militares e a invencdo de submarinos, avides, m{sseis e artefatos nucleares tornaram © comércio, a indistria e a populagdo dos diversos paises, de uma maneira geral, mais vulnerdveis a ataques, dando 4 guerra um cardter totali- tério sem precedentes na Histéria. Em conseqiléncia desta alteracdo ria nature- za da guerra e da crescente interdependéncia econdémica dos povos, a guerra tende a se propagar mais rapidamente, a destruir em maior amplitude a vida e a propriedade e a desorganizar a economia dos estados em maior extensio do que outrora. Também a preparacdo, a condugo e a recuperacao da guerra tendem a dominar a vida politica, econdmica e social dos povos. d) © advento da. democracia. — O desenvolvimento das comunicages, o aumento da alfabetizacao e a melhoria no nivel de vida, em geral, propiciam o surgimento de uma cons- ciéncia nacional entre os diversos povos. Isto tem significado que uma opinigo pablica favorével tormou-se uma condigdo necesséria a uma polttel aia bem sucedida e que se tem insistido bastante numa crescente participagao popular no governo. A politica externa e a guerra deixaram de ser mistérios ¢ se tomnaram atividades em que 0 povo pode influir e até mesmo controlar. Embora seja dificil precisar a responsabilidade por sua eclosfio, a guerra é comumente vista como‘uma atividade desencadeada pelos homens, mais do que um-castigo de Deus ou uma obra do diabo.\A democracia tem estimulado avontade do povo em eliminar a guerra, embora no tenha ainda dado lucidez suficiente para encontrar os meios de bani-la.} Ja que o mundo temn-se tornado menor, j4 que as mudangas ocorrem com mais rapidez, j4 que as guerras sio mais destruidoras ¢ j4 que os povos tém mais consciéneia da responsabilidade humana sobre a guerra\a ocorréncia dos conflitos bélicos tornou-se um problema para um ntimero maior de pes- soas, das quais uma proporedo crescente acredita que a eliminago da guerra das relagdes internacionais é nao apenas desejével como também possivel. / 2. As Definigbes De Guerra No sentido mais amplo a guerra é um contacto violento de entidades distintas mas semelhantes. Nesta concepgao, uma colisio de estrelas, uma luta entre um ledo ¢ um tigre, o entrechoque de duas tribos primitivas e as hostili- dades entre duas nagdes modernas — seriam todas uma forma de guerra. Esta definigao abrangente foi elaborada para finalidades profissionais por juristas, diplomatas e militares ¢ para efeito de discussio cientifica por socidlogos ¢ psicdlogos. ~ Os juristas internacionais e os diplomatas em geral aceitam a concepgao de Grotius na qual a guerra é “a condigfo dos que se enfrentam por meio da forca”, embora tenham com freqiiéncia excluido da concepgio os duelos ; individuais e as insurreig6es, as agressées ¢ outras condigdes de contengao violenta entre entidades juridicas desiguais. Além disso, eles insistem que “forga”” se refere a forga militar, naval ou aérea, ou seja, “forca armada”, | excluindo assim da definigZo contendas que envolvam apenas forgas morais, legais ou econdmicas. Grotius criticou a definigdo de guerra de Cicero, “uma contesta¢ao pela forca”, porque, disse ele, a guerra era “nao uma contestacdo mas uma condi¢ao”. Os diciondrios modernos, entretanto, seguem Cicero e os socidlogos tém aceito a mesma concepgao popular com o esclarecimento de que uma contenda violenta ndo pode ser chamada guerra a no ser que envol- va conflito real e constitua uma forma ou costume socialmente reconhecido na sociedade em que ocorre.|Do ponto de vista sociolégico a guerra ¢, portan- to, uma forma socialmente reconhecida de conflito entre grupos, envolvendoy violéncia. ~ As definigGes legal e sociolégica sugerem que os “estados de guerra” se distinguem por posigdes bem definidas no tempo dos “estados de paz” que os Precedem e que se seguem a eles, Os juristas internacionais tém tentado elaborar critérios precisos para determinar.o moments em que a guerra come. ga_e termina, mas no tém obtido sucesso completo e, além. disso, tém sido ‘obrigados a reconhecer a existéncia de intervengdes, agressdes, tepresilias, expedigdes defensivas, sangOes, neutralidade armada, insurreigdes, rebelides, violéncia popular, pirataria e banditismo intercalando-se_ em posigdes inter- Inedidrias entre guerra e paz no sentido em que estes termos so em geral entendidos. O reconhecimento de tais situagdes langa diivida sobre a Yealidade de uma distingdo perfeita entre guerra © paz e sugere a conveniéncia de, buscar, uma yaridvel para a qual guerra e paz seriam posiges extremas. Esta variavel pode ser encontrada nas formas externas ov na substancia interna ‘das relacdes int ionais. = "Os escrifores militares com tendéncia filos6fica tém procurado a varié- vel nas formas externas, dando énfase aos graus em que os métodos militares sdo empregados. Assim, Clausewitz definiu a guerra como “um ato de violén- cia destinado a obriger os advers4rios a satisfazer nossa vontade” e noutra passagem ele enfatizou a’ continuidade da violéncia com outtos métodos polf- ticos. “A guerra”, escreveu ele, “nfo é senfo a continuagao das acdes politicas com o acréscimo.de outros meios”, ~ — Os psic6togos, ignorando a forma, encontram a sul graduagao de hostilidade no relacionamento entre _estados. “comparava as oscilagGes de guerra e paz as cot © mau tempo n@o se define numa ou duas precipitagdes atmosféricas mas sim na tendéncia observada em varios dias consecutivos, assim também a guerra consiste no na luta momentinea mas sim na disposi¢Zo manifesta de lutar de forma continua ¢ sem reversio”. Assim como as condigdes atmosféricas po- “Gem apresentar diferentes graus de bom tempo ¢ de mau tempo, também as relacdes entre estados podem ser cordiais, amigaveis, corretas, tensas, suspen- sas, hostis ou assumir formas intermedifrias nesta escala. Pode-se assim conceber as relagdes entre dois estados como em conti- nua variagao, podendo, eventualmente, chegar a uma situagdo que possa ser descrita pelo termo “guerra”, embora outros estados possam ou nfo reconhe- cer a situacdo juridicamente como estado de guerra e tenha on na se configu- tado a forma precisa de’conflito que os sociélogos enquadram como guerra. Subjetivamente pode haver guerra, sem que de forma objetiva ela exista. Seja qual for a concep¢o escolhida, a guerra aparece como a espécie de um género mais abrangente. A guerra é apenas uma das muitas situagGes legais andmalas.