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JUDITH MARTINS-COSTA Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do ‘Sul. Doutora em Direito pela Universidade de Sao Paulo. COMENTARIOS AO NOVO CODIGO CIVIL Do Inadimplemento das Obrigacées Volume V Tomo It (Arts. 389 a 420) ‘Coordenador SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA INTRODUGAO GERAL 1. As diretrizes sistematicas do novo Cédigo Civil no Direito das Obrigagdes, e suas conseqiiéncias dogmiticas “O adimplemento atrai e polariza a obrigagdo. E 0 seu fim". Com essas palavras, Cl6vis do Couto e Silva inicia a sua obra “A Obrigagao como Processo”,' que entre nés introduziu, jé na década de 1960, a nogo dintmi- ca darelagdo obrigacional, considerada como “estrutura de processos” € como “totalidade”, para a qual a nogo de adimplemento desempenha um papel fundamental, distinto do de mero modo de extingo das obrigagdes. 0 extremado relevo deste papel para a propria nogio de obrigagao sé agora vem reconhecido pelo direito legislado, em razo da nova arquitetura da dis- ciplina das Obrigagées, traduzida pela estrutura sistemdtica adotada pelo novo Cédigo Civil e pelas diretrizes te6ricas que as polarizam. Essa é, a0 nosso jufzo, a maior novidade do Cédigo que entrou em vi- gor em 2003 em tema de Obrigages: o tragar de uma estrutura que enseja uum método diverso daquele tradicional, tudo estando embasado em uma nova ideologia, superadora do individualismo a outrance que, desde o inaugurar da Modemidade, tem sido colado ao Direito Privado como se fosse o seu selo, amarca gravada em sua genética. 1 COUTO E SILVA, Clovis. A Obrigasdo como Processo. Sto Paulo: Bushatsky, 1976. Introdugio,p. 5. Embora $6 publicada em 1976, a obra estava escrita, em versio datilo- grafada, em 1964 2B bem verdade que 0 Cédigo de Defesa do Consumidor (Lei n* 8.078, de 11.0990) jé provocara certas modificagées na concepedo da relac4o obrigaciona, muito mais, pO- tém, por forga de sua principiologia do que por razdes estruturis, como ocorre com 0 novo Cédigo Civil COMENTARIOS AO NOVO CODIGO CIVIL Para bem marcar a diferenga, observe-se que o Cédigo de 1916 elencava as regras acerca do adimplemento no Titulo I do Livro Ill da Parte Especial (Do Direito das Obrigagées) sob a genérica denominago “Dos Efeitos das Obrigagées”. Este elenco de regras vinha posto misturadamente as regras sobre oinadimplemento (Capftulo XII), logo subseqtiente & parte onde se clas- sificavam as “Modalidades das Obrigagdes” (Titulo 1), e antecedentemente 20 Titulo relativo ao fenémeno da transmiissao das obrigagées (reduzido a0 caso da Cessio de Crédito, no Titulo HI). O novo Cédigo, diferentemente, introduz nesta matéria alteragio metodol6gica que deve ser bem realcada.” Atento a diretriz sistemdtica que norteou a sua elaboracio, ’e calcan- do esta diretriz.na nogio de estrutura, tio cara ao pensamento do Presi- dente da Comissdio Elaboradora do Anteprojeto, Miguel Reale, o Cédigo ora vigorante discemniu entre as fases de criago do vinculo, seu desenvolvimento e seu desaparecimento, Este tiltimo restou distinguido entre o modo normal ou habitual (adimplemento) e 0 patol6gico (inadimplemento), localizado em Titulo diverso (IV), também objeto destes Comentirios. Para tal fim 0 Cédigo situou, no Titulo I, as modalidades das obriga- «Ges — que marcam as formas que podem revestir em sua origem, ou nas- cimento—arrumou, no Titulo If, a sua mobilidade, pelos meios de transmis- sdo das obrigagdes, quais sejam, a cessio de crédito e assungao de divida; localizou, no Titulo II, as formas pelas quais o vinculo é extinto pelo 3 Percebe a importinia desta distingo Silvio RODRIGUES, em: Direlto Civil: Parte Geral as Obrigagdes, 29* ed, Sto Paulo: Saraiva, 2001, vol. 2, p. 109, anotando, em nota de rodapé, ter sido “sibia” a solugio do nove Cédigo ao sistematizar a matéria. 