\E somente uma das numerosas formas de conflito/ Nao é sendo um caso extremo em atitudes de grupo. E tdo-somente um récurso a violéncia, em -larga_gscala, Um estudo de cada uma destas categorias mais amplas quando aplicado a éaracteristicas especificas da guerra — situagGes legais de excegdo entre partes, conflitos entre grupos sociais, atitudes-hostis de grande’ intensi- dade ¢ violéncia intencional através do emprego da forca armada — podem esclarecer o fendmeno da guerra, lembora a guerra em si nfo exista sendo quando a hostilidade ¢ a violéncia, 20 mesmo tempo, passam- além de um patamar, configurando uma nova situagdo que a lei é 0 consenso reconhe como guerra. Combinarido os quatro pontos de vista, a guerra pode ser vista comé’tim estado legal e uma forma de conflito envolvendo um alto grau de paridade legal, de hostilidade e de violéncia nas relacdes de grupos humanos organiza.’ dos ou, de forma mais simples, como 4 condigdo legal que permite igualmente a dois ou mais grupos hostis empreenderem ui conflito através de forga armada. Convém notar que esta definicdo subentende uma solidariedade social na comunidade de nagdes na qual ambos os beligerantes-e o8 fieutios sto membros para se permitir um reconhecimento geral das atitudes e padres apropriados a situagdo de guerra, Embora a guerra revele a fraqueza da comu- nidade de nagGes, evidencia também a existéncia dessa comunidade. 3. As Manifestagdes Da Guerra A definiggo de guerra deve ser estrufurada a partir ndo da andlise da / literatura, mas. sim da andlise das guerras./Os eventos histéricos chamados — guerra tém-se caracterizado por (a) atividade militar, (b) alto nivel de tenso, (© direito de excegao e (d) intensa integragdo polftica de cada beligerante. a) Atividade militar. — A manifestago mais evidente de guerra é a movimentacdo acelerada € a atividade dos exércitos e das forgas navais e aéreas. Embora os estados modernos estejam o tempo todo engajadas na movimentagao de forcas de um. lado para outro, na construgdo de vasos de guerra, de avides, de misseis, na fabricagdo de munigées,-na organizacZo e no aprestamento de forgas ¢ no estabelecimento de apropriagées militares — a guerra é marcada por grande aceleracao 1 no destas atividades. Alguns eventos como mobiliza- G40, CoiiscrIGao, bloqueio, sitio, combate organizado, invasio e ocupagdo po- dem ocorrer sem que haja guerra; mas eles ocorrem com mais freqiiéncia e maior amplitude durante a guerra Os termos batalha, campanha, guerra, cor- tida armamentista ¢ atividade militar normal designam uma certa intensidade de atividade militar. O tipo dos eventos ou condigées caracterizadas por cada um dos termos de ordenagdo revela uma intensidade menor de atividade militar mas uma abrangéncia maior no espago e uma duracdo mais prolongada no tempo em que cada atividade se desenvolve. . (1) Batatha, — O tipo mais concentrado ‘de atividade militar ¢ representado pela batalha. Ela pode ser empregada como termo genérico para englobar um perfodo de contacto direto continuo de forgas armadas, no qiial pelo menos um dos lados est4 engajado em ofensiva t4tica. Pode haver batalha de forcas terrestres, navais ov aéreas. Pode havér apenas uma batalha combinando todas estas forgas como, por exemplo, no envolvimento de um porto ou numa opetagio de desembarque.:Ein guerras de outros séeulos, as batalhas, via def \ regra, foram eventos identificaveis, raramente durando, exceto no caso de sftios, mais de-um dia, raramente se espalhando por uma drea com mais de 30 quilémetros quadrados e raramente envolvendo mais de 100.000 homens. Isto jA ndo.acontece mais hoje. O avango no aperfeigoamento de equipamentos de ‘comunicagdes e nos meios de transporte, de defesa e ataque possibilitou o controle militar centralizado sobre enormes efetivos operando em dreas mais amplas, em, perfodos mais dilatados. Alguns epis6dios da I Guerra Mundial classificados como batalhas duraram varias semanas, estenderam-se por deze- nas de milhares de quilémetros quadrados ¢ envolveram milhdes de homens. Por causa da imobilidade da guerra de trincheiras essas batathas se assemelha- vam mais a operagées de sitio do passado do que a confrontos entre exércitos dispostos frente a frente. Na Il Guerra Mundial novas técnicas restauraram a mobilidade e as batalhas se espathavam por reas maiores. As batalhas de outrora eram conhecidas pelos nomes de cidades (Saratoga, Waterloo, Gettys- burg, Porto Artur); na I Guerra Mundial as batalhas tomavam o nome de rios ou de 4reas (0 Mame, o Somme, Flanders) e na II Guerra Mundial usava-se 0 nome de paises ov oceanos (Noruega, Bélgica, Franca, Grécia, Russia, Atlan- tico). Se uma guerra nuclear.vier a ocorrer, haverd apenas uma batalha e tomard provavelmente o nome de um continente ou hemisfério. A configura- cdo de uma batalha pressupde assim uma continuidade de contacto, de opera- 6es ofensivas e de controle central das forgas em confronto. * ‘Na Historia moderna parece ter havido cerca de 3.000 batalhas em que © mimero de baixas (mortos, feridos e prisioneiros) foi no minimo de 1.000 homens, em batalhas terrestres e 500 em batalhas navais. Embora a maior parte destas batalhas tenha ocorrido durante guerras, houve algunias que ocor- teram fora desse contexto, tendo havido muitas guerras nas quais ndo ocorreu “ sequer uma batalha com a magnitude acima especificada. Se tivesse sido ado- tado um limite mais baixo de perdas, o nimero de batalhas teria sido muito maior. Das 3.000 batalhas ¢ sitios, os Estados Unidos participaram de 150 e, deste ntimero, a Marinha americana participou apenas de 15. De 1775 a 1900, unidades do Exército dos Estados Unidos éngajaram-se em mais de 9.000 diferentes batalhas e escaramugas. Unidades navais americanas engajaram-se contra forcas adversas, navais e terrestres, em 1.131 episddios diferentes, tendo capturado cerca de 4.000 navios mercantes. E provavel que o ntimero- de encontros hostis, distintos, entre forcas armadas regulares tenha sido 100 vezes maior do que o ntimero de batalhas. Houve, provavelmente, mais de um quarto de milhfo de encontros bélicos no mundo civilizado, desde 1500, numa média de mais de'500 por ano. (2) Campanha. — Um tipo menos concentrado de atividade militar do que a batalha ¢ a campanha. O termo é usado para designar um conjunto de operagdes militares dentro de um: periodo limitado e coordenado por um plano estratégico sob o | controle de um tnico comando. Diversas batalhas podem ser empreendidas durante uma campanha, mas uma campanha pode ser conduzida sem qualquer contacto real com o inimigo. Uma campanha, entretanto, envolve desloca- mentos de exércitos ou de forgas navais e aéreas, estando no minimo um dos cponentes empenhado em ofensiva estratégica, como a ocupacdo de um terri- trio hostil, a obteng%o de recursos do inimigo, a destruigdo de forcas adver- sa, 0 bloqueio de territério hostil, o aniquilamento do moral civil por meio de ataques militares ou a consecugdo de outros objetivos militares. £ mais comum A campanha do que A batalha combinar a atuagdo do exército e da marinha; via de regra, entretanto, ela empenha apenas uma forga singular. No passado, as campanhas eram eventos que se podiam identificar, raramente durando mais do que seis ou oito meses (a estagio das campanhas militares na Europa, com freqiiéncia, terminava no invemo), envolvendo dois ou trés exér- citos de 50.000 a 100.000 homens cada um. As campanhas navais, as vezes, cobriam 4reas mais amplas e se prolongavam por perfodos mais longos, mas em geral engajavam efetivos menores. As condigées que provocavam o aumen- to na duracdo, na drea e no efetivo das batalhas afetavam de igual forma as campanhas. Em guerras recentes, de vulto, tem sido dificil tanto distinguire identificar campanhas quanto batalhas. Em hostilidades de menor vulto, como guertas colonialistas, intervenc6es ¢ insurreigSes, a atividade militar em geral se desenvolve em campanhas. Assim, muitas, campanhas silo empreen- didas sem que exista estado de guerra reconhecido. Embora no século’ XX (1900-1964) tenha havido apenas 30 guerras, houve mais de 650 campanhas, ‘das quais mais do que $00 se desenvolveram independentemente das guerras travadas. Durante este perfodo houve mais de 1.000 batathas, cada uma delas com mais de 1.000 baixas. B provavel que 0 nimero de campanhas tenha sido téo grande quanto o nimero de batalhas desta magnitude durante todo o perfodo modemo, embora algumas nao con- tivessem nenhuma batalha e muitas delas reunissem um grande nimero de batalhas. . : (3) Guerra. — Sob 0 ponto de vista militar ¢ mais diffcil identificar guerras do que batalhas ¢ campanhas. A configuragdo de uma guerra depende mais de aspec- tos legais e politicos do que de atividades militares. O comego e 0 fim de um estado de guerra legalmente reconhecido pode ser evidenciado por declaragdes formais, reconhecimentos e tratados, mas as hostilidades que se prolongam bastante para serem consideradas como guerra, propriamente, podem ocorrer sem que haja definigao de comego e de fim, exceto o primeiro e 0 tiltimo ato de guerra. Alguns perfodos de guerra tém sido caracterizados por movimentos militares de envergadura ¢ freqiiéncia atfpicos. As batalhas e as campanhas de uma guerra em geral estao associadas pela continuidade de dire¢do politica de cada um dos beligerantes ¢'a permanéncia de um grande objetivo estratégicd, \ pelo menos’ por. parte de um’ dos estados participantes. Estas condigdes e telagdes, entretanto, nem sempre estdo presentes. Sob 0 ponto de vista mili- tar, a guerra, em regra, ndo tem limitagGes de espago e de tempo tao definidas quanto uma batalha ou uma campanha. Sob o ponto de vista legal, suas limitagdes de tempo e espago, pelo ménos quanto a parte terrestre, so em geral precisas. A atividade militar de uma guerra raramente tem tido uma continuidade. superior a cinco anos, embora tenha havido a Guerra dos Cem Anos, a Guerra dos Trinta Anos, a Guerra dos Sete Anos e diversas outras guertas como as ‘da revolugdo francesa e as napolednicas, nas quais alguma modalidade de atividade militar perdurou por mais de cinco anos. Estes perfo- dos, entfetanto, eram em geral interrompidos por longas tréguas. Algumas destas guerras tiveram em seu curso mudangas revoluciondrias no controle politito de todos ou de alguns dos beligerarites, o desaparecimento de antigos beligerantes e 0 aparecimento de novos, assim como mudancas radicais nos objetivos da guerra ou dos grandes objetivos estratégicos da maioria dos parti- cipantes. Desta forma, a seqtiéncia continua de tempo-espaco que em sentido legal caracteriza uma guerra ndo tem sido necessariamente acompanhada por unidade ou uniformidade de atividade militar intensa. Embora nas praticas legais internacionais 0 estado de guerra entre duas poténcias comece e termine em momentos precisos, tem-sido com freqiiéncia dificil fixar na pratica estes momentos, Pelo menos 284 guerras ocorreram entre 1480 e 1964. Estes eventos se distribuiram, em