4 REALE, Miguel. O Projto de Cédigo Civil: Situario atual e seus problemas fundamen tas. $30 Paulo: Saraiva 1986, p. 4, ora também em O Projeto do Novo Cédigo Civil. St0 Paulo: Saraiva, 1999, p. 4. Acerca da estrutura sistema do novo Cédigo também MOREIRA ALVES, José Carlos. A Parte Geral do Projeto do Cédigo Civil Reviste CEJ, Brasilia, 9, dezembro 1999, p. $e 0 nosso O Novo Cédigo Civil Brasileiro: em busca “ética da sitwagio”, In: MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. ire- tries Tedrieas do Novo Cédigo Civil. Sio Paulo: Saraiva, 2002, pp. 87-168 NTRODUCAO GERAL, adimplemento, que € 0 seu fim; ¢ cuidou, no Titulo TV, da patologia da rela- 0, a saber, das formas e dos efeitos do inadimplemento. No Titulo I, ao invés de englobar, assistematicamente, todas as for- ‘mas pelas quais a relagio obrigacional pode desaparecer, cuidou-se especi- ficamente do cumprimento, ou adimplemento, ou ainda, pagamento, seja ocumprimento direto voluntério e adequado pelo devedor, correspondente a0 conceito técnico ou estrito de adimplemento, seja 0 chamado cumprimento indireto, tudo nomeando, com maior rigor técnico, “Do Adimplementoe Extingao das Obrigacies”. Orientagdo semelhante no sentido da autonomizagio do adimplemento, haviam tido os Cédigos Civisitaliano’ portugues,” seguindo atendéncia de dar ao adimplemento lugar de destaque no seio do tecido obrigacional.” Foi esta importincia vital do adimplemento na economia da relagao brigacional que 0 novo Cédigo pretendeu realear,inserindo o temaem ca- pitulo auténomo. Adquiriu assim novo realce a pioneira concepgao de Couto ¢ Silva, que jé dera frutos na doutrina e na jurisprudéncia. Cabe, por isto, acentué-la, pois percebe-se, na concepgao do novo Cédigo, a atengao dada pela estrutura e consequente método classificat6rio adotado no Direito das Obrigagées & andlise interna —e nvio meramente & classificagdo extrinseca das relagées juridicas obrigacionais. Para bem compreender os efeitos que decorrem desta concepcao pa- rece conveniente antes aludir, ainda que brevemente, aos seus aspectos te- Gricos (item 2), examinando-se, subseqiientemente, os aspectos propriamente dogmiticos (itens 3 e seguintes). 5 Codice Civile, Capitulo 11 do Titulo dedicado &s Obrigagdes em Geral art. 1.176 e ss. ‘Cédigo Civil, Capitulo VII do Titulo dedicado As ObrigagBes em Geral, arts. 762 ess 7 ALMEIDA COSTA, Mati Jilio de. Dirto das Obrigaedes, Coimbra, Almedina, * ed, 2001, 1°82, pp. 925 e seguntes; MENEZES CORDEIRO, A. M. Direito das Obrigasdes.Lisbo: ‘Associago Académica da Faculdade de Dirito de Lisboa, 1980, vol. 2, p. 184 COMENTARIOS AO NOVO CODIGO CIVIL 2. Aspectos tedricos decorrentes da nova metodologia Transposta em termos de Teoria Geral do Direito, a concepgo da re- lagio obrigacional adotada pelo novo Cédigo Civil tem como subjacente a idéia do “Direito como experiéncia’, que constitui a compreensio do Direi- to in acto, isto é, como “concretitude de valoragio do Direito”, como “rea lade histérico-cultural [..] atual e concretamente presente & consciéncia em geral, tanto em seus aspectos teoréticos como priticos”.’ Esta idéia conduz a afastar a concep¢do do Direito como objeto de passiva contem- plago ou descrigio externa, ou, ainda, como “pura sequléncia de esquemas l6gicos”.’ Devemos explicar essas afirmativas mediante a conjugaco de dois fendmenos, distintos ¢ convergentes: a) Um dos temas mais discutidos pelos estudiosos do Direito Privado na atualidade diz respeito aos diferentes papéis dos sujeitos no exercicio das suas liberdades civis € econdmicas e, particularmente, & relevancia da Pessoa no que concerne a certos efeitos juridicos. Afirma-se, na verdade, que a civilistica busca hoje descobrir a pessoa que est por detrés do sujei- to de direito titular de um patriménio. Essa descoberta relaciona-se direta- Mente com os meios ¢ as formas pelas quais as concretas relagdes econd- micas desenvolvidas na sociedade, criadas ou impulsionadas pelos fatos, si0 aprendidas pelo Direito das Obrigagdes. Tudo isto leva a ponderar sobre a conveniéncia de serem utilizados pardmetros concretos na visualizagio da categoria formal do “sujeito de direito”, observando-se a pessoa por inter- ‘médio dos filtros de pluralizago da subjetividade jurfdica.” 8 As expresoes grifadss s8o de REALE, Miguel. 0 Direito como Experléncia. Sto Paulo Saraiva, 1968, p. 31 9 REALE, Miguel. 0 Direito como Experiéncia, Sto Paulo: Saraiva, 1968, p. 31 10 Entre a namerosa bibliografia, veja-ze PERLINGIERI, Pietro. I Dirtio Privato Futuro. Népotes: Edizione Scieatifiche Italiane, 1993; do mesmo autor, il Drito Civile nella INTRODUGAO GERAL, b) Por outro lado, ¢ também objeto da atenciio dos estudiosos anova racionalidade que preside as relagdes econémicas na sociedade, que vem sendo chamada, prépria ou impropriamente, de sociedade pés-industrial,”" locugio utilizada para indicar o fenémeno denotado por uma certa desmaterializagao que, desde os finais do século XX, acompanha uma série de “acontecimentos sociais”,”” apanhando inclusive a palavra “produto”. No Ambito das relagGes obrigacionais avultam, como exemplos deste crescente fendmeno, certos contratos que “ndio servem mais apenas para fazer circu- lar as coisas, mas, tout court, para fazé-las, e em especial para criar produ- tos financeiros”;” tem-se a propria moeda, que resta desmaterializada em Legaita Costtucionale. 7 ed. rev. ¢atal. Népoles: Ediioni Scietifiche Italiane, 1991, pp. 189-406, BALDASARRA, A. Dirt della persona e valort costitutionate. Turin Giapienelli, 1997, FACHIN, Luiz Edson, Teoria Critica do Direito Civil. Rio de Janeito: Renovar, 2000, BODIN DE MORAES, Maria Celina, A eaminho de um Direito Civil Consttucional. Revista Direlto, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n° 1. pp. 59-73, jul dez 1991 © NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para una interpretagdo consttucional do principio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998 11 Segundo BELL, D., profesor em Harvard pass-se 6 ea industrial pins quan oo nimero dos que rabalham na india € inferior a0 nimero dos qu teabalbarn 0 terceio setor(Servigas), como resalla GALGANO, F. "I rapport i scambio nella societs postindustnale". fn PERLINGIERI, ito 1 Dirto Privato Futuro. Népoles: Edzione Scientific Haan, 1993. p. 61 Poranto, aera psindustial se caraterza quando 42 asa da produto de bens, pica da sociedad industrial, paras produto de servos, feonvivendo, 20 lado do stor teres o quatzréro (sndeatos, bane, seguradra) © quindrio(servgas de sade, educagio, pesquisa cients, lazer, administagi pablica) Neste sentido, DE MASI, Domenico, A Sociedade Péx-industrial. 