importancia, de episodios pequends, envolvendo apenas dois pafses modestos e durando s6 alguns meses, até eventos como a Guerra dos Trinta Anos, que envolveu a maior parte do continente europeu; a Guerra dos Sete Anos, incluindo a maior parte das poténcias européias e levando as hostilidades & América, India e aos oceanos; e al Guerra Mundial que durou, no caso de certos beligerantes, por dez anos envolvendo, por vezes, metade dos pafses do mundo e¢ inchuindo hostilidades na Europa, Asia, Africa e nos oceanos. A II Guerra Mundial espathou-se ainda mais. No século XX, antes de 1964, houve 30 guerras e quase todos os estados existentes neste perfodo participaram pelo menos de uma delas. - (4) Corrida armamentista. — Um tipo ainda menos preciso de atividade militar é a corrida arma- mentista, Ela se caracteriza menos por movimentagao militar e choques arma- dos, embora estes eventos possam ocorrer, ¢ mais pela aceleracZo nos pafses envolvidos do ritmo de crescimento do material bélico. Crescem sensivelmen- te’ os orgamentos militares, os efetivos, os equipamentos bélicos e os arsenais. ‘Uma. grande parte da energia produtiva dos estados é desviada para assuntos militares. As‘corridas armamentistas tém durado, em geral, 30 ou 40 anos. Elas tém-se caracterizado por uma freqiiéncia crescente de pequerias guerras, “guerras imperialistas e intervengSes, em geral culminando com uma guerra de ! equilfbrio de poder, na qual a intensificagdo militar atinge o méximo. Dez bu! vinte anos depois de tal guerra, tem havido normalmente um perfodo de desmobilizagao e declinio na-atividade militar, as vezes estabilizado por acor- dos de desarmamento. As corridas armamentistas tém-se originado em prin- cipio de relagdes politicas de estados envolvidos num sistema de equilfbrio de poder, embora também possam ter participagdo a economia dos pafses consi- derados e os que transacionam com material bélico. Nos séculos XVII e XVII ocorreram, por vezes, corridas armamentistas distintas na Europa, sem que houvesse simultaneidade quanto a 4rea, ociden- tal, setentrional ou do sudeste europeu. Durante o século XIX houve unidade na Europa com referéncia 4 corrida armamentista; embora tenham havido na América do Norte, América Central, area platina, 4rea andina e Extremo Oriente corridas armamentistas distintas entre si. Uma corrida armamentista comegou na Europa por volta de 1787 e durou até 1815. Uma outra comecou aproximadamente em 1840 e se prolongou até 1871, No século XX tem havido tendéncia das corridas ermamentistas serem simultaneas e sincroniza- das no mundo todo, com a concentracio do poder militar distribufda por duas grandes aliangas. Houve uma corrida armamentista geral He 1886 a 1919. ‘Uma outra comegou cerca de 1932 e continuon até 1945, Uma terceira, chamada “guerra fria” comegou em 1946 e nfo tinha'terminado em 1964, com algumas evidéneias de “détente” depois de 1953.JE provavel que um estudo sobre a incrementacdo de forcas. terrestres ¢ navais, conjugado com outro estudo sobre o equilfbrio de poder, revelaria vinte e cinco corridas armamentistas diferentes na Histdria moderna, embora nfo se pudesse definir de forma precisa os limites no tempo e no espago. Estas corridas armamentis- tas apresentavam relagdo com a tendéncia de periodicidade de 50 anos =) freqiiéncia das batalhas, / a (5) Atividade militar normal. — E um parametro que s6 pode ser verificado através do estudo da hist6ria militar de uma civilizagao, durante séculos, para avaliar 0 yulto dos orgamentos militares e navais, 0 efetivo das forgas terrestres permanentes, a proporgao do esforgo nacional direcionado para os problemas militares e.a freqiiéncia do menor e do maior emprego da forca militar entre os estados dessa civilizagdo, Embora dificil de aplicar nas condigSes dinamicas da civili, zagao moderna, o conceito de atividade militar normal teoricamente constitui’ um padrao de comparagfio pelo qual pode ser julgada a acelgragiio de ativida- de durante corridas armamentistas, guerras, campanhas e batalhas, Ao consi- derar que as grandes poténcias da Histéria moderna tém estado formalmente em guerra durante quase metade do tempo e que se tém engajado em campa- nhas militares de menor vulto ou em corridas armamentistas grande parte do Testante do tempo — vai-se perceber que na civilizagao moderna a atividade militar normal est4 bastante afastada do conceito ideal de paz. b) Alto afvel.de tensio. | — Outra manifestagdo de guerra é 0 nfvel de alta tensfo da opinidc pUblica nos estados beligerantes. A atencAo se concentra sobre os sfmbolos da nacGo e do inimigo. Somente se expressam as.atitudes favoraveis referentes 2 primeira e desfavoriveis em relag4o 4 segunda. Os gréficos organizados com base em anélises estat{sticas de numerosos_pronunciamentos recolhidos da it indicam que, na abordagem da guerra, as opini6es da populacad de cada pais sobre o outro tornam-se mais host mais homogéneas. Durante a guerra propriamente dita estas opiniGes ai iveis de extraordinéria hos- Esses grificos apresentam a melhor visualizagdo da mudanga de diregdo, _intensidade, homogeneidade e continuidade de atitudes de um cove ear g40 a outro, mas os fendmenos facilmente observaveis tornam possivel uma classificagio aproximada da intensidade destas atitudes. Cinco estados de nivel de tenso podem ser expressos por “ataque simbdlico”, “ameaca de violencia”, “discriminagao”, “desaprovagao” e “relagées normais”. (1) Ataque simbélico. — Em tempo de guerra a imprensa, os pronunciamentos piblicos, o cinema, o rédio e outros instrumentos de publicidade com freqiiéncia contém ataques diretos contra o inimigo, enfatizando sua maldade e instando para que seja destrufdo. Estes sentimentos podem se revelar nfo apenas em pro- nunciamentos particulares mas também nos oficiais. Estes iltimos eram anti- gamente raros, exceto de tempo de guerra, mas com o aperfeigoamento do radio, eliminando a distingdo entre comunicagSes internas e extemnas, esses “pronunciamentos se tornaram mais comuns. (2) Ameaga de violéncia. — As ameagas de violéncia contra um outro estado podem ser publica- das em perfodos de relagSes tensas, proximas do rompimento, mas se elas -procedem diretamente de funcionérios de alta categoria do governo ¢ provavel que conduzam 20 rompimento das relages ou 4 eclosio da propria guerra Ameagas ostensivas, mobilizag6es, demonstragGes de forga e ultimatos tém sido sempre considerados muito mais sérios do que protestos. diplomaticos formais,mbora)estes tltimos possam ter uma implicacao de eventual apelo a forga. Os Estados Unidos pressentiram graves conseqiiéncias na nota do em- baixador do Japio na crise de imigracdo de 1923, interpretando-a como amea- ga de guerra. Os comentérios injuriosos de Hitler contra « da Tchecosloviquia, em seu discurso de 12 de setembro que as hostilidades bélicas estavam a um passo. Os incidentes referentes a cidadios, navios ou funciondrios de um pais ¢ pelos quais um outro pats é considerado responsive] (que em tempos normais podem ter pouca importan- cia politica) sio com freqiténcia interpretados como ameagas em época de grande tensdo ¢ podem conduzir ao rompimento de relagdes diplomaticas. 10 (3) Discriminagio. — Os boicotes especificos ¢ as discriminagGes oficiais em tarifas, expor- tagdes, importagdes embargos em navegacio, além de proibigdes de emprés- timos e concessGes so uma evidéncia de tetisdo nas relagdes; estas iniciativas em geral ocorrem sem que haja guerra e sao, via de regra, consideradas menos sérias do que ameagas e manifestagdes de forga. Estas discriminagdes econd- micas s4o sempre intensificadas entre inimigos em tempo de guerra. (4) Desaprovasiio. 5 — As manifestagdes oficiais de desaprovagdo da polftica ou da atuagio de um estado estrangeiro provocam uma séria tensdo nas relagdes se elas se referem & politica interna desse estado ou as suas relagdes com um terceiro estado. As referéncias 4 pol{tica de um outro governo no. sao, entretanto, julgadas tio sérias como as expresses desrespeitosas ou desdenhosas 4 perso- nalidade de altos funcionarios ou ao proprio estado. As atitudes dos governos em relago a tais criticas tém variado em fungdo do grau de ressentimento existente e em fungio da responsabilidade dos estados por declaragdes hostis feitas por particulares ov em publicagGes privadas. Os governos autocrdticos so mais sensiveis a estes problemas do que os democraticos, (5) Relagdes normais, — Nas relagdes normais entre estados, os protestos formais normalmen- te se resumem a casos em que 0 estado, 0 governo ou cidadgos foram lesados. por violagdo de obrigagdes intemacionais de um outro estado. As objegdes politica de um outro estado ndo sofrem protesto formal, embora possam ser objeto de representacdes. Mesmo em perfodos normais, alguns érgios priva- dos da imprensa injuriam outros estados e, a nfo ser que sejam abusivos ou que o 6rgiio seja controlado pelo governo, estes excessos nfo indicam a'exis- téncia de tensdo nas relagdes. O respeito manifestado pelo governo de um estado em relacfo 2 outro varia muito segundo os estados ¢ a época. ¢) Direito de excegio, — Una terceira manifestagdo de guerra é a entrada em. vigor de novas normas de direito, intemnas e internacionais. Os contratos com os adversdrios Sdo suspensos. Os residentes naturais de pafses inimigos sio internados ou postos sob controle. O comércio com os adversirios ¢ proibido. Muitos trata dos com poténcias. inimigas so denunciados ou suspensos. As forgas militares ficam livres para invadir 0 territorio inimigo e para atacar suas forcas armadas, limitadas apenas pelas normas de guerra. Os neutros so obrigados a impedir 0 ‘uso de seus territorios ou navios com finalidades ‘militares pelos beligerantes, Os navios neutros em alto-mar ficam sujeitos a interceptacao, busca e captura, caso beneficiem o inimigo. 1 Situagdo Conflito telativa dos + fF oponentes internacional Revolta Disparidade colonialista moderada —expedigao punitiva Agitacdo da Violéncia Desordem — * populacdo * popular — intervengdo nativa — polfcia pacificagao Em caso de guerra, reconhecida legalmente, todas as leis de excegao entram em vigéncia. Existem outras situagdes nas quais prevalecem formas adaptadas das leis de exceco. A situagdo legal subseqiiente a eclosio das hostilidades difere caso a violéncia ocorra em territério nacional, numa drea colonial de cultura diferente ou nas relagdes de dois estados reconhecidos. Pode também diferir caso as duas partes apresentem paridade ou disparidade {moderada ou grande) na situag&o. As nove categorias listadas na tabela acima podem, portanto, ser diferencadas com respeito A situacdo legal atipica; de acordo com a Convengao de Genebra, entretanto, os principios humanitarios de guerra devem se aplicar a todos os conflitos. (4) Guerra civil, guerra imperialista e guerra externa. — Se forem assim reconhecidas, pressupde-se que ambos os lados devem ser tratados como iguais por outros estados designados como neutros. Ambos tém direito as prerrogativas e poderes de beligerantes, enquanto durar a guerra. Na guerra civil e com freqiéncia na guerra imperialista a revolta viola as estipulagdes locais ou as leis do estado e, se o governd legal for vitorioso, pode, natural- mente, aplicar suas proprias leis para punir a traigao, depois das hostilidades. Na guerra externa, um dos lados pode estar violando suas obrigacdes com telagao ao direito internacional, e este fato pode influenciar o acordo, mesmo que os estados tenham reconhecido a situagdo como de guerra ao proclama- rem neutralidade, . . - (2) A insurreiggo, a revolta