2" ed Si0 Paulo SENAC, 1999, pp. 33 et seg 12 nota, prem, com perspicicia Pierre BOURDIEU que o “material”, tdo como cerne a plobaizago, pés-moderidade e neoliberalismo (fendmenos estrturlmenteconexo8) “tanto a nivel das mages quanto dos indiviuos, se ania em estutras bem reais, como os sistemas de easna eos laboratros, os bancos e a grandes empresas (Contreeus 2 Pais, Raisons d'agir Editions, 200, p. 50) 13. TREMONT, Giulio. La flera dele aise. Rolona: [8:1 199, p. 96, apud GALGANO, F. "I rapport di seambio nel societpostindusiriale. In: PERLINGIERI, Pietro. 11 Dirito Priva Fanro, Népoles: EaiaioneScienficheNaliae, 1993, pp. 62-63 COMENTARIOS AO NOVO CODIGO CIVIL ‘um nmero transmitido por impulso eletronico;e tem-se, ainda, que as “con- digdes ideais” de certas relagbes negoci 6 sequer proprietério do bem que promete vender, nfo tendo o compra- dor, da sua parte, sequer o dinheiro necessario para pagar o prego," sem falar da expansio, em escala mundial, das relagées obrigacionais que se desenvolvemem um meio ambiente cultural inteiramente novo—o mundo dos e-mails, dos relacionamentos on line, do telemarketing, daTV a.cabo, dos home-bankings, etc. -, que esto a exigir dos juristas nfo apenas uma reconstrugao conceitual, mas, verdadeiramente, uma nova gramética. (Ora, a conjugacdo entre o tema da necesséria concretude da nogdo de sujeito de direito’® com a nova racionalidade econémica da sociedade is so aquelas em que o vendedor 14 Assim GALGANO, F. “I rapporti di scambio nella societd post-industciale™. fn: PERLINGIERI, Piet. 1! Dirito Privaro Futuro. Népoes: Edizione Scientifiche Italiane, 1993, pp, 65-66, lembrando o exemplo de um contrato preliminar de venda tendo por objeto 0 conjunto aciondrio de comando de uma holding. Da pate do promitente vende- dor a condieao ideal ¢ que nao seja ele proprietirio das agdes que promete vender: no ato de venda, ele desconta a metade do prego de venda e, com e5sa soma, busca, nos dois meses que precedem a data estabelecia para 0 contrat definitvo, a propriedade das agbes prometias. O vendedor sabe onde e como procuré-a e este conhecimento € 0 verdadeiro ‘objeto de sua promess, mais do que a justificagdo da coatrapestag. A outra metade do rego, que descontard do efinitivo, ser o seu lero. Por sua ver, da pate do promissirio adguitente, as condigdesideais sto justamente as de no ter 0 dinheiro necesséio para pagar o preso: este se forecido por um banco, sob a promessa de, torsando'seacion ta controlador da holding, ransferrd para esse banco o imponente volume de negécios do grupo, até 0 momento em mos de um banco concorrente, Coaclui GALGANO: “Des te modo, um negécio entre non possidentes permite umm ganho a quattosujeitos" 15. Daf o acentuado “thnsito do sujeito & pessoa, para o qual tem decisvo papel a conside- ragdo das coneretas circunstincias do agir humano, as efeivassituagoesjuraicas subj ‘vas, come alude STANZIONE, Pasquale, ao refer: “o tiesto do “sujelto"compreendido como termo abstrato de referéncia da norma, & "pessoa", apreciada como elemento bi mano de referéacia do direito, com a valorago das suas especificidades e contingéacias” (0 original: “i transito dal "sogesio” inteso como termine asiratto di rferimento della norma, alla “persona”, appreccata come elemento humano di riferimento del diritto, con a valucacone