colonial e a agressio ndo sendo reconheci- das como guerra legal pressupSem que um outro estado nfo trate as duas facgSes como iguais. No caso de insurreico ou levante de populacao nativa, 0 governo reconhecido tem sido, em geral, favorecido por outros estados. Se a insurreigo apresenta um vulto que toma incerto o resultado, os outros esta- dos nao devem intervir a favor de qualquer uma das facgGes, como foi o caso 12 da paridade’ entre legalistas espanh6is ¢ insurretos, no acordo de. nfointervend gG0, de 1936. Se um estado engajado em hostilidades extemas fot julgado, por normas internacionais adequadas, como agressor, no caso dele ter recorri- do 4 forga em violaciio a suas obrigagGes internacionais, outros estados podem se inclinar a ‘favor das vitimas inocentes empenhadas em sua defesa. Este favorecimento foi ressaltado pelo Acordo da Liga das Nagdes e pela Carta das NagGes Unidas e é admitido em outros tratados sobre agresso, como 0 Pacto de Paris. Uma entidade internacional consideron o Japfo como agressor em suas hostilidades contra a China (1931, 1937) e contra os Estados Unidos (1941); a Itélia contra a Etiopia (1935); a Russia contra a Finlandia (1939) Hungria (1956); a Coréia do Norte e a China contra a Coréia do Sul (1950) e a Alemanha contra a Polonia (1939),.a Holanda (1940) e a Nornega (1940), (3) Violéncia popular e agitagdo da populacdo nativa dentro do domf- nio de um estado e intervencdo num estado dependente, em geral nao envol- vem direito internacional ou o diteito de um terceiro estado. As disposigdes internas podem reconhecer a existéncia de estado de sftio ou a aplicagao da lei marcial nessas situages, A intervengGo de uma grande poténcia num esta- do independente bem menor para resolver problemas gerados por desordens ou delingiiéncia internacional tem sido em geral tratada de maneira semelhan- te. Legalmente, entretanto, a justificagdo da intervengdo 6, na verdade, uma questo internacional que deve ser decidida por normas do diteito internacio- nal, Como na atualidade os tratados em geral obstam as intervengdes em forga, exceto em defesa de um ataque armado, existe prevengdo contra a legitimidade dessas intervengdes, a nfio ser que sejam expressamente admitidas por um protetorado, mandato, controle administrative outorgado ou outro tipo de relagao com.o estado em cujo territorio se processa a agdo ou a menos que esse estado tenha sido considerado culpado de uma agressio que 0 exclui dos beneficios concedidos por tratados contra a agressiio e que o sujeita a sangOes militares. 4) Integragao politica intensa. — Uma manifestago adicional de guerra é representada pelas mudangas legais, sociais ¢ polfticas na comunidade beligerante visando a uma integragéo mais efetiva, uma eliminacdo dos conflitos internos e-uma solugdo mais sim- ples dos problemas relativos ao conflito internacional. \A legislacao disciplina as atividades industriais, orientando-as para a produgdo bélicaAlmpoe-se a censura e os 6rgiios de comunicagdo mais importantes passam a ser controla- dos ‘pelo governo.fO consumo de alguns itens pode ser racionado|A lealdade ao estado passa a tet precedéncia sobre convicgGes religiosas, partidérias e profissiongisJO grau de controle das atividades individuais por parte do esta- do varia muito entre os pafses; entretanto, quer este grau seja normalmehte baixo ou elevado, em época de guerra ele se toma sempre intenso. Em tempo de guerra ou ameaga de guerra, a indistria bélica e a produ- 13 gio de matérias-primas com aplicag%o militar sto normalmente_as primeirls) atividades econdmicas reguladas ou controladas pelo governo. Logo a seguir “passam a ser controlados os Transportes, as comunicagGes, a educagéo e a propaganda. Pode haver um acompanhamento mais cerrado dos negécios e do consumo. Finalmente, pode vir a ser exigida uniformidade ideoldgica e religio- sa. A intensa preparacdo imposta pela guerra modema tende a fazer com que muitas destas mudangas se iniciem antes de comecar a guerra. Os estados totalitérios revelam esta intensa integragdo politica como caracteristica pér- ‘manente. aan ne “Esta descricéo das manifestag6es militares, psicolégicas, legais e socio- logicas da guerra sugere que todas podem ser consideradas como varidveis que atingem um certo limiar de intensidade na guerra atual. A guerra pode portan- to ser considerada do ponto de vista de cada beligerante como uma extrema intensificagdo de atividade militar, tensio psicolégica, poder legal ¢ integragao social — uma intensifi que nfo é provavel que ocorra a nfo ser que 0 disponha mi a we anos do miéamo poten Sob o ponto de vista sluindo todos os beligeranites, a guerra pode ser considerada como um conflito simultaneo de forcas armadas, sentimentos populares, reivindicagdes juridicas e culturas que chegam a extremos de intensificagdo em cada aspecto. Este conceito corresponde a primeira definigdo apresentada. A guerra é uma condic3o legal que permite igualmente dois ou mais grupos hostis travarem um conflito por meio de forgas armadas. Dizer que a guerra pressupde uma condicio legal significa que a lei ou os costumes admitem que quando existe guerra sio aceitos determinados tipos de comportamento e de atitudes. A guerra nao subentende uma situagap esporddica, caprichosa ou acidental, mas uma condi¢do reconhecida. O con- senso em qualquer cultura reconhece muitas condigdes distintas, cada uma com seu padrao apropriado de comportamento. A guerra envolve uma dessas muitas condig&es caracterizadas pela igualdade dos beligerantes face a lei e liberdade de recorrer 4 violéncia. Afirmar que essa condigdo diz respeito a grupos hostis implica que as atitudes em jogo so mais sociais do que individuais e ao mesmo tempo mais hostis do que amistosas. Essa expressio portanto pressupde uma diferenga