dele sue specifica contngenze”, Dito Civile Legalid. In: Dirito Civile e Siuazione Esistenciale, AUTORINO, G., ¢ STANZIONE, P.Turim: Giapichelli, 1991, p. 5). contempordnea ~ sociedade do risco, como quer Beck, " sociedade progra- mada, na definigao de Touraine, ” caracterizadora de um “taylorismo de servigos”, como percebe Bourdieu — tem conduzido a evidenciar a fratura existente entre a realidade pritica e 0 método juridico tradicional, centrado naconsideragao de um atomizado sujeito de direito como elemento geral ¢ abstrato de referéncia a aplicagdo das normas juridicas e na andlise mera- ‘mente externa do fendmeno obrigacional.” Nao que a categoria do “sujeito de direito” deva ser afastada: pelo contririo, a existéncia de categorias abstratas e gerais é que toma possivel a considerago das concretas espécies. Contudo, é preciso atentar para que nao se esconda, atrés da nocio abstrata, a rica variedade de situagGes exis- tenciais, de posigGes juridicas subjetivas concretamente detectaveis na pré- tica social e merecedoras de tutela jurfdica. Presente esta perspectiva, nao hé como deixar de considerar a inadequagio do método tradicional para tratar a pluralizagio da subjetivida- de juridica e das complexas relagGes de inter-subjetividade, ” que hoje esto em primeiro plano na preocupagdo dos estudiosos. Por isto se alerta 8 ne- cessidade de concretizarrelagdes de igualdade substancial, enfio meramente formal, entre os sujeitos e, assim, de normatizar as relages sociais em face da complexa realidade social contemporanea, tendo presente um contetido 16 BECK, Ulich. La Sociedad del riesgo: hacia wma nueva modernidad, Traduglo espa- hola de J. Navarro, D. Jiménez e Maria Ross Bortds, Barcelona: Paidés, 1998. Utiliza- ‘mos a expressdo para denota o fendmeno, nfo para incensé-lo, como faz Beck, 17 TOURAINE, Alain. La société post-indusivielle. Pais: Daniel-Gonthier, 1969. 18 BOURDIBU, Pierre. Conre-feux 2, aris, Raisons d°Agir Editions, 2001, p. 47. 19 PERLINGIERI, Piewo. 1! Diriuo Privato Futuro. Népoles: Edizione Seiemifiche ltl 1993, p. 11 20 PERLINGIERI, Pietro. I Dirito Privato Futuro. Népoles: Ediaione Scintitiche Italiane, 1993, p11 COMENTARIOS AO NOVO CODIGO CIVIL ‘mais possfvel coerente com as peculiaridades das pessoas e com os valo- res expressos pelo Ordenamento. Como jé tivemos ocasifo de observar, "no € uniforme 0 tecido das, relagées sociais, ndo se apresentando a sociedade como uma harménica sinfonia de vozes promanadas por um abstrato sujeito de direito: hoje, & ‘metéfora da sinfonia, substitui-se a da polifonia, por vezes mesmo ada cacofonia, Se na Codificag’o oitocentista a ficgao da igualdade era o suporte ideol6gico dos préprios atributos das regras codificadas, quais sejam, asua ge- neralidade e abstragio~a primeira designando “o cardter andnimo dos des tinatérios”,a segunda, “o cardter hipotético da agdo disciplinada”” —hoje emdiaessa fiegdonfio mais remanesce nas normas agora codificadas, polari- zadas que estio pela diretrie da concrenide, que significa a observancia da ica da situag0”.” Por isso 0 apelo, tantas vezes feito na nova Lei Civil, in- clusive em tema de adimplemento e inadimplemento, a conceitos flexiveis ou “férmulas ordenadoras”, tais como “usos do lugar’, “circunstincias do caso”, “natureza da situagdo”, “eqilidade”, “desproporgao manifesta entre as presta- es", ‘premente necessidade”, “boa-fe”, “utilidade da prestagZo", “fins eco- némicose sociais” do direito subjetivo, * para permitir ao aplicador do Direito descer do plano das abstragbes ao terreno rico e multiforme do conereto. 