entre intragrupo e extragrupo. O individuo aprecia seu préprio grupo e odeia © grupo inimigo. Este conceito exclui duelos ou outros confrontos entre individuos da concepgio de guerra e também exchui confrontos armados amis- tosos, como tomeios e duelos. Dizer que grupos estao em conflito significa que 0 padrdo de comporta- mento é um exemplo do tipo de inter-relacionamento que os sociélogos deno- minam “conflito”. Este padrdo inclui jogos, litfgio forense, eleigdes politicas, disputas familiares, atritos, luta sectéria e outras situagdes nas quais entidades semelhantes em oposicdo mitua acham-se dominadas por rivalidades e aspi- ram A supremacia através do emprego de processos mutuamente reconhecidos. O padrao, portanto, envolve a combinacdo de separacdo e unidade: separagio 14 em vista do antagonismo e hostilidade entre as entidades; unio em vista do reconhecimento de todas as entidades envolvidas com um objetivo. comum (vitoria) com a forma pela qual ele vai ser atingido (forga armada). A guerra, portanto, inexiste quando os participantes so to egocéntricos que nfo reco- nhecem © outro como litigante e o tratam, meramente, como um obstéculo ambiental a sua politica, assim como os homens tratam os animais selvagens ou os obstéculos geograficos. A guerra assim se distingue de atividades arma- das, como a caga enfre povos primitives ou o estabelecimento de colénias entre as nagdes modernas. Como conflito, a guerra subentende que as atitudes e agdes de cada grupo participante séo influenciadas por padrées intergrupais ou intenacionais. Ao dizer que 0 conflito se processa por intermédio de forga.arnada se excluem formas litigiosas de procedimento que admitem apenas argumenta- gio persuasiva, habilidade intelectual ou confrontos fisicos amistosos, como em julgamentos judiciais, debates parlamentares e jogos atléticos. A técnica militar pressupde 0 emprego de armas que matam, ferem ou capturam adver- sdrios. A guerra é portanto uma forma devioléncia. O termo violéncia, entre- tanto, incluj também atividades que nJo sdo bélicas, como assassinato e latro- c{nio, tumulto ¢ linchamento, ago policial e execugio, represilias e interven- go. A guerra, por oytro lado, pode incluir outras atividades além da vio- Séncia. JNa guerra moderna, a propaganda e as frentes econémicas e diplomé- ticas podem ser mais importantes do que a frente militar; mas, se a técnica da violéncia armada nao ¢ empregada ou ameagada de emprego, nao se configura a situagdo de suerte A guerra € assim ao mesmo tempo uma condigao legal excepcional, um fendmeno de psicologia social intergrupal, um tipo de conflito e um tipo de violéncia. Embora cada um destes aspectos sugira uma abordagem distinta para o sev.estudo, a guerra nao deve ser identificada com qualquer um deles. Nilo se deve supor que todos os tipos de relagdes entre grupos soberanos venham a constituir guerra ou que todos os conflitos e que todos os apelos a violéncia sejam guerra. Estas hipteses, feitas com freqiiéncia, tornam irreme- diével o controle da guerra. Os anarquistas, esforgando-se por eliminar toda forma de coercdo, os isolacionistas tentando acabar com todas as relagdes intergrupais, os idealistas forcejando pelo término de todos os conflitos e os pacifistas extremados tentande eliminar toda forma de violéncia — estdo todos engajados em tarefas inexeqilfveis. Por outro lado, é possfvel que altera- ges adequadas no difeito e nas normas internacionais, nas atitudes e nos ideais, nas condigdes sociais e econdmicas e nos métodos pelos quais os gover- nos se mantém no poder possam evitar a recorréncia da guerra. CAPITULO II A HISTORIA DA GUERRA 1. A Origem Da Guerra E provavel que a espécie humana fosse biologicamente unida na sua origem e é provavel que seja socialmente unida até sua’ extingo, mas desde que os primeiros grupos de homens comecaram a perambular afastando-se da queréncia ancestral, pelo final do perfodo mioceno e comego do plioceno, até 4 era moderna das comunicagSes mundiais, a evolucdo humana tem-se proces- sado através de canais separados. Esta separagdo era tao completa nos tempos pré-histéricos que deu origem as diferentes ragas. A separacdo incompleta dos tempos historicos deu origem as diferentes civilizagdes. Nos tempos moder- nos, as separag6es existentes motivaram o aparecimento das diversas nagGes. A hist6ria da guerra pode portanto ser dividida em quatro perfodos desiguais, dominados respectivamente pelos animais, pelos homens primitivos, pelos ho- mens civilizados e pelos homens com o dominio da moderna tecnologia. Os subsidios existentes para o estudo da guerra em cada um destes periodos so muito diferentes. Para o primeiro perfodo, o pré-humano, os indfcios se resumem a estru- tura de poucos remanescentes paleontoldgicos de ancestrais pré-humanos do homem eo comportamento de animais contemporaneos. Estes animais ndo estdo na linha direta da descendéncia humana e seu comportamento apenas sugere © que pode ter sido a natureza da guerra entre os reais ancestrais do homem. O segundo perfodo, o do homem primitivo, comegou.com o surgimento 16 dos primatas, que podiam se comunicar entre si, entre’ meio milhdo' a um milh3o de anos atrés. Os tiltimios desdobramentos desse perfodo continuaram em 4reas limitadas da Africa, da Asia, da Oceania e da.América até épocas recentes. Indfcios referentes A guerra e A paz. neste perfodo podem ser encon- trados em restos arqueolégicos dos ancestrais.de comunidades civilizadas e na observagdo de povos primitivos da época contemporanea, embora os dados sobre estes povos devam ser utilizados com muita cautela. As populacSes primitivas da época contemporinea em muitos casos se apropriaram de pré- ticas de povos vizinhos de cultura mais adiantada. Em alguns casos; a cultura atual deles pode ser a