21 MARTINS-COSTA, Judith, O Novo Cédigo Civil Brasileiro: em busca da “tea da situa 80”. In: MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlo, Diretrizes Tedricas {do Novo Cédigo Civil Sto Paulo: Saraiva, 2002, pp. 87-168, 22 As expresses em itiico sHo de IRTI, Natalino, Dirito Civile ¢ Societa Politica. Roma: Laterza, 1999, p. 25 23. A expressio € de REALE, Miguel. O Projeto de Cédigo Civil ~situagdo atual e seus problemas fundamentais, So Paulo: Saraiva, 1986, p. 39. 24 ‘Assim, exemplifieaivamente, ats. 307, pardgrafo dnico, 309, 311, 317, 320, 326, 330, na Parte Geral, ars, 111, 113, 128, 156, 157, 187. INTRODUGAO GERAL Dafaimportincia da andlise interna da relacao obrigacional. Escla- regamos, desde logo, a comegar pelo seu inverso: a andlise externa, centrada no método tradicional, percebe a relagdo obrigacional tio-somente como um vinculo estruturado sobre dois pélos (credor e devedor),ligados pelos co- respectivos direitos e deveres, Para uma tal anélise, o mais relevante € des- crever os “elementos constitutivos” da relacio, visualizados in abstracto: 0s sujeitos (credor e devedor), 0 objeto (a prestagiio, o dar, fazer ou ndo- fazer), 0s requisitos legais ¢ os elementos acidentais, quando ocorrentes. Porém, nfo se ocupa em visualizar como tais direitos e deveres se estruturam, muitas vezes em diferentes graus de intensidade; nem como podem, al- guns deles, nascer depois de criada a relacdo, ou como se desenvolvern no tempo; ou como podem parcialmente cessar, ou subsistir, ou modificar-se, consoante as vicissitudes da realidade, sem que se perca, por isso, a unida- de finalista da relagao. ‘Mas € esse, justamente, o papel da andlise interna que, centrada na no- ‘Glo de adimplemento como atuagao concreta do programa obrigacional, tem presente a concretude das circunstancias nas quais se desenvolve a rela- ¢do. A anélise interna considera o fendmeno obrigacional em sua toralidade concreta, isto €, como aquela composta por um dinfmico “todo” de direitos, deveres, faculdades, Gnus, expectativas legitimas, etc.,finalisticamente inter- ligados ou coligados. O método centrado na andlise interna pode, por isso, auxiliar a normatizagao das relages sociais, tendo presente um conteiido 0 ais coerente possivel com as peculiaridades das pessoas e com os valores ‘expressos pelo Ordenamento. Daf a importéncia dos antes aludidos conceitos flexiveis ou “férmulas ordenadoras” que ensejam a concregto. ‘Siio esses conceitos que permitirao, ao aplicador da lei, visualizar a Pessoa concreta em suas concretas circunstéincias, descendo, entéo, do plano das abstragGes ao terreno rico e multiforme do conereto, pois o méto- COMENTARIOS AO NOVO CODIGO CIVIL do da concregio é apto para revelar a existéncia da diversidade entre as fases de que é composto, dinamicamente, o iter obrigacional, permitindo assim que adiversidade material que esteja eventualmente na sua base conduza A.adogdo da tutela juridica adequada a situagao. ‘A tutela juridica ndo serd sempre idéntica, pois ndo esté ajustada a uma plana subsungo. Na interpretago e aplicagiio dos conceitos flexiveis, das cléusulas gerais que sinalizam as “formulas ordenadoras” do Direito das Obrigacées, é preciso ter em conta a materialidade das situagdes em jogo, ‘até porque agora foi realizada a unificagao das obrigagdes civis e comerciais. ‘Ser preciso, portanto, averiguar, por exemplo, a eventual desigualdade ‘material entre as concretas pessoas; a importincia, ou nfo, da assimetria informativa; o relevo da confianga na regularidade de certa conduta acaso suscitada pelos usos e costumes; o peso do dirigismo econdmico privado ~ em certa medida mais perigoso, porque mais sutil, do que o dirigismoes- tatal; tudo tendo presente, em suma, as diversas racionalidades que presi- dem as igualmente diversas operagdes econ6micas na plural sociedade em que vivemos. O poder privado precisa, tanto quanto o pablico, de pautas que conformem e demarquem seus limites, ainda mais quando sua propria racionalidade modifica-se para ajustar-se & “sociedade p6s-industrial”. E justamente por intermédio da metodologia antes assinaladae do apelo a concregio - denotado por varias das normas integrantes do Direito Obrigacional e da Parte Geral (com a qual aquela, légica e sistematicamen- te, estd unida)— que resta revelada a existéncia da diversidade entre as fases ‘de que é composto, dinamicamente, o iter obrigacional, permitindo assim que adiversidade material que esté na sua base conduza 2 adogdo de normas ‘ede tutela juridica valorativace finalisticamente inconfundiveis: umas serio atinentes ao modo de formagao da relagio, outras sio relativas ao seu de- senvolvimento e eventuais transformagées, outras esto voltadas ao seu INTRODUGAO GERAL, adimplemento, outras, por fim, dirigem-se a regrar a sua patologia. Nao stio estas fases, porém, estiticas, mas estio dialeticamente co-implicadas, ten- do como niicleo a nogdo concreta de sujeitos da relagao obrigacional, visualizados em suas vicissitudes. A vista desta estrutura e de sua peculiar sistematizagao, cabe uma apreciagao de ordem geral acerca do fenémeno do adimplemento, e de seu reverso, 0 inadimplemento - objetos dos Titulos Ife IV do Livro I da Parte Especial do novo Cédigo Civil - pois, para a sua compreensio, essencial é situar as perspectivas da processualidade e da totalidade que marcam o contemporaneo Direito das ObrigagGes.”* Estas perspectivas, conexas € complementares, dardo a chave que permitira compreender a razio pela qual ‘muitos dos dispositivos do novo Cédigo, ainda que nio tenham tido o seu valor facial, ou literal, alterado em relag&o ao Cédigo de 1916, ensejam a construgdo de novos institutos no ambito da Teoria do Adimplemento, pro- vocando 0 alargamento de seu conceito, e, consequentemente, do proprio cconceito de inadimplemento. 3. A construg&io moderna do conceito de obrigagdo e de relagio obrigacional Como tudo no Direito, a idéia de obrigagdo, e de relagdo obrigacional, 86 €compreensivel na Historia, Cabe, assim, um breve passar de olhos acerca 25 Vide, pr todas, ALMEIDA COSTA, MirioJilio. Direto das Obrigacdes, * ed, Coimbra Almedina, pp. 63 4 78, e COUTO E SILVA, Clovis. A Obrigado como Processo, Sto Paulo, Bushatsky, 1976. ul COMENTARIOS Ao NOVO CODIGO CIVIL da trajetéria do conceito de obrigagio na Modernidade, ” para que possa- ‘mos compreender em sua plenitude a idéia ora denotada pela estrutura e pelo contetido do Cédigo Civil. A doutrina civilista desde Savigny cabe 0 mérito de se ter ocupado exaustivamente do conceito de obrigagio, e, mais ainda, o de “relagao obrigacional”, o qual, em nossos dias, encontra-se “abundantemente explo- +rado até os seus mais recénditos aspectos”,” Por forga da obrade Savigny”" predominaram, inicialmente, as doutrinas “pessoalistas”, que