degeneracdo de civilizagdes mais adiantadas. O terceiro periodo, 0 histérico, comegou nos vales do Nilo e do Eufra- tes, seis ou talvez mesmo dez mil anos atrés, ¢ nos vales dos.rios Indo ¢ Amarelo, h4 quatro ou cinco mil anos, ¢ no Peru ¢ México, talvez hé trés ov quatro mil anos. Existem controvérsias se este periodo, exceto no Peru, pode ser datado a partir do emprego da escrita, originada de forma autéctone em diversos pontos ou pela transmissao dos elementos principais de um nico ou de pequeno nimero de focos. Este estégio continua ainda em diversos lugares. Evidéncias da existéncia da guerra neste perfodo podém ser encontradas em escritos contemporaneos ou mais antigos, em inscrigdes de natureza descri- tiva, cronol6gica ou analftica, e em descobertas arqueoldgicas. © quarto periodo, o dos contactos mundiais, pode-se admitir que come- gou com a invengdo da imprensa no século XV, logo se estendendo pelas viagens originadas uropa ocidental, estabelecendo continuo contacto en- tre focos de civilizacZo na Europa, no Oriente Médio, na América ¢ no Extre- mo Oriente. A partir dessa época quase todas as 4reas do mundo passaram a ter contacto continuo através de comunicagSes impressas. Esses contactos se tornaram seguramente mais intensos com o aproveitamento do vapor, da eletricidade e da energia atémica_nos séculos XIX e XX. Os testemunhos “referentes historia da guerra e da paz neste perfodo so encontrados em documentos descritivos, muito mais volumosos do que os dispon{veis para o perfodo histérico anterior e, além disso; com riqueza de subsidios legais, econdmicos e estatisticos, organizados em época contemporanea para fins de registro e andlise politica, econdmica e sociol6gica. Afirma-se que a guerra se originou de determinado estdgio da civilizagZo € que como existe entre povos: primitivos, foi por eles aprendida de vizinhos civilizados ou transmitida através do tempo, embora em outros aspectos. te- nham degenerado da civilizaco para a selvageria. Esta teoria tem 0 apoio da extremada escola difusionista ou historica, representada por W.HLR. Rivers € G. Elliot Smith, tendo sido aperfeigoada por W.J. Perry. Estes escritores asseguram que a guerra foi inventada no Egito pré-dindstico, paralelamente com a agricultura, as classes sociais e o sacrificio humano. Essa antiga civiliza- ¢4o se difundiu amplamente: através das viagens dos egfpcios na época da construggo: das piramides. Os povos. barbaros.e_némades da periferia desta civilizagZo aprenderam dela a fazer a guerra e desenvolveram seus métodos 17 através de ataques contra ela. A maioria dos antropologistas rejeta esta teork) Houve ocorréncia tanto de. inven¢ao isolada quanto de imitagfio de vizinhos e ha necessidade de provas para explicar a presenca de caracteristicas especificas em determinados grupos. \Qs indicios de culturas primitivas con- temporineas, de primatas atuais ¢ de descobertas de homens pré-histéricos sugerem gue a violéncia sempre foi disseminada entre os homens, embora tenha havido sempre variac¢%o de belicosidade entre os grupos} Nunca houve um perfodo dourado de paz na histéria da humanidade, aim como nunca existiu um periodo sombrio de guerra continua Nao sfo convincentes os conceitos sobre a vida natural do homem, quer os de Rousseau quer os de Hobbes} O homem foi ¢ é um conjunto complexo de tendéncias hereditérias e de condicionamentos sociais que se cristalizam em épocas e lugares diferentes em inimeras culturas que apresentam formas e graus varidveis de violéncia. Para descobrir portanto se a guerra foi empreendida espontineamente por grupos humanos em toda parte ou se foi imitada de uma ou de poucas sociedades, € necessdrio estudar os indicios de varios giupos. Para fazer isto, € necessario considerar em que sentido se interpreta a guerra. \_Se por guerra se entende o emprego de armas de fogo para promover a politica de um grupo, deve-se admitir que os povos primitivos contempora- neos imitaram a guerra dos povos da civiliza¢do moderna.jA difusio de muitas técnicas modernas de guerra — armas, formaces, movimentos taticos e idéias estratégicas — pode ser demonstrada através de evidéncias histéricas. Sob esta ética tecnolégica, ndo h4 divida de que a guerra foi inventada na Europa ha somente cerca de cinco séculos e posteriormente difundida através do mundo, Se, entretanto, por guerra se entende a reagao a certas situagdes em que se recorre A violéncia, a hipétese de imitagdo parece inverossfmel. Animais da mesma espécie lutam as vezes violentamente por cousas que também lutam os homens — comida, territ6rio e fémea. Neste sentido psicolégico a guerra é uma forma de comportamento comum 4 maioria dos homens e animais e, provavelmente, a todas as criangas. Se por guerra se entende um determinado periodo, com infcio e fim regulado por lei e durante o qual, e apenas dentro dele, se pode recorrer & violéncia legitimamente como um instrumento da politica de grupo, ndo ha dfvida de que nem animais nem homens primitivos a utilizam, embora haja povos primitivos com praticas guerreiras altamente padronizadas. Parece ser neste sentido que Perry usa o termo guerra; antropdlogos de outras escolas admitem que a guerra como um instrument legitirno de pilhagem ¢ conquis- ta era pouco conhecido entre os povos primitivos. Neste sentido legal, polf- tico e econdmico a guerra provavelmente se originou entre as civilizacces, acompanhando o desenvolvimento de Ofpanizacoes politicas €envolvendo subordinagio, propriedade, aumentos populacionais e codificag#o em Jegisla- Ho. Seguiu-se a difusdo para vizinhos menos civilizados. Finalmente, se a guerra significa um costume social que utiliza a violén- cia sob controle, em conexdo com conflitos intergrupais, parece que se origi- 18

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