ttmemcomum aidéia da obrigacao como um direito a uma atividade humana. Diz-se “‘pessoalista” essa concepcao por entender-se que o direito do credor € um direito a uma aciio do devedor, direito que nasceria de um po- der da vontade, e que corresponderia ao direito de proptiedade, pois “a obrigagdo e a propriedade tém uma natureza idéntica na me- ida em que ambas estendem o império da nossa vontade sobre uma porgdo do mundo exterior.” ai, por exemplo, adefinigdo da obrigagdo proposta por Beviléqua, para ‘oqual a obrigagao, 126 Para um exame até a Moderaidade vea-te GAZZANIGA, J. L.Iuroduction historique au droit des obligations. Pais: PUF, 1992; VOLANTE, Rafzelle. Il Sistema Contrartuale {el Dirito Comune Classico: Strattara dei Pate Individuazione de Tipo. Glosstorie Utramontani. Miao: Giufre, 2001 (Collana Pe la Storia del Pensiro Giuridico Moder tno, vol 60); ¢ HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentaes del Derecho Civil. “Tradusio espanhola de Pablo Salvador Coderch. Barcelona: Ariel, 1987, pp. 77-80. 27 Acexpressio ¢ de MENEZES CORDEIRO, A. M, Direto das Obrigagdes. Lisboa: Asso ciagio Académiea da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980, vol. 1, p. 171 28 SAVIGNY, F.K. Traité de Droit Roman, Tradusio de Ch. Ghenoux. Paris: (6., 1840, tomo I 29. SAVIGNY, F. K, Traité de Droit Roman. Tradugio de Ch, Ghenoux. Paris: {s.n], 1840, tomo I, p. 333. 2 INTRODUCAO GERAL “6 arelagdo transitéria de direito, que nos constrange a dar, fa- zer ou nfo fazer alguma coisa economicamente aprecivel, em proveito de alguém, que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude de lei, adquiriu o direito de exigir de nés essa ago ou omissio,””” definigo endossada por grande parte da doutrina civilista brasileira.” E tam- bbém derivada da concepedo pessoalista aidéia de a obrigagio constituir “um vinculo juridico entre duas partes, em virtude do qual uma delas fica adstrita a satisfazer uma prestagao patrimonial em proveito de outra, que pode exigi-ta, se no for cumprida espon- taneamente, mediante agressio ao patriménio do devedor.””™ Opessoalismo, derivado de Savigny, adquiriu, no curso do século XX, notavel aperfeigoamento, estando no cerne dessa concepgo 0 reconheci- mento de uma estrutura unitdria bem como uma feigdo pessoal, vale di- zer, a obrigagao resulta de uma ligagiio entre pessoas ou sujeitos juridicos,” constituindo 0 vinculo uma relagdo entre dever e pretensao, em suma, uma relagdo entre duas vontades.”* Assim define ainda hoje, de modo sintéti- 30. BEVILAQUA, Cl6vis. Cédigo Civil dos Estados Unidos do Brasil, 3 ed. Rio de Janeiro Francisco Alves, 1930, Tomo LY, p. 6. 31, Exemplifcativamente, BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil: Di rei das Obrigatder. 11" ed, S¥0 Paulo: Saraiva, 1976, I" parte, p. 8; AZEVEDO, varo Villas. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigagdes. "ed, rev aval Si Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 31 32 Assim GOMES, Orlando. Obrigardes. 1S ed, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p10 33, Para est andlise, MENEZES CORDEIRO, A. M. Direito das Obrigages. Lisboa: Asso- ciagdo Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980, vol. 1 pp. 177-178 34 Assim COMPARATO, Fabio Konder. Essai d’Analyse Dualiste de L’Obligation en Droit Privé. Pais: Dalloz, 1964, Ttroduction,p. 2, a0 analizar as doutrinas voluntarstas

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